A maconha e o cérebro

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A maconha e o cérebro - Parte I 7 Outubro 2008 | Publicado por Editor BRAHA em Drogas Psicoativas Há menos de trinta anos, acreditava-se que o princípio ativo da maconha (Cannabis sativa), o tetrahidrocanabionol (THC), agia sobre o sistema nervoso central de forma inespecífica, ou seja, perturbava o cérebro como um todo. Posteriormente, foram descobertos receptores específicos para o THC e outros alcalóides canabinóides. Além disso, canabinóides sintetizados pelo próprio organismo (endógenos) também foram identificados. O presente artigo, escrito por Leslie Iversen, é resultado uma revisão do autor sobre a neurobiologia do THC. O artigo será comentado em quatro partes: a primeira abordará a anatomia do sistema canabinóide endógeno; a segunda sua fisiologia básica; a terceira ação do sistema nas diferentes regiões do cérebro e a quarta, a ação da maconha sobre o sistema. Com a finalidade de aprofundar ainda mais o conteúdo deste artigo, foram incluídas também informações do livro Cannabis and cognitive function, da pesquisadora da University of New South Wales – Austrália, Nadia Solowij (Cambridge University Press; 1998). As descrições das estruturas anatômicas do sistema nervoso foram obtidas no livro Neuroanatomia funcional, do Prof. Dr. Ângelo Machado, da Universidade Federal de Minas Gerais (Atheneu; 1988). O THC O Tetrahidrocanabionol (THC) é um alcalóide encontrado na resina que recobre os brotos fêmeos do cânhamo (Cannabis sativa ou Cannabis indica). Além do THC, a resina contém cerca de 60 compostos canabinóides, como o canabidinol e o canabinol. Todos, no entanto, bem menos ativos que o THC. O THC é lipossolúvel, ou seja, capaz de ser dissolvido em gorduras. A maneira mais eficaz para disponibilizar a substância no organismo é fumando os brotos da planta, ou acrescentando-os a comidas gordurosas. A anandamida O sistema nervoso central possui neurotransmissores (canabinóides endógenos), cujas moléculas são semelhantes à molécula de THC. Todos eles derivam do ácido aracdônico. Até o momento, três canabinóides foram identificados: a anandamida (N-aracdonil-etanolamina), o 2- aracdonilglicerol e o 2-aracdonilgliceril éter. A anandamida é a mais conhecida e estudada. A palavra deriva do sânscrito e significa “prazer”. Na religião Veda, a maconha era

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A maconha e o cérebro - Parte I

7 Outubro 2008  |  Publicado por Editor BRAHA em Drogas Psicoativas

Há menos de trinta anos, acreditava-se que o princípio ativo da maconha (Cannabis sativa), o tetrahidrocanabionol (THC), agia sobre o sistema nervoso central de forma inespecífica, ou seja, perturbava o cérebro como um todo. Posteriormente, foram descobertos receptores específicos para o THC e outros alcalóides canabinóides. Além disso, canabinóides sintetizados pelo próprio organismo (endógenos) também foram identificados. O presente artigo, escrito por Leslie Iversen, é resultado uma revisão do autor sobre a neurobiologia do THC. O artigo será comentado em quatro partes: a primeira abordará a anatomia do sistema canabinóide endógeno; a segunda sua fisiologia básica; a terceira ação do sistema nas diferentes regiões do cérebro e a quarta, a ação da maconha sobre o sistema. Com a finalidade de aprofundar ainda mais o conteúdo deste artigo, foram incluídas também informações do livro Cannabis and cognitive function, da pesquisadora da University of New South Wales – Austrália, Nadia Solowij (Cambridge University Press; 1998). As descrições das estruturas anatômicas do sistema nervoso foram obtidas no livro Neuroanatomia funcional, do Prof. Dr. Ângelo Machado, da Universidade Federal de Minas Gerais (Atheneu; 1988). O THC O Tetrahidrocanabionol (THC) é um alcalóide encontrado na resina que recobre os brotos fêmeos do cânhamo (Cannabis sativa ou Cannabis indica). Além do THC, a resina contém cerca de 60 compostos canabinóides, como o canabidinol e o canabinol. Todos, no entanto, bem menos ativos que o THC. O THC é lipossolúvel, ou seja, capaz de ser dissolvido em gorduras. A maneira mais eficaz para disponibilizar a substância no organismo é fumando os brotos da planta, ou acrescentando-os a comidas gordurosas. A anandamida O sistema nervoso central possui neurotransmissores (canabinóides endógenos), cujas moléculas são semelhantes à molécula de THC. Todos eles derivam do ácido aracdônico. Até o momento, três canabinóides foram identificados: a anandamida (N-aracdonil-etanolamina), o 2-aracdonilglicerol e o 2-aracdonilgliceril éter. A anandamida é a mais conhecida e estudada. A palavra deriva do sânscrito e significa “prazer”. Na religião Veda, a maconha era chamada de ananda. A anandamida é quatro a vinte vezes menos potente que o THC, além de agir por menos tempo no cérebro. Recentemente, descobriu-se que constituintes do chocolate estão quimicamente relacionados com as anandamidas e são capazes de interação com o sistema canabinóide. Isso poderia explicar a fissura que algumas pessoas sentem por este alimento. Os canabinóides do cérebro são liberados em seu local de ação e inativados pela enzima FAAH. A síntese e a liberação dos endocanabinóides são feitas por estruturas diferentes do cérebro, sendo o 2-aracdonilglicerol muito mais abundante (50 a 1000 vezes) que a anandamida. Os receptores canabinóides O sistema nervoso central humano também possui receptores específicos para os canabinóides endógenos e o THC. O conjunto formado pelos receptores e neurotransmissores constitui o sistema canabinóide endógeno. 

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Há dois tipos de receptores canabinóides conhecidos: o CB1, presente em todo o cérebro (próximo às terminações nervosas de neurônios pertencentes a outros sistema) e o CB2, localizado em tecidos periféricos, especialmente no sistema imunológico. As áreas do sistema nervoso com maior densidade de receptores CB1 são o córtex frontal (raciocínio, abstração, planejamento, etc), os núcleos da base (motricidade) e o cerebelo (coordenação e equilíbrio). O sistema límbico, responsável pela elaboração e expressão dos fenômenos emocionais, também é rico em receptores CB1, especialmente no hipotálamo (coordenação das manifestações emocionais), hipocampo (memória emocional e inibição da agressividade) e giro do cíngulo (controle dos impulsos). A ausência de receptores CB1 na medula espinhal explica a baixa toxicidade do THC quando administrado em doses elevadas. Quanto à localização na sinapse, os receptores CB1 estão posicionados na membrana pré-sináptica de outros sistemas. Isso significa que a função do sistema canabinóide é a de modular a liberação de outros neurotransmissores. Esse assunto será tratado no próximo capítulo desta série. Fonte: Site Álcool e Drogas sem Distorção

Parte II

O sistema canabinóide endógeno, conforme o capítulo anterior, está presente de maneira difusa em todo o cérebro.

Os receptores canabinóides tipo 1 (CB1) estão localizados nas membranas pré-sinápticas de diversos sistemas de neurotransmissão. Receptores pré-sinápticos modulam a secreção de neurotransmissores, isto é, determinam que quantidade dessas substâncias será liberada na sinapse. Portanto, o sistema canabinóide influencia a intensidade com que outros sistemas agem sobre o cérebro.

O sistema GABA e o sistema glutamato

O sistema GABA é considerado o sistema inibitório do sistema nervoso, ou seja, diminui a ação das outras estruturas do cérebro. Alguns medicamentos (calmantes) e substâncias (álcool) ativam diretamente esse sistema, provocando níveis variados de sedação, que vão da redução da ansiedade ao coma.Ao contrário, o sistema glutamato é excitatório, isto é, sua ação estimula o sistema nervoso. Ambos, inibitório e excitatório, trabalham em sintonia. Nos momentos de relaxamento, despreocupação e sono, prevalece o sistema GABA, enquanto o sistema glutamato predomina nas ações que requerem atenção e vigília.

O sistema canabinóideO sistema canabinóide é formado pelo conjunto de receptores CB1 (cerebrais) e CB2 (periféricos) e por neurotransmissores como a anandamida. A atividade do sistema canabinóide é capaz de inibir tanto o sistema GABA, quanto o sistema glutamato. Dessa forma, parece ser responsável pela modulação da atividade inibitória e excitatória do cérebro. Assim, em períodos de maior atividade (trabalho, estudo, jogos que requeiram atenção e concentração), o sistema canabinóide exerce inibição sobre o sistema GABA. Já em períodos marcados pela tranqüilidade e pela despreocupação, a ação canabinóide recai sobre o sistema glutamato.

Mecanismo de ação do sistema canabinóide

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Para que o bloqueio exercido sobre GABA e glutamato tenha sucesso, a anandamida parece agir impedindo a formação de energia (AMPc), necessária para que os neurotransmissores sejam liberados na sinapse. A maneira precisa pela qual a anandamida e o THC bloqueiam estes sistemas permanece incerta. Tal fenômeno parece estar relacionado a um sistema de sinalização retrógrada rápida, que envolve os canais de íon cálcio (Ca+). O modelo proposto foi denominado supressão do sistema inibitório induzido pela despolarização (DSI). Tal modelo sugere que a membrana pós-sináptica ao ser ativada pelo neurotransmissor GABA (inibitório) provoca um aumento do fluxo de íons cálcio (Ca+) para dentro da membrana. Esse influxo libera anandamida para fora da sinapse. A anandamida se liga aos receptores CB1 na membrana pré-sináptica. Tal ligação bloqueia o processo energético que possibilitava a liberação de GABA na sinapse e o processo é interrompido.

A DSI pode ser comparada ao modelo da bica, do pêndulo e do recipiente com um ladrão. Ao ligar a água da bica (liberação GABA na sinapse) o recipiente começa a encher (atividade da membrana da pós-sináptica). Quando a água alcança o ladrão (atividade máxima desejada), forma-se o um fluxo (liberação de íons cálcio) que enche o balde fixado à bica (ligação da anandamida ao receptor CB1, com inibição do processo energético), elevando-a e interrompendo a entrada de água no recipiente (supressão do sistema inibitório).

Local de ação do sistema canabinóide

O sistema GABA e glutamato estão espalhados por todo o cérebro. Já o sistema canabinóide, apesar de difuso, está mais concentrado no córtex frontal, núcleos da base, cerebelo e sistema límbico. Essas estruturas estão intrinsecamente relacionadas às funções psíquicas superiores, à motricidade e ao comportamento emocional. As funções desempenhadas por estas estruturas são diretamente influenciadas pelos sistemas GABA e glutamato e moduladas pelo sistema canabinóide. A ação do sistema canabinóide sobre o cérebro será apresentada no próximo capítulo.Autor: Leslie Iversen *Fonte: Site Álcool e Drogas sem Distorção (www.einstein.br/alcooledrogas)/Programa Álcool e Drogas (PA

Parte III

O sistema canabinóide e a função motora Há uma grande concentração de receptores canabinóides nos núcleos da base e no cerebelo, regiões do sistema nervoso responsáveis pela coordenação da motricidade e do equilíbrio do corpo. Em experiências com animais (cachorros e ratos) observou-se um padrão de comportamento denominado “efeito pipoca”, isto é, diminuição da atividade motora (sedação) com resposta rápida e intensa aos estímulos externos (tato, sons, ect). Em seres humanos a maconha interfere na coordenação e no equilíbrio dos movimentos, além de deixar o usuário mais propenso ao ensimesmamento e à imobilidade. Isso pode ser explicado pela presença maciça de receptores CB1 nos terminais nervosos inibitórios (GABA) e excitatórios (glutamato), tanto no cerebelo, quanto nos núcleos da base. A ação combinada de GABA e glutamato regulam a atividade motora e sua intensidade (tônus muscular). Tal ação combinada parece ser modulada pelo sistema canabinóide, que passa a ser considerado como ‘o maestro’ da atividade motora basal nos seres humanos. Através da inibição retrógrada, o

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sistema canabinóide fortalece um ou outro sistema, dependendo das necessidades momentâneas do organismo. Há evidências parciais de que a maconha alivia a tensão muscular e a contração exagerada que dificulta o movimento (espasticidade), como acontece na esclerose múltipla. Estudos com animais obtiveram melhora destes sintomas quanto medicamentos à base de maconha foram administrados. Estudos clínicos controlados estão em andamento. O sistema canabinóide e a memória A memória para fatos recentes, especialmente quando depende da atenção, fica visivelmente prejudicada durante o consumo de maconha. O local responsável pela ocorrência deste fenômeno é provavelmente o hipocampo. O hipocampo é parte integrante do sistema límbico. A presença do THC torna esta estrutura incapaz de segregar informações provenientes de diversos locais e situações, devido a déficits no processamento das informações sensoriais. O hipocampo é rico em terminações nervosas inibitórias (GABA) e excitatórias (glutamato). A ação conjunta e sincrônica de ambas cria uma situação de extrema plasticidade nas sinapses do hipocampo para regular a recepção e o processamento das informações advindas do ambiente externo. Desse modo, situações que requerem da memória grande esforço e atenção, aumentam a atividade excitatória (potencialização de longa duração – LTP). Quando não a aquisição de informação não é enfatizada (por exemplo, o olhar despreocupado e relaxado pela janela de um ônibus durante uma viagem), a ação inibitória (GABA) prevalece (depressão de longa duração – LTD). A ação do sistema canabinóide (anandamida) e do THC inibem de forma retrógrada ambos sistemas, sendo o sistema excitatório bloqueado com mais intensidade. Com isso, há prejuízo na habilidade dos circuitos nervosos do hipocampo na recepção e no processamento das informações, dificultando a fixação dos fatos ocorridos durante o consumo de maconha. O sistema canabinóide e o neocórtex A palavra córtex deriva do grego e significa casca. O córtex é uma fina camada entre dois e seis centímetros que reveste e faz parte do cérebro. Ele é formado pelo agrupamento de neurônios, que recebem e interpretam as informações do meio ambiente e por neurônios que planejam e executam a melhor resposta para cada situação. Durante a evolução, o córtex aumentou significativamente, chegando ao seu maior grau de desenvolvimento na espécie humana. Isso explica o aparecimento das funções psíquicas e intelectuais no homem. A partir de sua evolução, o córtex foi dividido em arquicórtex (presente desde os peixes), paleocórtex (presente desde os anfíbios) e o neocórtex (presente desde os répteis, mas predominante nos mamíferos). As duas estruturas corticais primitivas ocupam apenas uma pequena parte do córtex humano, ligadas à olfação e ao comportamento emocional (sistema límbico).O neocórtex é responsável pelo controle motor e das funções cognitivas superiores, tais como inteligência, abstração, raciocínio, planejamento e julgamento. Há uma grande concentração de receptores canabinóides (CB1) no neocórtex. A ação do sistema canabinóide nesta região causa sonolência, enquanto a inibição, aumento da atenção e da vigília. Desse modo, conclui-se que a atividade canabinóide neocortical está relacionado ao controle do ciclo sono-vigília. Quanto à percepção, não se observaram alterações na qualidade da captação de sons e cores, apesar da maioria dos usuários relatar aumento da percepção visual e auditiva, muitas vezes em sinergismo (“os sons têm cores e as cores têm sons”). Outro achado é a percepção demora na passagem do tempo. Outros fenômenos relacionados à ação do sistema canabinóide sobre o neocórtex são: redução da habilidade em inibir respostas (desinibição), diminuição do estado de vigília (sonolência, “chapação”), especialmente para atividades longas e entediantes e piora da habilidade em realizar mentalmente raciocínios aritméticos complexos. Por outro lado, operações aritméticas e de aprendizagem simples, bem como a memória de longa duração encontram-se inalterados. 

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A existência de prejuízos cognitivos permanentes não é consensual. Acredita-se que o uso crônico e pesado provoque déficits cognitivos discretos, em sua maioria reversíveis com a abstinência. No entanto, prejuízos pequenos, mas significativos podem permanecer. Tal quadro seria improvável em usuários eventuais. O sistema canabinóide e o apetite A capacidade da maconha em desencadear fome em seus usuários, ainda que recém-alimentados, é bastante conhecida e chamada popularmente de “larica”. O apetite é direcionado para alimentos adocicados e às vezes para misturas doces e salgadas pouco usuais (perversão do apetite). Estudos vêm demonstrando que o THC é benéfico na indução do apetite e no combate à perda de peso em pacientes com AIDS. Seu consumo com estes propósitos é permitido na Holanda, Canadá, Suíça e em alguns locais dos Estados Unidos. A ação do sistema canabinóide sobre o apetite ocorre provavelmente no hipotálamo. Estudos em animais notaram que o estímulo do sistema nessa região provoca aumento da ingesta (especialmente de alimentos doces), enquanto o bloqueio, leva à supressão da mesma. O hipotálamo sintetiza um hormônio supressor do apetite, denominado leptina. A anandamida é capaz de bloquear a ação deste hormônio. Desse modo, o sistema canabinóide opera como modulador da ação da leptina, regulando, assim, a ingestão de alimentos e o ganho de peso do organismo. O sistema canabinóide e a inibição do vômito A habilidade do THC e do canabinóide sintético nabilone para controlar a náusea e o vômito associados à quimioterapia é uma das poucas aplicações terapêuticas da substância bem documentadas e consensuais. De fato, a ação sobre os receptores CB1 inibe o vômito, ao passo que o bloqueio produz efeito contrário. O substrato neurobiológico e o mecanismo de ação exato permanecem desconhecidos. O sistema canabinóide e a dor No século XIX, a maconha foi largamente utilizada para o alívio da dor. Recentemente, esta propriedade voltou a ser estudada, apesar dos achados até o momento não indicarem vantagens iguais ou superiores aos medicamentos já existentes. Anandamidas e receptores canabinóides existem em grande quantidade ao longo de todo o circuito da dor (da inervação periférica, passando pela medula espinhal e chegando ao cérebro. Desse modo, estudos vêm demonstrando que o sistema canabinóide é capaz de diminuir a sensibilidade à dor em doenças inflamatórias e não-inflamatórias. O bloqueio do sistema não provoca aumento da sensibilidade à dor, sugerindo que este não está envolvido na modulação da sua intensidade. Há relação paralela, mas não distinta, entre o sistema canabinóide e o sistema opióide. Apesar de atuarem em vias distintas, ambos atuam comumente em alguns locais do sistema nervoso e parecem potencializar um ao outro. Fonte: Site Álcool e Drogas sem Distorção