A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA...

160
A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara beleza, dançando na feira, mas era selvagem e maltrapilha. Encantou-se por ela e prometeu ajudá-la de alguma forma. Robin, guiada por um impulso desesperado, resolveu aceitar a oferta, afinal, era a filha de um presidiário agora e não tinha para onde ir. Mas logo percebeu que ele era um homem egoísta, levava uma vida luxuosa e sem ideais, tinha amigos bajuladores, e passou a expô-la ao ridículo. Além disso, Robin, ainda sofria com as armações de uma mulher interesseira, que pretendia fisgar Kay. Diante disso, Robin decidiu dar uma dura lição em Kay, seria algo ele jamais esqueceria... e ela sabia do risco que corria, e precisava aceitar o desprezo dele depois. Disponibilização: MARISA HELENA Digitalização: MARINA Revisão: TALISSA

Transcript of A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA...

Page 1: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN

CONCORDIA MERREL

Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

beleza, dançando na feira, mas era selvagem e maltrapilha. Encantou-se por ela e

prometeu ajudá-la de alguma forma. Robin, guiada por um impulso desesperado, resolveu

aceitar a oferta, afinal, era a filha de um presidiário agora e não tinha para onde ir.

Mas logo percebeu que ele era um homem egoísta, levava uma vida luxuosa e sem

ideais, tinha amigos bajuladores, e passou a expô-la ao ridículo. Além disso, Robin, ainda

sofria com as armações de uma mulher interesseira, que pretendia fisgar Kay. Diante

disso, Robin decidiu dar uma dura lição em Kay, seria algo ele jamais esqueceria... e ela

sabia do risco que corria, e precisava aceitar o desprezo dele depois.

Disponibilização: MARISA HELENA

Digitalização: MARINA

Revisão: TALISSA

Page 2: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

CAPITULO I

Kay Hallam chegara ao dia em que completava seus vinte e cinco anos de idade,

sofrendo da fatal habilidade de fazer diversas coisas puramente supérfluas, com uma

noção por completo errônea dessas aptidões e com uma considerável fortuna.

Era um pouco ator, um pouco escritor, um pouco cantor e, porque acaso se

distinguia mais em pintura, proclamou-se a si próprio artista, alugou um magnífico atelier

em Chelsea, bem provido de telas em branco, pincéis, estojos de tinta, e se dispôs a

encher o tempo, discutindo arte.

Acreditava-se francamente capaz de conquistar, um dia, a admiração de toda

Londres.

Bom coração, impulsivo, correto, sem um sentimento equivoco, poderia ter feito

alguma coisa útil na vida se um pai milionário não o tivesse, tão generosamente, provido

de dinheiro.

Nessas condições, em pouco tempo se viu rodeado de um enxame de amigos

fáceis, cuja principal virtude era uma ilimitada capacidade para se divertirem, — á sua

custa, naturalmente. Eis aí por que Kay começava a adquirir o habito de passar a vida de

diversão em diversão.

Seu atelier era, em geral, cenario de alguma festa; as telas continuavam imaculadas,

os pincéis nos estojos e as tintas nos tubos. Ele, porém, continuava a discutir

acaloradamente sua arte.

Mas, no dia do seu vigésimo quinto aniversario, o fado incumbido de vigiar Kay

Hallam cansou-se, repentinamente, de esperar que toda Londres o aclamasse um idolo e

achou que era chegada a hora de agarrar aquele jovem pelas orelhas e levá-lo a um

destino diferente.

E o levou para junto de Robin, a Maltrapilha, do seguinte modo:

Para celebrar seu aniversario, organizou Kay uma excursão — geralmente a

comemoração dessa data durava uma semana — a bordo do seu branco iate, Adriana,

fundeado em Romansgold Creek, Little Molesbury (Essex).

O grupo de excursionistas era formado por Alison Tearle, uma loura muito elegante e

cheia de vontades, que, segundo o que se dizia, muito em breve se tornaria Mrs. Kay

Hallam; Mahyew Tearle, pai de Alison; Mrs. Pennington, um pouco tola mas bonita, meiga

de índole, e Andrew Fable, o amigo intimo de Hallam, perfeito sob todos os pontos de

vista.

Quando sairam de Chelsea o tempo mostrava-se magnífico e uma suave brisa

soprava, mas, já pelo meio-dia, ao chegarem á aldeia de Molesbury, formou-se um pé de

vento, cuja velocidade devia ser de umas quarenta milhas por hora; começou a chover

torrencialmente e a formidável tempestade oferecia um espetaculo maravilhoso ao longo

do grande rio.

Não havia, pois, outro remédio, senão tocarem em linha reta para Creek House,

onde, á margem do rio, tinha Hallam um pequeno e confortável cottage, e ordenar a Mrs.

Page 3: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Dawkins, sua velha caseira, que fizesse os preparativos necessários para que todos os

excursionistas pudessem passar ali a noite.

Alison se aborreceu horrivelmente e deu demonstrações disso em tom e maneiras

peculiares ás pessoas excessivamente mimadas, quando acaso se vêem contrariadas.

Kay, porém, extremou suas atenções para com ela até a hora do lunch1, findo o qual

propôs a todos darem um passeio, em vista de ter o tempo inesperadamente serenado.

Só Mahyew Tearle preferiu ficar em casa com um livro e um charuto.

— Porque não embarcamos agora para dar inicio á excursão? — perguntou Alison,

enquanto passeavam, gozando a atmosfera fresca e transparente que a chuva purificara.

— Porque não há maré — respondeu Hallam.

— E que importância tem isso?

Hallam sorriu.

— Alison, demonstras uma perfeita e deliciosa ignorância das planícies pantanosas

de Essex. Não poderemos sair enquanto a agua não tiver subido bastante.

— E quando subirá esta cacetissima e estúpida maré?

— Ainda teremos que esperar umas duas horas. Só lá pelas oito.

— E poderemos partir, então?

— Mais vale irmos para bordo e sairmos do rio com a luz do dia.

— E a maré seguinte quando é?

— Numa hora em que estarás ressonando tranquilamente na tua camazinha.

— Oh, que grande caceteação! Quando partiremos, afinal?

— Amanhã, ao meio-dia.

— Todo esse tempo aqui? Oh, Kay!

— Mas, minha cara, não sou eu o culpado.

Com um sorriso tomou-lhe carinhosamente uma das mãos. Kay tinha um sorriso

persuasivo e atraente, que causara maiores danos á paz de espirito de Alison do que ele

poderia imaginar; a jovem, como todo o mundo, estava mais que convencida de tornar-se

um dia Mrs. Kay Hallam. Dava isto por coisa decidida; mimada como era, estava

habituada a conseguir tudo que desejava e Kay era o único homem no mundo que lhe

servia. Este ultimo não sabia disto, apesar de ser uma circunstancia sabida e comentada

por todos. Embora dedicasse um grande afeto a Alison, a idéia de um casamento com ela

ou com qualquer outra, ainda não tomara uma forma definitiva em seu espirito.

— Claro que a culpa é tua — aparteou Andrew Fable, rindo-se. — Para que serve

um hospedeiro senão para suportar as reclamações de seus hospedes diante dos

acontecimentos que lhes vêm prejudicar o conforto?

Hallam riu-se com o amigo, mas Alison, enrubescida, voltou-se para Fable.

Acreditava ela que ultimo não visse com bons olhos sua amizade com Kay e estava

quase certa de que sua intenção fora irritá-la.

— Andy acha que, por ser escritor, deve se mostrar sempre ou muito engraçado, ou

muito inteligente — disse ela.

Fable contemplou-a com uma expressão brejeira nos olhos bondosos.

1 Almoço

Page 4: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Desvaneces-me — replicou ele.

— Não faças caso do que ele diz — aconselhou Mrs. Pennington que, como toda

gente, mimava Alison.

— Sim, nem eu permito que alguém a importune — acrescentou Kay como se

estivesse lidando com uma criança.

Nada encantava mais a Alison do que se ver tratada assim e isso concorreu muito

para serenar-lhe o animo.

Deixaram a rua principal e passaram para os becos sujos e estreitos da parte baixa

da aldeia.

Fable, levemente carrancudo, ia atras, conversando com Mrs. Pennington.

— Não desejas que isso aconteça, não é verdade? — perguntou, de súbito, Mrs.

Pennington.

— A que se refere? — replicou Fable.

Com um movimento de cabeça ela indicou Alison e Kay, que, mais á frente,

caminhavam de braços dados.

— Por que pensas assim? — indagou Fable.

— Oh, por nada! Nunca penso nada. Não tenho cabeça, mas ás vezes percebo as

coisas — replicou Mrs. Pennington, sorrindo.

— Kay é um excelente rapaz! — considerou Andrew.

— Bem, mas tu...

— Oh, nada tenho a objetar. Porventura isso já está combinado?

— Por parte deles não, porém, por parte dos outros, sim.

— Kay precisa que o animem.

— E quem poderá fazê-lo?

— Quem sabe ela...

— É que... — Mrs. Pennington não pôde terminar sua frase, pois, subitamente,

ouviram-se as notas alegres de uma charanga. — Oh! que é isso? — perguntou ela com

os olhos muito abertos.

Alison e Hallam, que haviam parado, se voltaram.

— O som vem de lá — observou Hallam, indicando o campo.

— Oh! quantas luzesinhas! — exclamou Alison, que já estava novamente de bom

humor.

— É uma feira! — acrescentou Mrs. Pennington. — Vejo o toldo das barracas e uma

porção de bandeirinhas multicores. Vamos até lá! Faz muitos anos que não vejo uma

festa semelhante.

Todos se riram de sua excitação; mas os risos cessaram imediatamente: é que o

vento trazia, além dos acordes da charanga, as notas cristalinas de uma deliciosa voz de

mulher, clara, melodiosa e firme. Acompanhando a musica rústica, a voz subia, morria,

ressurgia para tornar a morrer; tinha acentos de pranto e estridências de riso e acabou

por encher o ambiente crepuscular de sons que pareciam ecos de um sino harmonioso.

Ficaram todos imoveis, ouvindo em silencio, até que a ultima nota se perdesse. Mrs.

Pennington foi a primeira a falar:

— Meu Deus, que voz! — exclamou, boquiaberta ante tanta beleza.

— Mas que diabo fará uma voz destas, perdida neste deserto? — perguntou Fable.

Page 5: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Já sei como tirar isso a limpo — atalhou Hallam. — O som vem da feira, não é?

Fable concordou em silencio.

— Pois então, vamos até lá para trazer o misterio á luz do dia — propôs Kay.

Rodearam o campo e viram-se diante de um enorme portão, já quase em minas, que

dava entrada ao recinto da feira. Compraram bilhetes e entraram.

Uma vez dentro, se detiveram um momento para acostumar a vista á luz bruxoleante

das velas de parafina e os ouvidos á barafunda de vozes estridulas que se erguia á volta

deles.

Grandes risadas vinham dos balanços; um vendedor de cocos apregoava com toda

a força de seus fortes pulmões: "Dois cocos por um penny!"

E, sob a luz fosca da tarde, girava o grande carrocel com seus cavalos, cisnes e

avestruzes, entre o brilho dos florões de latão e a estridencia da musica.

Inesperadamente, ergueu-se de novo a voz maravilhosa, não no compasso igual e

monótono de uma aria determinada, mas sim modulando as mais suaves cadências.

Seguindo a direção do som, Hallam e seus amigos chegaram a uma roda de

marítimos com suas mulheres, filhos e noivas, no centro da qual puderam ver a cantora.

Naquele momento ela dançava; a mais delicada figurinha imaginável, tão leve e

esvoaçante que dificilmente se assemelhava a um ser humano; tão instintivamente

graciosa, em seus movimentos, que cada pose sua era digna de um quadro. Ao ritmo

discordante de um estranho instrumento musical que, a um canto, um homem manejava,

executava ela seus passos alegres e suas originais piruetas; sua pequenina saia

mostrava-lhe os joelhos, no gracioso revolutear dos farrapos que a formavam; seus

braços nus brilhavam aos reflexos frouxos da luz alaranjada das velas e, de momento em

momento, seus lábios deixavam escapar trechos da canção que marcavam as batidas de

seus pés descalços.

— Por Júpiter, que quadro! Daria tudo para pintá-lo! — exclamou Hallam com sua

sensibilidade de artista realmente excitada.

Alison, que continuava com o braço enlaçado ao dele numa atitude de proprietária

absoluta, fez cara de aborrecimento.

— Vamo-nos — disse ela. Já a vimos dançar bastante.

Mas ninguém pareceu ouvi-la.

— É adorável, não? — comentou Fable.

— Nunca vi nada mais sedutor — aparteou Mrs. Pennington.

— Mas quem será esta menina? — perguntou Kay.

Um marinheiro que estava ao seu lado, retirando da boca um pequeno cachimbo,

respondeu:

— Essa que está dançando? É a filha do velho Golden, aquele que mora com

Bealby lá em baixo, em Creek House.

— Pertence ela ao pessoal desta feira? — perguntou Hallam.

— Não; mas ás vezes dão-lhe qualquer coisa para dançar porque atrai gente.

Chama-se Robin. Nós, porém, a tratamos por "Robin, a Maltrapilha" — acrescentou o

homem, rindo-se.

Ao ouvir pronunciar seu nome, a pequena dançarina interrompeu seu bailado e,

equilibrando-se um momento nas pontas dos pés, passeou os grandes olhos escuros e

Page 6: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

assustados por cima das cabeças que estavam na frente e fixou-os no rosto de Hallam,

faces rubras e lábios entreabertos. A cabeleira curta e negra emoldurava-lhe o rosto com

graciosos anéis.

Praticamente era a primeira vez que Hallam fixava o semblante da jovem e foi

obrigado a conter a respiração tal a sua formosura. Jamais vira criatura mais fascinante.

Insensivelmente qualificara-a de menina. Mas teria acertado? Não seria antes uma

mulher? Ou quem sabe uma fada?

De fada eram as madeixas negras e revoltas que lhe circundavam o rosto radiante.

De criança aqueles olhos escuros que o fitavam assustados. Mas de mulher eram os

lábios que se cerravam, formando uma linha arroxeada por cima do queixo oval; de

mulher altiva, o jeito de erguer o busto e atirar para traz a pequenina cabeça orgulhosa,

diante dos olhares de admiração de um homem desconhecido.

Subitamente a jovem voltou-se para um grupo de meninos que havia por traz de si:

— Dê-me meus sapatos! — gritou com certa violência. — Quem pegou meus

sapatos?

Quando lhes deram, calçou-os rapidamente, lançou mais um olhar de desafio a

Hallam e desapareceu por traz do grupo de curiosos.

Hallam riu-se; não podia deixar de rir. Que absurdo teria passado pela cabeça

daquela pequena? Que ele ia come-la? O gesto orgulhoso de sua deliciosa cabecinha!

Ofender-se tanto por um simples olhar de admiração! E, contudo, agradava-lhe aquele

pudor selvagem e sincero. E como era encantadora, cheia de vida, espiritualidade e

alegria!

Um ríspido puxão em seu braço trouxe-o novamente á realidade.

— Kay, — disse a voz insultada de Alison, — vamo-nos daqui pelo amor de Deus!

Andy e Mrs. Pennington foram dar uma volta no carrocel.

— Mas, Alison, não achas que ela é um pessego? — replicou Kay. — Não daria um

quadro com sua cabeleira negra, todos aqueles farrapos esvoaçando á sua volta e

aqueles adoráveis olhos assustados?

Alison meneou a cabeça desdenhosamente.

— Francamente, Kay, estás fazendo um papel ridículo — volveu ela. (Está claro que

os olhos de Alison eram cinzentos). — Não achas que ela é demasiadamente vulgar? —

acrescentou friamente.

— Por que? Você mesmo afirmou que sua voz era maravilhosa.

— Oh, a distancia, sim! Mas de perto seu encanto ficou reduzido á expressão mais

simples. — (Subitamente lançou um olhar á roda e, voltando-se rapidamente, acrescentou

em voz mais alta). — O que acho melhor nela é o nome — Robin, a Maltrapilha. Assenta-

lhe muito bem porque, afinal de contas, não passa de um pequeno especimen vulgar,

esfarrapado e sujo, não achas?

Hallam tinha pavor a discussões, especialmente com pessoas de sua amizade; por

isso devemos declarar, em seu favor, que hesitou antes de responder:

— Oh! talvez! Mas bem sabes, querida, os olhos do artista vêem um pouco mais

longe.

Nesse momento, viram-se assediados por Mrs. Pennington, que insistia na idéia de

"arriscar a vida" no carrocel, para onde os arrastou em meio de risos e galhofas; por isso

Page 7: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Hallam não viu que Robin, a Maltrapilha, os grandes olhos negros faiscantes de

indignação, estava bem atras deles e estendera o braço para detê-lo, no que foi impedida

por uma fila de jovem alegres que, de braços enlaçados, abriam passagem pela multidão.

Alison e Kay acomodaram-se em dois avestruzes gêmeos, ela no circulo interior e

ele no exterior; a divertida roda começara a girar, quando um pequenino corpo saltou do

meio do povo, vindo abraçar-se ao pescoço do imponente avestruz que Hallam montava.

— Retire suas palavras! — exclamou Robin, a Maltrapilha, quase sem fôlego.

— Meu Deus! — gritou Hallam, segurando-a alarmado, pois o avestruz se erguia

majestosamente, levantando da plataforma o corpo da menina.

— Retire suas palavras imediatamente! — repetia ela, furiosa.

— Que palavras?... Mas pelo amor de Deus! Agarre-se bem que é capaz de cair...

Retirar o que?

— O senhor disse que sou vulgar e suja — explicou Robin.

— Eu não... — começou Hallam numa tentativa de protesto.

— O senhor não, mas ela sim.

E, passando o braço pela frente de Kay apontou para Alison, chegando quase a

tocar-lhe o rosto com o pequeno indicador.

— Kay! — exclamou esta ultima. — Como se atreve essa mulher a ofender-me?

Faze-a descer.

— Impossível. Esta maldita roda anda com demasiada velocidade — replicou Kay.

— Ela disse, e o senhor concordou — continuava Robin. — Eu posso ser vulgar e

maltrapilha, mas não suja. Tão pouco sou um "especimen", seja isso o que for!

— Kay! — gritou Alison, enfurecida. — Como admites que me insultem desse modo?

— Se os ceus permitissem que este desgraçado avestruz não subisse e descesse

com tanta rapidez! — replicou Kay, com um braço, sustentando Robin, para evitar que ela

caisse, com o outro, abraçado ao pescoço do avestruz. — Olhe aqui, — continuou,

voltando-se para a pequena bailarina, — não sabe que não se deve insultar ninguém?

— O que não se deve é chamar uma pessoa de suja quando isso não é verdade. Eu

não sou suja, o senhor pôde ver!

E Hallam viu. A blusinha que ela trazia estava tão limpa como a de Alison; a pele de

seu pequenino rosto enfurecido era branca e macia; a cabeleira sedosa e brilhante. Só

então o rapaz compreendeu, com um certo desapontamento, que uma satisfação era

devida, não a Alison, mas sim a Robin.

— Minha mãe era uma lady — dizia Robin — e meu pai tem negócios em Londres.

Suas palavras vinham impressas de um indescritivel tom de amor e orgulho.

Alison deu uma gargalhada de escarnio. Hallam, porém, tratou de disfarça-la,

dizendo:

— Lamento muito o que aconteceu e peço-lhe perdão. Eu... quero dizer, nós,

retiramos as expressões que a insultaram.

— Perfeitamente — replicou Robin. — Eu e o senhor estamos quites.

Alison sentia-se invadida por tal indignação, que não podia nem pensar nem proferir

uma única palavra; antes que pudesse coordenar seus pensamentos, o carrocel começou

a diminuir a marcha e Robin, livrando-se do braço de Hallam, saltou para a plataforma,

desaparecendo com a mesma precipitação com que surgira.

Page 8: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Então Alison exprimiu seu ressentimento com uma verdadeira tempestade de

palavras irritadas.

— Humilhares, a mim, diante de uma esfarrapada dessas! — exclamou. —

Francamente, Kay, é... é imperdoável!

— Mas, Alison...

— Oh, deixemos de lado esse estúpido incidente e voltemos para casa! A tarde foi

um completo fracasso, — replicou a jovem, sem esperar pelas desculpas de Kay.

Desceram do carrocel e Hallam ofereceu-lhe amistosamente o braço que foi por ela

recusado. As negociações da paz duraram mais de meia hora. Ao fim desse tempo Alison

já se acalmara e estava disposta a esquecer o sucedido, mas sem ceder em coisa

alguma; seu perdão devia ser implorado. Agradava-lhe comprovar assim seu dominio

sobre Kay.

— Kay — disse ela — não é bonito brigar deste modo.

— Certamente, minha querida Alison — concordou Hallam, encantado de pôr um

ponto final á discussão.

Já era tarde quando voltaram para casa e, não com pouca surpresa, encontraram

em grande excitação a pequena aldeia de Molesbury, cujos habitantes, acostumados a

deitar-se ás dez, formavam, áquela noite, vários grupos, conversando em plena rua.

— Reminiscencias da feira, suponho — comentou Fable.

Ao passarem por um grupo que se formara nos arredores da entrada de Creek

House, onde todos falavam agitadamente, Hallam perguntou:

— Que aconteceu?

Varias vozes responderam-lhe a um só tempo.

— Goraen, sir, o que mora com Bealby, foi preso por roubo. Agarraram-no em

Londres. É o pai da pequena Robin. Nós sempre desconfiamos que eles não fossem

muito honestos.

— Está bem — replicou Hallam secamente, conduzindo os amigos ao cottage, com

passo rápido.

— Pobre menina! — exclamou Mrs. Pennington, ao atravessarem o pequeno hall. —

É uma vergonha horrível!

Alison voltou-se para Hallam com olhos brilhantes.

— Filha de um ladrão. Oh, a miserável e estranha criatura! — murmurou

suavemente.

Mas, se as palavras pareciam compassivas, havia em sua voz um certo tom de

triunfo que as desmentia.

A aventura da tarde impressionara intensamente Hallam, tirando-lhe o sono e,

quando todos se retiraram para descansar, saiu para dar um passeio pelo jardim

enluarado; transpondo o portão de madeira que ficava ao fundo, escalou a muralha

inclinada que impedia o rio de tragar Creek House.

O nivel das águas estava baixo e o rio reduzira-se a uma estreita faixa de prata. A

pouca distancia, divisava-se seu elegante iate que resplandecia á luz da lua, balouçando-

se tranqüilamente á flor das águas.

Page 9: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Caminhou por cima da muralha, cujo topo era largo e plano, em direção a Roman's

Creek. A casa de Creek Island — ilha somente com a maré alta — parecia uma nodoa

negra na planície.

— A casa de Bealby — murmurou ao mesmo tempo que os acontecimentos da tarde

lhe voltavam á lembrança.

Chegou a um sitio onde a muralha se inclinava para o chão, formando quase um

angulo reto. Do lado do rio, junto a esse declive as sombras eram densas e aveludadas e,

inesperadamente, partiu do meio delas um rumor de soluços.

Hallam estacou e lançou um olhar para baixo; em meio da escuridão lobrigou

qualquer coisa branca no chão; o mesmo som abafado dos soluços chegou-lhe de novo

aos ouvidos e ele desceu até á margem do rio, disposto a investigar o que se passava.

De bruços sobre as rochas, o rosto apoiado nos braços, soluçava Robin, a

Maltrapilha, como si lhe houvesse despedaçado o coração.

Hallam parou e tocou-lhe de leve, no ombro; cessaram os soluços e, assustada, a

joven pôs-se rapidamente de joelhos. Mas, ao verificar quem era a pessoa que estava ao

seu lado, a expressão de terror que se estampara em seu rosto transformou-se em

ressentimento e desafio.

— Que quer? — perguntou com hostilidade.

— Não... não chore assim... por favor — gaguejou Hallam.

— Não estou chorando, estou? — perguntou ela, erguendo para o rapaz o

pequenino rosto esfogueado, para que ele o examinasse.

— Não — admitiu Hallam. — Não está chorando, agora, mas soluçava ainda há

pouco e...

— Bem, mas que tem a ver com isso? — retorquiu ela. — Ninguém poderá chorar

sem sua permissão?

— Sim, naturalmente que pôde, mas... seja como for, não é muito agradável ouvir-se

uma pessoa chorar.

Uma parte da hostilidade de Robin desapareceu. Seus grandes olhos nublaram-se,

aplacando-se de um modo trágico e curioso.

— Às vezes — murmurou ela com voz tremula — não se pode evitar. Não se pode!

Acontecem coisas de tal forma horríveis!...

— Já sei — replicou Hallam com espontânea simpatia. — Ouvi alguns comentarios,

na rua, quando voltava.

Instantaneamente Robin tornou-se de novo agressiva.

— Todos falavam dele, não é? — perguntou com violencia. — Não tinham nada

melhor a fazer, acho eu.

Crispou as mãos.

— Bem sabe... lamento-a de todo o coração — disse Hallam.

— Quem está precisando de suas lamentações? — replicou ela. — Eu não, sabe?

— Bem, mas de qualquer modo lamento-a — insistiu o rapaz. — Não posso evitar

isso.

Sob a suavidade juvenil do olhar de Kay, o ressentimento de Robin vacilava; seu

rosto palido estremeceu e debruçou-se de novo sobre as pedras, toda sua violência como

que desvanecida.

Page 10: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Ele... ele era ladrão, ha muitos anos... e eu de nada sabia — soluçou ela.

Hallam teve que engolir saliva antes de dizer:

— Compreendo. É horrivel.

Após um pequeno silencio a jovem continuou:

— Como o senhor sabe, apanharam-no em Londres e lá o detiveram. Não posso vê-

lo; vão mandá-lo para um cárcere. Não sei por quanto tempo. Anos e anos, segundo me

disse Sally. O homem contou-lhe?

— Que homem?

— O que veio de Londres e fez muitas perguntas e anotações em um livro.

— Já sei. E quem é Sally?

— Minha irmã por parte de pai — Sally Bealby. Eu e papai moramos com ela e Ben,

um sujeito terrível e odioso como Sally. Eles são capazes de deixar papai louco quando...

quando o soltarem e ele voltar. Sally sempre teve ciúmes porque meu pai amava mais

minha mãe que a dela. Mas minha mãe era uma lady encantadora e a dela não passava

de uma mulher má e vulgar. Garanto-lhe, acredite ou não, que papai vale mil vezes mais

que Sally e Ben juntos, apesar de ser um ladrão. E nunca conseguirão que eu o despreze.

Nunca!

O tom apaixonado e surdo de suas palavras perturbava a calma da noite. Kay

permanecia em silencio, deixando-a desabafar-se.

— Papai e eu fomos sempre muito amigos; não havia segredo entre nós. Não

compreendo como pôde ele ter sido ladrão durante tanto tempo, sem que eu o soubesse.

Todas as semanas ia a Londres e eu nunca pude desconfiar que... que...

— É natural... Foi uma desgraça...

— Não sei que fazer — continuou Robin. — Se houvesse...

— Escute, Robin... — começou Hallam.

— Com ordem de quem me chama de Robin? — atalhou ela, mudando bruscamente

de atitude.

Hallam confessou que ninguém lhe dera semelhante ordem.

— Portanto meu nome é Miss Golden; compreende? Robinetta Golden. Minha mãe

deu-me esse nome por ser diminutivo de Robert, que é como se chama papai.

— Não me esquecerei — replicou Hallam, submisso. — Pôde confiar em mim como

em um amigo.

— Não pense em semelhante coisa — disse Robin. — Além do mais o senhor olhou-

me, na feira, com um olhar diferente; como se me admirasse...

Seus olhos brilharam cheios de acusação. Hallam riu-se.

— Mas é claro que eu a admiro — replicou com franqueza. — Já encontrou algum

homem que o fizesse?

— Não — respondeu ela secamente. — É justamente por isso.

O riso de Hallam como que lhe morreu nos lábios.

— Compreendo — volveu respeitosamente. — Mas, seja como for, não posso deixar

de reconhecer seus encantos. E, como eu, ninguém o poderia.

Robin olhou-o fixamente.

— Menos aquela moça loura que estava consigo — contestou ela.

Hallam tornou-se escarlate.

Page 11: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Bem, mas... — começou ele.

Robin, porém, cortou-lhe a frase:

— Ela apenas achou-me vulgar, maltrapilha e...

— Mas olhe aqui; já estávamos de bom humor, por esse lado.

— Eu e o senhor. Mas ela não. Ela não foi capaz de pedir-me desculpas, embora o

senhor o fizesse por ambos.

Houve uma pausa.

— E sabe por que ela não o fez? — acrescentou.

— Não — respondeu Hallam cada vez mais embaraçado.

— Porque o senhor me admirou — continuou Robin. — Foi só por isso.

Era verdade e Kay sabia-o, mas não queria acreditar.

A jovem prosseguiu.

— Por aí o senhor pôde ver quantos aborrecimentos nos podem vir de admirarmos

alguém.

— Tem razão — replicou o rapaz.

— Ela riu-se quando falei que papai tinha negócios em Londres — acrescentou com

grande amargura na voz. — Oh, e tinha razão para rir-se de mim! Negócios! — (Fez uma

pequenina pausa). — Por que não se ri o senhor também?

— Porque isso não me diverte — respondeu Hallam delicadamente.

— Ele está em Londres e eu não posso vê-lo; levá-lo-ão para um cárcere e eu não o

verei por muitos anos — balbuciou ela.

— Que... vai fazer? — perguntou Hallam, francamente embaraçado.

— Não sei. Gostaria de arranjar um emprego e formar um pequeno lar para ele, de

maneira que não precisasse mais voltar a viver com Sally e Ben. Só que não sei em que

poderia trabalhar. Papai costumava dizer que eu era uma lady e um dia seria rica e não

precisaria trabalhar.

Sua voz tornou-se ainda mais tremula.

— Sei que ele só fez o que fez por mim! — acrescentou receosa de que Hallam a

contradissesse.

É claro que ele não o fez e ambos ficaram em silencio a contemplar as águas.

— Sabe que poderá ganhar dinheiro com sua voz? — perguntou ele afinal.

— Que quer dizer com isso? Cantando?

— Sim.

Ella sacudiu a cabeça afirmativamente.

— Oh, bem sei — disse com indiferença. — Ganhei um shilling esta tarde, na feira.

— Em Londres poderia ganhar muito mais de um shilling, se educasse

convenientemente a voz.

— Podia? Verdade? E como é que se educa?

— Teria que arranjar um professor de canto e...

— E ele cobra alguma coisa? — interrompeu-o ela.

— Oh, sim; mas...

— Então não se pensa mais nisso — replicou Robin desanimada.

— Olhe aqui — disse ele — embora com pouca certeza. Vou-me embora amanhã e

talvez não volte este ano. Desejaria fazer qualquer coisa por si.

Page 12: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Fez uma pausa e, com espantosa falta de tato, ofereceu-lhe dinheiro.

A recusa da jovem, expressada num tom de voz abafado e tenso que se casava

maravilhosamente á quietude noturna que os rodeava, chegou aos ouvidos de Kay como

verdadeiras chicotadas. Ao calar-se, Robin tinha o rosto esfogueado e os lábios trêmulos

de indignação.

— Não tive intenção de ofendê-la — desculpou-se Kay, contrariado. — Julguei

apenas que estivesse precisando de dinheiro. Foi tudo.

Repentinamente, Robin se pôs de novo a chorar, cobrindo o rosto com as mãos.

Embaraçado, Kay deixou-a desabafar-se. Um momento depois, porém, a jovem ergueu a

cabeça e pousou nele os olhos umidos.

— Desculpe-me si o magoei — exclamou ela. — Acredito que sua intenção tenha

sido boa. Mas é que ainda não estou pedindo esmola e...

Seus lábios tremiam, impedindo-a de falar.

— Por favor, não! — implorou Hallam. — Diga tudo o que quiser, mas não chore.

Não posso vê-la chorar. Não posso!

— Esta é a primeira vez que choro assim, depois de muitos anos — replicou Robin,

contendo-se. — Eu nunca choro. É uma coisa tão tola...

— Nem sempre.

— Mas esta noite meu único desejo é morrer. E si eu, aqui fora, onde tudo é livre,

sinto esse desejo, que desejará papai na sua prisão? Oh, é horrivel! Parece que o mundo

não é suficiente para conter tanto horror.

Kay, que até aquele momento estivera de pé ao lado de Robin, ajoelhou-se.

— Tudo há de acabar bem — disse ele, embora sem grande convicção. — Não deve

desanimar.

Sentia-se dominado por um louco desejo de tomá-la em seus braços para consolá-la

e isso como que o desconcertava.

— Surpreender-me-ia si isso se desse — replicou a jovem lentamente. — Planejei

tantas coisas para papai e para mim!... Dias tão adoráveis! Longe de Sally e de Ben. E

agora nunca mais se realizarão!

— Mas virão dias melhores — retorquiu Hallam, encorajando-a.

Seus olhos enormes, onde se refletia o desconsolo de sua alma, passavam por cima

dos ombros de Kay, indo pousar-se nas águas prateadas do rio.

— Uma noite como esta! — murmurou ela. — Não lhe parece impossível acontecer

coisas tão cruéis? — (Sua voz parecia um soluço abafado). — De qualquer modo não

poso acreditar. Tenho a impressão de que de repente vou acordar e ver que tudo não

passa de um terrível pesadelo. Ao mesmo tempo, a realidade corta-me o coração como

que a repetir-me: "É verdade! É verdade!"

Cravou os olhos em Hallam.

— Talvez a realidade esteja enganada — disse este ultimo com voz enrouquecida.

Permaneceram em silencio durante algum tempo; só o rumor das águas e o sopro

delicado da brisa perturbavam a quietude da noite.

— A maré está subindo! — exclamou Robin, de súbito. — Vê como os barcos se

balançam?

— Bonito, não acha? Aquela embarcação branca é a minha.

Page 13: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Aquela que está na boca da enseada?

— Sim, o Adriana. E se a maré está subindo é porque já deve ser quase meia-noite.

Precisamos separar-nos.

— Sim — replicou a jovem, obediente. Levantaram-se.

Kay quis auxiliá-la a subir até ao alto da muralha, mas ela recusou.

— Não quero que Sally me maltrate — disse. — Continuarei pela margem do rio.

— Irei consigo até onde a enseada... — começou ele.

Robin, porém, meneou a cabeça, interrompendo-o.

— Não, siga seu caminho — replicou ela secamente.

— Prefere ir só?

— Sim.

Ali ficaram por algum tempo, um em frente ao outro. Por fim ela ergueu os olhos

para o rapaz.

— Vai partir amanhã naquele barco? — perguntou de chofre.

— Sim.

— E não voltará este ano?

— Não — respondeu Hallam, olhos fitos nos delia. — Oh, não sei, talvez... —

acrescentou rapidamente.

Houve um outro silencio.

— Que está esperando? — perguntou Robin.

— Nada — replicou Hallam. — Boa-noite.

Estendeu-lhe a mão e Robin a tomou entre as suas.

— Boa-noite — murmurou.

— Oh, — exclamou Hallam — não posso deixá-la assim! Não poderei ajudá-la de

algum modo?

Ela meneou novamente a cabeça.

— O senhor parece diferente da maioria dos homens. Mas não quero auxilio de

ninguém.

Suas mãos se separaram.

— Está muito bem — replicou Hallam secamente. Com estas palavras, escalou

novamente a muralha e desapareceu.

CAPITULO II

Quando Robin se assegurou de que Hallam não mais poderia vê-la, virou-se e

correu ao longo da muralha, até chegar a um ponto em que a margem do rio ficava ao

nivel da ilha. Aí parou e, com toda a cautela, lançou os olhos á sua volta, esforçando-se

por verificar se estava só como julgava. Nada encontrou além do perfil da muralha — do

qual ela conhecia todos os detalhes, tão bem como os traços de seu próprio rosto — que

se desenhava sobre o límpido esmalte da noite de verão. Cuidadosamente, caminhou

pelas grandes pedras que serviam de degraus para chegar á casinha da ilha. Uma vez ali,

parou diante da porta e colou o ouvido ao buraco da fechadura para escutar. Tudo parecia

silencio no interior da casa; portanto, sem fazer ruido abriu a porta e entrou.

Page 14: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Felizmente não havia luz no quarto da frente; isto significava que Sally Bealby e seu

odioso marido dormiam. Robin tranquilizou-se, pois não estava disposta a suportar uma

cena, que sabia inevitável, aquela noite. Já sofrera demais, como testemunhava o rictus

doloroso de seus lábios ainda trêmulos.

Já bastava ter que ouvir a Sally no dia seguinte, quando esta lhe viesse cravar o

aguilhão dos trágicos acontecimentos da véspera; por ora já lhe causava grande

satisfação verificar que Sally não estava acordada para maltratá-la.

Um segundo depois, compreendeu que sua satisfação fora infundada, pois uma voz

estridente a chamava do alto da escada:

— Robin! És tu?

— Sim, Sally, sou eu — respondeu Robin calmamente.

— E tens coragem de voltar aqui, depois do que aconteceu? — continuou a

desagradável voz.

— Aonde iria então? — indagou Robin com a mesma tranquilidade.

Não obteve resposta, mas ouviu passos na escada. Em seguida viu surgir Sally com

uma pequena lâmpada de quarto na mão. Vinha enfiada em um chambre de flanela que

um dia fora cor de heliotropio, mas que, então, desbotado pelas lavagens, se tornara de

um indefinido tom acinzentado. Seus cabelos ásperos, brilhantes e vermelhos, formavam

uma trança apertada e comprida que lhe caia até ao meio das costas. A volta da fronte

enrolara, á guisa de turbante, um trapo de linho branco. Tinha olhos claros e quase não

se lhe percebiam as pestanas e sobrancelhas ralas e ruivas. Seus lábios finos fechavam-

se com dificuldade sobre os dentes disformes e salientes. Era um rosto magro e vulgar, o

que dava a impressão de que entre Sally e Robin não havia o menor parentesco. Parecia

impossível que duas criaturas tão diversas fossem filhas do mesmo pai; mas a diferença

entre elas provinha da diferença existente entre as duas mães.

O pai de Robin era homem fraco, bondoso, que jamais tivera vontade própria nem

firmeza suficiente para seguir um caminho reto. Desde muito jovem, começou a dar

passos errados na vida. Amigos indignos e vagabundos foram seus guias e acabaram por

deixá-lo seriamente comprometido. Como pela primeira vez se achou definitivamente fora

da lei, nem ele próprio poderia explicar. Parecia-lhe que cometera o primeiro roubo em um

estado de completa inconsciencia. Por sua lamentável fraqueza de carater, podiam levá-lo

onde quisessem. Muito moço, contraiu matrimônio com uma mulher magra e feia, de

gênio violento, que o dominou inteiramente. Vivia ameaçando-o e jamais se preocupou

em conservar-lhe o afeto. Como era singularmente bem afeiçoado, despertava nela

ciúmes constantes e terríveis; a historia deste primeiro matrimônio se resume em eternas

brigas e amargas recriminações que ele evitava sempre que lhe era possível.

Longe de ajudá-lo a conservar-se no bom caminho, essa mulher, com sua maldade,

dele o afastou ainda mais. Quando ela morreu, o pai de Robin jurou que as mulheres se

haviam acabado para si; mas, ao dizer isso, ignorava o poder do verdadeiro amor. A mãe

de Robin foi uma pequena criatura bela e nobre de espirito, cujo único defeito era uma

saúde extremamente frágil. Ficara orfã e sem recursos. Quando Robert Golden a

conheceu, era "nurse" e governante em casa de uma família onde as crianças eram muito

mais numerosas que as libras esterlinas. Tinha debaixo de cuidados especiais três

meninos menores de seis anos, gordos e travessos. A tarefa era superior ás suas forças;

Page 15: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

vivia, pois, sempre cansada e aflita para dar conta do serviço. Golden encontrou-a

durante o passeio que fazia diariamente com os meninos e, então, não era mais que a

sombra de uma jovem. Desde então começou entre eles uma boa amizade. Ela vivia

demasiadamente só para desprezar qualquer afeto - que se lhe oferecesse. E dessa

amizade nasceu o amor.

Golden, envergonhado de sua vida passada, prometeu, como fazem os homens

fracos, jamais voltar aos antigos erros. Desta vez, porém, fê-lo sem contar com a

espantosa fraqueza que tão fatal lhe havia sido sempre.

E ocultou seus roubos da mãe de Robin como, ultimamente, fazia com esta. Era o

único meio que possuía de proporcionar-lhe algumas das coisas agradáveis da vida, que

tanto ansiava por vê-la desfrutar. Apesar de suas falhas, Kobert Golden conseguiu fazer-

se amado por duas mulheres: sua segunda esposa e filha. Por sua vez, as queria com

loucura. Sofreu horrivelmente quando a mãe de Robin faleceu, poucos dias depois de ter

posto no mundo a pequena de olhos e cabelos negros, para a qual Golden transferiu todo

seu carinho. Sua única ambição era ganhar bastante dinheiro, honesta ou

desonestamente, com o fim de construir um lar para si e para Robin, onde se vissem

livres da perversidade de Sally e seu marido. Nunca, porém, alcançou esse ideal e,

lutando por ele, cometeu alguns atos puniveis que o fizeram cair em poder da justiça.

Foi assim que Robin se viu, de um momento para outro, inteiramente só no mundo e

cercada por toda a sorte de problemas desconhecidos. Primeiro era o de Sally. Que lhe

iria dizer Sally? Esta não tardou a esclarecer-lhe este ponto. Assim que se pilhou diante

de Robin, disse-lhe:

— Agora? Robin, vamos nos entender.

Havia em seus olhos um terrivel brilho de vingança.

— Sim — replicou Robin — acho que será necessário. É horrível, Sally, já sei! Não o

nego — acrescentou com voz vacilante.

— Nossa família sempre foi respeitável — disse Sally. — Nunca passamos por uma

vergonha dessas.

— Já sei. Oh, Sally, sou tão infeliz como tu!

— Infeliz! — gritou Sally. — De nada adianta seres infeliz; isso não é solução.

— Está claro que não. Mas só sei que sou muito infeliz. Pensei que também o fosses

e seria algum consolo... se pudéssemos nos unir em nossa infelicidade.

— Hum! — exclamou Sally com cortante ironia. — E, com isso, tudo se arranjaria.

— Não, pouco ou nada se arranjaria. Apenas julguei que, sendo irmãs... uma

espécie de irmãs... fosse nosso dever ajudar-nos mutuamente — volveu Robin.

— Irmãs! Graças á minha boa estrela não sou tua irmã, Robin! Sempre tive minhas

duvidas a respeito do teu pai!

Uma onda de sangue invadiu o rosto de Robin. Foi obrigada a morder os lábios para

não deixar sair as palavras de protesto que clamavam por serem pronunciadas. A muito

custo reprimiu-as e disse com bastante calma:

— Papai também é teu pai, Sally.

— Pôde ser — retorquiu Sally. -— Mas minha mãe, graças a Deus, não foi a tua.

Havia no tom de suas palavras um mundo de intenções odiosas e cruéis. O rubor de

Robin acentuou-se ainda mais.

Page 16: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não digas uma única palavra contra minha mãe, Sally — intimou ela com voz

mais alta. — É só o que te peço.

— Ameaças-me? — berrou Sally.

— Não sei bem si te ameaço — replicou Robin no mesmo tom. — Só te previno que

não abras a boca para falar mal de minha mãe.

Sally começou a gritar: era assim que dava expansão á sua cólera quando se via

contrariada.

— Quem és tu para impor-me o que devo ou não devo dizer? Quem és tu? Gostaria

que me dissesses. A filha de um ladrão, eis o que és. Nem mais nem menos que a filha

de um ladrão!

Robin teve que morder os lábios com mais força que nunca.

— De nada adianta dizeres coisas contra papai, — disse ela. — Parece que te

esqueces que, ofendendo meu pai, ofendes, igualmente, o teu.

— Desgraçadamente isso é verdade! — continuou a voz de Sally, cada vez mais

alta. — Mas minha mãe era uma excelente mulher!

— Quererás insinuar que a minha não o era? — inquiriu Robin com o olhar

inflamado de indignação. — Quererás insinuar que minha mãe não era uma excelente

mulher?

— Estou dizendo como era a minha — começou Sally.

Mas Robin não se interessava pelo que ela estava dizendo sobre a própria mãe.

Apenas lhe importava o que dissera da mulher á qual Robert Golden sempre se referia

com tanta veneração e ternura. A meiga e delicada personalidade de sua mãe, que não

chegara a conhecer, tornara-se uma coisa real, atraves das palavras de seu pai.

Portanto, repetiu a pergunta com o olhar ainda mais ameaçador.

— Queres dizer que minha mãe não foi uma excelente mulher?

Cada minuto de silencio que se passava vinha aumentar o furor da tempestade, que

pairava sobre as duas irmãs, prestes a se desencadear. Por fim, Sally declarou que fora

aquilo precisamente o que quisera dizer.

— E mais — acrescentou aos gritos. — Direi a todo o mundo que toda a tua raça

não presta, nem nunca há de prestar! E hei de fazer-te confessar isso, antes de liquidar

as contas contigo!

— Está aí uma coisa que não conseguirás com todo o teu berreiro — replicou Robin.

— Nunca hei de negar que minha mãe foi a mais adorável e meiga das mulheres... Estás

mas é com ciúmes de minha mãe, porque sabes que ela era uma lady e a tua não

passava de uma mulher vulgar! E porque sabes que papai adorava minha mãe e

detestava a tua! E porque sabes que minha mãe era lindíssima e a tua não era! És

mesquinha e perversa! Mas não me obrigarás a dizer que papai, mamãe e os meus não

prestam, porque sei que isso não é verdade. Papai, apesar de ser ladrão, é melhor que tu

e melhor que Ben, com toda a sua carolice.

— Quem é melhor que eu? — indagou uma voz vinda da porta.

Voltando-se, Robin viu que Ben Bealby em pessoa se achava diante dela. Como

Sally, vinha enrolado num chambre; como Sally, tinha o rosto igualmente magro e

estúpido. Seus olhos se fixavam ora em Robin, ora em Sally. Pela fisionomia de Robin

passou uma expressão de terror ao dar com a cara brutal de seu cunhado.

Page 17: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Eu estava dizendo que papai é melhor que tu — sustentou ela.

Por um momento Ben encarou-a em silencio.

— Oh, disseste que teu pai é melhor que eu, hein? Afirmaste que o ladrão, o

mentiroso, o canalha do teu pai é melhor do que eu, não foi?

Seu rosto era a coisa mais fria e bestial que se pode imaginar e Robin estremecia á

sua simples vista. Continuou, porém, a enfrentá-lo.

— Sim — confirmou.

— Pois então — replicou Ben, lentamente — sabes que quanto mais depressa o

desdisseres melhor para ti, compreendes?

—- Não... não posso — balbuciou Robin. — Não posso!

— Não podes? Veremos. Quem sabe se isto fará com que o digas?

Puxou das costas um chicote de couro. Robin arregalou os olhos de terror, mas,

embora Ben desse os primeiros passos em sua direção, não se moveu de onde estava.

Seu coração batia furiosamente, mas ficou impassível, vendo-o aproximar-se.

Já agora Ben se achava a um passo de distancia da jovem e esta continuava firme,

em seu lugar, preparando-se para enfrentar os golpes da chibata que ameaçava descer

sobre seu corpo.

— Vamos — disse Ben com voz surda. — Confessa que teu pai é um ladrão sujo e

imoral e que eu sou melhor do que ele.

Ergueu a chibata pronto para vibrá-la ante a menor desobediência de Robin. E esta

se achava resolvida a desobedecer-lhe.

— Meu pai é ladrão, bem sei; mas não é nem sujo, nem imoral, nem mau. Pelo

menos não muito mau. Oh, bem sei que ele parece ser mau, mas tenho certeza de que

seu coração é bom; não podes forçar-me a dizer o contrario.

— Forçar-te-ei a dizer o contrario, minha pequena — replicou Ben. — Que achas

disto?

E, com uma força brutal, vibrou o chicote sobre as frágeis espáduas de Robin. Esta

conteve a respiração, empalideceu, mas não fez um só movimento, nem seus lábios

deixaram escapar um só gemido.

Ben mostrou os dentes num sorriso, ou talvez seja o bastante dizer que mostrou os

dentes, pois, na realidade, pouco havia de sorriso em sua expressão.

— Dirás ainda que teu pai é melhor que eu?

Havia uma crispação de dor nos lábios de Robin ao responder:

— Devo dizê-lo, porque é verdade.

A chibata estalou novamente, com maior violência. Robin, porém, continuou imovel.

Encarou a fera que a tratava daquele modo e disse, com palavras apenas audíveis por

causa da dor que lhe repuxava os lábios:

— E não fazes mais que prová-lo; cada chicotada que me deres só servirá para

prová-lo mais.

Ben, olhos chamejantes de fúria, ergueu novamente o látego, mas a paciência de

Robin se esgotara. Deu um salto para o lado com o olhar igualmente inflamado.

Até onde se podia lembrar sempre tivera medo de Sally e de Ben; mas, naquele

momento, uma certa força, inteiramente desconhecida, parecia ter despertado em seu

coração, tornando-a subitamente corajosa; revoltara-se contra a baixeza e a perversidade

Page 18: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

daquele tirano; contra os anos de sofrimento que ele lhe proporcionara bem assim como a

seu pai.

— Não te atrevas a bater-me novamente com isso — gritou ela fora de si. — Não te

atrevas! Tu, pretenderes ser melhor que papai! Tu! Papai pôde roubar; pôde ter sido

apanhado pela policia e estar trancado num cárcere, mas é muito melhor que tu, que não

serias digno nem sequer de limpar-lhe as botinas! Nem para isso prestarias, Ben Bealby!

Não és digno de limpar-lhe as botinas! Grandíssimo hipocrita! Hipocrita, carola, falso!

Julgas que poderás obrigar-me a insultar papai, á força de pancadas? Nada o

conseguiria, nem mesmo a morte! Papai vale mil vezes mais que tu, e hei de afirmá-lo

ainda que me esfoles viva!

Robin fez uma pausa e ficou diante dele, com a respiração opressa. Ben olhava-a

boquiaberto. Era a primeira vez que Robin se rebelava e tanto o furor como a energia de

sua revolta paralisaram-no de espanto. Mas, enquanto Ben assim se deixava tomar pela

estupefação, Sally resolveu aderir á luta e a cena que se seguiu foi simplesmente odiosa.

Sally esbravejava, berrava e praguejava; açoitou Robin com sua Iingua envenenada, tanto

quanto Ben o fizera com o chicote. O estribilho de sua cólera era que Robin podia ir para

o olho da rua; que saísse imediatamente e nunca mais tornasse a aparecer na casa da

ilha.

— Para onde irei? — perguntou Robin, preocupada com esse novo aspecto do caso.

— Não tenho para onde ir... Bem sabes.

— Devias ter pensado nisso, antes de vires morar conosco, antes de deixares o

esgoto onde vivias com teu infame pai! Devias ter pensado nisso; e agora podes ir

embora. Some-te daqui, pois não serei eu quem irá se preocupar contigo. Vai para onde

quiseres!

— Está muito bem! — replicou Robin. — Eu irei! Não tenho dinheiro, mas prefiro

fazer qualquer coisa a continuar aqui contigo! Afasta-te dessa porta e deixa-me ir lá em

cima apanhar minhas coisas.

— Não levarás coisa alguma daqui — trovejou Sally. — Irás como estás. Tudo que

tens ficará em paga dos anos que te demos casa e comida! E por falar isso, onde está o

dinheiro que ganhaste esta tarde na feira?

— Esse é meu — disse Robin, mas Sally avançou para ela e começou a revistar-lhe

a blusa em busca do lenço no qual Robin costumava guardar seus pequenos ganhos.

Robin entregou o shilling sem uma palavra de protesto porque receava que Sally

encontrasse uma certa medalha que trazia presa ao pescoço e que morreria antes de

entregar. Voltou-se e dirigiu-se á porta. Os gritos de Sally seguiram-na.

Saiu, batendo a porta e viu-se só com a noite serena e admirável. Ficou parada um

momento, aspirando o ar puro e transparente como se este fosse um balsamo para sua

alma amargurada. Fora enxotada. Enxotada! Esse pensamento assaltou-a em meio da

solidão da noite e um riso nervoso crispou-lhe os lábios. Estava só; em todo aquele

mundo não havia uma única pessoa á qual tivesse o direito de recorrer.

As características planícies da região de Essex, onde os pantanais iluminados pelo

luar se estendiam a se perder de vista, sem uma única saliência que alterasse a linha do

horizonte, faziam com que o mundo lhe parecesse um vasto deserto. Estava só mas —

esta reflexão veio-lhe repentinamente — menos só ali fora, com a lua, a noite e a brisa

Page 19: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

acariciante, do que lá dentro — fez um gesto de cabeça em direção á casa — com Sally e

Ben. A revelação dessa estranha verdade trouxe-lhe uma sensação de curioso bem estar.

Pôs-se a considerar sua situação de um modo mais pratico. Não tinha para onde ir. Nem

um só amigo a quem se dirigir — a não ser...?

Estacou um momento sob a luz do luar, o coração a pulsar furiosamente. A não

ser...?

Mais uma pequena reflexão, e pôs-se a correr precipitadamente em direção ao rio.

A maré subia agora com a maior rapidez e a escada de pedras já estava submersa.

O bote que costumava usar para atravessar o rio, fora suspenso da pequena praia

inclinada, localmente conhecida por "Praia do Bealby", e flutuava. Robin contemplou-o

pensativamente; é certo que um bote vem a propósito quando precisamos transpor um

rio; mas a embarcação era de Ben e não sua. Caso se servisse delia, como devolvê-la?

Para isso seria necessário dirigir-se a algum marinheiro, para incumbi-lo de entregar

novamente o barco ao dono, e não entrava nos planos que traçara ser vista por alguém.

Não, decidiu, não faria uso do bote. Há uma outra coisa que vem a propósito, quando

precisamos transpor um rio: é a habilidade de saber nadar como um peixe. E Robin

possuia essa habilidade.

— Mas a maré ainda não subiu o suficiente — falou consigo mesma. — Terei que

esperar um pouco.

Assim, pois, sentou-se, fincou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos, e seu

olhar perdeu-se nas águas tranquilas, á espera que elas atingissem uma altura

suficiente...

Mal isto se deu, pôs-se de pé, tirou o saiote esfarrapado e enrolou-o, como um

turbante, á volta da cabeça.

— O resto de minhas roupas que leve a breca — monologava ela, á medida que se

acercava da beira do rio.

Seus pés descalços encontraram o primeiro degrau de pedra e, cautelosamente,

procuraram os seguintes; não estava disposta a enfiar os pés no celebre lodo de

Molesbury. Quando achou que a profundidade era suficiente para lançar-se ás águas sem

perigo de tocar o fundo, abaixou-se até sentar-se na pedra.. Estava prestes a deixar-se

levar pela correnteza, quando uma súbita idéia fê-la estacar. Puxou a pequena medalha

que trazia ao pescoço e colocou-a na boca com corrente e tudo. Estava pronta e,

desusando lentamente pela superfície das águas, que o luar marchetava de prata, nadou

para o centro do rio.

No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, o Adriana largou ferros com Hallam e

seus amigos a bordo, comandado por George Dawkins, filho da velha Mrs. Dawkins, e

com uma tripulação de quatro homens.

Tiveram uma esplendida entrada no mar, com maré e vento favoráveis e chegou a

tarde sem que nenhum acontecimento anormal viesse quebrar a perfeita tranquilidade da

viagem.

— A isto é que chamo perfeita felicidade — murmurou Alison que, com os outros,

estava sentada no convés, apreciando um glorioso pôr de sol. — Ninguém tem idéias

melhores que as tuas, Kay.

Page 20: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

E atirou-lhe um beijo com as pontas dos alvos e delicados dedos.

— Sublime — suspirou Mrs. Pennington, arrebatada.

— Gostaria de navegar deste modo eternamente — acrescentou Alison.

— Vamos ver se dirás o mesmo quando o mar engrossar — replicou Hallam, rindo-

se.

Kay estivera o dia todo preocupado e abstrato e, ao som daquela risada, Alison

sentiu-se reanimar.

— Não sejas importuno! — disse ela, entendendo-lhe graciosamente a mão que

Hallam tomou levemente entre as suas, com um sorriso.

De fato, Alison parecia perfeitamente feliz.

Nesse momento um dos marinheiros subiu e perguntou si podia falar com Hallam.

Este ultimo seguiu-o e ambos desapareceram numa escotilha.

— É no castelo da popa, sir. Gostaria que o senhor desse uma olhadela lá dentro —

disse o homem com ar misterioso.

Abaixando-se, Kay dirigiu-se ao sitio indicado.

— Meu Deus! — exclamou.

A um canto, por trás de uma vela dobrada, dois enormes olhos negros num

pequenino rosto palido de fadiga, se erguiam para ele.

— Eu disse que não queria seu auxilio, mas resolvi o contrario — explicou Robin, a

Maltrapilha. — Sally enxotou-me de casa.

Hallam continuava mudo, uma expressão de franco estupor nos belos olhos

cinzentos.

— Oh... sim... está claro — gaguejou ele quase incoerente.

— Ela queria obrigar-me a injuriar papai e eu me recusei. Não podia fazê-lo!

Ninguém o conseguiria!

Apesar da fadiga havia energia suficiente no tom de desafio de suas palavras.

— Certamente... — murmurou Hallam, nada mais conseguindo dizer.

O inesperado aparecimento de Robin abalara-lhe o espírito, deixando-o presa de

uma verdadeira confusão. O único pensamento que seu cérebro paralisado podia

conceber era o que iria dizer Alison! E isto despertava em seu coração um sentimento de

pânico quase ridículo. A vida parecia ter-se tornado subitamente complicada.

— O senhor disse que me ajudaria e eu acredito que o faça. Acho-o tão bom...

Portanto aqui estou — continuou Robin.

E ali, pensou Hallam, era muito provável que tivesse de ficar; estavam em alto mar.

Esta lembrança trouxe-lhe uma singular sensação de prazer e consternação.

Robin era bonita e seu temperamento selvagem intrigava-o excessivamente. E era

tão agradável contemplá-la... Sim, seria divertidissimo levarem-na com eles. Seria uma

nota de novidade. Por outro lado havia Alison. Pressentia dificuldades.

Coçou a cabeça com gesto de desespero.

— Saia de dentro desse buraco e explica-me direito as coisas — disse ele por fim.

— Ai, estou tão encolhida! Tenho a impressão de que nunca mais poderei endireitar

novamente o corpo.

Porém, com uma cautelosa manobra, conseguiu-o, e engatinhou até onde estava

Hallam. Pôs-se de joelhos e ergueu o rosto para o jovem.

Page 21: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Este movimento fez com que seu rosto ficasse perigosamente junto ao de Hallam,

pois a pequena altura do teto, naquela parte da embarcação, obrigava-o a manter-se

curvo. Kay sentiu-se arrebatado por um repentino e louco desejo e confessou a si próprio

que se ela não tivesse recuado rapidamente tê-la-ia beijado. Fora um impulso

repreensivel, está claro, mas que podia fazer? A verdade é que se sentira dominado por

ele. Fazendo-lhe justiça, devemos dizer que não tinha o habito de beijar todos os lábios

bonitos que lhe surgiam a jeito. Havia certos princípios que jamais deixara de seguir. A

despeito de tudo isto, o desejo de beijar Robin tornou-se quase incombativel e, si ela não

recuasse em tempo, ninguém pôde saber o que teria acontecido.

Mas ela recuou; Kay deu um suspiro de alivio e enrubesceu, lembrando-se do que a

jovem dissera dos homens que a admiravam. Robin colocou-se um pouco mais afastada

dele e sorriu-lhe.

— Então, perturbadora criaturinha, que aconteceu? — indagou ele.

O sorriso de Robin morreu-lhe nos lábios.

— Sally disse que não quer em sua casa a filha de um ladrão. Ela parece esquecer

que também é filha de papai. Acho que é porque ele nunca a tratou como a mim. Ela

disse que eu teria de esquecê-lo. Nunca mais tornar a falar nele e tratá-lo como si tivesse

morrido. Respondi-lhe que jamais faria isso. E disse-lhe que podia fazer o que entendesse

pois eu continuaria a amá-lo do mesmo modo. Não se pode evitar isso quando amamos

alguém, não acha?

Pousou os olhos no rosto de Hallam.

— Certamente. Continue — replicou ele.

— Pois bem, então ela me enxotou de casa e eu respondi-lhe que não tinha para

onde ir. Disse-me que nada tinha a ver com isso e que eu fosse para onde quisesse.

Queixei-me de que tinha apenas o shilling que ganhara na feira e ela o tomou de mim,

alegando que ficava em pagamento do que eu lhe devia. E depois...

Fez uma pausa.

— Então — continuou ela vagarosamente — disse-me que, se eu não tinha dinheiro,

o fosse roubar, como papai! Que a melhor coisa a fazer era ir-me embora e tornar-me

ladra, como ele.

— Oh! que perversidade! — exclamou Hallam com sincera indignação.

Os olhos de Robin incenderam-se subitamente.

— Se o senhor soubesse o que senti naquele momento! Mas não lhe posso explicar

— era algo por demais estranho. Se tivesse ficado lá por mais um segundo, acho que a

teria estrangulado. Por isso corri para fora da casa e Sally trancou a porta com chave.

Não era preciso ter-se dado a esse incomodo: eu não voltaria nem que me pagassem.

— E como chegaste até aqui?

— Nadei. Vi seu barco e lembrei-me de sua promessa de ajudar-me. Tudo estava

tranquilo e silencioso; não havia ninguém de pé a bordo; sem hesitar atirei-me ao rio e

cheguei até aqui, nadando.

— Vestida como estava?

— Sim, tirei apenas a saia que enrolei á volta da caneca. Quando me vi a bordo, tirei

o resto de minhas roupas e as pus no convés para secar; por isso estão tão sujas.

E quedou-se a olhar para a blusinha de algodão azul.

Page 22: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Terminara sua narrativa e Hallam inclinou-se sobre ela com uma expressão

pensativa. Seu ridículo temor desaparecera e não sentia, agora, a menor perturbação.

— É realmente lamentável — disse ele com sinceridade. — Mas por que não me

foste procurar em casa? Poderíamos ter arranjado tudo com mais conforto para ti.

Robin hesitou.

— Mas eu não sabia, ao certo, onde o senhor morava e...

— Facilmente terias informado; qualquer pessoa te diria.

— Sim, mas... — vacilou de novo, olhando vagamente para o chão. — Falei como se

fosse esse o verdadeiro motivo, não? — volveu ela por fim.

— Sim, e não foi?

— Não — confessou.

— Qual foi então?

Os negros olhos da jovem mantinham-se fixos e abertos.

— Tive receio que aquela... sua amiga se zangasse.

—- Pois bem; e que pensas que ela fará agora? — volveu Hallam, sem refletir no

que dizia.

Robin abriu ainda mais os olhos e agarrou-o pela manga do paletó.

— Mas ela não está a bordo, não é? — indagou aflita.

— Está, sim; ela e outros amigos.

Robin sentou-se pesadamente no chão e deixou escorregar a mão do braço de

Hallam.

— Meu Deus! E eu que não pensei nisso. Cometi uma estupidez. Vim comprometê-

lo. Vou voltar já para a terra.

— Estamos no mar. Porventura pensavas que estávamos no rio?

Robin caiu das nuvens.

— Oh, no mar? Eu não sabia. Estive dormindo. Oh, não se aborreça! Pode deixar-

me ficar aqui se quiser. Não desejo colocá-lo em dificuldades.

Mas Hallam compreendeu que comettera uma tolice com a frase inoportuna que

proferira. Admitindo que Alison pudesse zangar-se com a presença de Robin a bordo,

revelara a existência de alguma razão para tal.

Tentou disfarçar com uma risada o mal que fizera.

— Não digas tolices — exclamou com ar despreocupado.

— Que mais me resta fazer?

— O melhor é subires comigo para que eu te apresente aos amigos.

— E ela não se zangará?

— Por que haveria de fazê-lo?

— Porque esteve na feira...

— Mas que há nisso para que se zangue?

— Apenas... eu — tornou Robin com desconcertante franqueza.

Kay calou-se por um momento, compreendendo que ainda mais uma vez não

soubera ser hábil.

— Tens medo? — perguntou-lhe em desafio.

Nos olhos de Robin refletiu-se uma faisca de mau agouro.

Page 23: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Medo dela? — exclamou, contraindo levemente os lábios. — Vamos, leve-me

para onde ela está!

Hallam conduziu-a ao conves.

Ao vê-lo assomar na escotilha, Alison estendeu-lhe a mão em sinal de boas-vindas,

mas, no mesmo instante, deixou-a recair, ficando imovel e carrancuda, em sua chaise-

longue2, ao divisar por trás da alta figura de Kay uma outra menor.

— Meus amigos! — exclamou Kay com naturalidade um tanto forçada. — Lembram-

se da pequena cantora da feira, isto é, de Miss Golden? Pois bem, ela está a bordo,

conosco!

Era uma explicação inútil e Hallam compreendeu que fizera um papel ridículo.

Seguiu-se um breve silencio; depois, ouviu-se a voz de Alison, cuja temperatura

estava abaixo de zero.

— Isso é um fato por si só evidente — replicou ela. E, com uma expressão de

despeito, voltou-se para Mrs. Pennington. Para sua amizade com Hallam isto era o mais

perigoso que podia ter feito, pois este ultimo odiava pessoas mesquinhas e despeitadas.

Mas ela não compreendera isto. Achava-se sob a impressão de que seu domínio sobre o

rapaz era tão forte, ao ponto de julgar que, si adotasse uma atitude altiva para com

alguém, ele não só lhe daria apoio, como faria o mesmo. Chocou-se, portanto, ao verificar

que isto não se dava. Pelo contrario, Kay enrubesceu, de tal maneira contrariado que, por

um momento, não soube como enfrentar a situação. Mas Andrew Fable, levantando-se de

onde estava, aproveitou a oportunidade para intervir.

— Não quer sentar-se, Miss Golden? — perguntou, com sua habitual gentileza. —

Não conhece ainda Mrs. Pennington e Mr. Tearle? Creio que Miss Tearle falou consigo

ontem, na feira.

A cena desenrolava-se com tanta naturalidade como se estivessem em um salão

londrino.

Alison corou até a raiz dos cabelos. Não lhe passara pela cabeça que Fable

houvesse presenciado o acidente do carrocel, na noite anterior. Nem ele nem Mrs.

Pennington haviam feito a menor alusão a isso. Mas então compreendeu que Fable

procurava lembrá-la de que devia a Robin pelo menos um pouco de cortesia. Aceitou a

insinuação e fez á recém-chegada uma fria e formal inclinação de cabeça, esforçando-se

por conter o rancor que lhe ia n'alma. Robin respondeu-lhe delicadamente e entrevia-se

em sua atitude uma firme determinação de evitar qualquer reprimenda e o desejo, em

favor de Hallam, de não ser desagradável.

Aceitou a cadeira que Fable lhe oferecera, fitando a uns e a outros com olhar

perscrutador, como que a estudar todas aquelas fisionomias.

— Ontem á noite, sentimo-nos simplesmente maravilhados com sua voz — disse

amavelmente Mrs. Pennington.

— Já me disseram que perdi algumas horas de verdadeira arte — acrescentou

Mayhew Tearle, em tom presumido.

— De fato — aparteou Fable.

2 Espreguiçadeira

Page 24: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Surpreendente — exclamou Alison com um máximo esforço de sociabilidade —

principalmente a certa distancia...

— E ainda mais surpreendente de perto — acrescentou Fable calmamente.

Depois disto fez-se silencio longo e marcado. Ninguém sabia o que dizer, nem como

dizê-lo. Robin, subitamente, tornara-se um motivo de discórdia entre os excursionistas. O

desejo de parecerem tranquilos e corteses flutuava no ambiente. A tensão nervosa

atingira o auge.

— Acaso, algum dos senhores terá algo que eu possa comer? — indagou Robin em

dado momento. — Estou morta de fome!

A tensão nervosa desapareceu como por encanto. Hallam foi o primeiro a falar

depois de Robin.

— É lamentável que eu não me lembrasse disso antes!

— Venha comigo — disse Fable. — Sou o encarregado dos viveres.

E, seguido por Robin, dirigiu-se ao interior do iate. Quando desapareceram, Alison

voltou-se para Kay e lhe disse, esforçando-se por parecer calma:

— Isto foi uma grande surpresa.

— Não o foi menor para mim — retrucou Kay. Estas palavras tranquilizaram-na um

pouco.

— Pobre Kay — prosseguiu Alison com voz meliflua. — Afinal de contas é um

aborrecimento ter essa pequena se intrometido assim na tua excursão!

— Kay não parece muito contrariado com isso — retorquiu Mrs. Pennington,

impaciente e nervosa com as idiotices de Alison.

— É uma adorável menina — comentou Mayhew Tearle em tom paternal.

— Mas como veio ela parar aqui? — indagou Alison.

Hallam, que estava sentado á maneira oriental sobre o chão limpissimo do conves,

ergueu a cabeça para fixar a jovem.

— É natural que nenhum de vocês esperasse por esse acontecimento, mas... pois

bem, todos ouviram a historia do pai delia. É uma pequena tragédia. E agora, a irmã a

tocou de casa. A pobre menina não tinha para onde ir nem a quem recorrer.

— É de fato horrível! — exclamou com ardor Mrs. Pennington. — Podes estar certo,

caro Hallam, que nenhum de nós fará objeção de espécie alguma á estada dela a bordo.

Pelo contrario, ser-nos-á até um prazer tê-la em nossa companhia, quando a

conhecermos

— Obrigado, Mrs. Pennington — disse Hallam agradecido.

— Mas, por que razão recorreu ela a ti? — insistiu Alison.

— É que lhe pedi licença para auxiliá-la no que me fosse possível e ela lembrou-se

do meu oferecimento.

— Quando lhe pediste isso? Não te ouvi dizer coisa alguma — replicou a jovem, em

tom quase autoritário.

— Ontem á noite na...

—- Mas si eu estava contigo na feira — atalhou ela.

— Foi mais tarde. Dirigi-me á muralha para ver em que estado ficara o Adriana após

a tempestade e, então, a encontrei.

— Não me contaste isso.

Page 25: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Hallam sentiu-se irritado ante o tom de Alison; havia nele suspeita e uma certa

reprovação. Muito poucos homens suportam isso calmamente. Ainda mesmo quando

commetemos uma ação reprovável, é-nos doído aturar reprimendas e por aí se pode

calcular a revolta que se ergueu no intimo de Kay, ao lembrar-se de como fora inocente o

encontro que tivera com Robin. O sangue pareceu incendiar-se em suas veias.

— Não sabia que era obrigado a dar-te satisfações dos meus atos — volveu ele

secamente.

Era a primeira vez que se dirigia a Alison em tom de hostilidade e isso naturalmente

a assustou. Sentindo que todas as suas esperanças ameaçavam fugir-lhe, irritou-se e,

obstinadamente, tornou a situação ainda pior.

— Foi um encontro casual ou...? — inquiriu em tom mordaz.

Hallam sabia que mais cedo ou mais tarde aquilo teria de acontecer. Nunca a

perdoaria. Pôs-se a refletir sobre Robin e daí nasceu-lhe uma violenta indignação contra

Alison. Pensou em si próprio, igualmente e sentiu a mesma coisa, pois, a seu ver, o flerte

masculino era um dos hábitos mais vis. Lamentou que tais palavras tivessem sido

proferidas por Alison. Si fosse um homem tudo se resolveria facilmente, mas, desde que

se tratava de uma moça, achou de melhor política tomar a coisa por uma brincadeira de

mau gosto e riu-se. Mrs. Pennington salvou a situação.

— Lembrei-me agora, Kay — disse ela — de que a pobre menina não só necessita

de alimento como de roupas. Acho que as minhas lhe servirão bem. Devo falar com ela?

— Acho que sim. Sua gentileza é muito grande, Mrs. Pennington.

Mrs. Pennington retirou-se do conves. Hallam levantou-se e seguiu-a.

Mr. Tearle dirigiu-se á filha:

— Alison — disse ele, vagarosamente, — estás te conduzindo como uma tola, minha

cara.

Por um momento a jovem fitou-o zangada, depois, inesperadamente, rompeu em

pranto.

Em baixo, na cabina, sentados á mesa que se balançava levemente, ambos se

olhavam, diante da pequena refeição que Fable preparara para a recém-chegada.

Robin comeu em silencio durante um momento, porque estava faminta, mas não

deixava de fitar o rosto sereno e inteligente de Fable.

— Acho-o muito simpatico — disse ela de repente.

Fable agradeceu-lhe com toda a simplicidade.

— E sou capaz de confiar em si — acrescentou a jovem.

— Alegra-me saber que me julga desse modo.

— Não se pôde ter confiança em qualquer pessoa, não acha?

Ele sacudiu a cabeça. Robin fez uma pausa.

— Olhe aqui — continuou ela, inclinando-se para a frente em atitude confidencial. —

Acho que coloquei seu amigo numa situação extremamente dificil, vindo para bordo.

Quero dizer, perante aquela moça... Miss Tearle. Mas, pode crer que não foi esse meu

intuito. O senhor é mesmo muito amigo dele, não é?

— Efetivamente — confirmou Fable.

— Então queria que me ajudasse.

Page 26: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Com todo o prazer. Mas de que modo?

A jovem calou-se por um instante.

— É ume pena que eu seja bonita — tornou, com um suspiro de desgosto. — Nem

um dos dois teria se importado comigo si eu fosse feia.

— A senhorita é muito perspicaz.

— Ela é capaz de zangar-se com seu amigo e eu não queria que isso acontecesse.

Eis tudo.

— Acho que ela não tem direito algum de zangar-se, ou criticar os atos de Kay —

volveu Fable, perguntando a si próprio si sua afirmação seria realmente justa.

Se não tivesse a certeza de que, entre Kay e Alison, qualquer outro sentimento,

além de uma simples amizade, acabaria, inevitavelmente, em desastre, não teria feito

semelhante afirmação.

— Não são eles muito amigos? — perguntou a jovem.

— Sim, mas isso lhe daria o direito de governar os atos de Kay? — contraveio o

outro.

— Oh, ás vezes há quem acredite que sim — replicou ela com um adorável ar de

sabedoria.

— Muita gente acredita, de fato, em tais absurdos — concordou o rapaz, rindo-se.

— Seria o senhor capaz de aborrecer um amigo seu por coisas dessa ordem? —

perguntou Robin.

— Está claro que não. E, por falar nisso, estavamos conversando sobre coisas

dessa ordem, não é verdade?

— Sim, eu queria saber claramente de tudo. Não desejo ser um obstáculo para seu

amigo, nem dar motivos a que Miss Tearle se comporte tão estupidamente, pois isso o

desgostaria. Se há alguma coisa acertada entre eles, melhor é que tudo continue como

está — terminou ela quase sem fôlego.

— Que eu saiba — replicou Fable — não há coisa alguma acertada entre eles. São

bons amigos e nada mais.

— E se houvesse entre os dois algo mais que amizade, o senhor saberia?

— Creio que sim; Kay tem por habito confiar-me todos os seus segredos.

— Oh, então...

— Então que? — perguntou Fable.

— Nada. Esqueçamos isto — replicou Robin, voltando á sua refeição.

A viagem não foi das mais felizes, para Alison. As palavras de seu pai lhe causaram

profunda impressão e tratou, por todos os meios, de reabilitar-se aos olhos de Kay. Até

certo ponto foi bem sucedida, pois Hallam desejava conservar sua amizade; mas suas

palavras haviam calado fundo no coração do rapaz, e não era possível, a este, esquecê-

las. Alison não conseguia vencer Robin em coisa alguma. Esta ultima mostrava-se sem-

pre muito gentil e agradável, porém absolutamente fria para com a outra. Além disto

estava habituada ao balanço das embarcações e passeava com absoluta firmeza pelo

tombadilho, o que trazia constante irritação a Alison que não conseguia dar dois passos

sem perder o equilíbrio. Robin manejava o timão com verdadeira habilidade e perícia,

Page 27: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

enquanto que Alison era perfeitamente leiga no métier. Enfim, Robin estava no seu

elemento a bordo do Adriana, o que não se dava com a outra.

Trajando o delicioso vestido de lã branca que Mrs. Pennington lhe emprestara, Robin

estava simplesmente adorável e chamava sobre si todas as atenções. Hallam dizia, de

momento em momento, que precisava pintá-la. Fable não se cansava de elogiá-la. E

quando, ao cair da tarde, a jovem, sentada no conves, cantou para eles, todos se

deixaram prender pelo encanto de sua voz que ora se estendia, indo perder-se nas águas

prateadas pelo luar, ora se tornava suave e dolente, confundindo-se com o sussurrar do

vento contra as velas do iate.

Alison, positivamente, estava sendo perseguida pela má sorte, pois, ao quarto dia de

viagem, desencadeou-se violenta borrasca e ela foi para o leito vitima do enjôo do mar.

Robin, porém, continuou alegre e bem disposta como de costume. Tratou da enferma com

bondade e delicadeza mas, quando Alison não precisava de sua companhia, ia ter

livremente com Hallam, enquanto a outra continuava presa em seu camarote, remoendo-

se de raiva e desejando a morte. Os cuidados que Robin lhe dispensava com tanta

bondade não faziam mais que agravar o odio que lhe ardia no coração.

Por tudo isso Alison sentiu uma grande alegria, quando, finda a excursão, se viu

novamente em Londres.

Está claro que ela disse a Hallam que a viagem fora deliciosa e jamais passara dias

tão divertidos. Desembarcaram em Gravesend, deixando George Dawkins encarregado

de voltar com o Adriana para o lugar onde esperavam suas amarras. Seguiram de trem

para a cidade e, na estação, enquanto retiravam as bagagens e esperavam os taxis,

Alison chamou Kay á parte e lhe perguntou:

— Já resolveste algo sobre essa pobre menina, Kay?

— Até agora nada, de definitivo. Farei com que Mrs. Quest cuide dela — respondeu

Hallam.

Mrs. Quest era a zeladora do prédio de apartamentos onde Kay residia.

— É pessoa de absoluta confiança — acrescentou.

— Já refletiste bem sobre... a gravidade da situação, Kay? — perguntou a jovem.

— Não. Tudo isto se deu com tanta rapidez que ainda não tive tempo para pensar —

tornou Hallam sorridente.

— Meu caro Kay, não quero parecer pouco caridosa; isso me horroriza. Mas na

familia dela há sangue mau. Já te lembraste que também ela está arriscada a possuí-lo?

Que as faltas de seu pai poderão atingi-la?

— Minha cara, acredito que não haja maldade na tua suposição, mas não

compreendo como é possível pensares tal coisa de uma pequena como Robin.

— Não penso mal dela; só lembrei aquilo como uma possibilidade. A hereditariedade

é uma coisa muito esquisita, que nos causa as mais inesperadas surpresas, e não seria

de espantar que a filha de um ladrão viesse também a se tornar ladra.

Hallam cerrou o sobrolho.

— Parece-me uma precipitação julgar isso de alguém sem um motivo real —

retorquiu ele. — Não devemos nunca ter pressa em afirmar que uma pessoa é,

forçosamente, o que foram seus pais.

Page 28: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Oh, é claro! Só te disse isso em carater de simples aviso. Tens muito bom

coração e estás sempre disposto a pensar bem de todo o mundo.

— A vida não valeria a pena de ser vivida se, constantemente, suspeitássemos de

todos os que nos cercam, não achas? — inquiriu ele.

— Sim — concordou Alison mais que depressa. — Meu Deus, Kay, o mundo já é tão

cheio de maldade que não devemos procurar aumentá-la.

E tomou uma expressão de grande meiguice, suspirando levemente.

— É isso justamente o que sinto — replicou ele.

Nesse momento um carregador começou a retirar as bagagens, levando-as para os

autos que esperavam do lado de fora. Ao despedir-se da jovem, Hallam estava longe de

sentir-se satisfeito.

A insinuação de Alison provocara o efeito desejado; esta teria compreendido isso se

estivesse junto de Kay para ouvir o dialogo que ele teve com Fable ao deixar a estação.

— Ouve, Andrew — disse Hallam. — Acreditas na lei da hereditariedade?

Fable que nem remotamente compreendera até onde queria chegar o amigo,

respondeu prontamente:

— Sim. E tu?

— Parece que somos forçados a isso. Mas creio que nem sempre o atavismo se

manifesta, não achas?

— Acho que, sendo realmente uma lei da natureza, podemos considerá-lo inevitável.

— Oh, é essa de fato tua opinião?

Fable sacudiu a cabeça afirmativamente.

— As leis naturais não falham, ou melhor, não têm motivos para falhar. Ignorando a

maneira pela qual elas atuam, nada podemos afirmar, pois quando acreditamos que não

exercem sua influencia, é quando agem mais intensamente. Mas por que me perguntas

isso, Kay? Em que estás pensando?

— Oh, em nada, meu caro Andrew! Pura curiosidade.

Um momento mais tarde todos se separavam, fazendo os costumeiros elogios á

deliciosa excursão que Hallam lhes proporcionara.

— Isto é Londres! — exclamou Robin, olhando através da janelinha do taxi, ao

passarem pelo centro da cidade. — Isto é Londres!... É aqui que papai está... Dá-nos a

impressão de um lugar enorme, horrível e inospitaleiro, não é verdade?

Pousou os olhos em Hallam e este notou que seus lábios tremiam.

— Mudarás de opinião quando a conheceres melhor. Quando estiveres habituada a

todo esse barulho e correria, parecer-te-á uma cidade amiga. Os dias melhores de minha

vida tenho-os passado aqui.

— Talvez me acostume — replicou ela em tom de duvida. — Mas ás vezes tenho a

impressão de que meus melhores dias já se foram.

— Oh, não deves pensar desse modo — volveu Kay, rapidamente. — Aliás não é de

estranhar esse estado de espirito em quem acaba de sofrer golpes tão cruéis.

CAPITULO III

Page 29: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— O senhor tem sido muito bom para comigo. — disse Robin, receosa de parecer

ingrata. — Mr. Fable também.

— Tolinha — retorquíu Hallam rindo. — Tudo que fizemos, fizemo-lo com o máximo

prazer, portanto não deves pensar mais nisso.

— Mas preciso... faz-me tanto bem... Acho agradabilissimo lembrar que alguém foi

bom para mim. Principalmente depois do que sofri com Sally e Ben...

— Muito bem; pois então recorda-o, se te agrada — volveu Hallam, rindo-se.

O resto do trajeto foi feito em silencio. Vinte minutos mais tarde, abria Kay a porta de

seu atelier, colocando-se de um lado para dar passagem a Robin.

— Aqui é o meu atelier — anunciou, seguindo-a e olhando á volta. — Agrada-te?

Robin sentiu-se encantada e confessou sua impressão, examinando todos os cantos

com seus grandes olhos escuros muito abertos e maravilhada com o bom gosto e

conforto do apartamento.

— E mora sozinho aqui? — inquiriu ela.

— Completamente só — respondeu Hallam, sorrindo.

— Não tem parentes? Pai, mãe ou alguém?

— Tenho pai somente. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas onze anos.

— Isso é uma das coisas mais terríveis da vida — exclamou Robin com sua voz

melodiosa a irradiar simpatia e doçura.

— Sim, para mim foi atroz. Minha mãe era dessas que nos fazem estremecer de

horror ante a simples lembrança da sua morte.

— O senhor é como eu. Nunca tive mãe. Isto é, não me recordo dela.

— Nesse ponto sou mais feliz. Lembro-me um pouco da minha.

Havia naquele dialogo ingênuo uma curiosa intimidade que teve o dom de uni-los

espiritualmente. Parecia que se conheciam ha muitos anos. Robin, a estranha migalha da

humanidade, sem dinheiro, sem mãe e em piores condições talvez do que se fosse orfã

de pai, possuidora de uma beleza que encantava e fazia vacilar os mais firmes espíritos

masculinos e Kay Hallam, mimado pelos deuses da fortuna, teciam, entre si, uma teia de

sutil intimidade e compreensão que jamais se partiria, fosse qual fosse a tensão feita

sobre ela, por seus gênios opostos, venetas e outras imperfeições humanas.

— Onde mora seu pai? — indagou subitamente a jovem.

— No interior; em um dos campos de Hertfordshire.

— E por que não vivem juntos?

— Porque preciso dedicar-me ao meu trabalho.

Falava sempre de seu trabalho com um instintivo tom de importância que os

verdadeiros artistas não costumam usar.

— Qual é o seu trabalho?

— Sou pintor. Artista, sabes?

— Oh!

Robin calou-se por um momento.

— Surpreende-me — tornou ela — que, tendo pai, o senhor não viva com ele. É

muito esquisito. Não gosta dele?

Page 30: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Está claro que sim! É o melhor dos homens. Mas agora senta-te. Vou chamar a

velha Mrs. Quest para nos preparar um pouco de chá. Tenho a impressão de que ainda

estou a bordo. A terra parece dançar sob meus pés.

Riu-se, atirou para um lado o casaco e o boné e apertou uma campainha.

Mrs. Quest, uma mulher idosa, gorda e simpatica, surgiu incontinenti. Hallam

apresentou-a a Robin e pediu-lhe que servisse chá para dois.

Assim o fez Mrs. Quest e minutos depois os dois jovens sentavam-se á pequenina

mesa, posta com admirável bom gosto, para tomarem uma confortadora xicara de chá.

Por cima da mesa seus olhos se encontraram com uma expressão de franca amizade.

— Tenho estado a fazer diversos planos — disse Hallam após alguns minutos.

— Sobre o que irá fazer de mim? — indagou Robin.

— Sim.

— Sou um pequeno transtorno para si, não sou?

— Qual transtorno, qual nada; só o que precisamos é resolver o que iremos fazer.

Que achaste de Mrs. Quest?

-— Pareceu-me muito bondosa e simpatica. Por que?

— Porque minha idéia é pedir-lhe conselho e ver si ela sabe algum lugar para onde

possas ir.

— Sim; compreendo.

— E lembrei-me que, para começar, poderias servir de modelo para mim. Faremos

apenas um ou dois quadros.

— Mas por que quer pintar-me? — perguntou Robin.

— Por que és um modelo magnífico. Além disso, queres trabalhar, não é?

— E isso é trabalho?

— Certamente.

— Quer o senhor dizer que me vai pagar para fazer o meu retrato?

— É claro. Dez shillings por dia.

Diante disso os olhos de Robin tornaram-se maiores.

— Dez shillings por dia! — repetiu ela. — Não zombe comigo, por favor.

Hallam fixou nela um olhar de surpresa, mas finalmente conseguiu convencê-la de

que estava falando serio.

— Com tanto dinheiro compraria o Palácio de Buckingham para dar a papai, quando

o puserem em liberdade! — exclamou a jovem com voz tremula. — O senhor é muito

bom, — continuou impulsivamente após um pequeno silencio. — Pelo menos para mim.

Sou-lhe tão agradecida!... Gostaria de poder provar-lhe minha gratidão. Mas é que uma

pequena como eu nada pôde fazer para uma pessoa como o senhor.

— Deixa de tolices! Queres uma saidinha com azeitonas?

Robin aceitou mas não parou de falar.

— Seu amigo Mr. Fable pensa a mesma coisa do senhor.

— Andy é um velho amigo, bem sabes.

— Acho-o um rapaz adorável — exclamou Robin.

— Pois ninguém costuma achá-lo bonito.

— Não, não é bonito; quando digo adorável refiro-me á sua simpatia.

Page 31: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Andy possui um carater de uma limpidez rara. Dedico-lhe uma amizade de irmão.

Mas olha aqui, precisamos conversar sobre negócios.

— Pensei que já estivesse tudo combinado.

— Tudo não. Tomo-te como modelo durante seis semanas e pagar-te-ei todos os

sabados. E se, por acaso, um ou outro dia não trabalharmos receberás do mesmo modo.

— E isso é direito?

— Certamente.

— Costuma fazê-lo sempre?

— É um velho habito meu.

— Espero que o senhor não esteja fazendo isso somente para ajudar-me.

— Não; podes estar descansada.

— Prefiro arranjar qualquer espécie de trabalho, mas não desejo viver da caridade

dos amigos. O senhor já fez muito por mim.

— Oh, não. Tu foste minha hospede durante uma semana. E, como tu, Fable e os

outros. Isso nunca foi caridade.

— Foi uma excursão, não foi? — replicou Robin.

— Sim. Para comemorar meu aniversario — explicou Hallam, rindo-se.

— Sim? E ganhou muitos presentes?

A descrição dos presentes que Hallam ganhara ocupou algum tempo.

As sombras crepusculares do belo dia de verão tornavam-se mais densas. Kay

levantou-se e apertou o botão da luz.

— Agora, — volveu ele — vou descer para conversar com Mrs. Quest e ver se

tomamos alguma decisão. Podes distrair-te, examinando o atelier, se quiseres. Olha; aqui

dentro encontrarás muita coisa bonita.

E, assim dizendo, colocou sobre a mesa um cofre de metal que retirara de um

armário. Abriu-o e mostrou á jovem o seu conteúdo: era um monte de objetos de pouco

valor com que ele costumava enfeitar seus modelos: colares de falsas ametistas,

braceletes de cristal lapidado, anéis e prendedores prateados.

Robin retirava tudo isto do cofre como que maravilhada.

— Oh, posso vê-los? — perguntou ingenuamente.

— Sim. Volto já.

Hallam saiu, deixando-a distraída em dispor sobre a mesa todos aqueles reluzentes

objetos de adorno. Demorou quinze minutos e, ao voltar, encontrou-a ainda ocupada em

admirar o conteúdo do cofre. Parou no limiar da porta, preso ao encanto do quadro que

ela formava. Nisto, percebeu que Robin tirava da caixa uma corrente de ouro com um

pendente de pérolas falsas. Estava de pé, ao lado da mesa, com as costas semi-voltadas

para ele e, ao levantar as mãos para examinar a joia mais de perto, esta ultima ficou fora

do alcance dos olhos de Kay. Robin contemplou intensamente o pendente pelo espaço de

um ou dois minutos e em seguida Hallam notou que ela guardava a joia no regaço,

comprimindo-a com a mão.

Hallam continuou imovel, o coração a bater-lhe precipitadamente, pois uma idéia

repentina lhe cruzara o cérebro. Lembrou-se das palavras que Alison lhe dissera na

estação. “Em sua família há sangue mau... o pai de Robin... Se ela viesse a ser vitima de

uma tara?”

Page 32: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Então, achara a hipotese inadmissível. Mas agora!... Não tinha acaso a prova diante

dos olhos? Alison estava com a razão! Robin era uma ladra! Tal pai, tal filha. Aliás era

uma coisa inevitável. Como poderia ela escapar? E como poderia ele ter sido tão idiota ao

ponto de se iludir daquela maneira? Mas que fazer? Que dizer?

Talvez, avivando-se em seu espirito a lembrança dos herois imperturbáveis que

encontrara nas novelas policiais, tomou a atitude mais serena que lhe foi possível e

exclamou:

— Ouve, pequena, isso não é teu.

Robin voltou-se bruscamente e fixou nele os olhos assustados, comprimindo ainda,

com as mãos, o objeto que guardara no regaço.

— Não é meu? Mas eu sei perfeitamente disso — replicou ela, sem compreender

bem.

— Então, não achas que não deves escondê-lo em tua blusa?

Os lábios da jovem entreabriram-se; seus olhos arregalaram-se desmesuradamente.

— Escondê-lo? — repetiu com voz tremula, como se a compreensão penetrasse

lentamente em seu espirito.

— Sim, não achas lamentável o que acabas de fazer?

— Não me disse o senhor que eu podia olhar tudo isto? — perguntou ela. — Não foi

o senhor mesmo quem foi buscar o cofre, colocando-o sobre a mesa e abrindo-o para me

mostrar o que ele continha?

— Sim, fui eu, mas...

Nesse momento a realidade surgiu, nitida, em todo o seu horror, diante dos olhos de

Robin.

— Oh! O senhor pensou que eu fosse... — começou ela.

— Não pensei; vi — atalhou Kay.

— Julgou que eu estivesse roubando, não é?

Havia uma serenidade fria e perigosa na voz da jovem.

— Vi quando guardavas o pendente no regaço.

— O senhor é um detetive de primeira ordem, não? — replicou ela com causticante

ironia.

E então, subitamente, sua serenidade desapareceu sob o estalar da tempestade.

Seus olhos pareciam feitos de fogo; sua voz cortava como um açoite. Mais uma vez

tornara-se a pequenina criatura selvagem e enfurecida que saltara sobre ele no carrocel

da feira.

— Com que então julga que eu sou isso? Pensa que assim iria eu pagar ao homem

que foi bom para mim? Só por que sabe que meu pai é um ladrão? O senhor é igual a

todo mundo... e eu pensei que fosse diferente... Roubar seus insignificantes pedacinhos

de vidro... Quem os poderia cobiçar?

Continuava com uma das mãos fechada, mas com a outra pôs-se a atirar, aos pés

de Hallam, todas as jóias que estavam sobre a mesa.

— Guarda-os!... guarda-os! guarda-os! — gritava ela.

Kay olhava-a, assombrado com a violência de sua fúria. As mulheres de sua classe

não faziam aquilo; podiam ser hipocritas mas não atiravam objetos contra ninguém... Que

perfeita selvagemzinha era ela! E como ficava linda assim enraivecida!

Page 33: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— O senhor pensou que eram aquelas pérolas de vidro que eu estava roubando,

não foi? — continuou ela quase sem fôlego. — Pois bem, cá estão elas, vê?

Estendeu o braço, abriu a mão que até ali conservara cerrada, e Hallam viu que o

pendente jazia sobre sua palma macia e branca.

— E o que eu tornei a guardar no meu regaço era isto... E isto não é seu... é meu!

Puxou uma corrente muito fina que lhe pendia do pescoço e pelo decote da blusa

retirou um pequeno medalhão, rodeado de pequeninas pérolas.

— Quis comparar estas pérolas com as suas para ver si eram iguais e são... Aqui

dentro há um retratinho de minha mãe e se eu não o odiasse com todas as minhas

forças... mostrar-lhe-ia. Oh, papai! Por que fizeste com que pensassem isso de mim?

Com este grito, a primeira reprovação que Hallam a ouvia proferir contra seu pai, a

tempestade amainou-se. Extinguiu-se num soluço e numa rápida torrente de lagrimas.

Robin ocultou o rosto com o braço num gesto todo infantil.

Hallam passou por cima do monte de jóias que jazia aos seus pés e aproximou-se

delia.

— Robin... sinto ímpetos de espancar-me a mim mesmo! Por favor, perdoa-me —

murmurou humildemente.

— Não adianta pedir perdão. O senhor pensou aquilo... é só o que me importa —

replicou a voz abafada de Robin.

— Oh, bem sei. De nada adianta eu falar... O que fiz é simplesmente imperdoável.

Não sei o que se passou comigo... foi como uma rajada de loucura... Robin, não calculas

como sinto o meu procedimento.

Robin ergueu para ele dois olhos fatigados pela fúria e disse vagarosamente:

— Não compreende que a vida seria suficientemente dificil para mim... sem que o

senhor me magoasse desse modo? Não vê que a maior parte das pessoas iria desprezar-

me sem...

— Oh, mereço tudo que disseres de mim. Tudo, Robin. Ouvir-te-ei calado. Dize tudo

que quiseres... tudo que pensas de mim... Nada poderá ser pior do que o juizo que faço

de mim próprio... Mas, quando acabares de falar, vê se consegues perdoar-me.

Suplicou-lhe, rogou-lhe o perdão com toda humildade e, embora lhe custasse algum

tempo, conseguiu fazer as pazes com a jovem.

— Compreendo que meus gestos lhe tenham parecido um tanto... esquisitos, —

admitiu ela por fim. — Além do mais o senhor foi muito bondoso para comigo e acho que

todo mundo está sujeito a um engano como esse. Está tudo acabado.

E com estas palavras estendeu a mão a Kay. Este ultimo sentiu um alivio quase

ridículo ao obter o perdão de Robin e apertou demoradamente a pequenina mão que se

lhe oferecia. Uma espécie de nó em sua garganta impediu-o de falar durante alguns

minutos. Finalmente ergueu os olhos e sorriu um pequenino sorriso de incerteza.

— Tu disseste que me odiavas com todas as tuas forças. É verdade, Robin? —

indagou com uma expressão de duvida.

— Não.

— E não te aborreces que eu te chame simplesmente de Robin?

— Não. Mas si continuar a chamar-me de Robin, eu o chamarei de Kay.

Page 34: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Perfeitamente. Não farei a menor objeção. Mas por que fazes disso uma

ameaça?

Robin baixou os olhos, pousando-os em suas mãos que continuavam presas ás de

Hallam.

— Porque é uma vergonha ser tratado com intimidade pela filha de um ladrão... por

esse motivo todos me tratam com desprezo e superioridade — explicou lentamente. —

Compreende? — acrescentou, erguendo novamente o rosto.

Seus olhos se encontraram. Hallam compreendeu. Soltou as pequeninas mãos da

jovem.

— Compreendo, mas não importa — replicou ele, desviando o rosto, por onde um

leve rubor se espalhara.

Mrs. Quest se encarregou de instalar Robin e, tendo um quarto desocupado em seu

apartamento, ofereceu-o á jovem por um aluguel módico.

Robin aceitou o oferecimento, o que de modo algum agradou a Alison Tearle.

Em primeiro lugar, inspirado pela beleza de Robin, Hallam começou a trabalhar —

sim, praticamente, ele trabalhava — em esboços e estudos do raro tipo da jovem, ao

passo que jamais sentira inspiração para fazer mais que um ou outro insignificante

desenho de Alison. Além do mais, Robin, hospedada com Mrs. Quest, ficara mais ou

menos perto de Hallam.

Robin, para aliviar um pouco o trabalho de Mrs. Quest que, por ser muito gorda, se

cansava logo, adquiriu o habito de cuidar do apartamento de Kay, varrendo-o, tirando o pó

dos moveis e conservando-o em ordem.

Gostava de fazer todos esses pequenos serviços, pois via nisso uma oportunidade

de demonstrar o reconhecimento que sentia. E, ainda que julgasse impossível esquecer a

afronta que Hallam lhe lançara ao rosto, acusando-a de ter furtado o pendente de pérolas

falsas, descobriu que não mais lhe guardava o menor ressentimento ou rancor por isso.

Para tanto foi o bastante um ou dois dias de tratamento carinhoso; por outro lado o

incidente como que formara um novo laço entre eles, fazendo com que se

compreendessem melhor.

Para Alison, entretanto, as coisas haviam tomado um colorido negro. Procurava por

todos os meios enganar-se a si própria, fazendo por crer que tudo continuava como antes,

mas, no intimo de seu coração, sabia que a situação mudara por completo e receava que

jamais voltasse a ser o que fora. Punha cuidado especial em falar a Hallam dos encantos

de Robin e em exprimir, por ela, sua admiração.

E, assim, chegou a noite de uma grande festa no atelier de Hallam — um baile a

fantasia. Alison, magnificamente vestida de Cleopatra — fantasia inteiramente em

desacordo com seu claro tipo de inglesa — esperava constituir a atracção exclusiva da

soirée3. Sempre fora a figura predominante nas reuniões sociais de Hallam, nas quais

adotava uma forçada atitude de mulher livre e despida de convenções, que em nada

condizia com seu espirito vulgar e mesquinho.

3 Reunião social, ou de outro tipo, que ocorre à noite.

Page 35: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Aquela noite, portanto, exibindo a riqueza de sua fantasia que lhe deixava

inteiramente nus o colo e os ombros, era ela a rainha da festa. Flertava com seis rapazes

a um só tempo e divertia-se intensamente. Kay estava de excelente humor e ela chegara

quase a esquecer a desagradável e importuna pessoa de Robin, quando um escultor,

examinando um dos recantos da sala, estacou diante de um dos esboços que Hallam

fizera de sua protegida.

— Ceus, como é linda! Onde encontraste esta pequena, Hallam? — exclamou o

artista, mostrando o quadro a todos os convivas.

Imediatamente ergueu-se um coro de admiração.

Alison, roida de despeito ante a apresentação daquele retrato de Robin, exclamou

com acento irônico e frio:

— Oh, esse é o novo e maravilhoso modelo que Hallam encontrou lá nos confins de

Molesbury.

Entusiasmado pela admiração que seu trabalho provocara, Hallam teve uma idéia

grandiosa.

— Gostariam de conhecê-la? — indagou. — Querem que eu vá lá em baixo buscá-

la?

Alison protestou imediatamente, mas foi inútil, pois todos os outros convidados

aceitaram, sem hesitar, a sugestão de Hallam.

— Pois esperem um momento que já volto com ela — gritou, saíndo a correr.

— Ela mora no porão do prédio e faz alguns serviços domésticos para a velha Mrs.

Quest — explicou Alison, com pérfida intenção, aos que se achavam mais perto.

Fable mediu-a com um olhar indiferente e pensou lá com seus botões. “Alison

começa a mostrar os dentes”.

Em poucos minutos Hallam estava de volta, arrastando, pela mão, Robin que,

espantada e enrubescida, protestava e tentava evitar a entrada do atelier.

No limiar da porta, o jovem parou, fez uma mesura e exclamou:

— Damas e cavalheiros, permitam-me que lhes apresente Miss Robinetta Golden, o

original dos meus pobres trabalhos.

Imovel á entrada da sala, Robin, modestamente trajada, olhava estupefata para toda

aquela gente. Trazia as mangas da blusa arregaçadas, pois estivera ajudando Mrs. Quest

na lavagem da louça e as negras ondas de seus cabelos emolduravam-lhe o rosto num

adorável desalinho.

— Canta-nos qualquer coisa, Robin! — exclamou Hallam. — Mostra-lhes o que

sabes.

Com estas palavras sentou-se ao piano e improvisou um acompanhamento para a

melodia que Robin cantara na feira de Molesbury, quando ele a conhecera.

Por um momento Robin hesitou, e quem pudesse ler em seu rosto, notaria sintomas

perigosos. Seus olhos faiscavam ameaçadores ao se cravarem em Hallam, como se

quisessem fulminá-lo. Afinal decidiu-se e ás primeiras notas saídas de seus lábios, todos

os convivas emudeceram para ouvi-la melhor.

Terminou a canção. Um silencio mediou entre o ultimo som e o primeiro aplauso. A

este, porém, seguiu-se uma verdadeira ovação. Todos a rodearam, pedindo-lhe que

Page 36: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

tornasse a cantar. Mais uma vez ela hesitou, lançando a Hallam um olhar suplicante.

Nada conseguindo, resolveu ceder.

Alison estava furiosa. Robin tornara-se o único encanto da reunião. E quando esta

ultima terminou sua segunda canção, Hallam ordenou-lhe que dançasse. Não percebia o

tom imperioso com que se dirigia á jovem; sentia apenas um curioso orgulho ante a

admiração que ela despertava em seus amigos. Robin, porém, compreendeu que estava

sendo exibida por Kay como algo exótico e fora do comum, e o olhar que lançou ao rapaz

foi cheio de magoa e reprovação. Não havia o que não fizesse por ele mas aquela

liberdade absoluta com que lhe dava ordens era algo que não permitiria a homem algum,

no mundo.

Não quis reagir diante de todas aquelas pessoas, pois isso o faria caír numa

situação ridícula e por esse motivo continuou a obedecer-lhe. Acompanhada por Kay,

executou um de seus bailados, cujo ritmo selvagem a todos seduziu. Ao terminá-lo o

jovem escultor, o mesmo que descobrira seu retrato, perdendo a cabeça com sua

formosura, ergueu-a nos braços, colocou-a sobre os ombros e, em triunfo, carregou-a

para o centro do salão.

Estalaram os risos e os aplausos e organizou-se um delirante cortejo. Palida de ira,

Robin gritava que a pusessem no chão, mas, com a algazarra reinante, o jovem artista

julgava que eram apenas exclamações de entusiasmo. Não lhe passava pela cabeça que

Robin pudesse ofender-se, e estava longe de ser essa a sua intenção. Por fim, parou no

centro da sala, mantendo-a no ar.

Alguém serviu champagne, levantaram-se as taças em sua honra e seu nome foi

brindado por todos, com exceção de duas pessoas: Alison que mal podia disfarçar seu

despeito e Fable que, ao notar a expressão de Robin, compreendera a verdade.

— Pobre pequena, estão a martirizá-la — disse consigo mesmo.

Finalmente o escultor fê-la deslizar até ao chão e Robin saltou para longe dele, onde

estacou com a respiração ofegante, olhando á volta de se como fera que se vê presa em

uma armadilha.

Fable acercou-se-lhe e parou ao seu lado, oferecendo-lhe calmamente o braço.

— Quer dar-me o prazer de cear comigo, Miss Golden? — perguntou ele.

Ao notar o olhar significativo de Fable, Robin sentiu todo seu receio desaparecer

como por encanto. Passou a mão pelo braço que o rapaz lhe oferecia e, ambos em

silencio, dirigiram-se á porta do atelier que se fechou por traz deles. No corredor Robin

exclamou com voz tremula de indignação:

— Como puderam atrever-se a tanto? Como?

— Não tiveram intenção de ofender-te — replicou o rapaz.

Sob a influencia das palavras de Fable, Robin acalmou-se e ergueu para ele os

grande olhos umidos.

— Uma vez eu disse a Kay que eras um homem adorável e agora vejo que não me

enganei — balbuciou correndo na direção da escada.

Fable quedou-se um momento onde estava, vendo-a desaparecer e quando tornou

ao atelier havia um sorriso em seus lábios.

Page 37: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

No dia seguinte, Hallam resolveu ir ao campo, com o intuito de pintar Robin em

plena natureza.

Esta ultima, porém, sentada a um canto do vagão não sorria e quase não falava.

Quase ao fim do trajeto Hallam perdeu a paciência e indagou:

— Por acaso deixaste a lingua em casa?

— Olha aqui, Kay, tu me pagas para que eu te sirva de modelo e não para fazeres

de mim uma escrava.

Hallam arregalou os olhos de espanto e ela continuou:

— Sinto uma grande e sincera gratidão pelo que fizeste por mim, mas não sou

dessas bonecas que andam e falam, nem tão pouco me pareço com uma foca amestrada,

para que me exibas aos teus amigos e eles admirem e me carreguem nos ombros,

compreendes?

— Mas, Robin, eu não sabia... — começou Hallam.

— E ainda há muitas outras coisas que não sabes — atalhou ela.

— Ninguém podia imaginar que te sentisses insultada por tão pouco. Pensamos que

aquilo fosse uma honra para ti. Alison daria a vida para estar em teu lugar.

Foi uma imprudência de Hallam ter dito semelhante coisa. Robin contraiu levemente

os lábios.

— É possível — retorquiu ela. — Isso em nada me admiraria depois da maneira pela

qual ela se portou, ontem.

Hallam bufou de raiva.

— Olha aqui, não permito que critiques meus amigos dessa forma. Alison é muito

boa menina e sabe comportar-se.

— Tudo depende do que entendas por comportamento — replicou Robin secamente.

O resto da viagem decorreu em profundo silencio. Certamente não passava pela

cabeça de Hallam que Alison Tearle, uma moça pertencente á mais fina sociedade,

tivesse algo que aprender, em matéria de educação, com a filha dum criminoso vulgar.

Uma pequena que nem sequer sabia falar corretamente!

Estava aborrecido mas, influenciado pela beleza daquele maravilhoso dia de sol em

pleno campo, foi recobrando aos poucos o bom humor e pôs-se a preparar a palheta e os

pincéis, como se pretendesse realizar grandes trabalhos. Talvez fosse de fato esse seu

intuito. Robin era um modelo capaz de inspirar os mais terríveis troca-tintas.

E, assim, Hallam levou-a para um campo esmeraldino, estudando-a sob diversas

luzes, contra diversos fundos e em diferentes poses. Por fim armou o cavalete e deu a

primeira pincelada. Cinco minutos mais tarde, porém, estendia-se sobre o macio tapete da

relva e exclamava risonho:

— Que dia glorioso! Que ceu! Que nuvens! Que estupidez trabalhar num lugar

destes! Canta para mim, Robin.

Mas Robin não estava disposta a cantar e não o faria. Era inútil pedir-lhe. Diante

disso Hallam afastou-se a resmungar, com uma vaga sensação de descontentamento a

irritar-lhe os nervos. Robin, esquiva e arredía, parecia um pássaro selvagem.

E a causa de tudo era que a jovem se sentia desiludida. Seus grandes olhos negros

não lhe serviam unicamente de adorno; serviam-lhe também para ver e, aos poucos, ela

principiava a notar certas coisas com relação a Kay Hallam. Um ou dois fatos que,

Page 38: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

separados, lhe causaram uma pequena impressão, unidos, ajudaram-na a formar certas

conclusões desagradáveis.

Em primeiro lugar Hallam suspeitara de sua pessoa, julgando que ela havia roubado

o pendente de pérolas falsas. Talvez isso fosse natural, mas ela não esperava

semelhante coisa de Kay. Fable, pensou ela, em circunstancia alguma ergueria contra si

semelhante suspeita. E depois fora o incidente do baile, na noite anterior. Sentia que ele

estava despreocupado; que fora insensível e egoísta. A Robin era mais fácil sentir que

pensar. A decepção que sofrera fora cruel e magoara sua fina sensibilidade de mulher.

Não podia, igualmente, deixar de compreender que Hallam, embora falasse muito do

seu trabalho, pouco mais fazia além de pequenos esboços inacabaveis e de valor

insignificante. Passava a maior parte do tempo fora do atelier e, quando isso não se dava,

havia sempre uma ou outra visita que o impedia de trabalhar.

Por isso, quando tão facilmente abandonou o trabalho que mal principiara, pedindo-

lhe para cantar, Robin sentiu que era impossivel fazer-lhe a vontade. Cantar é próprio de

um estado de espirito alegre e despreocupado e Robin com o coração afogado em

decepções não podia fazê-lo.

— Está bem. Tornemos a emalar as coisas — exclamou Hallam zangado.

Assim fizeram em silencio, Hallam atirando os objetos uns sobre os outros e

remoendo a irritação que o invadira. Depois das malas prontas tomaram o caminho da

estação, o qual cortava um grande pinheiral.

Uma suave brisa embalava lentamente os galhos altos e esguios dos pinheiros. Dir-

se-ia haver incenso no ar, tal o perfume que por aí vagava.

Hallam continuava um tanto amuado em conseqüência da recusa de Robin e das

censuras que ela lhe fizera com relação á sua conduta na noite da véspera. Como a

maioria dos homens, Kay não era despido de vaidade e não lhe agradava ver-se assim

censurado por Robin.

Por outro lado jamais Robin lhe parecera tão sedutora como naquele momento.

Seus cabelos negros esvoaçavam á brisa, o rosado de suas faces parecia mais vivo, seus

grandes olhos brilhavam com maior fulgor. Caminhava ao seu lado com o mais adorável e

gracioso de todos os passos. Por que se mostraria ela tão arredia? Esta pergunta e a

formosura da jovem o martirizavam. O domínio de si próprio, esse algo invencível que

havia em Robin, irritava-o. Sentia-se inquieto, aflito — aborrecido com ela e pouco

satisfeito consigo mesmo.

Súbito, do alto de um pinheiro lhes chegou aos ouvidos o canto mavioso de um

pássaro. Robin no mesmo instante ergueu a cabeça e de seus lábios, que já agora

sorriam, brotou uma nota cristalina que foi como o eco daquele trinado. Seu movimento

fora tão gracioso e espontâneo e era tão encantadora a naturalidade com que seus olhos

buscavam divisar no alto das agulhas verdes o pássaro cantor, que, uma vez mais,

Hallam sentiu-se dominado pelo desejo de beijar aqueles lábios vermelhos e

entreabertos.

Aproximou-se dela mudo, tremulo, deslumbrado, obediente ao impulso que o

invadira, sem saber sequer o que ia fazer, mas, sentindo cada vez mais a necessidade de

fazê-lo.

E fê-lo.

Page 39: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Uma sonora bofetada no rosto foi a recompensa que Hallam obteve com sua ação.

Robin encarava-o, tremendo da cabeça aos pés, o olhar aceso de indignação.

— Alto lá, amigo! — exclamou ela com mordaz e enfurecido sarcasmo. — Isto — (e

apontou para seus lábios convulsos) — isto não é teu!

CAPITULO IV

Durante um momento ficaram a se olhar em silencio. Ela, enrubescida, olhar

brilhante, respiração opressa — furiosa, enfim; ele, ofendido e ao mesmo tempo

envergonhado, esfregando com a mão a face dolorida.

Uma das primeiras coisas que o haviam atraído a Robin, fora a instintiva modéstia, a

espontânea indignação com que ela repelira o olhar de admiração que lhe lançara na feira

de Molesbury. E esses sentimentos tão nobres e sagrados ele não os soubera respeitar.

Estava mais que convencido do mal que praticara. Mas a ignomínia daquela bofetada

queimava-lhe ainda o rosto, fazendo borbulhar o sangue em suas veias. Sem se resolver

a confessar seu erro, cravava em Robin um olhar áspero e sombrio. Mas, como os

minutos se passassem e sua fisionomia não refleetisse a menor expressão de

arrependimento, o odio que fulgia no olhar da jovem transformou-se em algo inteiramente

diverso. Algo que traduzia maguas tão grandes que o perdão brotou suplicante dos lábios

de Kay.

— Robin... perdoe-me... Portei-me como um canalha, bem sei.

Mas a retratação viera tarde demais e Robin não a aceitou no mesmo momento

como Hallam esperara. Em silencio continuou a fitá-lo com aqueles grandes olhos

magoados.

Hallam começou a sentir-se mal sob esse olhar e, voltando-se, pôs-se a dar ponta-

pés nos galhos secos que havia pelo chão.

— Sempre tenho que estar a te pedir desculpas — disse ele mal humorado. —

Nunca tive que dar explicações a ninguém, deste modo.

— A culpa é tua — replicou Robin calmamente.

— Minha, não. Tu é que tens a triste habilidade de arrastar-me para o mal.

— Foi isso justamente o que disse Adão, não é verdade? E, todavia, saboreou até o

fim a metade da maçã que lhe coube.

— Já te pedi desculpas, não foi?

— Sim e estás desculpado. Mas as coisas não podem ficar como estão, Kay. Estás

farto de te desculpares. Pois bem; também eu estou farta de ouvir tuas desculpas.

— Não sei que queres dizer com isso — volveu o rapaz em tom alterado.

— Nesse caso explicar-te-ei. Sabes por que me beijaste, há pouco?

— Porque és espantosamente linda, acho eu. Por que é que um homem beija uma

pequena? — replicou ele com as faces levemente rubras.

Robin meneou a cabeça.

— Oh, não. Beijaste-me unicamente porque julgas-te poder fazê-lo. Se eu fosse uma

moça da alta sociedade não te atreverias a beijar-me, ainda que eu fosse cinquenta vezes

mais bonita do que sou.

Page 40: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Kay protestou ardentemente mais ela persistiu.

— É infame o juizo que fazes de mim! Que espécie de homem julgas que sou?

— Nenhuma, Kay — retorquiu ela rapidamente. — Não podes evitar que eu pense o

que penso de ti. És um gentleman e os gentlemen têm opiniões muito estranhas sobre

certas coisas. As pessoas como eu são uma dessas coisas sobre as quais eles têm

opiniões tão esquisitas.

— Que queres dizer? Pessoas como tu? Positivamente não te compreendo —

volveu Hallam em tom áspero.

Robin ergueu os olhos e fixou-o de frente.

— Bem sabes que é verdade — disse ela.

Kay, porém, fez-se de surdo e continuou no mesmo tom.

— Nunca pensei que fosses tão santinha. Se alimentas opiniões tão fortemente

contrarias ao beijo é melhor que te encerres em um claustro, onde homem algum possa

pôr os olhos em ti.

Hallam compreendeu que não devia dizer aquilo, odiou a si próprio por aquelas

palavras, mas foi incapaz de reprimi-las. Elas vieram-lhe aos lábios num súbito impulso de

ferir com o mesmo ferro com que fora ferido.

Os olhos de Robin inundaram-se de lagrimas.

— Não sou santa, nem tenho opiniões contrarias ao que quer que seja. Horroriza-

me, porém, a maneira leviana pela qual me beijaste — simplesmente porque sou bonita e

não tinhas coisa melhor para fazer. Nenhum homem há de beijar-me assim e ficar impune

— nenhum!

Parou de falar, procurando conter o ritmo alterado de sua respiração.

Não fora bem essa, a razão que levara Kay a beijá-la. Fora algo por demais violento

para ser tão insignificante; a própria violência do impulso o intrigava. Mas, apesar de tudo,

ele compreendeu que as palavras da jovem encerravam uma odiosa verdade. Sua

fisionomia transformou-se. O mesmo se deu com a voz de Robin ao dizer calmamente:

—- Não sou uma lady, Kay — não pertenço ao meio em que nasceste. Na tua

opinião não sou tua igual.

Kay, dolorosamente embaraçado, tornou a protestar. Robin, porém, cortou-lhe a

palavra.

— Por que não reconheces a verdade, Kay? Não tens culpa de ser um gentleman.

— Mas, Robin, não digas isso! Odeio todos esses idiotas preconceitos sociais.

— Mas, mesmo assim, se eu fosse uma moça de posição social não terias ousado

beijar-me daquele modo, não é verdade?

— Não sei. Se a moça fosse tão tentadora como tu, provavelmente a beijaria da

mesma forma. — (Baixou os olhos e continuou a dar pontapés nos galhos secos). —

Perdi a cabeça — confesso e espero que me desculpes. Foi essa a verdade. Não te beijei

levado por nenhuma dessas vis hipoteses que acabas de formular.

— Kay! — exclamou ela. — Isso não é verdade, tu bem sabes que não, e revolta-me

ver-te mentir. Não ha nada mais desprezível do que o homem que mente.

— Até hoje ainda não me haviam tomado por mentiroso.

— Não te chamei de mentiroso. Procuras apenas negar que estou com a razão para

não me magoar.

Page 41: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não vejo o que há nisto capaz de magoar-te. Nunca vi uma pequena com idéias

tão absurdas.

— E o que mais me entristece é ver que me julgas incapaz de encarar a verdade e

suportá-la em toda a sua crueldade.

— Mas se estou te dizendo que não é verdade. Nunca dei a menor importância a

preconceitos de família, nem avaliei o valor desta ou daquela pessoa pelos atos de seus

pais.

— Então por que razão pensaste que eu estava roubando as tuas jóias falsas? Não

erguerias uma suspeita dessa ordem contra Alison Tearle. Por que não me convidaste

para a tua festa de um modo correto e delicado em lugar de arrastar-me para lá do jeito

que me encontraste, para depois exibir-me aos teus, amigos? Não terias feito isso com

Alison Tearle. E por que me beijaste, hoje, daquele modo horrível e leviano que não

significava coisa alguma? Não serias capaz de beijar Alison...

— Oh, faze-me favor de pôr de lado o nome de Alison, sim? — disse ele secamente.

— Não, não posso. Não há outra com a qual eu me possa comparar. Alison Tearle é

uma lady. Ela faz coisas que por nada neste mundo eu faria, mas não deixa de ser uma

lady. Dizes que perdeste a cabeça há pouco. Pois bem, terias tido cuidado suficiente para

não perde-la si, também eu, fosse uma lady.

Robin expressava-se mal, porém com tal animo e firmeza que Hallam emudeceu.

Não tentava contestar os argumentos da jovem porque os sabia verdadeiros. Não teria

tratado uma moça de posição social, como tratara Robin. Compreendeu, então, que o

incidente da noite anterior tivera uma significação muito mais profunda do que, a principio,

supusera. Viu, de um momento para outro, que não poderia ter feito o que fizera a Robin,

si ela fosse sua igual. A compreensão de tudo isso cobriu-o de vergonha, mormente por

reconhecer que foram necessárias as palavras de Robin para retirar-lhe a venda dos

olhos.

— Ouve, Kay — continuou ela. — Durante estas quatro semanas que estou

morando com Mrs. Quest, tenho considerado muita coisa sobre a minha pessoa e a tua.

Só agora compreendo por que não me convidaste corretamente para a tua festa. Foi

unicamente porque não sei comportar-me nem falar convenientemente. E sabias que teus

amigos reparariam nisso. Mas, desde que eu me limitasse a cantar, dançar e diverti-los,

tudo correria bem.

Hallam continuava mudo, sem coragem para reconhecer a verdade e, diante da

atitude da jovem, francamente incapaz de mentir.

— Não sei falar direito, não é verdade? — acrescentou ela subitamente.

— É — replicou Kay laconicamente.

— E alguma vez já te lembraste de que está em tuas mãos corrigir meus erros,

ensinar-me?

— Não — volveu ele. — Nunca.

Robin passou os grandes olhos pensativos pela ramagem verde e esguia dos

pinheiros e depois volveu-os de novo para o rapaz.

— Kay, se tivesses uma irmã e surpreendesses um homem a beijá-la como há

pouco me beijaste, que farias a esse homem?

Page 42: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Esta súbita pergunta colocou-o frente a frente com o X do problema. Não mais lhe

era possivel deixar de responder.

— Abrir-lhe-ia a cabeça — retorquiu, sem ousar fitar de frente sua interlocutora.

— Até que enfim dizes alguma coisa sincera! — exclamou Robin. — Eu não tinha

um irmão para abrir-te a cabeça, Kay — por esse motivo reagi dentro do limite de minhas

forças. Vamos, continuemos nosso caminho.

E, ambos em silencio, seguiram.

Essa conversa alterou muita coisa entre os dois e Kay, ressentindo a nova situação,

tornara-se inquieto e apreensivo. Robin mostrava-se muito afavel e delicada todas as

vezes que o encontrava, mas sua amizade passara por uma grande transformação e

estava longe de ser o que fora. A intimidade que antes havia entre eles, desfazia-se aos

poucos. Nascera na atitude de Robin uma nova reserva que Hallam não lograva vencer

com coisa alguma. De um momento para o outro ela como que adquirira o ar grave e

ponderado de uma senhora e era estranha a maneira pela qual Kay sentia falta na

confiança que Robin a principio depositara nele.

Além do mais, Hallam receava que Robin o tomasse por homem de sentimentos

baixos, julgando que o incidente da semana passada, sob o pinheiral, fosse um fato

comum em sua vida.

Esforçou-se por reabilitar-se aos olhos delia, mas vivia a recaír nas mesmas faltas.

Por exemplo: durante toda a semana que seguiu ao dia que passaram no campo, Robin

não tornara a pousar uma única vez, porém ele a chamou ao atelier e tentou pagar-lhe, do

mesmo modo, o salário da semana.

Robin sacudiu a cabeça e recusou-se a aceitar o dinheiro. Nada fizera para ganhá-

lo. Foi em vão que Hallam procurou convencê-la de que isso seria faltar á combinação

feita. Sua resolução estava tomada e ninguém a faria ceder.

— Mas então não queres ganhar dinheiro? — insistiu Kay.

— Sim — replicou. — Quero ganhar dinheiro, mas não me apoderar dele dessa

maneira.

— Meu Deus, Robin, nunca vi uma pequena tão intransigente em coisinhas como tu.

Isto, porém, em nada alterou a decisão de Robin.

— Maldito beijo! — resmungou Kay quando ela saíu.

Mas a lembrança desse beijo lhe era bem doce, apesar de tudo.

Alguns dias mais tarde Hallam distribuiu convites para uma nova festa no atelier e

Robin foi contemplada com um dos cartões. Só ao ler a resposta da jovem é que ele

compreendeu a tolice que fizera. O bilhetinho, escrito com letra infantil, dizia o seguinte:

"Meu raro Kay:

Muito obrigado pelo convite, mas eu não irei. No fundo tinhas certeza de que eu não

iria. Tua muito afetuosa

Robin".

Essas linhas perturbaram horrivelmente o pobre Hallam. Quando faria ele alguma

coisa certa?

No dia seguinte, ao saír, encontrou-se com Robin junto á porta da rua. Parou e

indagou de chofre:

Page 43: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Escuta, Robin, por que não queres ir á minha festa?

Robin levava uma vassoura em uma das mãos e um espanador na outra; sua

cabeleira negra e sedosa jazia oculta sob uma touca; tinha mangas arregaçadas e um

grande avental azul ia-lhe do pescoço até aos tornozelos. Ergueu os olhos para o rapaz e

pôs-se a fitá-lo muito seriamente.

— Já sabes a resposta antes que eu a diga — replicou ela.

— Acaso não pretendes mais perdoar-me aquele beijo? — indagou Hallam.

— Também para isso sabes qual é a minha resposta — retorquiu Robin

delicadamente.

Hallam afastou-se para dar-lhe passagem mas, ao vê-la seguir, agarrou-a por um

braço e puxou-a para tras.

— Ouve, Robin, não quero que faças mau juizo de mim por causa daquele beijo. É-

me odioso sentir que não mais confias em mim. Bem sei que eu não devia ter feito o que

fiz. Juro-te que obedeci a um simples impulso de momento, pois nunca tive hábitos tão

vis. Acreditas nisso?

Robin não respondeu com tão grande numero de palavras. Limitou-se a murmurar

com voz tremula e impregnada de pensativa melancolia:

— Qualquer um seria capaz de adivinhar a mãe admirável que tiveste, Kay.

Por um instante a surpresa manteve Hallam silencioso.

— Oh, mais que admirável — exclamou ele por fim. — A melhor de todas —

terminou, procurando ocultar a comoção que o invadia.

— Eu confio em ti, Kay. Acredito na nobreza do teu carater.

— Então irás á minha festa? Só para me dar uma prova?

— Não. Não farei isso.

Kay desapontou.

— Então não confias em mim?

Robin hesitou um momento.

— Se eu te der uma prova acreditará no que te disse? — perguntou ela com voz

abrupta e estranha.

— Como? Indo á minha festa?

— Não; de outro modo. De um modo capaz de varrer tuas maiores duvidas.

— Se de fato a prova for tão forte, não terei remédio senão acreditar nela, não é? —

replicou, sorrindo, satisfeito com o rumo que as coisas principiavam a tomar.

Ela quedou-se a fitá-lo intensamente. Súbito, com um adorável arzinho de

deliberação, encostou a vassoura á parede, colocou o espanador no chão e, erguendo o

braço, fez com que Hallam abaixasse a cabeça ao nivel da sua.

Um beijo muito leve e suave, dado com lábios trêmulos, foi pousar na face do rapaz,

quase junto á orelha.

Soltou-o em seguida e ele não pôde conter o rubor que lhe afluiu ao rosto.

Antes que Hallam tivesse recuperado forças para dizer qualquer coisa, já Robin

havia apanhado novamente a vassoura e o espanador.

— Robin, és um anjo! — exclamou ele por fim. — Eu andava certo de que me

julgavas como um canalha e acabas de desfazer, em um segundo, essa impressão

Page 44: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

horrível que me vinha martirizando. Qual! decididamente, és a pequena mais adorável e

angelical que jamais encontrei no mundo!

Robin sentiu que uma doçura infinita lhe invadia a alma. Lentamente encaminhou-se

para a escada e começou a subi-la. Súbito parou, voltou a cabeça e sorriu para Hallam

que, lá de baixo, a contemplava embevecido. E, ao se pousarem no rosto atraente do

rapaz, seus grandes olhos de criança adquiriram uma expressão quase maternal.

Sua intenção não fora propriamente a de dar-lhe uma prova; agira daquele modo

porque se vira dominada por um forte impulso. Agora, porém, sentia que não só

convencera, como içara entre eles a bandeira da paz. Depois do escarcéu que fizera por

causa do beijo que Hallam lhe dera, um homem menos sensivel poderia não tê-la

compreendido. Mas Kay a compreendeu perfeitamente. E isso era muito importante, pois

revelava a alvura de seu carater. Robin continuou a subir a escada, o coração palpitante

de felicidade. Hallam voltou-se, correu para a porta como um relâmpago e, de um salto,

alcançou a calçada, tendo nos lábios o reflexo da alegria sã que também dele se

apoderara.

Robin pouco estivera com Andrew Fable desde o dia em que haviam deixado o

Adriana, após aquela acidentada excursão. A bordo passara todo o tempo mais em sua

companhia que em qualquer outra, mas, desde então, o encontrara apenas

ocasionalmente uma ou duas vezes que ele passara pelo atelier e no baile a fantasia que

tanto sofrimento lhe causara.

Fable não costumava tomar parte nas “reuniões” do atelier de Hallam. Era um

homem inteiramente dedicado ao seu trabalho. Sua fama de escritor era bem grande,

mas quem deseja conservar a celebridade precisa manter-se sempre á altura dela. Ele

era muitos anos mais velho que Hallam e conhecia da vida coisas que jamais haviam

passado pela cabeça de Kay. Sabia o que era morar numa água-furtada, trabalhar dia e

noite na esperança de ganhar a vida, trabalhar até sentir a cabeça arrebentando de dor e

ver seu trabalho recusado. Sabia o que era não ter leito, não ter fogo, não ter pão; sabia o

que significava tudo isso, porém nunca conhecera o desanimo. Nunca desanimara, nem

mesmo nos momentos mais trágicos da vida. Sempre possuirá coragem suficiente para

não desesperar. E, em compensação, provara a alegria indizivel de ver as horas de trevas

transformarem-se em luz, num horizonte radioso e próximo; de ver o futuro brilhar diante

de si.

Tudo isso o tornava profundamente simpatico. Todos acorriam a ele em seus

momentos dificeis, confessando-lhe coisas que a outro não ousariam confiar, tal a atração

e a confiança que ele inspirava. Como amigo era firme e constante. Robin sentiu por ele

uma afeição ardente e sincera. Essa afeição baseava-se no dom que lhe permitia ver

claramente, atraves da fisionomia serena e inteligente de Fable, o ouro de seu coração e

a brancura de sua alma.

Desde a festa de Kay, Robin não mais o vira, até que um dia, inesperadamente, ele

veio bater á porta do apartamento de Mrs. Quest, perguntando si podia falar-lhe.

Robin estava na cozinha ocupada em passar um monte de roupas e Fable,

entrevendo-a pela porta aberta enquanto Mrs. Quest o conduzia cerimoniosamente á sala

de visitas, parou e pediu licença para ir ao encontro da jovem.

Page 45: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Robin voltou a cabeça e, vendo quem era, recebeu-o com olhar brilhante e um

sorriso de sincero prazer.

— Muito ocupada? — indagou Fable.

— Sim, mas posso fazer um intervalo para receber-te — replicou ela com aquela

graça natural que sempre o encantara.

— Oh, não faças isso; não quero atrapalhar-te. Conversaremos aqui mesmo e,

enquanto isso, adiantas o teu serviço.

—- Está bem, si não te importas, pois tenho que terminar toda essa roupa antes do

anoitecer.

Robin ofereceu-lhe uma cadeira junto á mesa que uma toalha alvissima cobria.

Fable sentou-se e sorriu-lhe.

— Por acaso não queres um emprego, Robin? — perguntou.

— Sim, quero — replicou Robin, reunindo as quatro pontas de um lenço para passá-

lo. — Sabes de algum?

— Sim. Agora resta que o aceites. Trata-se do seguinte: uma de minhas novelas

está sendo filmada. O pessoal da “Nova Aurora” é que a está fazendo. Precisamos,

porém, de alguém que saiba dançar justamente como tu. Gostarias de fazê-lo? Eles estão

dispostos a pagar três guinéos por dia e ocupar-te-ão apenas durante tres. E... isso

poderia proporcionar-te mais ofertas semelhantes se teu trabalho agradar.

Robin, com o ferro eletrico no ar, arregalava os olhos em sua incredulidade.

— Eu, dançar para o cinema? Ora, mas eles não hão de gostar dos meus estúpidos

bailados!

— Como não? Sair-te-ás perfeitamente bem e eles vão ficar encantados.

— Tres guinéos por dia! Mas será possivel que exista tanto dinheiro no mundo? —

exclamava ela, rindo-se em tremula excitação.

Súbito largou o ferro sobre a mesa e voltou-se para encarar Fable.

— Andrew, olha bem para mim e dize-me si estás fazendo isso só por saberes que

preciso — disse ela com energia.

Fable ergueu para ela seus olhos francos e bondosos e Robin sentiu-se

imediatamente convencida.

— Então... é verdade — tornou vagarosamente, como se não pudesse compreender

bem.

— Verdade? — atalhou Fable. — Meu Deus, Robin, que estás pensando? Acaso

desconheces a raridade e o encanto de tua pessoa? Não sabes que aquilo que chamas

"teus estúpidos bailados" é a coisa mais graciosa do mundo e que, provavelmente, és

uma dessas criaturas sensacionais que só aparecem de geração em geração?

Robin continuava a arregalar os olhos.

— Não sou! — protestou ela quase indignada, não compreendendo bem o que

ouvira. — Kay não pensa assim. Ele me acha apenas bonitinha e mais nada. Nunca

achou nada de extraordinário em mim.

— Kay não entende disso — contestou Fable, rindo.

— Mas darei conta do recado?

— Não sabes dançar?

— Sim — si for só isso... Poderei executar qualquer espécie de bailado.

Page 46: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Pois é só isso.

— Nada mais? Não... não será preciso representar bobagens, nem nada?

— Nada mais.

— Tres vezes tres, nove! Nove guinéos só para dançar! É uma fortuna! Mas irei

ganhá-la sem fazer coisa alguma.

— Pelo contrario. Vais ganha-la fazendo algo que só tu és capaz de fazer com

perfeição.

— Qualquer pessoa é capaz de dançar.

— Mas até hoje não encontrei quem se compare a ti.

— Mas é tão fácil...

— Para ti. É isso justamente o que te faz preciosa.

A jovem riu-se.

— Preciosa? Eu? Até acho graça.

— Aceitas?

— Dançar não é trabalho — objetou ela.

— Logo verás que sim.

— Como?

— Quando tiveres a obrigação de fazê-lo.

— Estarei ganhando, esse dinheiro?

— Ganhando? Santo Deus! Eu queria ter um por cento sobre tudo que ganhares nos

próximos cinco anos! Se irás ganhá-lo? É bom que saibas que tres guinéos por dia é um

preço ridículo para pagar teu trabalho.

Uma expressão mistificada passou pelo rosto de Robin.

— Muito bem, se é essa a tua opinião é porque é verdade. Sabes que acredito em

tudo que dizes.

— Será que mereço tanto? — perguntou Fable modestamente.

— Se o mereces? Dizes cada absurdo...

— Pensas assim porque ignoras a altura da honra que me concedes. Para mim a tua

confiança vale mais do que se o anjo da verdade viesse, em pessoa, condecorar-me com

o nobre titulo de cavaleiro.

— Cavaleiro? Fazer-te um "Sir"? — inquiriu ela, erguendo para o rapaz dois olhos

cheios de admiração.

Houve um minuto de silencio e súbito:

— Andrew, por que te interessas tanto por mim? Não sou ninguém.

— Talvez seja essa, justamente, a razão. Se fosses alguém — no sentido que dizes

— creio que serias uma pessoa muito interessante. Mas não és ninguém e, assim

mesmo, o mais importante alguém do universo não ousaria comparar-se contigo.

— Ás vezes dás para dizer coisas horríveis — observou Robin. — Não estou bem

certa de ter-te compreendido, mas acho que sim. Muito obrigada.

Discutiram depois o novo emprego e fixaram detalhes. Robin daria inicio ao trabalho

daí a dois dias. O estúdio cinematografico ficava em Tennerly Green, Buckinghamshire, e

Fable combinou levá-la para o serviço em seu carro.

— Andrew, terei que lhe dizer alguma coisa sobre... papai? — perguntou ela de

súbito.

Page 47: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Nem uma palavra — replicou Fable.

— E será correto, isso?

— Robin! — exclamou o rapaz com uma espécie de angustiada piedade na voz. —

Não há a menor necessidade — acrescentou um minuto depois.

— Está bem. Nada direi, então. Mas se alguém perguntar serei obrigada a falar. Não

posso mentir sobre isso. Não posso!

— Perfeitamente! Mas só se te perguntarem.

— Farei tudo direitinho como recomendaste e te agradeço muito. És extremamente

bondoso. Espero que sejas sempre meu amigo, Andrew.

Ele apertou-lhe a mão num gesto carinhoso e fraternal.

— Poderás dar-me uma receita com a qual eu me possa tornar digno de ser sempre

teu amigo, Robin? — indagou, sorrindo.

Por um longo e suave momento Robin abandonou sua pequenina mão entre os

dedos grandes e fortes de Fable.

— Os homens são as criaturas mais incompreensiveis e diferentes do mundo —

disse ela por fim, com acento vagaroso. — Dizem-nos que somos tudo que existe de

admirável... outros acham que não podemos considerar-nos suas iguais...

Ela parecia abstrata ante o aspecto geral e pessoal do seu problema. Fable, porém,

compreendeu. Uma súbita onda de odio ergueu-se contra Kay em seu coração. Como

ousara o idiota feri-la com semelhante revelação? Mas Robin estava sob uma deliciosa

inconsciencia de que tivesse desvendado qualquer coisa ligada á conversa que tivera

com Hallam. Fable deixou-a nessa inconsciencia, compreendendo que ela estivera mais

pensando em voz alta que falando consigo. Depois de sacudir levemente a mão que ela

mantinha entre as suas, levantou-se.

— Achas que devemos subir e contar tudo ao rapaz? — sugeriu ele.

— A Kay? Vai tu. Tenho que terminar este serviço para Mrs. Quest.

Fable despediu-se e caminhou para a porta. Antes que ele saísse Robin disse

abruptamente:

— Andrew, tu o tratas de rapaz, mas já não é tempo de ter ele se tornado homem?

Fable parou, voltou-se e fitou-a por um momento. Sua resposta foi direta.

— Vamos fazer dele um homem?

— Nós? Tu e eu?

Ele confirmou com a cabeça. Depois riu-se.

— Oh, não sei — tornou. — É muito perigoso a gente querer bancar a Providencia

com alguém. Ele nasceu sob uma estrela tão feliz.

Robin mais uma vez voltou ao ferro.

— Mas ele é muito direito, bem sabes — falou curvada sobre seu trabalho.

— E, por essa razão, muito querido — acrescentou Fable.

— Disso já lhe dei uma prova — murmurou ela quase em surdina.

— Deveras?

Robin confirmou com um movimento de cabeça que fez dançar os caracóis negros

de sua cabeleira.

— Alegra-me sabê-lo, Robin — acrescentou Fable. O tom de sua voz era grave. Fez

uma pausa como se fosse falar, mas saíu sem dizer uma palavra.

Page 48: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Fable foi ao atelier e comunicou a Kay os planos que fizera com respeito a Robin.

Casualmente Mayhew Tearle se achava lá e ouviu toda a historia. Isto trouxe

conseqüências que Fable, com toda a sua imaginação, não poderia ter previsto.

Aquela noite Mayhew Tearle jantou a sós com sua filha, o que muito raramente

acontecia. A maioria das vezes ele jantava no club, ou com amigos. Estes últimos, tinha-

os ele de todas as espécies e Alison nada sabia sobre essas relações. Pouco se

importava com a vida do pai, contanto que este lhe desse liberdade e dinheiro suficiente

para saciar sua sede de luxo. E, até ali, tivera seu desejo realizado, pois Mayhew Tearle

não era homem miserável e não dava importância ao dinheiro, quando o tinha em

quantidade. Pelo contrario, sua vida era cheia de extravagâncias. Fazer alarde de sua

pessoa e de seu dinheiro era uma de suas maiores ambições. Em que empregava ele seu

tempo, e como era feito seu balanço no banco, eram coisas que Alison jamais procurara

saber. Era-lhe bastante que seu tempo ele o passasse longe de si e que o resultado de

seus balanços financeiros fosse, aparentemente, satisfatorio. Entre eles nada havia de

profundo, pois suas naturezas eram puramente superficiais. Viam-se superficialmente,

viviam superficialmente e nada mais desejavam.

Foi, portanto, uma surpresa para a jovem quando, depois de servido o café, livres

por fim da presença do mordomo, ele voltou-se e disse-lhe:

— Estive no apartamento de Kay, hoje, durante o dia.

— É? — exclamou Alison. — Havia mais alguém lá? — acrescentou casualmente.

— Fable — replicou o pai, secamente.

E após um minuto de silencio:

— Alison, como vão as coisas com Kay?

— Do mesmo jeito que sempre estiveram — volveu a outra rapidamente.

Mayhew Tearle mudou bruscamente de atitude.

— Não te faças de tola, minha cara — retorquiu em tom desagradável. — Nada

continua do mesmo modo desde que essa maltrapilha Robin entrou em cena.

Alison sabia que isso era verdade, mas não ousava confessá-lo nem a si própria.

— A pequena é demasiadamente bonita para deixar que as coisas continuassem na

mesma — prosseguiu. — Não és cega e viste perfeitamente o efeito que ela causou.

— Kay jamais pensaria em namorar seriamente uma pequena daquela espécie. Ela

nem sequer pertence á classe social — argumentou Alison, tornando-se rubra de raiva.

— Qual classe, qual nada —- retorquiu Tearle desdenhosamente. — Para um rosto

bonito não existe classe e os homens hão de ser sempre homens. Hoje, porém, fiz uma

descoberta: Fable está enamorado de Robin.

— Quê?!

— Podes crer no que digo.

— Andrew enamorado! Que idéia louca!

— Louca? Não sejas criança, Alison. Ha muito tempo que não tenho uma idéia tão

boa.

— Como? Não compreendo.

— Pois bem; resta apenas que ela corresponda ao amor de Fable, para que teus

problemas se solucionem, não é?

Page 49: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— A solução dos meus problemas não depende em absoluto do que essa infeliz

possa fazer — respondeu Alison obstinadamente.

— Não te fies muito. Não podes deixar uma carinha daquelas perdida no meio de

homens e esperar que as coisas continuem a correr bem como antes. Não é possível.

Acredita no que te digo. Conheço os homens.

Por um minuto Alison quedou silenciosa.

— Muito bem — exclamou ela de súbito. — Onde queres chegar com isso?

— Kay está te namorando? — indagou Tearle de chofre.

A jovem tornou-se rubra.

— Todo o mundo diz que ele o faz abertamente — replicou ela.

— Pois foi coisa que nunca pude notar.

Alison mordeu os lábios.

— A única coisa que consegui observar em tudo isso é que andas como louca atras

do rapaz — continuou Tearle brutalmente.

Alison, de salto, pôs-se em pé.

—- Papai! — exclamou. — Como podes, como te atreves a falar-me desse modo?

Tearle esboçou um gesto de desprezo.

— Senta-te; senta-te e ouve-me — ordenou.

Tremula, a jovem baixou os olhos e obedeceu-lhe. Tearle inclinou-se sobre a mesa

para achegar-se mais á filha.

— Fable contratou a pequena para fazer parte de um certo filme em que ele está

interessado. Parece que pretende fazer dela uma segunda Mary Pickford. E não podemos

negar que a garota tem muitas probabilidades de triunfar. No dia em que isso se der, os

preconceitos de classe desaparecerão; compreendeste-me?

Alison, sem erguer os olhos, sacudiu a cabeça afirmativamente.

— Ela dará inicio ao seu novo trabalho depois de amanhã, sob a proteção de Fable.

Esse serviço veio afastá-la temporariamente do convívio de Kay; deves, portanto,

aproveitar a oportunidade para ganhar terreno. É bom que saibas que isso é da máxima

importância, Alison.

— Conduzir-me-ei da maneira que me parecer melhor! — explodiu ela.

— Faze o que entenderes, mas só te peço que o faças depressa, compreendes? —

volveu Tearle.

— E que tens a ver com isso? — indagou Alison era tom ostensivo e irritado.

— Muito mais do que te parece — retorquiu Tearle. — Repito que deves firmar as

coisas com Hallam o mais depressa possivel. Disseste que era um caso resolvido e,

acreditando em tua palavra, fiz minhas operações, contando certo com um genro rico.

Os olhos claros de Alison dilataram-se de terror; começara a compreender o

significado trágico das palavras de seu pai.

— Que queres dizer? — balbuciou.

— Simplesmente que estou arruinado. Nada mais me resta. Hallam é rico e tem um

pai milionario.

Levantou-se e deu um forte murro na mesa, fixando em Alison um olhar duro.

— Agarra-te a ele e agarra-te bem, pois, do contrario, caíremos para nunca mais nos

levantarmos. O que estou dizendo é tão verdade como estar eu agora diante de ti.

Page 50: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Alison ergueu para seu pai um rosto livido de terror e ambos se olharam fixamente

durante algum tempo.

CAPITULO V

Mayhew Tearle conseguira provocar um verdadeiro pânico no pobre e despeitado

coração de sua filha. A hipotese de que Robin pudesse separá-la de Hallam a

desesperava. O aviso de seu pai, sabia ser exato, e embola lhe custasse muito confessá-

lo a si própria, causara a seu instinto de mulher o mesmo efeito que o primeiro olhar de

Hallam para Robin. Desde o momento em que estes se encontraram, nunca mais tivera

sossego. Não queria dar o braço a torcer, mas era essa a verdade, pois, na realidade, a

atitude de Hallam para consigo estava longe de ser amorosa. Kay convinha-lhe

extraordinariamente. Era riquíssimo e um dia o seria ainda mais. Não se interessava pela

grande empresa siderúrgica, intitulada Hallam & Hallam, da qual seu pai era o proprietário

e isto agradava imensamente a Alison. Não queria um marido que se interessasse por

qualquer coisa além de si própria; teria que se ocupar unicamente em proporcionar-lhe

uma vida de alegrias e prazeres.

Via-se já transformada numa deslumbrante figura do grand monde. Kay, atualmente,

se cercava de gente boemia, mas estava certa de que, com jeito e delicadeza, lograria

conduzi-lo a um meio diferente. Com seu dinheiro, distinção e bom carater, nem uma

porta lhe seria fechada. Por seu lado, ela também poria em jogo sua atividade, seus

atrativos, tudo enfim que fosse necessário para que a vida lhes corresse agradavelmente.

Por que não havia de ser assim, estando casada com Kay? Por que não seria sua

vida um eterno mar de rosas? Estava certa de que isso aconteceria... Desejava-o com

todas as forças de seu egoísmo e de seu amor ao luxo e ao conforto. Não é, pois, de

admirar que se sentisse profundamente aterrorizada ao ouvir suas próprias e mais intimas

aflições descritas brutalmente por seu pai. Mormente sabendo que Mayhew Tearle, a

despeito de seu temperamento rude e grosseiro, possuia o dom de observar

acuradamente os fatos e as pessoas todas as vezes que se tratava de seus interesses

pessoais. Além disso, havia também uma outra ameaça nas palavras de seu pai. A

ameaça de um desastre financeiro. Mas Alison achava quase impossível pensar nisso.

Em sua imaginação via quadros aterradores de absoluto chãos todas as vezes que

tentava considerar seriamente o que significaria a ruina para eles. Via-se vendendo suas

jóias, sem toilettes custosas para usar... vivendo sem empregados e tendo que se

satisfazer com um único colar por semana em vez de sete...

Mas seu espirito não conseguia compreender nada disso claramente. Era-lhe

demasiadamente terrível essa idéia. Assim, pois, foi sob o pavor de que a vida lhe

deixasse de sorrir, que, daquele dia em diante, se dispôs a caçar Hallam. Não podia, não

tinha forças para deixá-lo fugir. Seguiu o conselho de seu pai e apertou o cerco á volta de

Kay, aproveitando a otima ocasião que se lhe oferecia com a ida de Robin para o cinema.

O primeiro contrato de Robin como artista cinematografica certamente não foi o

ultimo. Fable profetizara isso e não se havia enganado.

Page 51: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Teve ela a sorte de ter por seu primeiro diretor um certo Mersey Shale, homem

famoso pela habilidade com que sabia escolher os prodígios entre as centenas de

criaturas que aspiram á gloria do cinema. Chegava a apostar no sucesso das

personalidades promissoras que descobria e mal seus olhos se pousaram na figurinha

delicada e graciosa de Robin, teve a certeza de que se achava diante de uma futura

rainha da arte das sombras. Seu porte mignon, seus traços perfeitos e sedutores, eram

predicados superficiais, mas ele entreviu em Robin o não-sei-que — o inestimável não-

sei-que tão dificil de encontrar; uma personalidade artística e fascinante.

Ela não achou lá muita facilidade em se habituar ao regimen do estúdio. Tudo ali era

tão esquisito... Em primeiro lugar era obrigada a vestir-se no mesmo camarim, juntamente

com mais sete moças; todas essas moças eram "extras" da companhia, Essa

circunstancia fez com que Robin se tornasse um tanto timida. Além do mais eram moças

que conheciam bem a profissão, pois, quase todas, trabalhavam há anos na companhia.

Conheciam, pois, todas as particularidades da arte de fazer filmes e falavam a linguagem

complicada dos estúdios. Desse modo, a maior parte do que conversavam era grego para

Robin. A pobre sentia-se isolada e as extras, em pouco tempo, aumentaram esse

sentimento de solidão, pois, vendo-se incapazes de pô-la á vontade, abandonaram-na

aos seus pensamentos e projetos e foram cada qual para o seu lado. Algumas tomavam-

na por orgulhosa; outras diziam que era timida e insociavel. Contudo, muitas, vendo-a

com os olhos da experiência, notavam em Robin aquilo que Mersey Shale descobrira, e

estas instintivamente a receavam. Robin era uma nova força; algo que vinha ameaçar

suas probabilidades de atingirem um posto mais alto e, portanto, uma inimiga. Que Robin

era extraordinariamente bela, porém, era coisa dificil de negar.

Assim, por diversos motivos, Robin não se sentia bem na cabina do vestuário. Os

que têm alguma idéia do que seja o trabalho do conjunto, ou das multidões, no cinema,

compreendem a sua importância e sabem que, na maioria das vezes, os extras passam

mais tempo esperando, que representando. Dá-se mesmo o caso de esperarem uma

semana inteira, para fazer uma cena que leva vinte minutos para ser filmada. Tudo

depende da organização do estúdio, do tempo, ou do progresso em que se achem as

cenas principais. Por isso Robin passava, ás vezes, longas horas, sentada a um canto da

cabina, vestida de cigana, sufocada pelas pinturas e pomadas que lhe cobriam o rosto, e

ouvindo o incessante tagarelar das companheiras e sem compreender um terço do que

diziam. Sentia-se desajeitada e fora de seu elemento e quase morria de saudade da brisa

agradável de Molesbury, do rumor do grande rio a bater contra a muralha, das velas alvas

sob o sol, e até do cheiro da relva e da lama! Tinha ímpetos de fugir daquela cabina

sempre repleta, onde se sentia tão isolada.

Por outro lado achou que o próprio trabalho não entusiasmava. Shale encontrou

muita dificuldade em dirigi-la, pois a atmosfera artificial do estúdio a desanimava; sentia-

se mal com toda aquela pintura, seus gestos tornavam-se duros e sem naturalidade,

sentia-se tolhida por todo aquele aparato. Ensaiar uma cena era-lhe uma tortura, parecia-

lhe uma coisa inútil, estúpida; só queria dançar no momento de filmar a cena. Shale

resolveu confiar na sua espontaneidade e deu inicio á filmagem. Uma vez os refletores

funcionando com sua força animadora, a musica tocando e a multidão de extras

trabalhando, Robin reviveu, esquecendo tudo, menos o ritmo e a vibração de sua dança;

Page 52: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

o sangue ardeu-lhe nas veias e, mais uma vez, tornou-se a Robin da feira; a pequena

Robin selvagem e maltrapilha, que Fable conhecera em Molesbury.

Shale, enxugando o rosto com um lenço, ao terminar o ultimo dia de trabalho de

Robin no estúdio, voltou-se para Fable e disse:

— Faze-me um cenario próprio para ela — uma historia em que possa aparecer na

tela como realmente é, e ainda faremos, da pequena, uma grande artista.

E Fable, cheio de entusiasmo e, devemos dizer, tomado de intensa animação,

escreveu uma historia clara e humana, impregnada de ternura e do mais fino espirito.

Isto veio aumentar o interesse de Robin, despertando-lhe o entusiasmo. A

personagem que tinha de representar lhe parecia mais real, possuía seu próprio

temperamento; suas dores, seus sofrimentos eram-Ihe mais familiares, assim como

também suas alegrias; por isso podia chorar ou rir com uma sinceridade que nada tinha

de artificial. Aquilo não era representar; era, como dizia Shale, a própria Robin refletida na

brancura da tela.

O enredo interessou-a por tal forma que não teve tempo de compreender que estava

ganhando uma invejável reputação como atriz cinematografica. Nunca, porém, se teve em

conta disso. Fora do estúdio, era simplesmente Robin, a maltrapilha; seus triunfos em

nada a alteraram; aliás, compreendia tão pouco a extensão de seus triunfos que se tornou

estrela sem perceber.

Estava fazendo uma coisa que era de enorme importância para si; de muito maior

importância que qualquer fama pessoal: estava ganhando dinheiro. E isso era para seu

pai, para quando ele saísse da prisão. Estava fazendo mais do que podia ter sonhado

fazer.

Fable defendia os interesses de Robin. Esta, por sua vez, só gastava o necessário,

guardando a maior parte para o dia em que seu pai voltasse á liberdade.

Como é natural, ocupada como andava, Kay raramente podia vê-la e Alison se

regosijava grandemente com isso. Quanto á atitude de Robin para com Kay, Fable, que

olhava por ela mais do que ninguém, ainda não pudera compreender. Ela não falava

muito em Kay. Se sabia que ele ultimamente passava a maior parte do tempo em

companhia de Alison, era outra coisa que Fable ignorava. Ele próprio só sabia disto

atraves dos comentarios que ouvia. Se Robin também os ouvira não dava a menor

demonstração disso a Fable, que, não querendo aborrecê-la, nada lhe contou. O estúdio

já lhe fornecia suficientes aborrecimentos para que ele ainda os fosse aumentar.

Havia ainda certos detalhes de seu trabalho, aos quais Robin não conseguia

habituar-se.

É claro que, então, já possuia um camarim só para si e isto lhe facilitava muita coisa,

mas, contudo, restavam-lhe ainda mil dificuldades a vencer. Uma destas podia ser

resumida numa simples palavra: homens.

Como Mayhew Tearle dissera a Alison, não se podia deixar um rostinho como o de

Robin perdido no meio de homens e esperar que nada acontecesse. Como dissera, isso

era impossível; e, dizendo-o, apenas proferira um axioma. Naturalmente, no seu novo

trabalho, Robin entrou em contato com muitos homens. E naturalmente as coisas foram

acontecendo. Por exemplo, o rapaz que representava o papel de um jovem e elegante

Page 53: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

perdulário no filme que se estava fazendo, sentiu-se consideravelmente atraído por Robin.

Não era mau rapaz; mas convencera-se da própria beleza e acreditava sinceramente ser

irresistível. Aliás para isso não lhe faltavam motivos, visto que as moças lhe faziam

ridículas demonstrações. Mimavam-no, rodeavam-no, elogiavam seu ultimo gracejo,

ambiciosas de seus olhares que disputavam entre si, fazendo enfim tais tolices que o

estranho era que ele não tivesse uma opinião ainda mais elevada da sua própria pessoa.

Chamava-se Reginald Carstairs e havia uma porção de cenas em que representava ao

lado de Robin, de maneira que estavam sempre juntos. Ora, Robin não o mimava, não o

lisonjeava, não ambicionava seus olhares, não se desmanchava em exclamações ante

seus gracejos, enfim, não fazia coisa alguma do que ele estava habituado a receber de

todas as mocas. Seguiu-se daí que Reginald, a principio, sentiu-se intrigado pela

extraordinária novidade de uma pequena que não fazia tais coisas e, então,

compreendendo que essa atitude era inalterável, e tudo que fizesse não a tornaria igual

ás outras, não pôde conter uma certa irritação.

Um dia, Robin ensaiava uma cena em que teria de dançar como costumava fazê-lo

na feira, onde Fable a vira nela primeira vez. A cena passava-se numa feira semelhante:

alguns detalhes de cenario haviam sido construidos no estúdio, mas as vistas gerais

filmavam-nas ao ar livre. Até a metade do bailado tudo correu bem, mas nesse ponto o

ensaio interrompeu-se para que se discutisse a próxima cena.

Mersey Shale explicou:

— Miss Golden, está dançando no meio de uma roda de curiosos... Foi isto o que

acabamos de filmar. Agora, vamos apanhar a chegada de Carstairs, que entra na feira e

se aproxima do pequeno ajuntamento para saber o que lhe atrai a atenção. A senhorita,

então, dança para este lado — continuou ele, indicando as posições. — Carstairs

consegue atravessar o anel humano que a cerca... Contempla-a... ri... a senhorita olha-o

indignada; bate o pé; ele, então, agarra-a e dá-lhe um beijo...

Robin até ali sacudira a cabeça em sinal de compreensão ás palavras do diretor,

mas nesse ponto encarou Shale com olhar cortante.

— Eis uma coisa que ele não conseguirá — disse ela em tom de desafio.

Shale cravou na jovem um olhar perplexo e depois consultou o manuscrito que

estava em suas mãos.

— Sim, ele o fará. Assim diz a historia — replicou o diretor.

— Pouco me importa o que a historia diga. Não há ninguém neste estúdio que me

possa beijar... — respondeu Robin.

— Mas, Miss Golden, isso faz parte do enredo — protestou Shale.

A experiência ensinara-o a encher-se de paciência, todas as vezes que se tratava de

lidar com Robin. Esta não se dava os ares de importante “estrela”, mas assim mesmo

apresentava algumas dificuldades.

— O enredo terá que se arranjar sem isso — tornou ela.

Shale argumentou, implorou, ameaçou e desesperou-se em vão. Robin,

obstinadamente, sustentava que nada no mundo faria com que se deixasse beijar por

Carstairs.

Page 54: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Mas não é Carstairs — explicava-lhe Shale desesperado. — É o personagem que

ele está representando; o rapaz dissoluto e perdulário da historia de Fable. Veja se

consegue separar seu espirito da realidade, para uni-lo à ficção...

Nada, entretanto, abalava a resolução de Robin. Não queria ser beijada por

Carstairs e estava tudo acabado.

A discussão durou perto de vinte minutos e, durante esse tempo, os trabalhos

ficaram interrompidos. Robin não cedia e Shale, depois de atirar longe o manuscrito, pôs-

se a passear de um lado para outro, batendo os pés, descabelando-se e maldizendo a

hora em que iniciara aquele ingrato negocio de fazer filmes e descobrir estrelas.

— Mas será possivel que não compreenda que isso é necessário ao enredo? —

berrou ele por fim. — Ele beija-a e a senhorita ganha-lhe o odio eterno, dando-lhe uma

tremenda bofetada no rosto...

— Farei essa parte — retorquiu Robin, condescendente.

— Mas não poderá esbofeteá-lo gratuitamente. Ele terá que fazer qualquer coisa

para provocá-lo — argumentou Shale.

Robin, porém, não podia compreender. A novela de Fable era excessivamente real

para que lhe fosse possivel convencer-se de que tudo era fingido. Carstairs era Carstairs

para si, no filme ou fora dele, e antipatizava-se solenemente contra o rapaz.

A excitação entre os extras era grande e, evidentemente, alguém levara, ao jovem

Carstairs, a noticia da discussão e dos motivos que a causaram, pois ele, que ainda não

saíra de seu camarim, surgiu justamente quando Shale chegava ao auge de seu

praguejar e, colocando-se diante de Robin, fixou o monoculo para fita-la.

— Disseram-me que se opõe terminantemente a deixar-se beijar por mim, Miss

Golden?

Robin fulminou-o com seus olhos escuros.

— Não serei beijada por ninguém — redarguiu ela em tom obstinado.

— Bravo! — exclamou Carstairs com ar satisfeito, muito mais satisfeito do que na

realidade se sentia, pois sua vaidade fora profundamente ferida. — São coisas como essa

que fazem uma companhia cinematografica assemelhar-se a uma grande família feliz!

As jovens extras dessa vez não se atreveram a aplaudir, com os costumeiros

gritinhos, a ironia do rapaz; compreenderam que Shale não estava em condições de

suportar calmamente tais manifestações. Lançaram, porém, olhares risonhos para ò

elegante Carstairs e, silenciosamente, lhe insuflaram encorajamento.

— Além do mais — continuou Carstairs — uma estrela não pode ser estrela sem

exibir, de vez em quando, seu gênio violento e seus caprichos. São as faiscas que

chamam a atenção para sua luz...

— Se o senhor julga que estou procurando exibir-me, está muito enganado —

replicou Robin.

— Exibir-se? Minha cara Miss Golden, não se diz uma coisa dessas de estrelas...

Quando uma estrela procura criar dificuldades, nós chamamos a isso temperamento. Mas

em pessoas menos importantes, não passa de um meio de cair fora...

O tom de suas palavras era de uma insolencia indescritivel e, afastando-se de

Robin, ele correu para Shale; agarrou-o pelo braço e disse-lhe com voz que foi ouvida por

todos os que ali se achavam, embora fizesse menção de falar confidencialmente:

Page 55: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Isto é o que há de pior nessas atrizes amadoras. Nunca podem apanhar

perfeitamente o ponto de vista profissional. Mas posso suprimir o beijo, desde que nossa

primeira artista é tão pudibunda4... Que me dizes de fazê-la esbofetear-me antes que a

beije?

— Sim, é o que teremos de fazer, acho eu. Queria que Fable estivesse aqui para

convencê-la... Podem chamar-me de sem vergonha, se eu tornar a dirigir uma

desconhecida com a intenção de transformá-la em estrela!

E assim terminou Shale a discussão. Voltou-se e dirigiu-se a Robin.

— Muito bem, Miss Golden, eu me entrego. Carstairs se aproximará de si, o olhar

cheio de intenções, e a senhorita o esbofeteará, antes que ele tenha uma chance de

beija-la.

— Nessas condições estou pronta a iniciar o trabalho — concordou Robin

ingenuamente.

E a cena começou a ser filmada.

Robin dançava; Carstairs atravessou a roda de curiosos e dirigiu-se lentamente a

ela, olhar cheio de intenções, como recomendara Shale.

Esse olhar ele o fazia extremamente bem — talvez sua grande pratica na vida real

tivesse concorrido para que se saísse com tanta perfeição. Shale começou a dar

instruções a Robin.

— Veja-o; pare de dançar... bata o pé... Muito bem! Agora erga o braço e dê-lhe uma

bofetada! — gritou e Robin obedeceu-lhe.

Ergueu o braço e ia desferir a bofetada, mas foi então que Carstairs,

traiçoeiramente, se desviou do plano que ele próprio sugerira, pois, levantando Robin em

seus braços, beijou-a nos lábios repetidamente...

Se esta fora sua intenção, ou si agira sob o impulso do momento, Robin não o sabia.

Nem se importava de sabê-lo. Só sabia que fora traida e estava sendo beijada de um

modo infame e terrivelmente real... Não havia ficção alguma nos beijos com que Carstairs

a ultrajava. Tinha tanta certeza disso, como si ele próprio lhe tivesse confessado...

Beijava-a, não porque isso fosse indispensável ao enredo do filme, mas sim porque queria

fazê-lo; porque entrevira uma oportunidade e resolvera aproveitá-la... Por isso lutou com

todas as suas forças, com todas as energias de seu instinto selvagem, subitamente

despertado.

E como lutou! O filme, os extras, os refletores, Shale, o ruido da câmara, tudo isso

desapareceu de sua consciência, ante a sensação ultrajante daqueles lábios odiosos

sobre os seus.

E Shale, também, esquecera a nova combinação e continuava a filmar... Carstairs

com uma expressão de verdadeiro triunfo nos olhos; Robin com uma fúria real faiscando

nos seus e lutando como uma leoazinha nos braços do rapaz...

— Formidável! — exclamou Shale. — For-mi-da-vel! Assim!... Muito bem! Grupo A,

avançar um pouco! Grupo B, mais á esquerda! Não muito... isso!

4 Pessoa pudica, vergonhosa. Que tem pudor em abundância

Page 56: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Agora, Carstairs, podes soltar Miss Golden! Solte-a, homem! Miss Golden, afaste-

se!

Carstairs, porém, não a soltava; Robin esmurrava-lhe o peito com seus pequeninos

punhos cerrados. De novo se tornara o pequenino ser selvagem e a ordem que Shale lhe

dera para afastar-se, nem sequer a ouvira. Aquilo não era representar. Aquilo era real.

Homem algum jamais a tratara levianamente sem se arrepender... Já dissera isso a

Hallam, e era verdade...

Os extras que formavam o conjunto começaram a compreender que aquilo era mais

que a simples representação de uma cena. Shale mostrava-se assombrado, Só o

operador continuava imperturbável, virando a manivela da maquina, como si nada

houvesse; mas é que nem Deus é capaz de deter um bom operador, enquanto ele não

recebe ordens de parar.

Quando se aplacaram as chamas de sua ira, Robin lançou um olhar hostil á sua

volta e, correndo para as grandes portas giratorias que davam para o corredor,

desapareceu por tras delas. O jovem Carstairs, rosto esfogueado sob a maquilagem

amarela, procurava-a, encolerizado. Shale também a procurava e, só então

compreendendo o que se passara, atravessou a vasta sala em direção ás portas

giratorias.

Em frente á porta fechada da cabina de Robin, estacou e bateu. Uma voz quase

apagada disse-lhe que entrasse. Ao fazê-lo deu com sua estrela, de pé junto á mesa de

toilette, reunindo tudo que era seu e atirando os objetos para o interior de uma valise

aberta.

— Queria dizer-lhe... — começou Shale espantado, sendo imediatamente

interrompido por Robin.

— Não adianta dizer coisa alguma — replicou ela. — Vou-me embora e acabou-se!

Shale procurou acalmá-la com bons modos.

— Muito bem — exclamou. — Pode ir; não precisa mais trabalhar hoje e pôde ir para

casa descansar... Obriguei-a a trabalhar demais... Amanhã sentir-se-á novamente

disposta e pronta para voltar ao trabalho...

— Não voltarei mais — atalhou ela com lábios firmes.

Shale protestou e tentou agradar-lhe, mas Robin mostrava-se inflexível. Procurou

lisonjeá-la, mas, em resposta, ela continuou a arrumar a mala. Visivelmente desesperado,

deixou-a e voltou ao estúdio. Lá, com grande alivio, encontrou Andrew Fable que acabava

de chegar e saber uma das versões sobre o incidente.

— Que há de verdade em tudo isto? — inquiriu Fable, indo ao encontro do diretor.

— Vai perguntar a Robin — respondeu Shale, demasiadamente contrariado para

dizer mais e, aliás, sem saber ao certo o que se passara, embora julgasse adivinhá-lo.

— Onde está ela? — indagou Fable.

— No seu camarim, arrumando as malas — acrescentou o diretor.

Fable dirigiu-se ao camarim e entrou. Robin recebeu-o com uma expressão

reprovadora nos olhos grandes e brilhantes.

— Oh, Andy! — exclamou ela. — Quando me ofereceste este trabalho de filmes,

disseste-me que eu teria unicamente de dançar, cantar e mostrar-me alegre, ou triste,

segundo o enredo, mas não me contaste que eu teria de ser beijada...

Page 57: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Fable fechou a porta e aproximou-se dela.

— Robin — murmurou calmamente. — Conta-me apenas o que aconteceu, sim?

— Ele beijou-me... Afirmou que não o faria. Mr. Shale disse que não era necessário,

mas ele o fez. E eu não queria ser beijada, Andy; muito menos por um homem daqueles!

— Estás bem certa de que ele não se deixou levar pela cena, ao beijar-te, Robin? —

volveu Fable.

— Qual levar pela cena qual nada — replicou Robin com o vigor de sua linguagem

simples. — Ele beijou-me e foi tudo. Não só uma vez, mas diversas. Essa foi sua intenção

desde o começo. Percebi muito bem! Só porque eu não queria submeter-me! Ele é dessa

espécie de homens. Eu o conheço. As moças tanto se derretem por sua causa que

acabaram convencendo-o de que todas as mulheres se orgulharão de serem beijadas por

ele. E só porque viu que eu era diferente das outras, tomou a resolução de beijar-me e me

beijou! E tu, Andy, nunca me preveniste a respeito desse negocio de beijos, pois, do

contrario, eu te diria que não me era possível aceitar o emprego.

Fable ouviu-a de pé, a cabeça levemente inclinada para fita-la.

— Robin — tornou ele calmamente — lamento de todo o coração o que te

aconteceu. Eu devia ter pensado nisso, mas não me lembrei. Compreendes; não julguei

que isso te parecesse tão real...

— Mas não parecia, era real — atalhou ela.

— Nesse caso Carstairs comportou-se como um cão. Mas, real ou irreal, não haverá

mais beijos nas historias que eu escrever para ti, Robin... Continuarás sendo a pequenina

selvagem adorável e inatingivel que és.

Disse isso mais para si próprio que para Robin, e havia um mundo de ternura em

seus olhos.

— Queres desarrumar essa valise e continuar a trabalhar, minha querida? —

acrescentou Fable.

Robin ergueu os olhos para o amigo. Uma caricia de Fable parecia-lhe sempre algo

tão doce... Não pôde resistir e cedeu.

— Sim. Mas só si prometeres estar aqui sempre — redarguiu ela.

— Está prometido — volveu Fable, apertando-lhe ambas as mãos e agradecendo-

lhe.

Retirou-se, então, para ir falar com Shale. Quando acabou a explicação, o diretor

passou a mão pela cabeça.

— Meu Deus, que susto me passou o diabo da pequena! — exclamou. — Depois de

filmados mais de mil metros de celuloide, com cenas suas, todas perfeitas, ameaçar-nos

de deixar o estúdio! Seria um verdadeiro desastre!

— Muito bem. Vai fazer as pazes com ela. Robin te aprecia muito — tornou Fable.

— E Carstairs?

— Entender-me-ei com ele.

— Obrigado. Dize-lhe que se não respeitar todos os caprichos dela, ponho-o na rua.

— Perfeitamente. Mas, Mersey, não cometas o engano de chamar a isso um de

seus caprichos. É algo muito mais nobre. É parte do pudor instintivo de sua alma de

mulher, portanto deves dar-lhe o devido valor.

Shale era homem de bons sentimentos; provou-o a resposta curta que deu a Fable.

Page 58: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Isso é tão raro nas moças de hoje que a gente até se engana... — redarguiu ele,

retirando-se para o interior do estúdio.

Minutos depois, voltava para anunciar que estava firmado seu tratado de paz com

Robin.

Fable nunca soube de que maneira isso se dera; mais tarde, porém, Robin

confessou-lhe que achava Mr. Shale excessivamente simpatico; era só questão de

conhecê-lo bem. Feitas as pazes com este ultimo, Fable enviou Carstairs á procura de

Robin com a mesma incumbência. Isto foi bem dificil e Robin nunca chegou a mudar de

opinião sobre Carstairs, com o fizera com Shale. Limitou-se apenas a esta explicação:

— Ele pediu-me desculpas e nada mais tenho a dizer.

E assim terminou o incidente, dando aso a que a filmagem da pelicula prosseguisse

com a máxima tranquilidade.

Mas aconteceu algo que obrigou Robin a esquecer tudo aquilo; algo que a levou

novamente de um modo brusco e inesperado para junto de Alison Tearle e de Kay.

CAPITULO VI

Alison, para sua grande alegria, encontrara Kay nesse estado de animo dócil e

tratavel que se apodera da gente, quando a ausência de alguém que nos habituáramos a

ter sempre ao nosso lado, desperta em nosso intimo um sentimento de vaga e

desconfortável solidão. Temos a impressão de que a vida saíu levemente dos eixos e de

que, tanto o trabalho, como as distrações e o repouso, não são interditos; o único recurso

é não dar a nós mesmos tempo para pensar, procurando vencer as horas carregadas de

tédio que, por seu turno, ameaçam vencer-nos.

Tomado desse estado de espirito, era agradável a Kay ter Alison ao seu lado,

fazendo-lhe todas as vontades, distraindo-o e arrastando-o para um sem-numero de

divertimentos — chás, teatros, bailes e ceias.

— Oh, querido Kay, não creio que haja aqui outro rapaz que dance como tu —

suspirava Alison languidamente, entregue aos braços vigorosos de Hallam, enquanto

rodopiavam sobre o soalho reluzente do Hewitt's Club, onde se podia obter uma ceia

finíssima, ouvir otima musica e dançar aos acordes de um "jazz" magnífico.

— É um sonho de perfeição ritmica, ser guiada por ti — acrescentou ela.

Kay riu-se ante aquela extravagante lisonja.

— Que tolice! — exclamou, embora no intimo estivesse satisfeito.

A lisonja fazia-lhe bem, no seu atual estado de espirito. Robin nunca lisonjeava.

— Temos passado uns dias adoráveis ultimamente, não achas? — continuou ela. —

Tenho me divertido tanto! És simplesmente encantador, quando queres, Kay.

— Quando quero? — repetiu ele, bem humorado. — E não o quero sempre?

— Não — sussurrou Alison. — Algumas vezes, não. E, então, Kay, sabes o que

sinto?

Ela tinha um jeito muito gracioso de erguer levemente as palpebras com uma

expressão ingênua. Isto era de grande éfeito, especialmente sobre um homem que não

Page 59: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

estava disposto a procurar a verdade, mas tentava somente distrair-se, para esquecer um

sentimento muito intimo, que, nem de longe, podia compreender. E, assim, Alison obteve

o efeito desejado.

— Não, minha carinha de anjo. Conta-me; que sentes, então? — volveu ele,

apertando-a levemente contra si.

— Sinto que... não te importas comigo como antigamente — murmurou Alison. —

Tenho a impressão de que alguma coisa veio colocar-se entre nós, tornando-nos

indiferentes um para o outro. E isso faz com que eu me sinta tão infeliz, Kay. Tão... tão

terrivelmente infeliz, querido!

O tom acariciante de sua voz era irresistivel. Kay sentiu-se — ou julgou-se —

comovido.

— Mas, Alison, eu não mudei — nem um pouquinho. — Continuamos a ser os

mesmos otimos camaradas de sempre, não é?

Alison ficou desapontada. Queria ser mais que uma otima camarada.

— Não me faças sentir isso, peço-te — murmurou ela com voz efetivamente tremula.

— Não me faças senti-lo, Kay. Isso... isso fere fundo demais.

Deu um leve suspiro e voltou para um lado os olhos ingênuos. Artimanhas,

certamente, e, contudo, já estava tão habituada a usá-las que chegavam a lhe parecer

sinceras. E, de fato, Alison amava Kay tanto quanto é possível a uma criatura egoísta. Se

a ameaça de ruina das palavras de seu pai lhe fizera compreender desesperadamente

que as coisas precisavam resolver-se o mais cedo possível, foi porque a acovardava a

idéia da pobreza e desde a noite em que seu pai deixara calmante seus olhos a mascara

de bondade que até ali usara, pusera-se também a receá-lo.

Se naquele momento arriscava no jogo eterno do amor, por dinheiro e por medo á

vida, fazia-o também pelo impulso de seu coração e porque amava.

— Não penses mais nisso, Alison. Sabes que é uma tolice. Sou o mesmo; sinto a

mesma coisa. Seremos sempre, sempre amigos, querida — afirmou ele.

Amigos, sempre amigos — sempre isso e nada mais! Revoltada, Alison reconhecia e

confessava a si própria a verdade daquilo. Não havia palavra, contato ou olhar, com que

pudesse arrancar de Hallam a prova de ternura que ambicionava. E, todavia, naquele

instante ele parecia á beira de uma certa emoção bem mais profunda do que sóe

provocar uma simples amizade.

Onde estaria a chave do coração de Kay? Se pudesse encontrá-la ao menos!... Mas

se nem ele próprio ainda a descobrira!...

Seu desejo era chorar de desapontamento, mas compreendia que isso seria pior.

Sorriu, portanto, com a maior doçura que lhe foi possível afetar. Por um segundo ou dois,

Hallam tomou todas as precauções de defesa contra os encantos de seu par; contra a

fragrancia perigosa de seus cabelos graciosamente penteados e o perfume inebriante que

emanava de seu corpo.

Em resumo, por um segundo ou dois, tornou-se um homem inquieto e entediado,

que perguntava a si próprio se não teria encontrado, enfim, algo suficientemente doce e

agradável para acalmar sua inquietação e matar-lhe o tédio. As palavras de amor que

Alison ansiava por ouvi-lo pronunciar, jamais estiveram tão junto de seus lábios. E se ele

Page 60: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

não procurasse averiguar antes, que motivos possuía para sentir-se inquieto, aborrecido e

dominado por toda a sorte de sensações absurdas, talvez as tivesse dito.

Mas essas reflexões interessaram por tal forma seu espirito que o momento passou,

o impulso morreu e as palavras continuaram impronunciadas.

Era tarde quando acabaram de dançar; mais tarde ainda ao terminarem a ceia e

batia meia-noite quando Kay levou para casa sua companheira.

— Vamos andar — propôs ela, pousando a mão no braço de Hallam. — A noite está

tão linda e eu tão sem sono... Vamos, Kay?

— Tua sugestão não é má — retorquiu Kay, a quem a idéia de ver terminada uma

noite tão feliz também desagradava.

Alison fora a mais adorável das companheiras, aquela noite; tão feliz em sua

companhia e dando tanto valor á sua amizade... Tinha o dom de deixá-lo contente

consigo mesmo; algumas pequenas — Robin, por exemplo — davam-lhe a sensação de

que talvez, no final de contas, ele não fosse um especimen humano tão perfeito como

outras o faziam julgar.

Kay gostava de estar satisfeito consigo mesmo. Não chegara ainda ao ponto em que

se consegue ver e avaliar a própria conduta.

E assim caminhavam. Por acaso passaram pelo atelier de Kay. Ao chegarem á

esquina da rua, o auto de Fable, que trazia Robin para casa, surgiu na esquina seguinte.

Um pequeno acidente no trajeto do estúdio para Chelsea causou-lhes grande atraso e,

por isso, chegavam tão tarde.

Robin desceu do carro, disse boa-noite a Fable e correu em direção á larga entrada

do prédio. Fable deu marcha ré e o auto desapareceu numa curva.

Kay estava longe demais para reconhecer o carro, pois a rua não primava pela

iluminação e Alison achava-se demasiadamente absorvida na contemplação de Hallam

para reparar em qualquer outra coisa. Ao chegarem á porta do prédio Kay fez menção de

continuar o passeio, mas Alison fê-lo parar.

— Kay, eu queria ver o atelier á noite — só uma olhadinha da porta. Deixas? Nunca

pude vê-lo á noite, a não ser em dias de festa.

— É tarde demais — protestou Kay. — Meia-noite passada.

— Só uma olhadinha, Kay; seria assim tão impróprio?

Hallam riu-se.

— Mas não há o que ver lá dentro.

— Oh, mas me agradaria tanto... Eu quero, Kay. Já me resolvi a entrar — insistiu ela

meio zangada.

— Não, Alison. Não devo permiti-lo — replicou Kay. Mas, subitamente, Alison deu

uma corrida e escalou agilmente os degraus da entrada. Ele seguiu-a, um tanto

contrariado.

— Alison! — chamou, procurando abafar a própria voz, mas a moça já estava no

meio da escada que levava ao apartamento.

Robin, que se dirigia aos seus aposentos, ouviu a voz de Kay e estacou com o

coração aos pulos. Impulsivamente, voltou ao topo da escada, no fim do longo corredor

que sabia do hall. Mas quando, do canto sombrio em que se achava, divisou a figura de

Page 61: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Alison já no meio da escada, envolta num vestido de cetím rosa e numa elegante capa de

baile dourada, que brilhava á luz do hall, ficou imovel onde estava.

Não sabia o que Hallam dissera; ouvira apenas sua voz e recuou, gelada ante a

idéia que lhe raiara na imaginação.

— Com toda a certeza ele tem passado todo o tempo com Alison, ultimamente —

pensou.

Kay subiu a escada atras de Alison, mas esta não se deixava alcançar e dançava

diante do rapaz de um modo tentador. Robin ouviu-o dizer:

— Alison, por favor, sê prudente. É por ti mesma que falo, não por mim.

Mas Alison, em resposta, ria-se dele.

— Oh, Kay; nunca pensei que fosses tão timido! — Alison alcançou a porta do atelier

antes de Kay. Foi em vão que este ultimo lhe suplicou que voltasse; ela insistiu em o ver

antes.

Com relutância, Kay tirou a chave do bolso e abriu a porta, dizendo:

— Bem; só uma olhadinha, então...

Mas, uma vez a porta aberta, Alison escancarou-a e entrou pelo atelier a dentro em

meio de mil exclamações.

— Oh, como fica lindo á luz da lua. Oh, Kay, nunca vi um lugar tão adorável...

desejaria viver aqui sempre, sempre!

— Alison, não sejas louca! É preciso que voltes para tua casa! — advertiu Kay, um

tanto irritado.

Subitamente a atitude alegre da jovem desapareceu. Aproximou-se dele, palida sob

o luar, pousou-lhe as mãos nos ombros e fitou-o nos olhos.

— Kay — murmurou ternamente — não me leves embora, ainda. A noite está

adorável; deixa-me aproveitá-la por mais dez minutos. Kay, sinto-me tão... tão

miseravelmente só...

Para maior espanto de Kay, ela rompeu em pranto, apoiando a cabeça encantadora

contra seu peito.

Hallam procurou livrar-se dos braços alvissimos que o enlaçavam; tentou acalmá-la,

mas ela o apertava desesperadamente contra si. Ouviu, então, ruido de passos que

saíam do apartamento que ficava sobre o seu. Sentiu passos na escada que trazia ao seu

andar. Iriam vê-los, forçosamente. Com o pé, conseguiu empurrar a porta; esta, porém,

fechou-se ruidosamente.

Alison assustou-se; ergueu a cabeça e lançou-lhe um olhar todo interrogação.

— Não foi nada — explicou ele em voz baixa. — Tive de fechar a porta. Alguns

inquilinos do prédio vinham lá de cima; não podiam deixar de ver-te.

— Oh, Kay, acho que não me importaria si me vissem aqui! — exclamou ela chorosa

— Sinto-me tão horrivelmente infeliz... Não imaginas como as coisas têm sido cruéis para

mim, ultimamente.

— Que coisas? — indagou Kay, sentindo-se um tanto ridículo, de pé ali, com Alison

agarrada a seu pescoço.

— Oh, tudo... nada... não sei... tenho a impressão de que vou enlouquecer esta

noite, Kay — balbuciou. — Papai parece que não... não me compreende e eu não tenho

mais ninguém, ninguém, no mundo. Sinto-me num abandono desesperador...

Page 62: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

O que havia de sinceridade e fingimento em suas palavras, nem a própria Alison

poderia dizer.

— Tudo parece errado, ás vezes — prosseguiu ela. — Rio e canto; meu coração,

porém, não cessa de chorar. Nunca se dá isso contigo, Kay? Mas não; está claro que

não; és um homem. Os homens não podem sentir, como nós sentimos.

— Como não? — interrompeu Hallam com voz um tanto rouca, pois Alison fizera

uma pergunta á qual lhe era fácil responder, naquele momento.

— Também tu te sentes solitário e infeliz, querido? — volveu Alison ternamente.

— Oh, não é bem isso. É um sentimento que não compreendo bem — replicou

Hallam, rindo, quase envergonhado. — Coisas que eram alegres tornaram-se tristes;

sinto-me mal e não conheço, nem descubro o “porque” dessa sensação de mal-estar.

— Tenho pena de ti, Kay — murmurou a jovem com voz macia e acariciante.

Era chegada, enfim, a sua oportunidade, pensou. Compreendia claramente. Tirara

um acorde de si própria e conseguira arrancar do coração de Kay o eco desejado. Só, em

um recinto vagamente iluminado pelo luar, com uma pequena bonita a soluçar em seus

braços, um homem não se detêm para saber si a nota que ouviu foi tão sincera como o

eco que partiu de seu intimo. Todas essas reflexões cruzaram o espirito de Alison. Aquela

era a sua oportunidade. Talvez a ultima; era, pois, necessário aproveitá-la. Levantou um

pouco mais os braços até rodear o pescoço de Hallam; juntou o rosto com o dele. Se Kay

resistiu, sua resistência foi fraca.

— Kay — sussurrou ela quase num suspiro — não será possivel... nos consolarmos

mutuamente? Conhecemo-nos, compreendemo-nos perfeitamente e... uma grande

simpatia nos une.

— Sim, sim — replicou Hallam, procurando afastar de si aqueles braços que

pareciam tão cheios de carinho e prometendo a si próprio não perder a cabeça. — Tens

sido a doçura em pessoa — continuou ele. — A... a noite de hoje foi adorável, Alison

querida, mas é tão tarde... precisas ir, minha cara amiguinha, precisas...

A jovem recuou com uma exclamarão de sincera dor.

— Oh, Kay! — foi o grito que deixou escapar. Não lhe fora possivel ocultar o choque

que aquela frase lhe causara, retornando aos lábios de Kay, para ferir seu amor, sua

vaidade e fazê-la sentir que toda a emoção que manifestara fora inútil. Justamente no

momento em que suas esperanças eram maiores, ouvia-o repetir que ela não passava de

"uma cara amiguinha"; apenas isso e nada mais.

— Kay, jamais compreenderás! — acrescentou, a voz tremida de sincera emoção.

Livre dos braços que o comprimiam, dos olhos e dos lábios suplicantes da jovem,

qualquer emoção que acaso houvesse despertado em Kay, desapareceu.

— Só compreendendo, Alison, é que fui um louco ao permitir que entrasses aqui, a

uma hora destas — retorquiu ele calmamente. — Vamos, querida, deixa-me levar-te para

casa.

Contudo ela não o atendeu. Deixou escorregar dos ombros a pequenina capa

dourada, que foi formar um circulo de reflexos de ouro á volta de seus pés, e ajoelhou-se

sobre ela, ocultando o rosto com as mãos.

— Sinto-me só, infeliz... desgraçada mesmo... e não tens dó de mim... dizes

somente que preciso voltar para casa — soluçou ela.

Page 63: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

O terror, provocado pela compreensão de que, na realidade, não lhe era possivel

comovê-lo, de que sua confiança com respeito a ele não passava de um produto de sua

imaginação, determinou-a a precipitar os acontecimentos, sem dar atenção á voz dos

próprios instintos de reserva e pudor. Ia perdê-lo — perdera-o talvez — sob o ponto de

vista emocional. Por isso se dispunha a tudo; o aviso de seu pai ficara gravado em letras

de fogo na sua lembrança e, assim, era-lhe impossivel abandonar aquela oportunidade.

Tudo isto acrescentado á sua fúria de mulher desprezada, levou-a ao desespero.

Chorou, reprovou-o, falou-lhe de sua infelicidade e, passada sua primeira confusão,

Kay ajoelhou-se ao lado dela tentando, com bastante falta de jeito, acalmá-la; ainda que

envergonhado e reprovando a própria insensibilidade, ante as acusações que Alison lhe

fazia, não pôde conter uma certa desconfiança de que aquela cena não era verdadeira.

Mais uma vez esteve prestes a proferir as palavras que Alison ansiava por ouvir de

seus lábios. Não por que as sentisse sinceramente, mas porque, no arrependimento

momentâneo, seria capaz de dizer qualquer coisa, para pôr um termo ao incidente. Não

sendo nem cego nem surdo, era-lhe impossível deixar de compreender que Alison estava

a lhe fazer uma frenética declaração de amor.

Subitamente em meio da confusão de suas vozes, ergueu-se um novo som. O som

de uma tosse alta e claramente distinta e de passos pesados sobre a escada de pedra.

Alison pôs-se de pé, uma expressão de terror no rosto livido.

— É papai! — exclamou a meia voz.

Hallam assustou-se ante o pavor que se estampava em seu olhar.

— Mas ele compreenderá. Não irá pensar... — começou com um sentimento quase

de alivio.

Ela, porém, interrompeu-o.

— Ele me amedronta, Kay. Por que viria aqui se não estivesse zangado? Kay, faze

qualquer coisa. Não deixes que ele me veja. Não o deixes encontrar-me aqui. Estou com

medo.

E de fato estava. Hallam reconheceu que a jovem se achava realmente aterrorizada.

— Esconde-me! Não deixes que ele me veja! — suplicava ela com voz enrouquecida

pelo pranto. Tomada de súbito pânico, cega pelo terror, apanhou a capa e correu para a

porta que ficava no fundo do atelier.

— No meu quarto de dormir, não! — exclamou Kay, seguindo-a. — Alison! Espera,

aqui — é melhor. Não há mal nenhum na tua presença aqui. Ele acreditará. — Mas a

jovem desaparecera no interior do quarto e fechara-lhe á porta na cara. Só lhe restava,

pois, arriscar a representação de uma comedia. Acendeu apressadamente a luz e

apanhou um livro. Mal fizera isto, alguém bateu á porta.

Ele abriu-a, com o livro na mão e Mayhew Tearle entrou agitadamente, examinando

com os olhos todos os cantos do atelier.

— Boa-noite — disse Kay. — Em que poderei...?

— Onde está minha filha? — indagou Tearle violentamente, cortando-lhe a palavra.

— Alison? Porque julgou que ela estivesse aqui?

— Sei que ela está aqui. Que significa trazê-la aqui a estas horas da noite?

— Como vê, sir, ela não se encontra no atelier, — protestou Kay.

— Então onde está?

Page 64: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não a encontrou em casa? — perguntou o rapaz, tornando-se levemente rubro.

— Não — replicou Tearle. — E tu bem sabes disso. Ela está aqui. Se não a vejo no

atelier é porque se acha em qualquer outro compartimento.

— Mas eu lhe garanto, sir...

— Não me garantes coisa alguma, Kay. Foste um desgraçado, um canalha, atraindo

ao teu apartamento uma moça inocente como Alison, a estas horas da noite.

Hallam mordeu os lábios para conter as palavras que ardia por dizer.

— E já que estamos falando de homem para homem, é bom que saibas que estou

farto de aturar este teu “chove-e-não-molha” com minha filha — continuou Tearle. —

Estás destruindo a sua reputação. Isso vem comprometê-la seriamente e não posso

permitir semelhante coisa. Compreendes?

— Destruir sua reputação? — repetiu Kay. — Não, sir, não compreendo.

— Estás sempre junto de Alison; ela é vista em toda parte contigo. Toda gente diz

que vocês dois se vão casar e já começam a perguntar por que nunca se realiza esse

casamento. Não vejo o fim disto e minha paciência esgotou-se. Nem um sopro de

escândalo lhe manchara o nome antes de te conhecer.

— Pode dizer o que quiser, sir, mas sempre andei com Alison na sua frente e certo

de que isso não lhe desagradava. Nada fiz ás ocultas. Até aqui o senhor nunca se

lembrou de expressar seu desagrado. Se acha que sou indigno da confiança de uma

moça direita, é um triste juizo que faz de sua própria filha, pois julga que sua noção de

decência não é suficiente para protegê-la. E fique sabendo que Alison jamais necessitou

de proteção, em minha companhia — explodiu ele.

— E que me dizes do que fizeste esta noite? — perguntou Mayhew Tearle —

representando admiravelmente a indignação paternal. — Sabes que já é quase uma hora

da madrugada? Isto lá é hora de uma moça visitar o apartamento de um homem, sem que

alguém a acompanhe? Acaso pretenderás dizer-me que uma menina meiga e correta

como Alison seria capaz de fazer isso, sem que alguém a tivesse persuadido? Conheço

muito bem minha filha. Conheço-a e nada me fará crer que ela tenha feito uma coisa

destas por sua vontade.

Sua voz tremia de comoção. Subitamente cruzou o espirito de Kay o pensamento de

que aquilo não correspondia ao terror que Alison manifestara á aproximação do pai. Havia

algo muito estranho naquilo. Esta idéia, porém, não teve tempo de tomar, no espirito de

Kay, uma forma definida. A atitude de Tearle tornou-se de novo violenta.

— Insisto em dar uma busca nos teus aposentos.

— Escute-me, sir, nada fiz que justifique sua atitude. Juro-o.

— Então não te importas que eu examine teus aposentos?

— Mas isso é um insulto! Mais á sua filha que a mim — exclamou Kay desesperado.

Ceus! Se aquele homem enfurecido encontrasse Alison em seu quarto de dormir!

— É inútil continuares a mentir — volveu Tearle energicamente. — Quando eu ia do

club para casa, há pouco, encontrei um amigo que me disse ter visto entrares aqui com

Alison.

— Que! — exclamou Kay, recuando um passo.

Tearle compreendeu que a flecha atirada conseguira o efeito desejado.

— Essa pessoa estava no fim da rua, quando vocês entraram.

Page 65: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— A essa distancia como lhe seria possivel identificar a moça que me

acompanhava? — contestou Hallam, agarrando-se aquele miserável argumento.

— Admites, então, que havia uma moça contigo?

— Não vendo motivos para submeter-me a um julgamento, não admito coisa alguma

— retorquiu Hallam.

— Teu tom provou-o suficientemente. Estás mas é disfarçando, fugindo ás minhas

perguntas. Não ousas dar-me uma resposta direta. O amigo a que me referi sabia que se

tratava de Alison, portanto era seu dever avisar-me. E, por Deus, Hallam, espero por uma

reparação.

— Reparação? — repetiu Kay, alarmado.

— O nome de minha filha anda de boca em boca. A sombra da duvida paira sobre

sua reputação de moça direita. A voz do escândalo ameaça-a. E tu és a causa disso.

Como homem de honra, qual é a reparação que te resta propor?

Durante algum tempo seus olhos se encontraram em silencio.

— Eu o compreendo, sir —- disse por fim Kay com toda a calma.

Fez uma pequena pausa.

— Permite que eu pergunte a Alison se ela quer casar comigo?

O ódio de Tearle evaporou-se como por encanto.

— Meu rapaz, eu sabia que eras um homem de honra! Eu sabia que podia confiar

em ti! Sabia que compreenderias qual a única reparação que te restava.

— Essa palavra não me agrada — advertiu Kay lentamente. — Nada fiz para dever

uma reparação, nem sequer forneci motivos para um escândalo, mas si Alison quiser dar-

me essa honra, isso o satisfará?

— Preciso levar minha filha para casa, minha pobre e assustada filhinha. Mas nem

uma palavra saírá de meus lábios, Kay, com respeito ao que chamaremos esta inocente

indiscrição; nada mais será dito. Amanhã conversaremos sobre a questão de teu... de teu

casamento com minha filha, estabelecendo então as bases do contrato.

— Em primeiro lugar eu terei que pedir a permissão de Alison -— insistiu Kay um

tanto impaciente.

Teve a impressão de que Tearle precipitava singularmente os acontecimentos.

— E tens receio que ela recuse tua oferta? — perguntou Tearle com um sorriso

estúpido. — Se é assim, pergunta-lhe já; dize-lhe que ela não será repreendida e

deixaremos resolvido isto sem mais demora — continuou.

— Mas já lhe disse que ela não está aqui, sir! — repetiu Kay novamente alarmado.

Mas o intuito de Tearle era encontrar Alison ali e confrontá-la com Kay de maneira

que não restasse ao rapaz uma única saída. Pouco lhe importava que Alison tivesse

sabido com Hallam, mas quando, por acaso, veio a saber que sua filha entrara com

Hallam no atelier, decidiu-se imediatamente a tirar partido disso. Até aqui seus intentos

haviam logrado completo êxito — forçara Kay a prometer-lhe uma reparação. Kay

cumpriria sua palavra. Sabia-o. Mas desejava que o assunto ficasse definitivamente

decidido. E foi essa extrema astucia que lhe veio dar com os planos por terra.

— Kay — disse ele com energia — devo insistir contigo para que me digas toda a

verdade. Se não o fizeres terei que verificá-la por mim mesmo.

Page 66: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Com um movimento brusco empurrou Kay e correu para a porta que ficava ao fundo

da sala.

Kay seguiu-o consternado. Mas não conseguiu evitar que Tearle abrisse a porta.

Este ultimo escancarou-a com um gesto dramático, tateou a parede em busca do

botão eletrico e, encontrando-o, inundou o quarto de luz.

Kay soltou uma espécie de grunhido, controlou seus impetos e estacou com os olhos

arregalados pelo espanto. Além, no centro do quarto, as mãos comprimindo o peito,

estava Robin.

Esta ergueu lentamente a cabeça e encarou Mayhew Tearle.

Tearle recuou um passo, boquiaberto. Tivesse ele virado a cabeça e olhado para

tras e perceberia que o espanto de Hallam não era menor que o seu. Mas, por cima de

Tearle, os olhos de Robin pareciam irradiar um aviso silencioso e diante disso Hallam

reprimiu a exclamação que por pouco lhe escaparia dos lábios.

A voz de Tearle foi a primeira a quebrar o silencio.

— Com que então era Robin, hein?

Um rápido “não” subiu aos lábios de Kay, mas este conseguiu conter-se. Não

poderia negar que ela estava ali; e negar que Robin estivera todo o tempo no quarto seria

trazer de novo á baila a questão de Alison. Senhor! Que situação! Se abrisse a boca para

defender uma das moças faria caírem as suspeitas sobre a outra.

— Seja como for — balbuciou ele por fim — o senhor está vendo que não podia ter

sido Alison.

Tearle voltou-se, compondo as feições grossas e pouco atrativas sob a mascara da

sua habitual suavidade.

— Vejo realmente que não podia ter sido Alison — disse ele com cortesia quase

exagerada.

No intimo sentia-se furioso e encolerizado contra Kay; mais ainda contra si próprio

por ter insistido em abrir aquela porta. Esperando assim forçar Kay a casar-se com Alison,

não fizera mais que perder definitivamente a primeira cartada no jogo que tentara. Mas

escondeu esses sentimentos e, com um ar de grande dignidade, caminhou para a porta;

desejou a Kay uma boa-noite e saíu.

Kay bateu a porta com incontida irritação.

— Agora, que demônio quererá ele insinuar com essa atitude? — pensou consigo

mesmo, voltando ao atelier com a sensação de fraqueza que nos provoca um brusca

reação.

Robin passou para o atelier e Kay a encontrou já no meio da sala.

Pararam, fitando-se um ao outro em silencio.

— Robin! — exclamou ele.

— Então, Kay? — replicou Robin.

— Que aconteceu? Estou completamente estupefato.

— Vi quando subiste com Alison. Ouvi quando lhe suplicavas que te deixasse levá-la

para casa e a maneira pela qual ela se recusou a teu pedido. Não sei por que, isso me

preocupou. Não podia dormir. E, quando escutei a tosse de Tearle, tive um certo

pressentimento de que algo ia acontecer.

— Sim?

Page 67: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Vim cá em cima e ouvi-o acusar-te de estares escondendo Alison em teu quarto.

Entrei então ali, pela porta do corredor. Alison estava escondida atras do guarda-roupa,

batendo o queixo de pavor. Disse-lhe que saísse do quarto e não fosse idiota.

— E por que não saíste também?

Ela o fitou com uma expressão grave nos olhos negros.

— Ouvi quando ele te fez prometer que... te casarias com Alison — explicou Robin

lentamente. — E eu não acreditei que houvesse algum motivo que te obrigasse a isso...

— Está claro que acertaste — aparteou ele rapidamente. — Bom Deus, Robin, que

espécie de canalha julga Tearle que sou?

Robin não respondeu a isso e continuou:

— E como eu não estivesse absolutamente certa de que havia uma razão para te

casares com Alison, pensei em dar-te uma chance de não o fazeres... Uma chance de te

livrares disso, se quiseres...

Só então Kay compreendeu a extensão do alivio que lhe causava saber que não

mais teria de pedir Alison em casamento para cumprir sua palavra.

— Foi o único meio que encontrei — acrescentou Robin.

Kay aproximou-se mais dela.

— Robin, tu me salvaste, decididamente tu me salvaste — disse ele, sinceramente

agradecido. — E tambem a Alison — acrescentou rapidamente. — Bem sabes que ela

não deseja casar-se comigo.

Robin, porém, não se interessava por Alison como por Kay.

— Pensei somente em ti, pois achei que, naturalmente, não desejarias casar com

ela.

— E não quero mesmo — confessou Kay. — Não pensei ainda em casar-me. Mas,

Robin, tu te arriscaste a que Tearle pense, de ti, o mesmo que parecia julgar de Alison.

— Parecia? Pretendia, é o que queres dizer — corrigiu ela, arqueando ligeiramente

os lábios.

— Também tu não achaste qualquer coisa esquisita na atitude dele?

— Se achei? Tive plena certeza. E mais certa fiquei quando meus olhos puderam

vê-lo.

Havia um intenso desdém na expressão e no tom de Robin.

— É? Mas por que, Robin? Ele sempre pareceu um homem tão bom.

— Não a mim.

— Que achas, então?

— Queres perguntar com isso o que penso dele?

— Sim.

— Um scroc5 é o que ele é.

Mas os Tearle eram amigos de Kay havia muito tempo, para que ele admitisse

prontamente essa hipotese. Contudo, suas suspeitas estavam despertadas. A atitude de

Tearle estivera longe de ser satisfatoria.

— Eu... não estou bem certo — balbuciou ele vacilante.

5 Sujeito que se apropria dos bens de outrem por manobras fraudulentas

Page 68: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

E, tomando nas suas uma das mãos de Robin, continuou:

— Não sei que te hei de dizer, querida; como agradecer-te. Mas te sou grato de todo

o coração.

Robin fitou-o com um sorriso muito leve.

— Não precisas agradecer-me, Kay — disse-lhe delicadamente. — Boa-noite.

E, com estas palavras, dirigiu-se á porta, abriu-a e retirou-se.

CAPITULO VII

Mayhew Tearle entrou como um raio, pelo quarto de Alison a dentro, depois de uma

quase imperceptível batida na porta. A jovem estava deitada e, alarmada, sentou-se na

cama, acendendo rapidamente a lâmpada da cabeceira, os olhos muito abertos e

medrosos, mas com seu plano já traçado.

— Que é? — perguntou ela prontamente.

— Onde estiveste? — indagou Tearle.

— Dormindo, há uma hora mais ou menos — replicou ela com toda a calma. — Não

sabes por acaso que horas são? — acrescentou.

Tearle, porém, se esquivou a essa pergunta.

— Quando deixaste Hallam?

— Oh, faz quase um século.

— Onde te separaste dele, quero dizer.

— Ele me pôs num taxi próximo de King's Road. Dei umas voltas e vim para casa. —

Mentia com facilidade e não despregava os olhos do rosto de seu pai, para ver se este

acreditava em suas palavras — Por que, papai?

— Estragaste com todo o negocio, isso é que é — disse-lhe ele furioso. — Não o

apanharás agora. Deixaste-o escorregar de tuas mãos, tola.

Pai e filha olharam-se por um momento.

— Deixei-o escorregar? Que queres dizer? — perguntou Alison, por fim.

— É o que te disse. Fui ao atelier de Hallam...

— Á minha procura?

— Sim. E já estava tudo arranjado.

— Pelo amor de Deus, explica-te. Estava tudo arranjado? — repetiu ela com uma

irritação nervosa.

— Para ele se casar contigo. Nome comprometido, reparação, homem de honra, e

tudo o mais.

— Oh! — murmurou Alison com voz apagada, mergulhando novamente em seus

travesseiros. — Então tu querias encontra-me lá... no atelier? Era... esse o teu plano?

Só então ela compreendeu que o medo que seu pai lhe inspirara só servira para

desviá-la da realização do seu maior desejo. Se tivesse ficado e deixado que ele a

encontrasse no quarto de Kay! Enrubesceu ante os próprios pensamentos, consciente de

que estes eram indignos. Mas, obsecada por seu amor a Hallam, seu coração encheu-se

de amargo remorso ao ver que estragara os planos de seu pai. Pelo menos eles teriam

conquistado Kay para si.

Em meio destes pensamentos, chegou-lhe novamente aos ouvidos a voz de seu pai.

Page 69: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— E tudo que encontrei foi aquela miserável Robin — prosseguiu ele. — Deste-me

um tombo; fizeste-me fracassar de um modo ridículo. Mas ainda hei de encontrar-me com

ele.

— Papai! — exclamou ela. — Que vais fazer?

Não obteve, contudo, a menor resposta, pois Tearle se retirou do quarto sem mais

uma palavra.

Ali ficou Alison, com o coração a bater furiosamente. Apagou a luz e, na escuridão

do quarto, ficou a pensar com os olhos muito abertos. E havia muita amargura em todos

os seus pensamentos.

Si Mayhew Tearle perdera o seu primeiro round, não se segue daí que se desse por

vencido. Sua situação financeira tornara-se tão critica que, de momento em momento,

esperava pela falencia. Por essa razão achava-se desesperado e disposto a fazer tudo

para adiar a hora em que o mundo o assinalaria como um homem arruinado.

Não havia tempo a perder. O que quer que fizesse precisava ser feito

imediatamente.

Portanto, no dia seguinte, bateu á porta do atelier de Kay, mais amável e macio que

nunca.

Kay recebeu-o com um olhar desconfiado, dando tratos á bola para descobrir a

causa daquela visita.

Não levou muito tempo para ver satisfeita sua curiosidade.

Tearle começou por mil rodeios, nos quais cada palavra se aproximava mais do

ponto visado. Chegou finalmente ao “porque” da visita. Em resumo era isto: que seu

silencio, com respeito ao incidente da véspera, estava á venda.

Kay arregalou os olhos, francamente surpreendido.

— Mas, Alison não estava aqui — balbuciou ele por fim.

— Sim — replicou Tearle suavemente. — Mas Robin estava. Pobre menina leviana e

ingênua!

Suspirou. A surpresa de Hallam como que desapareceu.

— Extorsão? — indagou Kay, bruscamente.

— Meu caro rapaz — protestou Tearle — não empreguei essa palavra. Expliquei

somente que um cheque razoável é a única solução restante entre a boa reputação da

pobre menina e...

Deixou que o silencio terminasse a frase.

Encarando a situação fria e imparcialmente, parece sempre que ninguém precisa

submeter-se a uma extorsão. Mas quando nos vemos entre as malhas ardilosas do scroc,

quando nos chega o momento em que, como Kay, estamos longe de nos sentir frios e

imparciais — o caminho simples e razoável nem sempre se nos apresenta. E não se

apresentou igualmente a Kay. Tudo que viu diante de si, caso se recusasse á absurda

ultimação de Tearle, foi uma historia perfidamente tecida á volta do nome de Robin,

espalhando-se, aos quatro ventos, pela cidade. Uma só palavra de Tearle chegaria para

realizar isso. Não era possivel arriscar. Robin não devia sofrer um golpe desses,

especialmente naquele momento, estando ela no principio de sua carreira artística.

Portanto...

— Quanto? — perguntou ele.

Page 70: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Tearle expôs as condições. Hallam pagou.

— Com que então é a essa espécie de biltre que pertences? —- observou Kay.

— É — replicou Tearle, embolsando o cheque de Kay com suprema satisfação. — É

precisamente essa a espécie de biltre a que pertenço.

Quinze dias mais tarde, Tearle tornou a requisitar um outro cheque “razoável” nos

mesmos termos, e, como é natural, obteve-o.

Kay achava-se terrivelmente contrariado. Compreendeu que Tearle tomara conta de

si. E, embora percebesse que estava dominado por um scroc — Robin acertara — não

encontrava um meio de livrar-se disso. Tearle permaneceria calado, está claro, enquanto

com isso pudesse ganhar qualquer coisa, mas quanto tempo duraria essa situação?

Hallam sabia que lhe era impossível continuar a pagar seu silencio indefinidamente. E

quando seus recursos falhassem não era mais que provável que Tearle revelasse tudo

que sabia, instigado pela perversidade? Kay compreendeu que não é possivel depositar

uma gota de confiança num homem cuja moral caíu ao ponto de tornar-se scroc.

Por outro lado sentiu que cada dia que se passava tornava a historia menos

perigosa. As verdadeiras “comadres” apreciam as novidades frescas, ainda “quentes”. Um

caso velho, sobre quem quer que seja, raramente produz sensação. Kay considerou que,

se conseguisse manter Tearle em silencio até que o fato perdesse o interesse á força de

velhice, até que Robin se achasse firmemente estabelecida em sua carreira

cinematografica, ser-lhe-ia possivel tratar Tearle como um homem da sua espécie merece

ser tratado.

Pagou ainda uma outra quantia — três, com essa, em igual numero de semanas.

Mayhew Tearle regosijava-se.

Vai ser fácil, dizia com seus botões. Dinheiro "em conserva" é a melhor qualidade de

dinheiro que conheço.

Mas, então, não contara com Alison. A mulher desprezada torna-se uma criatura

implacável e cruel. Perdera Hallam. Sabia perfeitamente disto e essa certeza lhe era

terrivelmente amarga. Seu único desejo agora era ferir como fora ferida.

Portanto, deixou escapar a historia da descoberta de Robin no quarto de Hallam,

num momento demasiadamente inesperado.

E o fato em nada ficou prejudicado por sua narrativa. Para lhe dar maior realce, ela

acrescentou-lhe a informação de que o pai de Robin se achava preso por crime de roubo.

O despeito a cegava.

A historia espalhou-se, andou de boca em boca mas, como sempre acontece, as

ultimas pessoas a ouvi-la foram as vitimas — Hallam e Robin.

O jovem Carstairs foi dos primeiros a saber do caso e, não havendo esquecido ainda

o episódio do beijo, viu nisto um meio de vingança. Repetia-o por onde passava e a todos

que encontrava, não perdendo a menor oportunidade de retribuir, por esse meio indireto,

a vergonha por que Robin o fizera passar.

Robin, em pouco tempo, começou a notar algo estranho na maneira por que a

tratavam as pessoas do estúdio. Não podia saber bem o que era. Algo indefinivel mas

claramente perceptível parecia transformar, aos poucos, a atmosfera que a cercava.

Page 71: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Só compreendeu do que se tratava quando Mersey Shale mandou chamá-la ao seu

escritorio para mostrar-lhe o comentario de um jornaleco semanal intitulado "A Voz da

Cidade", referindo-se ao incidente ocorrido entre ela e Kay. Dizia assim:

"PERGUNTAS INTERESSANTES" "Que tanto teriam a conversar uma estrela de

novela cinematografica e um popular pintor de Chelsea, para que este a retivesse em seu

apartamento até altas horas da madrugada?"

Robin ergueu os olhos para Shale, devolvendo-lhe o ignóbil semanário.

— Acaso isto quer referir-se a mim?

— Dizem que sim — respondeu-lhe o diretor gravemente.

Shale notou que os olhos da jovem haviam adquirido um brilho estranho.

— Dizem? — repetiu ela, após uma breve pausa. — A quem exatamente o senhor

se refere?

— Pois bem; foi Carstairs que me chamou a atenção.

— Calculo como ele não estaria radiante de fazê-lo.

— De fato estava satisfeito. Carstairs anda bastante despeitado. Mas isso não altera

esta questão — volveu Shale, indicando o jornal. — Ele apenas mostrou-me este

comentario; não o escreveu.

— Sim — concordou Robin lentamente. — Nada pôde alterar isto... Está o senhor

bem certo de que quiseram referir-se a mim?

Shale olhou-a fixamente.

— Poderiam referir-se a ti, Robin?

— O senhor pergunta se aparentemente havia alguma razão?

— Exatamente.

Os olhos de Robin encontraram os do diretor.

— Sim. Não houve absolutamente o que insinuam, mas uma simples...

— Tu e o jovem Hallam?

— É isso que dizem?

— Sim.

Ela fez menção de retirar-se mas voltou.

— Há quanto tempo estão comentando essa historia?

— Oh, ha algumas semanas... A principio não dei a menor importância ao "diz-que-

diz-que" e este foi crescendo. Mas agora, se a imprensa começa a fazer comentarios, a

coisa torna-se mais seria. Eu não queria que se tivesse algo a dizer de ti, Robin.

— Nem eu o queria — replicou a jovem.

Shale notou-lhe os lábios levemente trêmulos.

— Particularmente depois daquele incidente com Carstairs. Agora ele não se cansa

de repeti-lo, dizendo que tudo que fizeste não passou de uma farsa e que isto — bateu

com a mão no jornal — veio prová-lo...

Ela sacudiu a cabeça e olhou-o bruscamente.

— Não é verdade, o senhor sabe — disse ela calmamente. — Há uma prova que me

é impossível revelar, mas o que este jornal diz é mentira. Acredita no que lhe digo?

Shale até ali não estivera bem certo, mas, fixando o rosto da jovem, sentiu

desfazerem-se todas as suas duvidas. Robin não sabia mentir.

Page 72: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Sim, eu acredito em tuas palavras — retorquiu ele com um fervor que foi como

balsamo para a alma de Robin.

— Muito obrigada — disse a jovem com os lábios trêmulos outra vez. — Mas,

naturalmente, os outros não acreditarão — acrescentou.

— Sim; isto é que é o diabo — concordou Shale. — E não é só isto que andam

dizendo a teu respeito — continuou depois de um pequeno silencio.

— Que mais? — perguntou, ansiosa, a moça.

— Algo que se relaciona com teu... com tua familia... — explicou o diretor

relutantemente. — Desde que já entramos no assunto é melhor pormos tudo em pratos

limpos.

Robin concordou em silencio.

— Refere-se a meu pai? —- murmurou ela.

— Sim.

— Soube que ele...?

Shale sacudiu a cabeça.

— Está preso — terminou, falando com uma dificuldade que surpreendia a si próprio.

Seguiu-se novo silencio.

— Isso é verdade — confessou Robin. — Ele... roubou.

— Compreendo.

— Vai... me despedir? — perguntou ela, — Por que o senhor pôde fazê-lo, não é?

Shale riu-se.

— Lamento muito isso... lamento-o de todo o coração — disse ele — mas está claro

que não irei despedir-te...

— Não é muito bom negocio ter-se uma... uma estrela, cujo pai está na prisão, não

é?

— Isto não saírá nos jornais. Jornal algum o publicará... Nem sequer se fará um

comentario como este.

— Mas toda gente discutirá...

— Sim. Está claro que irão comentar. Mas, se não deres importância, eles em breve

se cansarão.

— É espantosamente bondoso de sua parte ser tão... tão bondoso — balbuciou ela

depois de um momento.

— Oh, Robin, como te lamento. Deve ser horrível — disse o diretor.

— Sim, é horrível; principalmente para papai. Perguntei a Fable si deveria contar-lhe

tudo desde o começo, mas ele me disse que não havia necessidade.

— Não havia de fato a menor necessidade. Não desejaria ter sabido disso agora, a

não ser para dizer-te que, se há alguma coisa que eu possa fazer...

Deixou o resto á compreensão da jovem, pois experimentava uma curiosa timidez ao

oferecer-lhe seu auxilio.

— Oh, Mr. Shale, nunca esperei encontrar amigos tão bons como os que tenho

encontrado! — exclamou Robin com sincero entusiasmo. — Em certos pontos sou a moça

mais feliz do mundo!

E ao fitarem o diretor, seus grandes olhos, umidos de comoção, brilharam como dois

diamantes negros.

Page 73: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Mas quem teria ousado tecer á volta de teu nome todas estas infâmias? Não

suspeitas de ninguém? — inquiriu Shale após um momento.

— Sim; sei perfeitamente quem foi — replicou a moça.

— Carstairs? — arriscou o diretor.

— Oh, não! Pessoa muito diversa. Não posso dizer quem, portanto não me

pergunte, sim?

— Está bem — prometeu Shale. — Mas daria alguns anos de vida para torcer o

pescoço desse canalha.

Ao se despedirem, uma sincera amizade ficara definitivamente assentada entre

ambos.

Robin estava convencida de que fora Tearle o primeiro a espalhar a perversa

calunia, pois não lhe passava pela cabeça que Alison pudesse fazer semelhante coisa

contra si. Mas não contou a ninguém suas suspeitas, em parte por Kay, em parte por

Alison.

Ultimamente estava mais amiude com Kay, mas nada lhe contou a respeito do que

andavam dizendo.

Foi Fable o primeiro a ir ao atelier, com o fim de pôr Hallam ao par do que se

passava. Este ficou aterrorizado. Teve impetos de saír e estrangular Mayhew Tearle na

mesma hora.

— O repugnante traidor! — exclamou no auge da fúria, passeando de um lado para

o outro. — Mas, era de se esperar; idiota fui eu de confiar num scroc sujo e indecente...

— Scroc? — atalhou Fable, rapidamente.

Hallam confessou, então, que Tearle lhe vinha extorquindo dinheiro em troca de sua

discrição.

— Mas por que necessitavas tu da discrição desse homem? — indagou Fable. —

Queres dizer...

Sem terminar a frase agarrou Hallam pelos ombros e encarou-o, os olhos, sempre

tão serenos, faiscando agora de indignação.

— Kay! — exclamou com voz surda. — Se tiveres faltado com o respeito a Robin,

acho que serei capaz de... matar-te!

Kay livrou-se dos braços que o prendiam.

— Oh, meu Deus — gritou fora de si. — Será possivel que, até mesmo tu, me tenhas

em conta de um canalha?

Fable deixou tombar os braços.

— Peço-te perdão — balbuciou vacilante.

— Nunca pensei que me julgasses desse modo! — tornou Kay exaltado, passeando

nervosamente pela sala.

Logo, porém, se acalmou e não tocaram mais na altercação que tiveram. Hallam

contou ao amigo toda a verdade.

— Oh, — exclamou Fable, quando viu terminada a narrativa de Kay. — Nesse caso

não foi Tearle quem andou espalhando isso. É muito pouco provável que ele matasse a

galinha, quando os ovos de ouro vinham sendo postos com tão promissora regularidade.

— Então quem? — inquiriu Hallam surpreendido. Mas a idéia que lhe cruzou o

cérebro fê-lo calar-se bruscamente.

Page 74: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Só havia uma outra pessoa a par do incidente — Alison.

Seus olhares se encontraram e nem uma só palavra foi necessária para que ambos

se compreendessem.

Um dia em que Robin voltou mais cedo do estúdio, Hallam a encontrou no hall do

prédio em que moravam e fê-la parar.

— Robin — murmurou, gaguejando um pouco. — Sinto imensamente o que

aconteceu. Queria conversar contigo sobre isso. Poderás subir comigo?

— Mas, Kay, haverá alguma coisa a dizer? — indagou ela, olhando-o com olhos

muito abertos, onde se estampava a franqueza de sua alma.

— Oh, não sei. Acho detestável este estado de coisas. Ando aborrecidissimo, pois

penso dia e noite e não sei que fazer, nem mesmo se há alguma coisa a fazer.

— A culpa não é tua, bem sabes.

— Oh, mas é! Eu nunca devia ter permitido que Alison subisse ao atelier aquela

noite e, si tivesse podido prever um terço do que aconteceu, teriam que cortar a minha

cabeça antes que eu a deixasse entrar aqui.

— Ninguém pôde prever coisas como essas, Kay, Ninguém, meu caro, Não deves te

aborrecer.

— É impossível. Nada posso fazer para evitar isso. Foi tão nobre o que fizeste!... E

ainda teres este desgosto!

Robin notou que ele estava realmente nervoso.

— Muito bem — disse-lhe. — Se achas que isso te pôde fazer um pouquinho de

bem que seja, subirei contigo para conversarmos.

— Agora?

— Sim. Já.

Juntos dirigiram-se ao atelier.

— Uma xicara de chá antes de tudo, hein? — sugeriu Kay.

Robin concordou e fizeram um pequeno lunch. Findo este, Hallam levantou-se e

pôs-se a vagar pela sala, mãos enfiadas nos bolsos da calça, fisionomia inquieta. O que

Robin pensava, enquanto o seguia com os olhos, por cima do braço da enorme poltrona

em que se achava, ninguém na terra poderia adivinhar. Contemplava-o com terno

embevecimento.

— Robin — indagou Kay, voltando-se bruscamente — que devo fazer? Preciso fazer

alguma coisa, a culpa foi minha, embora eu tenha agido, mais impensada que

criminosamente.

— Eu não te censurei, Kay — observou ela com voz meiga.

— Não; és demasiadamente delicada para fazê-lo. Além do mais, bem sabes que eu

teria feito tudo no mundo, para evitar que isto se desse, se semelhante coisa houvesse

passado por meu pensamento. Mas não refleti. Por uma única razão: confiei em Mayhew

Tearle.

— Não posso compreender por que fizeste isso — argumentou ela.

— Pois bem; quando uma pessoa foi nossa amiga durante muitos anos, não nos é

fácil, de uma hora para outra, transformarmos o conceito em que a tínhamos. Julguei que

Tearle só tivesse feito aquilo por Alison.

Page 75: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— E te enganaste?

— Parece que sim — replicou.

Robin entreabriu os lábios como se quisesse falar, uma interrogação brilhou em seus

olhos, mas, fosse qual fosse a pergunta que quisesse fazer, não a fez e contentou-se em

dizer:

— Achei simplesmente absurdo o pavor de Alison. Reparaste nisso?

— Sim, e no momento esse repentino pavor surpreendeu-me. Só agora o

compreendo melhor. Tearle é um bruto — um bruto de espirito vulgar e sentimentos vis.

Pôde perfeitamente inspirar terror a qualquer mulher. Assim mesmo...

Interrompeu-se nesse ponto. Era evidente que Robin continuava convencida de que

o autor da indiscrição fora Tearle. Ele próprio ainda não adquirira absoluta certeza do

contrario. Tearle não dera mais um só passo em direção alguma, desde que Fable

estivera no seu atelier, havia um dia ou dois. Por isso reprimira ele suas palavras.

— Estou profundamente aborrecido, Robin — continuou. — Vieste em meu auxilio

de um modo tão generoso aquela noite, tiraste-me de uma situação critica e

desesperadora e agora acontece isto. Não podes calcular o meu sofrimento nestes

últimos dois dias.

Robin, em seu intimo, considerou que, dadas as circunstancias, Kay exagerava um

pouco, quando falava do "seu sofrimento". Sem deixar de compreender a situação da

jovem, ele não perdia vasa6 de colocar-se igualmente na posição de vitima.

— Justamente no inicio de tua carreira cinematografica, quando tudo te faz esperar

um futuro cheio de glorias, isto é uma verdadeira falta de sorte, Robin. Eu faria tudo para

tirar-te desta situação. Juro-o. Não calculas o quanto isso me tornou infeliz. Asseguro-te

que não preguei os olhos um minuto, a noite passada.

Eis que novamente tornava a falar de si próprio. Robin lançou um olhar pelo atelier,

em cujas paredes as telas por terminar atestavam a inconstância com que Hallam

aproveitava seu talento.

Com maior nitidez que nunca, compreendeu a leviandade do espirito de Kay. De

indole meiga e alegre, mimado pela sorte e pela fortuna, errava ele pela vida, sem destino

nem ideais, de um modo que enchia Robin de temor pelo seu futuro. Se ainda fosse um

rapazote, muito bem; mas um homem de vinte e cinco anos? Muitos, ao atingir essa

idade, já fizeram alguma coisa na vida; e Kay? Seus trabalhos não passavam de esboços

inacabados, alguns encerrando uma certa promessa — promessa que geralmente ficava

na primeira e ultima pincelada. Não chegaria ele um dia a fazer algo aproveitável? Em

arte, não. Estava certa disso. Embora leiga nesse ponto, Robin não deixava de

reconhecer a inutilidade dos esforços de Kay. Mas um homem não tem necessidade de

fazer somente coisas dificeis e elevadas, para ser digno de mérito. Se Kay fosse

simplesmente um homem, um homem de verdade, na extensão comum da palavra... Era

sua existência inútil e superficial que preocupava e irritava Robin. Seu desejo era abrir-lhe

os olhos, dizer-lhe que deixasse aquela idiota profissão de "troca-tintas" e procurasse

6 Degradação moral

Page 76: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

fazer alguma outra coisa mais aproveitável, ainda que fosse um insignificante trabalho

manual.

Mas ele é bom, pensou com seus botões. No fundo, todos os seus sentimentos são

nobres. Não há o menor vestígio de indignidade em sua alma. Seu único defeito é ser

estroina; esta é a causa de tudo — egoísmo, leviandade, fraqueza. Subitamente

perguntou em voz alta:

— Tens trabalhado, Kay?

— Não, não tenho andado disposto. Também, pudera, com todas essas

preocupações — replicou ele.

Robin contemplou-o sorrindo, e havia algo deveras estranho, nesse sorriso.

— Seria impossível mesmo — concordou ela calmamente.

Se havia uma pequena ponta de ironia em suas palavras, nem a própria Robin o

percebera. Kay naturalmente nada notou, também.

— Ando com idéias de começar um grande quadro — continuou ele. — Já o tenho

pronto na imaginação. Estou só á espera da inspiração.

Ainda que inconscientemente, ele tomara um ar de importância ao dizer isso. Logo,

porém, acrescentou, passando nervosamente as mãos pelos cabelos:

— Mas a inspiração só nos vem num estado de espirito tranquilo. E como pode um

mortal sentir-se tranquilo debaixo de mil e uma contrariedades? É impossível. Não

encontro uma solução. Já fiz tudo que estava ao meu alcance. Refiro-me áquele maldito

caso, tu sabes. Fiz o que pude para evitar que acontecesse o que aconteceu. Não podes

imaginar a extensão dos esforços que tenho empregado.

Com isto virou-se e deu alguns passos pela sala. Robin viu-o afastar-se e uma onda

de exasperação inundou-lhe o peito, acelerando o ritmo de seu coração.

— Pelo que vejo não fiz mais que criar dificuldades para ti, Kay, — disse ela com voz

pouco firme.

— Dificuldades? De que maneira, Robin? — indagou o rapaz, voltando-se

novamente.

— Quando tentei fazer-te um beneficio, livrando-te do compromisso que havias

tomado com Tearle — explicou ela com certa rispidez.

— Mas, pelo amor de Deus, Robin, não fales nesse tom! Fizeste o mais que te era

possivel fazer, minha querida. E salvaste-me, positivamente me salvaste. Se não fosse

tua intervenção, eu seria obrigado a sustentar minha palavra e desposar Alison. Não tens

culpa de que as coisas repentinamente se tenham complicado. A situação está dificil para

nós dois e o pior é que não vejo uma única solução — replicou Kay.

— Talvez não haja mesmo solução — volveu Robin em tom mais áspero. — Talvez

nunca houvesse. Talvez tivesse sido melhor que eu te deixasse seguir teu destino.

— Robin! — exclamou ele, atonito ante a mudança por que passara a jovem. — Que

queres dizer com isso?

— Que talvez tivesse sido melhor si eu não procurasse impedir teu casamento com

Alison. Foi isso que quis dizer.

Kay fixou os olhos nela.

— Mas... mas isso seria uma infelicidade — balbuciou ele.

Page 77: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não sei; talvez fosse uma sorte para ti, se alguma coisa, um dia, conseguisse

fazer-te profundamente infeliz — retorquiu Robin.

— Pois é como me sinto neste momento.

— Kay, falavas sinceramente quando afirmaste que serias capaz de fazer tudo para

tirar-me desta situação? — indagou Robin com forçada calma.

— Está claro que sim. Por quem me tomas? Julgas que me agrada a idéia de ter-te

prejudicado?

— Não — volveu lentamente a jovem. — Sei que isso não te agrada. Não há

maldade em ti. És honrado e bondoso; julgo apenas que não vês... muito longe, á tua

volta.

Hallam ia protestar com certa violência, mas Robin prosseguiu, não lhe dando tempo

para falar.

— Não vês de que modo os outros são atingidos por... pelas coisas. Pensas tanto

em ti próprio, que te esqueces de pensar nos outros.

— Sou... sou egoísta, então? — explodiu ele.

— Sim, Kay, acho que és egoísta. Aquela noite em que me trouxeste cá em cima,

para divertir teus convidados...

— Por Deus! Não poderás passar sem falar nisso? — aparteou Kay.

— Neste momento, não. Essa noite só pensaste que seria bonito exibir-me. Não te

passou sequer pela cabeça que eu pudesse não concordar.

— Já te pedi desculpas por isso.

— Oh, sim; e te mostraste sinceramente arrependido. Bem sei. Mas será direito

insistirmos na pratica de ações que, pouco tempo depois, nos enchem de remorsos?

— Talvez não, mas toda gente o faz. A vida é assim.

— Pelo que vejo fazes uma idéia muito errada da vida, Kay — volveu ela e como o

rapaz não fizesse comentario algum prosseguiu: — Depois, foi o incidente daquela tarde

no pinheiral. Mais uma vez me pediste desculpas. Agora, esta historia que se espalhou

por aí, com respeito á minha presença nos teus aposentos, e de novo estás a me pedir

desculpas.

— Pois bem; estou me desculpando com a máxima sinceridade. Que mais posso

fazer? Fá-lo-ia de bom grado se me dissesses — retorquiu o rapaz.

— Fá-lo-ias? — indagou Robin avidamente.

— Deves saber que sim — volveu Kay insultado.

— Sabes que não foi somente a noticia da minha estada em teu quarto, que se

espalhou pela cidade. A verdade sobre papai anda igualmente de boca em boca.

— Sei, sei! — exclamou ele, como que abstrato. — Mas se pudesses saber o que

tenho passado, o quanto tenho sofrido por causa disso! Mas que posso eu fazer, além do

que tenho feito?

Dominada finalmente pela irritação, Robin perdeu a cabeça. Com o coração a bater

furiosamente, ergueu-se da poltrona.

— Que podes fazer? — repetiu com voz tremula. — Digo-te já. Podes oferecer-me a

reparação que estavas disposto a oferecer a Alison.

Hallam recuou um passo.

— Que? — exclamou, estupefato.

Page 78: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Podes... podes casar comigo — explicou ela, lábios convulsos, levantando para o

rapaz o olhar cheio de cólera.

Kay sustentou esse olhar com uma expressão incrédula e ali ficaram, um diante do

outro, deixando que o silencio os envolvesse.

De fato, Hallam desejara sinceramente fazer o possivel para tirar Robin da situação

critica em que se achava; pensara em mil providencias — cartas de protesto contra a

imprensa, reunião de todos os seus amigos e um expressivo apelo a estes, com respeito

á monstruosidade do que se estava passando. Chegara mesmo a lembrar-se de que

talvez pudesse oferecer a Robin uma quantia em dinheiro, que a tornasse independente

para o resto da vida, mas nem uma vez, nem mesmo nos seus momentos de maior

revolta e arrependimento, lhe ocorrera a possibilidade de desposá-la.

Só, como ficara ultimamente, com a sensação de abandono que sentira ao ver-se

privado da companhia de Robin, talvez tivesse chegado á conclusão de que no

casamento com ela repousava a sua maior chance de felicidade. Mas, naquele momento,

dominado pelo espirito de contradição próprio de todo homem, parecia-lhe que a jovem

lhe armara um laço e rebelou-se contra essa idéia.

Não queria casar-se com Robin. Não queria casar-se com ninguém. Não

experimentava a mesma sensação de morna desesperança que dele se apoderara ante a

probabilidade de um casamento com Alison. O que sentiu então fora um profundo

desconsolo, a impressão de que uma sombra escura baixara sobre toda sua existência.

Presentemente era uma emoção mais viva: odio, ressentimento e uma ardente revolta

contra a idéia de ver-se forçado a desposar Robin; mas não sabia ele que há mais

esperança nas emoções quentes e cheias de vida, do que naquelas que nos provocam

simplesmente mal-estar e indiferença.

— Pedir-te em casamento? — balbuciou ele.

— Estavas disposto a oferecer essa reparação a Alison, sob a simples suspeita de

que ela se achava em teu quarto. Eu estava e fui encontrada lá — replicou Robin. — Acho

que sou tão respeitável quanto Alison.

— Mas, com os diabos! Não é uma questão de respeito, é...

— Tanto quanto Alison, tenho direito a essa reparação, Kay — interrompeu-o ela.

Um intenso rubor tingiu as faces de Hallam e seus olhos se encheram de nuvens.

— Então agiste deliberadamente, para alcançar isto? — perguntou-lhe furioso.

— É o que indicam todas as aparencias — admitiu Robin.

Mas se ele pudesse ter adivinhado os sentimentos de Robin, não teria concordado

com suas palavras.

— Um laço! E armado por ti, de quem nunca esperei semelhante coisa! — continuou

Kay. — Mas por que? Por que, Robin? Porque tenho dinheiro?

— Talvez por isso — replicou a jovem. — Ou talvez simplesmente porque dou tanta

importância á minha reputação quanto Alison á dela, embora não seja essa a tua opinião.

O rubor de Kay tornou-se mais acentuado. Compreendeu que ela tinha razão ao

dizer aquilo. Estivera disposto a fazer tudo pela reputação de Alison e nem sequer se

lembrara de que também Robin possuía uma reputação. Passou a mão pela cabeça num

gesto de desespero, sem coragem para encarar, nem Robin, nem a questão.

Page 79: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

CAPITULO VIII

Subitamente voltou-se, respirou profundamente e disse com certa firmeza:

— Perfeitamente. Queres te casar comigo, Robin?

Robin fitou-o com uma singular mistura de expressões no olhar.

— Obrigada. Aceito, Kay.

Houve um momento de silencio.

— Então está certo! — volveu ele. — Que devemos fazer agora?

— Nunca estive noiva antes, portanto não sei — replicou Robin friamente.

— Pois bem, creio que teremos, em primeiro lugar, de fazer uma publicação nos

jornais com o maior numero de retratos possivel; depois eu compro um anel para ti, levo-

te a diversos divertimentos, apresento-te a todo o mundo como a futura Mrs. Kay, e —

lembras-te de alguma coisa mais?

Sua atitude era simplesmente abominável. Dizia tudo isto do pior jeito que lhe era

possivel. Mas homem algum gosta de sentir que caíu numa armadilha.

— Estás me odiando, não estás? — perguntou ela com um vago sorriso.

Kay parecia-lhe de tal forma uma grande criança zangada!...

— Não compliques as coisas, fazendo perguntas que um homem não pôde

responder — retrucou Kay.

— Mas um homem já as respondeu — disse Robin. — Um homem não revela o que

pensa, somente por meio de palavras, bem sabes. Ha muitos outros meios de fazê-lo.

— Robin! — explodiu ele. — Custa-me acreditar que pudesses fazer isto! Não

acredito mesmo. Deve haver algum engano. Estás te rebaixando ao nivel de Mayhew

Tearle!

— De fato, é o que parece, não? — replicou Robin.

— Tu, que fizeste tanto barulho por um beijo, fazeres uma coisa destas! Oh! maldito

seja meu dinheiro! Quisera ter nascido sem um penny!

— Também eu o quisera, Kay — respondeu ela prontamente. — Só assim terias

feito alguma coisa.

— Feito alguma coisa? Que queres dizer?

— Nem mais nem menos que isto. Terias feito alguma coisa. Alguma coisa

aproveitável. Alguma coisa útil. Serias obrigado a fazê-lo, em lugar de desperdiçares teu

tempo com uma quantidade de borrões, que nunca se acabam.

Parou, quase sem fôlego.

Hallam olhava-a estupefato, excessivamente zangado, sua vaidade por demais

ferida, para lhe permitir uma replica imediata.

— Isto é o cumulo! — exclamou por fim, olhando á volta da sala como que clamando

ás paredes por justiça. — O cumulo! Se tens tão pouco respeito e reverencia pela arte a

esse ponto — céus! Que vida iremos levar! Naturalmente desejarias que eu fosse

negociante e só pensas em transformar minha pequena fortuna em milhões. Mas, graças

a Deus, minha alma não é tão material! E permite-me lembrar-te que se eu tivesse

nascido pobre a trama que fizeste contra mim teria muito pouca razão de ser.

Page 80: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Estava furioso e não ocultava esse fato. Sentia-se profundamente ferido, como todos

nós nos sentimos quando vemos que alguém tenta destruir uma de nossas mais caras

ilusões. E uma das mais caras ilusões de Kay era a de que um dia seria um grande pintor.

E Robin se referira aos seus quadros como "borrões"! E frisara bem que ele não

terminava coisa alguma!

Robin não estava exatamente zangada e replicou friamente:

— Pois isso seria uma grande sorte para ti. Estou vendo que o noivado é algo

deveras excitante — acrescentou, após uma pequena pausa.

— Oh, Robin, é uma coisa horrível! E foste tu que o tornaste assim. É claro que até

aqui sempre vivi casado á minha arte.

Robin não pôde reprimir a consideração de que Hallam não dera um marido muito

fiel. Nada disse, porém.

— Mas também está claro que sempre sonhei encontrar uma pequena, um dia... E

agora — isto! Tão odiosamente premeditado! E tu! Ser-me-ia mais fácil esperar

semelhante coisa de qualquer outra pessoa no mundo, mas não de ti! É o mesmo que

destruir todas as minhas ilusões, todos os meus ideais.

— Kay, porque não tentas ser meu noivo durante um ou dois dias, antes de tirares

conclusão de que sou... tão irremediavelmente odiosa? Talvez te acostumes comigo e

aches o compromisso suportavel.

— Tua intenção é prender-me a ele, não é — rugiu Hallam.

— Não — replicou ela inesperadamente. — Se continuares a pensar o mesmo que

pensas neste momento, estarás... livre.

Kay teve a impressão de que um vácuo escuro se abrira subitamente diante de si;

sua vista turvou-se; o soalho do atelier parecia fugir-lhe dos pés. Não sabia dizer se o que

sentia era alivio por aquela abençoada suspensão de sentença ou receio de... só Deus

sabe o que.

Passou-se um momento e ele ouviu a própria voz como se pertencesse a um outro

homem, dizendo:

— Não, por Júpiter! Foste tu que começaste o jogo, agora tens que continuá-lo. Não

estou para servir de peteca, desta maneira.

— Muito bem — respondeu ela calmamente.

— Tenho a certeza de que não terias feito isso si eu não fosse rico.

— Está claro que não — replicou Robin. — Não... não haveria motivo.

— Exatamente. Muito bem; podes ficar sossegada agora. Estamos noivos.

Entendes?

Robin sacudiu a cabeça em silencio.

— Portanto, é melhor usares isto como anel de compromisso — continuou ele —

tirando do dedo minimo um anel de ouro maciço.

Robin estendeu-lhe a mão esquerda e ele tentou colocar o anel em um dos dedos.

Não o conseguiu, pois este ultimo era largo demais.

— Meu Deus, como é pequenina tua mão! — exclamou ele involuntariamente. —

Comprarei o anel que esperavas ganhar — um enorme solitário que valha uma fortuna.

— Está bem. Mas este servirá enquanto não comprares o outro. Eu... enrolarei um

fio á volta do aro, até ficar do tamanho de meu dedo.

Page 81: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Kay deixou caír o anel na palma da pequenina mão, que ela lhe estendera, e, feito

isto, afastou-se para um lado da sala.

Robin ficou de pé onde estava, contemplando o anel de compromisso. Subitamente

sua vista escureceu. Correu para a porta, olhou uma vez para traz, mas, como Kay não se

mexesse, saíu.

No dia seguinte o trabalho de Robin no estúdio foi muito apertado e era tarde

quando voltou para casa. Fable, como de costume, foi buscá-la com seu carro, mas essa

tarde disse-lhe ao deixarem o estúdio:

— Antes de tudo, vou levar-te comigo para comeres alguma coisa.

— Sim, isso me agradaria, Andy. Vamos? Mas onde?

Cinco minutos depois, desciam diante de um pequenino hotel das redondezas. Mais

vinte minutos e estavam sentados, cada qual de um lado, a uma pequena mesa na "sala

de visitas" — por gentileza do hoteleiro — saboreando um jantar excelente, com não

menos excelente apetite.

Não trocaram uma só palavra até o meio da refeição. Só então Robin, percebendo

que os olhos de Fable estavam fitos em si, indagou:

— Por que estás olhando tanto para mim, Andy?

Este ultimo, meio encabulado, desviou o olhar.

— Estava pensando... — replicou.

— Em que?

— Em ti.

— Em mim, mas por que?

— Terei que contar-te?

— Não serias muito camarada si não o fizesses.

— Eu estava considerando uma coisa.

— Sim; mas que?

— Se não te zangarias comigo, caso eu te fizesse um pedido.

— Está claro que não! Algum dia já me zanguei contigo?

— Não. Mas agora és uma personagem tão importante...

— Eu? — exclamou ela, rindo-se. — É o maior absurdo que poderias dizer de mim.

— Posso fazer o pedido, então?

— Certamente que podes. Que é? — perguntou, sem sequer suspeitar do que se

tratava.

— Não creio que queiras casar comigo — disse ele com absoluta tranquilidade. —

Queres, Robin?

Robin, que ia levar o garfo á boca, estacou atonita.

— Não — acrescentou Fable com a mesma impassibilidade. — Vejo que não é esse

teu desejo. Pois bem, podes esbofetear-me, se te sentires insultada.

O garfo da jovem caíu ruidosamente sobre o prato.

— Andy! — murmurou ela. — Que... por que me pediste isso?

— Eu precisava arriscar a ser feliz, Robin — replicou ele com um sorriso quase

amargo.

— Mas é impossível que... que tu queiras mesmo casar comigo.

Page 82: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Impossível? Bem sabes que eu não iria mentir.

— Mas por que?

— Por que fiz uma coisa que até aqui jamais sonhei fazer. Enamorei-me loucamente

de ti.

— Queres dizer que me amas? — continuou Robin, como se lhe fosse impossível

crer no que ouvia.

— Sim. Mas, se quiseres, poderás esquecer o que te disse — replicou Fable.

Os lábios da jovem tremeram. Estendeu a mão para Fable com os olhos rasos de

agua.

— Ser-me-ia impossível esquecê-lo. Este é um dos momentos mais felizes de minha

vida. Só que...

Fable tomou entre as suas a mão delicada que ela lhe estendera.

— Sei o resto, querida. Não podes. Sempre esperei por isso. Mas não nos é possivel

perder as esperanças enquanto não temos certeza absoluta de que estas são inúteis.

— Mas, Andy, não te importas que eu não saiba falar direito e... tudo? Como podes

gostar de mim se não sei gramatica?

— Falas da maneira mais adorável possivel — disse ele ternamente.

Duas lagrimas brotaram-lhe finalmente dos olhos e ela sacudiu a cabeça para fazê-

las tombar.

— Não, Robin! Não quis fazer-te sofrer. Não fiques triste. Não tornarei mais a falar

nisso — suplicou ele.

— Andy — murmurou Robin. — Não te amo... desse modo e jamais o poderia,

porque...

— Há mais alguém?

Ela sacudiu a cabeça afirmativamente. Fable imitou-a.

— Sim, sempre tive essa impressão, Robin — continuou ele.

— Mas, Andy, eu queria saber uma coisa. Queria saber por que motivo... tu me

amas. Não desejo brincar contigo... mas me seria um grande consolo sabê-lo.

— As razões são tão claras, meu bem. Toda a tua meiguice, sinceridade e beleza —

explicou ternamente.

— Oh, a beleza, não, Andy! — exclamou ela confusa: — Certamente não foi porque

sou bonita que te enamoraste de mim.

Fable inclinou a cabeça.

— Sou... sou um homem, Robin — volveu ele — a beleza é uma coisa louvável e

encantadora, querida. Não deves julgá-la tão mal só porque ela te armou alguns laços e

porque os homens se prendem em suas teias. Não sejas tão cruel para com tua beleza,

Robin; ela não se resume nos teus encantos fisicos.

— Então não foi só por minha beleza que ficaste gostando de mim, Andy? —

perguntou ela ansiosa.

— Está claro que não. Julgas então que esperei todos estes anos (já sou um

verdadeiro Mathusalem, bem sabes) para tornar-me escravo de uma cara bonita? Pensas

então que nunca encontrei na vida outros rostos tentadores?

Robin riu-se leve e nervosamente.

Page 83: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— É natural. Minha beleza tem-me causado tantos aborrecimentos que começo a

pensar que sou eu a única pequena bonita do mundo. Agrada-me ser bonita. Só que ás

vezes isso nos provoca tantos desgostos...

— Calculo — replicou o rapaz — mas és infinitamente mais que uma simples

"pequena bonita". Não posso dizer bem o que és porque me faltam palavras. Para mim,

entretanto, és a soma total de todas as virtudes. És a encarnação do sonho e do ideal. O

mundo tornou-se um lugar melhor porque vives nele. Tua companhia e a doçura de tua

amizade são a maior ventura que pôde ser concedida a um ser humano.

Com estas palavras sorriu, apertou por um momento a mão de Robin e depois

soltou-a.

— Sou tudo isso na tua opinião? — perguntou ela com um fio de voz.

— Tudo isso e muitas outras coisas.

— Apesar do meu jeito de conversar e... e... de papai?

— Oh, minha querida, essas coisas não têm importância! Nada podem contra ti. Não

te deixes ferir tão profundamente por elas.

Talvez Robin tivesse motivos para considerar que, pudessem ou não contra si, isso

bem que tinha importância quando se tratava de sua felicidade.

— Andy — disse ela bruscamente. — Eu e Kay ficamos noivos... ontem. Eu já devia

ter-te contado.

Fable deu um suspiro e ficou mudo por um instante.

— Não faz mal — replicou. — Eu sabia que estava fora de concorrência. Sinto-me

profundamente alegre.

Mas o pequenino rosto fatigado de Robin não refletiu a alegria de Fable. Este olhou-

a admirado; ao falar, havia uma nota de tremor em sua voz.

— Não te sentes feliz, Robin? — perguntou.

Subitamente a jovem rompeu em pranto, ocultando o rosto nas mãos. Fable rodeou

a mesa e foi ajoelhar-se ao seu lado. Carinhosamente passou-lhe um braço pelos

ombros, procurando acalmá-la.

— Por favor não chores, querida — implorou ele. — Não calculas como sinto ter-te

entristecido.

— Sinto-me feliz por saber que me amas — balbuciou Robin entre soluços. — E... é

um consolo tão grande ser... ser amada por um homem como tu...

Fablé sorriu levemente.

— Pois se meu amor pode trazer-te algum consolo, lembra-te sempre dele — disse

este ultimo delicadamente. — Talvez Kay não se importe.

— O amor de Kay não... seria melhor que o teu... talvez — murmurou Robin.

Se o tom de suas palavras era infantil, nem por isso deixava de ser compreensivel.

Havia uma revelação naquele "seria" tão condicional e naquele "talvez" vacilante e

pronunciado quase em surdina.

Fable, de joelhos, meditava. Kay não a amava então? E ela? Sim, suas palavras

demonstravam-no bem. E estavam noivos! Que acontecera? Acaso Kay se sentira nessa

obrigação diante da historia que estava sendo comentada? Com esses pensamentos,

pôs-se de pé, uma expressão profundamente desgostosa no olhar.

— Robin, sabes o que estás fazendo? — perguntou ele de súbito.

Page 84: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

A jovem levantou a cabeça e fitou nele os grandes olhos umidos.

— Sim — replicou calmamente. — Mas... mas ele não sabe.

Quando chegaram á porta do prédio de apartamentos, Hallam, do atelier, ouviu o

rumor do auto que parava. Desceu as escadas com uma inexplicável irritação e encontrou

Robin no momento em que esta se despedia de Fable, na porta.

— Chegaste muito tarde — observou ele.

Robin explicou. O rosto de Hallam tornou-se sombrio.

— Parabéns, meu velho! — disse Fable. — Robin contou-me a novidade.

— Obrigado! Muito bem. Boa-noite — respondeu Kay apressadamente.

Fable voltou ao seu auto.

— Acho que te esqueceste de que estás comprometida, não? — perguntou ele a

Robin.

— Não — replicou ela sacudindo a cabeça.

— Uma moça comprometida não anda em companhia de outros homens; é só. Boa-

noite.

Deixou-a bruscamente no hall e subiu a escada. Robin voltou-se e desceu.

No dia seguinte á tarde, ele foi buscar Robin no estúdio e vieram para casa na sua

pequena baratinha7, quase mudos durante todo o trajeto.

— De hoje em diante, todos os dias, vou levar-te e trazer-te do estúdio — anunciou

ele no hall, ao se despedirem.

— Obrigada, Kay — replicou ela um tanto intrigada.

Robin não podia compreender bem, mas Hallam cumpriu sua promessa e levava-a

todas as manhãs para o estúdio, indo buscá-la, igualmente, todas as tardes. Ás vezes ele

parecia o antigo Kay que conhecera, alegre e bem humorado; quase feliz em sua

companhia; estes, porém, eram raros momentos e em geral ele se mostrava enfadado e

mudo. O que mais intrigava a Robin eram os ares de "amo e senhor", que ele adotava

para consigo. Como seu noivo, tinha um certo privilegio para entrar e saír do estúdio e,

assim, não a perdia de vista. Interrogava-a de minuto em minuto sobre os homens da

companhia.

— Shale por exemplo — dizia ele ao voltarem para casa, uma tarde. — De que

maneira te trata ele?

— Muito bem — replicou Robin. — Mr. Shale é muito agradável. Gosto muito dele.

— Ah, sim? E que há de agradável nele? — indagou Kay com uma certa

exasperação.

— Sua própria pessoa. Seu carater e tudo mais.

— É esse tipo de homem que te agrada? Tenho a impressão de que ele deve ser

toleravelmente vulgar.

— Não creio que estejas certo, qualificando-o de vulgar — argumentou a jovem. —

Um ente vulgar não é capaz de fazer filmes como os dele.

— Portanto, ele é o teu tipo!

— Disse apenas que gosto dele.

7 Nome antigo de certo tipo de automóvel

Page 85: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— E o admiras — acrescentou Kay, mais exasperado que nunca.

— Só acho dignas de admiração as pessoas capazes de fazer algo que a maioria

não pode fazer.

Hallam ficou calado por um momento. Depois exclamou com uma certa

impetuosidade:

— Esta mania das mulheres de quererem seguir carreiras é abominável!

E o resto do trajeto foi feito em silencio. Uma outra noite, ele interrogou-a sobre o

herói. Depois sobre Cartairs.

— Suponho que aquele tipo almofadinha é o que consideras um homem bonito,

não?

— Todo mundo acha Mr. Carstairs bonito, menos eu — respondeu Robin. — Não

acho que ele seja nem bonito nem simpatico; não me simpatizo nem um pouquinho com

ele.

Espirito de contradição ou o que quer que fosse, o caso é que Hallam incontinenti

tomou a si a defesa de Carstairs. Provavelmente nem o próprio Kay sabia o motivo disso,

mas, nem bem Robin declarou sua antipatia pelo rapaz, Hallam começou a descobrir as

qualidades do jovem ator.

— Não creio que ele seja ruim — disse. — Qual é o defeito que achas nele?

— É, como disseste, um presumido almofadinha — replicou Robin.

— És excessivamente severa em teus julgamentos — resmungou Hallam.

Robin olhou-o, novamente intrigada. Não lhe era possivel compreender o que se

passava com Kay. Havia, incontestavelmente, uma certa irritação em suas palavras.

Acaso seria o seu compromisso consigo que o tornava assim irritavel? Mas, nesse caso,

por que insistia ele em estar sempre ao seu lado? Não lhe pedira que desse atenção

alguma a ela. Nada lhe pedira. Propusera mesmo devolver-lhe a palavra empenhada e

desmanchar o noivado, mas ele recusara sua proposta.

— Enviei hoje, aos jornais, a noticia do nosso noivado — disse ele de súbito,

quebrando um longo silencio. — Agora talvez estejas satisfeita — acrescentou com tímida

ironia.

Ultimamente, porém, Kay empregava com freqüência esse tom maldoso e

desagradável. Robin respondeu-lhe com um movimento de cabeça, pois sentiu que não

podia confiar em sua voz. Kay sabia ferir inexprimivelmente sua sensibilidade.

No dia imediato, tendo Robin terminado seu trabalho muito mais cedo que de

costume, era apenas hora do lunch ao separar-se de Kay no hall do prédio de Chelsea.

Desceu ao apartamento de Mrs. Quest e Hallam subiu ao seu. Ao entrar no atelier, Kay foi

surpreendido com a presença de seu pai que ali o esperava. O rapaz levou um choque

considerável, pois ainda não comunicara a Mr. Hallam os importantes e recentes

acontecimentos de sua vida; sentiu-se culpado, porque até ali não ocultara ao pai um só

de seus atos. Sempre foram bons amigos e embora Mr. Hallam deixasse a firma Hallam &

Hallam nas mãos de um gerente para iniciar uma vida pacata e agradável nos campos

verdes de Hertfordshire, Kay continuava a ser o mesmo filho solicito e afetuoso.

O velho Hallam muito se contrariara com os boatos que chegaram até sua tranquila

casa de campo e que ligavam o nome de Kay ao de uma jovem artista cinematografica.

Achou, todavia, que não devia dar credito a tais rumores. Pouco tempo depois, porém, já

Page 86: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

não mais foram simples boatos que lhe vieram perturbar o sossego, mas sim

desagradáveis e maldosos comentarios feitos por um jornal. Foi então que, vendo

abalada sua relutante convicção, resolveu investigar pessoalmente os acontecimentos.

Fora esse o motivo que o levara a Chelsea.

Entre pai e filho o encontro foi afetuoso, mas um tanto constrangente devido ás

circunstancias.

Kay ocupou-se na preparação do lunch e, em quanto o tomavam, o assunto versou

sobre coisas triviais.

Ao deixarem a mesa formou-se entre eles um acentuado silencio que novamente os

deixou constrangidos.

Mr. Hallam, porém, foi direito ao que o trouxera ali.

— Não me contes nada contra tua vontade, meu filho, mas dá-me simplesmente a

certeza de que tudo te corre bem e... Até hoje nunca mentiste a teu pai, Kay.

Mas Kay quase nada respondeu. Seu pai mostrou-lhe então o paragrafo de jornal

que o trouxera á cidade.

Kay franziu o sobrolho. Procurou os jornais da manhã e, igualmente, chamou a

atenção de Mr. Hallam para um trecho — a participação de seu noivado com Robin. Mr.

Hallam sentiu-se terrivelmente emocionado mas não deu mostras disso.

— A mesma moça? — perguntou.

Kay sacudiu a cabeça afirmativamente.

— E estás comprometido com ela?

Novamente Kay respondeu com um movimento de cabeça.

— Segundo o que me disseram ela é quase uma "estrela"?

— Todo o mundo afirma que será uma grande artista, mais tarde — replicou o rapaz.

— E te sentes feliz?

Kay hesitou.

— Oh, não te preocupes comigo, papai.

Kay, porém, desviava os olhos do rosto do pai ao falar. Mr. Hallam interrogou-o de

todos os jeitos possíveis, mas nenhuma informação satisfatoria conseguiu arrancar dos

lábios de Kay. Compreendeu que as coisas estavam longe de correr bem. Levantou-se

por fim e disse:

— Agradar-me-ia... conhecê-la.

— Perfeitamente — replicou o jovem. — Pedir-lhe-ei que venha cá em cima. Ela

mora lá em baixo com a minha zeladora.

— Deixa-me descer para vê-la — pediu o velho rapidamente.

De novo Kay hesitou.

— Muito bem. Mostrar-te-ei o caminho.

Um ao lado do outro, desceram as escadas. Em frente a porta ao apartamento de

Mrs. Quest, Mr. Hallam voltou-se para o filho e lhe disse:

— Deixa-me aqui. Prefiro entrar só...

Kay obedeceu.

Mr. Haliam bateu á porta. A própria Robin veio abri-la. Estacou diante do velho, os

grandes olhos arregalados de espanto.

— É... é o pai de Kay? — perguntou ela vacilante, com um certo tremor na voz.

Page 87: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Mr. Hallam replicou que sim.

— Entre, por favor — volveu Robin delicadamente.

Levou o visitante á sala de Mrs. Quest. O mobiliário ali consistia num antiquadio

terno de madeira e palhinha, relógios suiços, toalhas de crochet e lustres enfeitados de

papel de seda recortado. Depois de fazer com que Mr. Hallam entrasse, Robin fechou a

porta e ambos se olharam por um momento.

— Com que, então, estou falando com Miss Robinetta Golden? — indagou ele,

quebrando o silencio.

A jovem sacudiu a cabeça afirmativamente.

— E, naturalmente, eu soube quem o senhor era assim que o vi. Kay se parece tanto

consigo... Veio procurar-me por causa dele?

— Sim.

— Por estarmos noivos?

— Sim, exatamente.

— E o senhor está... está zangado?

No tom de Robin havia algo desafiante; aos olhos de Mr. Hallam a jovem parecia tão

pequena e leve em seu simples vestido de linho azul, tão seria e tão encantadora que era

impossível descobrir nela o menor traço de aventureira. Que esperava eu encontrar?

perguntou Mr. Hallam aos seus botões; na verdade não o sabia. Estava certo, porém, de

que Robin fora para si a maior das surpresas.

— Sim — disse ele por fim. — Creio que estou zangado.

— Sinto-o de todo o coração. Não quer sentar-se para conversarmos?

Mr. Hallam acommodou-se na grande cadeira que Robin lhe indicara.

— Então? — disse ela, sentando-se diante do velho.

Este ultimo inclinou-se um pouco para a moça, os olhos bondosos, cercados por

uma complicada moldura de pequeninas rugas, examinando-a curiosamente.

— É melhor ser franco, não acha? — propôs ele.

— Está claro que sim.

— Perfeitamente. Ouvi ultimamente alguns... alguns boatos, Miss Golden.

— O senhor já esteve com Kay? — perguntou ela.

— Sim. Mas ele não quis dizer-me mais nada, além do fato de estar... comprometido

consigo. Ele não me pareceu muito feliz, Miss Golden.

Robin corou sensivelmente.

— O senhor acreditou em tudo que o jornal disse? — inquiriu.

Mr. Hallam hesitou.

— Não sei em que devo acreditar. Kay é jovem e os jovens hão de ser malucos até a

consumação dos séculos.

— Ouviu dizer alguma coisa de meu pai? — tornou Robin.

— Sim.

— Pois bem, isso é verdade.

O velho teve que reconhecer a honestidade dessa confissão, mas esse ponto ainda

lhe era mais difficil de encarar.

— Kay pediu-a em casamento por livre e espontânea vontade? — indagou

abruptamente.

Page 88: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Robin meneou a cabeça.

— Não.

— Foi a senhorita quem fez a proposta então? Ou quem sabe fê-lo ver que esse era

seu dever?

— Sim.

Mr. Hallam pôs-se de pé, indignado e absurdamente parecido com Kay em sua

indignação.

— Em outros termos: a senhorita armou-lhe um laço, não foi?

Parecia-lhe que só então começava a compreender.

— Pois bem. O senhor acertou. Eu armei um laço para prender seu filho.

— Eu já devia ter compreendido antes! É um dos velhos truques do mundo —

exclamou tirando do bolso um livro de cheques e uma caneta-tinteiro. — Qual é o seu

preço? — indagou com bastante brutalidade.

— Não... não o compreendo bem — retorquiu Robin com o coração palpitante.

— Acha que obterá maiores vantagens, casando-se com meu filho?

— Oh! — exclamou Robin, levantando-se também, olhar aceso, rosto escarlate. —

Oh, o senhor julgou que poderia... comprar-me! Pois bem, fique sabendo que não há

necessidade de se aborrecer. Não pensei que um casamento comigo pudesse prejudicar

tanto a Kay. Já agora, porém, não me casaria com ele nem que fosse o ultimo homem na

terra e ganhasse um milhão por minuto!

Mr. Hallam tinha idade e experiência suficientes para saber que nos devemos

surpreender ante alguma coisa sabida dos lábios de um homem ou de uma mulher,

contudo as palavras de Robin o encheram de indescritivel surpresa.

Julgara ter compreendido a situação. A própria Robin, praticamente, confessara ter

armado um laço a Kay, obrigando-o a pedi-la em casamento e agora lhe afirmava que não

se casaria com ele nem que fosse o único homem na terra e ganhasse um milhão por

minuto. E ia continuar a falar. De pé diante dele, insultada e altiva, os olhos escuros

faiscantes de indignação, despejava ela uma verdadeira torrente de palavras.

— O senhor parece pensar que não há nada acima do dinheiro — dizia. — Parece

julgar que ele é o máximo bem da vida. Parece julgar que esses vis cheques podem fazer

tudo, conseguir tudo, comprar tudo e está redondamente enganado. Julga que seu único

dever para com seu filho é dar-lhe dinheiro a rodo, transformando-o num perdulário.

Acredita cumprir seu dever de pai, mas permita-me dizer-lhe que não faz mais que

concorrer para a desgraça de Kay. Ele é um rapaz insinuante, bom, direito e inteligente;

tem um cérebro e faria uso dele se o senhor lhe tivesse dado uma chance. Mas o senhor

não lhe deu. Só lhe soube dar dinheiro, dinheiro á farta e em quantidade suficiente para

pôr a perder qualquer homem, quanto mais um moço inexperiente como Kay.

Nesse ponto fez uma pausa, suspirou longamente e fixou o velho com um olhar

hostil.

Mr. Hallam continuava com o livro de cheques aberto nas mãos, francamente atonito

com a explosão da jovem e, embora não o confessasse, como que idiotizado ante tanta

eloqüência.

— E agora o senhor me procura, julgando poder comprar-me com o seu dinheiro —

volveu Robin. — Chega a ser engraçado! Verdadeiramente engraçado que um velho

Page 89: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

como o senhor ainda acredite na onipotencia do dinheiro. Vendo-o, qualquer um julgaria

que o tempo e a experiência lhe houvessem ensinado coisa melhor...

Fez uma nova pausa para tomar fôlego.

— Miss Golden — atalhou Mr. Hallam. — Francamente a senhorita... não está sendo

gentil...

— Gentil? — repetiu ela com profundo desdém. — Sei onde nos pode levar o

dinheiro. Foi somente a sua falta que levou papai á prisão. Falta dessa coisa sórdida. E

por isso está ele preso. Foi para conseguir dinheiro que o velho Tearle armou uma cilada

a Kay, colocando-o em terriveis embaraços. E é somente o dinheiro que está fazendo de

Kay um estroina, um perdulário, um egoísta. Dinheiro? É uma coisa muito boa, quando

em seu devido lugar, mas não no bolso de um rapazote que não sabe sequer o que

significa trabalho...

Parou com a respiração ofegante. Mr. Hallam contemplava-a, tendo no olhar uma

expressão de novo interesse. Lentamente guardou o livro de cheques.

— Creio que eu não havia compreendido bem — disse ele por fim, em tom

completamente diverso.

Robin afrouxou sua fúria e ao falar não mais havia exaltação em sua voz.

— Creio que sim -— retorquiu ela. — Kay também nunca pôde compreender.

— Acha que não lhe seria muito dificil dar-me uma explicação? — indagou o velho.

Robin voltou-se mais uma vez para ele com uma interrogação no olhar.

— Suponhamos — proseguiu Mr. Hallam — que eu lhe prometesse varrer de meu

cérebro tudo que porventura tenha pensado quando aqui entrei. Suponhamos que eu

confessasse agora diante de si, sem a mínima reserva, que a julguei erroneamente. Por

sua vez faria uma tentativa de esclarecer-me?

— Isto chega a parecer um acordo — replicou a jovem. — Mas não acredito que dê

resultado.

— E se, para começar, eu lhe pedisse perdão por ter-lhe oferecido dinheiro da

maneira que o fiz, há pouco?

A franqueza das palavras do velho conquistou-a, como aliás era de esperar.

— Para mim já seria uma grande coisa — retorquiu ela.

— E aceitaria minhas desculpas?

— Sim.

— Nesse caso proponho selar o tratado de paz com um aperto de mão.

E estendeu-lhe a mão sorrindo. O sorriso de Kay! Apenas revelando um pouco mais

de experiência.

— Agora, Miss Golden, queria que me dissesse o que se passa em Kay? Qual o seu

mal?

— Simplesmente o que já lhe expliquei: dinheiro em demasia.

— E isso faz dele um... perdulário, um egoista?

— Pelo menos é o que me parece.

Os olhos de Robin fitavam-no destemidos e cheios de sinceridade. Mr. Hallam fez

uma pausa antes de tornar a falar.

— Ele sempre me escreve entusiasmado com seus esboços; os quadros e todos os

trabalhos que tenciona fazer...

Page 90: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— ...e nunca faz — terminou Robin.

— Eu ignorava isso.

— Oh, ele pensa que trabalha. Está certo de que é um pintor admirável e ainda virá

a ser o idolo do mundo, mas é pura fantasia. E não sou só eu que sei disso; toda gente o

sabe, mas Kay proporciona aos amigos que o rodeiam tantos divertimentos, que estes

ainda mais alimentam suas ilusões. Fico revoltada quando vejo a maneira por que o

lisonjeiam e o animam a continuar essa vida de boemio, só porque ele é rico e pôde lhes

dar festas e levá-los a passeio em automóveis e iates...

— E é essa a vida que ele leva?

— Quase sempre. Oh, Kay em si não tem nenhum defeito. De todos os homens que

conheço é o melhor, o mais digno... o mais querido... — (Abaixou a voz) — A única coisa

que falta é mudar de vida. E eu pensei que, se ficasse noiva dele, por uns tempos,

talvez... pudesse conseguir isso.

— E conseguindo-o?...

— Oh, não sei. Provavelmente foi uma idéia absurda.

Havia uma nota de nervosismo em suas palavras.

— Quer explicar-me que situação provocou este compromisso? Que há de verdade

no que andam dizendo de si e de Kay?

— Ele não quis contar-lhe?

— Para um homem é sempre dificil dizer certas coisas.

— O senhor e Kay não são bons amigos?

— Está claro que sim. Sempre o fomos.

— Então arriscarei a dar-lhe a explicação.

Com toda a simplicidade, Robin contou a Mr. Hallam toda a historia de sua amizade

com Kay, desde o momento em que seus olhos se encontraram, pela primeira vez, em

meio de seu bailado, na feira; desde esse instante até o presente. Nada ocultou. Expôs-

lhe o caso com todos os pormenores. Sua historia, inevitavelmente, incluía Alison e

Mahyew Tearle, pois estes, de certo modo, estavam ligados a ela. Mas o homem a quem

falava era o pai de Kay. E, assim, contou-lhe tudo, certa de que Mr. Hallam tomaria

aquela modesta saleta por um confessionário.

— Quando fiz com que Tearle me encontrasse no quarto de Kay em lugar de Alison,

meu intuito foi, unicamente, livrar Kay do compromisso que tomara com o velho Tearle.

Kay talvez ignore isto, mas eu sei que Alison se agarraria com unhas e dentes a essa

oportunidade. Foi somente isso que me levou a fazer o que fiz. É indiferente que o senhor

acredite, ou não, no que lhe digo — acrescentou ela quase sem fôlego.

— Acredito — disse o velho — E depois? Que a levou-a...?

— Forçar seu filho a comprometer-se comigo? Fiquei revoltada com ele, perdi a

cabeça. Ele estava disposto a se casar com Alison e a situação dela não era tão grave

quanto a minha. Alison não tem necessidade de trabalhar para viver. Não tem uma

carreira por zelar. Não tem um pai na prisão. Mas Kay estava mais que disposto a casar-

se com ela. E sabe o senhor por que? Porque Alison pertence á mesma classe social que

ele e eu não. Ela sabe conversar segundo as regras da gramatica e eu não sei nada

disso. Kay acha que não deve a mim o mesmo respeito que a ela, porque Alison é sua

igual e eu não o sou. Isso me deixou revoltada. E revoltou-me também a maneira pela

Page 91: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

qual ele se preocupou consigo mesmo, pelo que acontecera. Como sofria e passava

noites em claro, pensando. Por isso obriguei-o a pedir-me em casamento. Nunca, porém,

tive intenção de desposá-lo. E não me casarei com ele. Desejo um homem, para marido.

A nota de desdém das palavras de Robin fez subir o sangue ao rosto de Mr. Hallam.

A jovem estendeu a mão e tocou a dele.

— Oh, não tive intenção... de... ofendê-lo... ou ser... indelicada. Receio ter sido

terrivelmente indelicada consigo...

— Não; apenas franca. Se a verdade me insultasse eu não deveria concordar que

ela fosse verdade, não acha? — (Sorriu para Robin, mas seus olhos tinham uma

expressão sisuda). — E se suas palavras me ofenderam não foi sua a culpa —

acrescentou lentamente.

Fez-se um pequeno silencio.

— Nunca tencionei levar avante este compromisso com Kay. Julguei que me fosse

possivel dar-lhe uma lição. Agora, porém, reconheço que foi um capricho louco. Deixá-lo-

ei... quebrar... o compromisso... e...

— E se eu lhe pedisse para não fazer semelhante coisa? — perguntou Mr. Hallam,

de chofre. — Pelo menos até que eu tenha tido tempo de refletir novamente sobre o caso.

Deixaria que as coisas continuassem como estão?

Robin arregalou os olhos.

— Mas o senhor... não pode desejar que eu continue... comprometida com Kay,

disse ela admirada.

— Não estou bem certo — replicou ele.

Robin ficou um momento em silencio.

— O senhor já considerou que meu pai está preso? Cumprindo pena por crime de

roubo? Que ele não passa de um ladrão vulgar? — perguntou a jovem bruscamente.

— Só o que penso é que a filha de seu pai é impecavelmente digna, corajosa, possui

a sabedoria que ás vezes se encontra nos lábios das crianças e que deu, hoje, a um

homem muito velho, uma dificilima lição — respondeu Mr. Hallam.

A fisionomia de Robin enterneceu-se.

— E o senhor quer que as coisas continuem como estão? — indagou com voz pouco

firme.

— Por algum tempo, pelo menos. Oh, bem sei que não é muito digno fazer uso de si

para esse fim. Mas é o amor que dedico a meu filho que me torna assim egoista.

— Compreendo bem isso — replicou Robin, quase em surdina.

Mr. Hallam segurou-a levemente pelo queixo, ergueu-lhe o rosto e fitou-a nos olhos.

— Conte-me o resto; também ama a Kay?

Os grandes olhos de Robin encheram-se de lagrimas.

— Ah, essa é a minha maior desgraça — responderam os lábios trêmulos da jovem.

— Amo-o tão intensamente que me seria impossível amá-lo mais.

— Nem menos?

Robin sacudiu a cabeça e duas grossas lagrimas tombaram.

— Então fará o que lhe peço? — continuou o velho.

— Farei com isso algum bem?

— Acredito que sim. Julgo-a capaz de fazê-lo mudar de vida.

Page 92: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— O senhor bem sabe que ele... não me ama — disse Robin com certa amargura.

Mr. Hallam não pôde disfarçar a comoção que dele se apoderara.

— Pois bem — acrescentou ela, rapidamente — eu o farei.

No mesmo instante teve uma curiosa sensação de que havia uma certa fatalidade

em suas palavras.

Do apartamento de Mrs. Quest, Mr. Hallam voltou ao de Kay. Este ultimo não pôde

ocultar uma certa surpresa ante o entusiasmo que Robin provocara em seu pai; Mr.

Hallam queria que Robin fosse a Hertfordshire e insistiu com Kay para que prometesse

levá-la. Kay prometeu e a conversa se desviou para o trabalho do rapaz. Juntos,

contemplaram os esboços inacabados que decoravam as paredes do atelier.

Enquanto isto, o velho Hallam dizia consigo mesmo:

— Ela tem razão. Aquela criança tem toda a razão. O rapaz jamais conseguirá coisa

alguma neste ramo.

E quando pediu ao filho que lhe mostrasse alguns trabalhos menos crus, Kay deu

mostras de impaciência e disse em tom quase agressivo:

— Tu sabes, papai, não se pode pintar um quadro como um decorador pinta uma

casa. Temos que aguardar a inspiração.

As palavras de Robin sobre seu trabalho ainda estavam vivas em sua lembrança.

Quando seu pai se despediu algum tempo mais tarde, ele disse, hesitante:

— Estou muito satisfeito por ver que aprovaste meu noivado com Robin... E sinto-me

feliz, bem sabes. Não deves pensar que não... Ser-nos-á muito agradável ir ver-te em

Hertfordshire. Assim poderás conhecê-la melhor...

Mr. Hallam concordou, mas seus olhos não se encontraram ao se despedirem.

Mr. Hallam sentia-se consideravelmente perturbado. O dia fora cheio de choques

para ele.

Robin tinha razão. Comprehedeu isto com grande tristeza. O atual modo de vida de

Kay era inútil e prejudicial. E ele já estava com vinte e cinco anos. Mr. Hallam lembrou-se

disso com admiração. Era-lhe dificil acreditar que seu filho não mais era uma criança. Aos

vinte e cinco anos, ele próprio já trabalhava para tornar-se sócio da grande empresa

metalurgica. Alimentara sempre uma esperança de que Kay também entrasse no negocio.

Este ultimo, porém, manifestara-se contra essa idéia. E agora? Robin tinha razão; o que

dissera era terrivelmente exato. Essa verdade revelou-se amargamente ao velho Hallam.

Mas Robin tivera razão num outro ponto, igualmente. Kay era “o melhor e o mais

digno”. A lembrança dessa frase da jovem trouxe consigo um estranho conforto á alma

amargurada de Mr. Hallam. Kay lambem mostrava os primeiros sintomas de inquietação e

descontentamento com o estado de coisas — não inteiramente devido, pensou o velho

Hallam, ao compromisso que se vira forçado a tomar com Robin. Isto era um bom sinal.

Que deveria fazer? Ou seria melhor que deixasse o caso nas mãos daquele pedacinho de

mulher de olhos e cabelos negros, que parecia ter uma visão tão clara das coisas?

Como, porém, não se aborrecer? Como sentir-se feliz, vendo Kay em vias de se

casar com a filha de um gatuno?

— Não posso estar contente — dizia ele com seus botões. — Ela possui uma alma

angelical mas eu não posso sentir-me feliz.

Page 93: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Consolou-se a si próprio com a reflexão de que eles ainda não estavam casados e

que muita coisa poderia dar-se entre o momento presente e o dia do casamento...

Dentro de quinze dias, Robin ia obter uma semana de folga no estúdio, durante a

filmagem das cenas em que não figurava; portanto, combinou com Kay irem passar esses

dias de descanso com seu pai.

Entrementes, Kay raramente conversava com ela. Continuava a conduzi-la e

reconduzi-la diariamente do estúdio; rodeava-a durante as horas de trabalho, esperando

que a jovem lhe desse um momento de atenção. Mas Robin estava muito ocupada, muito

absorvida com seu papel, e o curioso “make-up” amarelo palido que os artistas

cinematograficos usam era algo a que Hallam não se podia habituar; Robin sempre lhe

parecera uma estranha sob aquela mascara de pomadas e pinturas. Descobriu também

que estava se tornando conhecido como “o noivo de Miss Golden”, alcunha que lhe dava

a sensação de ser um individuo sem personalidade, nem valor, um inútil, um

insignificante, um simples zero, na ordem das coisas.

Começou a odiar o cinema que tomava todo o tempo e a atenção de sua noiva e

descobriu que esperava, com considerável prazer, pela semana que iriam passar no

campo com seu pai, a sós e em paz; chegava quase a ansiar pela aproximação desse

dia. Mas, no estado de espirito incerto e extravagante que ás vezes nos domina, levando-

nos á contradição, Kay nada contou a Robin com respeito aos seus sentimentos e tentou

manter sua atitude de fria indiferença. A verdade é que sua sensação de

descontentamento era contra si próprio. Começava a sentir uma vaga impressão de que o

que Robin dissera dele era verdade; estava, porém, tão desabituado a tais sentimentos

que os atribuia a tudo, a todos, e a Robin desde que fora ela quem mais os provocara.

Esta ultima procurava, unicamente, cumprir o pacto que fizera com Mr. Hallam. Não

era bastante que “continuasse noiva de Kay”; precisava, aos poucos, fazê-lo mudar de

vida. Portanto, mostrava-se menos fria, menos critica, sentindo que talvez tivesse sido

demasiadamente áspera com ele, que metodos mais delicados fossem talvez mais

eficazes. Deu menos importância ás suas impertinencias e descortesias quase infantis —-

pois ele continuava a alimentar o ressentimento de ter sido forçado a assumir aquele

compromisso — e, quando lhe dava alguma resposta, fazia-o em tom menos cortante,

começando, talvez, a compreender que ele atravessava um pedaço bem dificil.

Robin deliberou transformar a visita ao pai de Kay num verdadeiro sucesso.

Encarando a situação de frente com seus corajosos olhos de criança, procurou os meios

com os quais poderia obter esse resultado e chegou á seguinte conclusão:

— Aborreço-o e repreendo-o por suas faltas sempre que posso, mas que direi das

minhas? Não terei alguma que seja necessário combater? Certamente que sim. Faltas

que, provavelmente, provocam o desdém de Kay e de seu pai. E uma delas é o meu

modo de falar. Mr. Hallam não há de gostar da minha linguagem defeituosa... Tenho que

providenciar sobre isso com a máxima urgência...

Considerou, por um minuto, o que deveria fazer e, finalmente, decidiu recorrer a

Fable.

Está claro que ele é o único capaz de auxiliar-me; palavras, gramatica e todas essas

coisas fazem parte de sua profissão, pensou.

Page 94: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

E, assim, foi procurar Fable, expondo-lhe todas as suas dificuldades. Este ultimo

ouviu-a com simpatia; compreendeu-a e sentiu-se comovido por ver que a jovem se dirigia

a ele nos momentos de necessidade. Com toda a seriedade e numa atitude animadora,

deu-lhe informações com respeito aos livros que lhe seriam úteis; deu-lhe também

algumas instruções preliminares e delicadamente corrigia sua linguagem todas as vezes

que se tornava necessário. Robin estudava entusiasmada e foi tal sua força de vontade

que fez os mais surpreendentes progressos dentro do curto período de quinze dias.

— E meus modos, Andy? — perguntou ela. — São muito inconvenientes, ou achas

que podem servir?

Era tão adorável a seriedade com que falava, que Fable teve impetos de dar-lhe um

abraço.

— Dar-te-ei um valioso conselho si me prometeres segui-lo á risca — disse ele.

E sorriu aquele sorriso amigo e irresistível que enchera sempre de ardor o coração

de Robin. Sorriso de tão perfeita e sincera amizade que ás vezes a fazia esquecer que

Fable a amava. Robin costumava pensar, freqüentemente, que uma das coisas mais

admiráveis em Fable, era a maneira com que jamais permitia que seu amor viesse alterar

qualquer coisa entre eles.

— Prometo — respondeu ela. — Qual é o conselho?

— Apenas isto: sê unicamente aquilo que és; sempre.

— Oh! — exclamou surpreendida. — Mas será suficiente?

— Se isso não for suficiente para alguém, então quererá dizer que... alguém... não é

suficiente para ti. Prometeste; lembra-te.

Riram-se ambos.

— Não me esquecerei — garantiu Robin.

Sua visita ao pai de Kay foi, de fato, um sucesso; Robin estava mais adoravel e

meiga que nunca e logo de principio conseguiu conquistar o coração de Mr. Hallam,

instalando-se definitivamente ali, no ninho que seus encantos e sua naturalidade

construíram para si. Alcançou uma vitoria muito maior do que lhe parecia, pois fez com

que os lamentáveis fatos de sua origem não mais surgissem sob um aspecto tão

apavorante, aos olhos do velho.

O próprio Mr. Hallam nunca pôde imaginar que isso fosse possivel; pois, humano

como era, perturbava-o horrivelmente a idéia de que seu filho estivesse amarrado á filha

de um gatuno vulgar. Desejava dizer a Kay que este era um aspecto do noivado que não

mais o preocupava, mas não sabia qual a maneira mais hábil para fazei-o. Por fim, ao

terceiro dia da estada de Kay em sua casa, conseguiu falar-lhe:

— Bem sabes, meu filho, quando eu soube que Robin era uma artista, senti os

tradicionais escrúpulos — disse Mr. Hallam. — Ela, porém, me fez esquecer. Tua noiva é

encantadora, Kay. Sua alma é tão pura e adorável como as linhas do seu corpo e podes

te considerar felizardo por a teres conquistado. Suas maneiras são tão modestas e

naturais que, vendo-a, ninguém é capaz de dizer que está diante de uma “estrela” quase

celebre.

Uma leve onda de orgulho perfeitamente idiota apoderou-se de Kay, fazendo-o

responder:

Page 95: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— De fato ela é uma “estrela”. Está claro que ainda não atingiu a uma absoluta

celebridade, mas com seu talento e beleza... Dizem não haver limites para as glorias que

o futuro lhe promete.

Mas, compreendendo o próprio entusiasmo, seu espirito obstinado fê-lo acrescentar

consigo mesmo, como que para desculpar-se:

— Não vale a pena contar a papai que as coisas não vão tão bem como ele pensa.

Kay, pois, ignorava até que ponto seu pai estava ao par das circunstancias de seu

noivado com Robin. E o velho Hallam não encontrou motivos para revelar ao filho o que

soubera. Um conhecimento mais intimo de Robin fê-lo entrever na jovem a maior

esperança de transformar Kay num verdadeiro homem, digno e trabalhador. Quanto mais

a estudava mais se convencia de que sua coragem, sinceridade e desinteresse seriam a

salvação de seu filho. A situação talvez não fosse muito agradável para Robin, mas o

velho Hallam adorava Kay e em seu peito, ultimamente, crescia cada vez mais o terror

pelo futuro do filho. A despeito de Robin ter declarado que jamais tencionara se casar

com Kay, Mr. Hallam começava a pensar que nesse casamento repousavam as maiores

chances de felicidade para o rapaz; portanto dispôs-se a procurar um meio de apressar o

mais possivel a data da cerimonia.

— Meu filho, que impede a realização de teu casamento? Não te parece ridículo

continuar a esperar? — indagou ele de súbito.

Kay deu um pequeno suspiro mas não respondeu imediatamente. A pergunta de seu

pai parecia o eco daquela que estivera fazendo a si próprio embora inconscientemente.

— Oh, isso depende de Robin — replicou ao acaso. — Está claro que quando ela

quiser...

— E ela não quer, então? — perguntou o velho lentamente, admirando a própria

hipocrisia.

— Ela tem o seu trabalho... — começou Kay.

— Permitirá ela que isso seja uma barreira entre ambos? — aparteou o pai.

Um outro sentimento idiota ergueu-se no intimo de Kay; um desejo de impressionar

seu pai com a idéia de que Robin se submetia docemente a todas as suas vontades.

— Certamente que não. Para Robin eu estou em primeiro lugar — volveu ele

rapidamente, desculpando-se de novo, consigo mesmo, com o pretexto de precisar

assumir uma aparencia de felicidade.

Mas a idéia da aproximação da data de seu casamento parece que se instalara

definitivamente na atmosfera. Mr. Hallam, encontrando Robin a passeio pelo roseiral,

disse-lhe abruptamente:

— Não achas que ambos poderiam ser muito felizes?

O susto fez com que Robin gaguejasse ao replicar:

— Oh, o senhor sabe que... que essa nunca foi minha intenção... Sabe que era só

temporariamente...

Em sua confusão, deixou caír a tesoura no meio de uma roseira. Procurá-la entre os

galhos cheios de espinhos foi tarefa dificil, e, ao levantar-se, seu rosto risonho tornara-se

mais rubro e perturbado.

— Diabinho de pequena adorável, não é a toa que Kay diz o que diz de ti.

Page 96: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Estas palavras fizeram com que o coração de Robin batesse mais furiosamente.

Que estivera Kay a dizer de si? Era este o estribilho que não lhe saía dos ouvidos. Era um

pensamento que, provocando-lhe um mundo de emoções diversas, lhe roubava grande

parte de seu costumeiro sangue frio.

A frase — “quando vocês dois estiverem casados” — surgia, freqüentemente, em

meio da conversação geral. Velhos amigos da família, que haviam sido apresentados a

Robin, faziam uso dela com perturbadora assiduidade

Uma tia de Kay ofereceu, para a lua de mel, o seu pequenino e adorável “cottage” de

Cotswolds, e presentes de todas as formas e tamanhos eram o tópico de todas as

discussões.

Tudo isto dava a Robin uma sensação de vingança. Estivera noiva! Começou a

sentir que o impulso sob o qual insistira com Kay para que este a pedisse em casamento

fora maior, mais profundo do que a principio julgara.

Até mesmo a exaltada afirmação, que fizera a Mr. Hallam, de que não queria

desposar Kay, nunca tencionara nem tencionaria semelhante coisa, começou a perder,

em seu espirito, a antiga segurança. Só uma coisa a mantinha iria e impassível; Kay

jamais lhe dissera coisa alguma sobre o casamento. E, naturalmente, Robin estava certa

de que a atitude do rapaz era inalterável. Ele não queria desposá-la. Sabia perfeitamente

disso. Entretanto, com todos a dar o casamento por assentado, ela muitas vezes esquecia

essa desagradável circunstancia.

No ultimo dia da estada dos jovens em casa de Mr. Hallam, a situação chegou ao

ponto culminante.

Kay saíra com Robin em sua baratinha e pelo caminho mostrava-lhe os recantos que

conhecia desde menino, onde em cada arvore ficara uma recordação. Ambos estavam

adorando o passeio. Naqueles instantes, todos os rancores passados pareciam

esquecidos, entre eles. Robin estava em seus dias de maior alegria, meiguice e

camaradagem e pareciam duas crianças a rir e a tagarelar.

Ao fazerem uma curva do caminho estreito e sombrio, escaparam de atropelar um

homem alto e esbelto que parecia sonhar, embevecido com a contemplação do

maravilhoso panorama que, ao longe, se descortinava. .

Kay desviou o carro, brecando-o com um estridente ranger. O homem deu um salto

para o lado e voltou-se.

— É Andy! — exclamou Robin. — Andy, grande maluco, por pouco te

esmagávamos! Oh, mas é simplesmente adorável rever-te.

Fable, chapéu na mão, dirigiu-se a eles. Robin estendeu-lhe ambas as mãos e

comprimiu, com afectuoso prazer, a do amigo.

— Como vais, Robin? Meu Deus, como estás bem disposta — disse Fable, como

que a devorar, com os olhos, o rosto radiante da jovem.

Kay, no primeiro momento perfeitamente disposto a fazer ao amigo uma recepção

de igual modo carinhosa, descobriu que sua cordialidade para com Fable se transformara

em qualquer coisa que acelerava horrivelmente o ritmo de suas pulsações — qualquer

coisa que ardia como fogo e parecia de súbito incendiar todo seu corpo. Custou-lhe um

esforço supremo dizer:

— Oh, meu velho, isto é uma excelente surpresa. Mas que vieste fazer aqui?

Page 97: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Vim procurar bons cenarios para os teus “exteriores” da próxima semana, Robin,

— replicou Fable. — Bem sabes que ainda temos uma porção de cenas ao ar livre para

filmar.

— Como vão as coisas por lá? — perguntou Robin.

Por alguns minutos, para grande desgosto de Kay, ela e Fable conversaram sobre

os trabalhos do estúdio. Kay percebia o sangue ferver-lhe nas veias.

Não sabia por que, mas lhe era quase impossível controlar-se.

Um impulso de formal cortesia fê-lo convidar Fable a subir para o carro e ir tomar

chá com eles. Fable aceitou o convite.

Durante o chá conversaram sobre o filme. Mr. Hallam mostrava-se curioso e

interessado pelo assunto: Kay tinha impressão de que Robin jamais estivera tão feliz e

adorável como naquele momento, rindo e conversando com Fable. Não podia explicar a si

próprio o que sentia; o nosso primeiro acesso de verdadeiro ciúme é sempre dificil de

diagnosticar; mas Kay sabia que era um sentimento negro e desagradável que, por

pouco, o fazia odiar seu melhor amigo.

Robin parecia alegre com a presença de Fable; e Fable? Pois bem; seria algo além

do poder humano esconder o prazer que causava a Andrew ver-se de novo em

companhia de Robin.

Mais tarde, Kay levou Fable aos seus aposentos com o fim de dar uma prosa. Foi

esta pelo menos a desculpa que apresentou. Na realidade, porém, fizera isso por sentir

que seria capaz de morrer si não levasse Fable para longe de Robin.

No confortável aposento de Kay, ambos fumaram e conversaram por algum tempo,

mas entre eles se erguera um estranho constrangimento. Fable estava consciente disto,

mas perfeitamente ignorante dos sentimentos indefinidos que torturavam o coração do

amigo. Quando, não podendo resistir á tentação, Fable tornou a falar de Robin, a situação

começou a complicar-se. Falava ele do aspecto saudável que viera torná-la ainda mais

sedutora que de costume; de como o filme progredia maravilhosamente, — como era

admirável o trabalho de Robin em todas as cenas.

Kay não suportava mais. Sentia necessidade de fazer ver a Fable que, "estrela" ou

não, Robin, em primeiro lugar, era sua — e de mais ninguém.

— Sabes que nos vamos casar dentro de poucos dias? — indagou ele bruscamente.

Fable sentiu uma estranha e dolorosa perturbação em seu peito. Sabia que isto teria

de acontecer algum dia. Mas assim tão depressa! Ceus! como o feria essa idéia!

— Não — replicou por fim — não sabia.

Os ouvidos de Kay, alerta pelo ciúme, perceberam o esforço com que o amigo

pronunciara aquelas palavras.

— Sim — tornou ele, exagerando o tom de despreocupação, para disfarçar o que

sentia. — É esse o desejo de papai. Não há impedimento algum para isso, portanto, no

momento, é uma idéia otima.

Algo em seu tom deixou Fable como que fora de si. Não notara o esforço que frisara

as palavras do amigo, prestara atenção unicamente á frieza da afirmação. Levantou-se e

pôs-se de pé diante de Kay.

— Estás certo de fazê-la feliz? — inquiriu ele com voz tremula.

Page 98: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Isto foi o mesmo que lançar fogo ao estopim da bomba. Kay encarou-o com olhos

faiscantes.

— E que tens tu a ver com isso?

— Simplesmente o seguinte: que para mim seria quase um prazer matar o homem

que maltratasse Robin. Falas em casar com ela nesse tom indiferente e casual como se

lhe estivesses concedendo alguma honra. Grande tolo, quem julgas que és para adotares

semelhante tom? Se tu não és capaz de apreciá-la devidamente... há homens que o são.

— Sendo tu um deles... — aparteou Kay, enfurecido.

— Eu — confesso-o.

— Tu a amas, então?

— Daria a vida para estar em teu lugar — replicou Fable e, virando-se, saíu do

quarto.

Kay viu-o saír, mãos crispadas, olhar em chamas, com Ímpetos (embora

momentâneos) de cortar a cabeça ao seu melhor amigo, por causa da pequena de olhos

e cabelos negros com a qual se ia casar. For que? Por que? Onde poderia descobrir a

razão daquele tumulto de sentimentos enigmáticos que o cegavam?

A resposta veio-lhe subitamente, clara e nítida. Amava Robin. Amava-a com uma

febril loucura de amor que não podia suportar o mais leve olhar de admiração por ela,

vindo dos olhos de um outro homem. Robin era sua; tinha que ser sua, se é que a vida

precisava ser vivida... Kay estava habituado a ver todos os seus desejos realizados. Tudo

que pedia á vida, exigia que lhe fosse dado gratuita e imediatamente...

E, naquele momento, pedia-lhe Robin. Pedia-a a cada batida de seu coração, a cada

gota ardente do seu sangue moço... Pedia-a cegamente, loucamente, egoistamente...

Um momento mais tarde desceu e soube que Fable se retirara e que Robin e seu pai

haviam ido até ao portão, para acompanhá-lo.

Com o coração aos pulos saíu atras deles, encontrando-os já de volta. A presença

de seu pai esfriou-o um pouco, mas não pôde evitar de dizer o que tencionara — todavia

suas palavras foram ditas de maneira bem diversa da que pretendera.

Agarrou Robin pelo braço e sacudiu-a.

— Olha aqui, papai, conta-lhe que nos vamos casar o mais depressa possível —

disse ele.

Conseguiu dar ás suas palavras o ar despreocupado que pretendera.

— Kay! — exclamou Robin com voz apagada.

Mas sentia-se tolhida. Que poderia dizer com Mr. Hallam ali?

Seu coração batia desesperadamente. Tinha a sensação de que tudo girava á sua

volta. Voltou-se para Mr. Hallam, uma interrogação no olhar.

— O senhor quer que nos casemos? — perguntou ela.

— Quero tudo que for para a felicidade de meu filho e... da minha nova filhinha —

replicou o velho.

Robin voltou-se e olhou para Kay, o coração a cantar uma louca canção de

felicidade. Kay lhe pedira para se casar com ele.

— Perfeitamente — disse ela, rindo-se num riso tremulo e nervoso. — Se... se...

Subitamente, porém, desviou-se de Kay e correu para o velho Hallam. Agarrou-o

pela manga do paletó e puxou-o para um lado. Ele procurava fitar seus olhos nos da

Page 99: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

jovem. Que fora feito dos protestos que ela fizera de que não se casaria com Kay? Seria

igual ás outras? Pronta a esquecer a própria palavra em face de uma verdadeira chance

de casamento rico?

— O senhor quer mesmo? — perguntou Robin num cochicho. — Sabendo de tudo, o

senhor desejaria que eu me casasse com seu filho?

— Parece que agora é ele quem quer — respondeu Mr. Hallam atrapalhado. — Eu

desejo apenas a sua felicidade.

— Então eu o farei. Casar-me-ei com ele se...

— Se?

— Se o senhor não continuar a dar-lhe tanto dinheiro — gaguejou ela.

Mr. Hallam inclinou-se subitamente e beijou-lhe a fronte com infinita ternura.

CAPITULO IX

Um momento mais tarde, Robin viu-se ali sózinha. Kay não levou muito tempo para

aproximar-se delia. Rapidamente, Robin ergueu os olhos para ele, volvendo-os em

seguida para tras. Mr. Hallam acabava de desaparecer em direção da casa.

Voltou-se então lentamente para Kay, o coração batendo furiosamente. Seus

grandes olhos o fitaram interrogativamente, quase tímidos e confusos. Havia qualquer

coisa no rosto de Kay, que lhe era dificil compreender; uma tempestade de ternura e algo

muito mais violento ali estavam em conflito. Subitamente, ele estendeu a mão, segurou a

de Robin e disse-lhe com agitação:

— Vem comigo a um lugar onde possamos conversar.

Arrastou-a por um estreito gramado, quase correndo, tal a sua ansiedade. À sombra

de um grupo de pinheiros estacou, tornando a encarar sua noiva.

— É verdade o que disseste, não? Vais te casar comigo? — interrogou ele, com

singular precipitação.

— Kay — explodiu ela de chofre. — Que te leva a fazer isso? Por que vais fazê-lo?

Havia um infinito de duvida e angustia em seus olhos.

— Porque te amo — replicou ele. — Estou louco por ti. Completamente louco, penso

eu. Mas amo-te terrivelmente.

Seus olhos quase não a fitavam ao fazer-lhe a confissão. As palavras brotavam-lhe

dos lábios como se de súbito se estivesse rendendo a uma certa força infinitamente mais

forte do que ele próprio, — como se tivesse entrado em luta contra o seu amor por Robin,

mas se sentisse de repente vencido.

— Kay — murmurou ela com voz débil — eu não sabia... eu não sabia...

— Tu... tu... como que me enfeitiçaste — continuou ele, com voz tremula. — Vejo-te

o dia todo... penso em ti constantemente. Habituei-me á idéia de que és minha, Robin. O

“chove-e-não-molha” deste noivado não me satisfaz, não posso suportá-lo.

E, dizendo isto, tomou, entre as suas, a outra mão de Robin.

— Não posso suportá-lo — repetiu. — Enlouquece-me ver-te tão... satisfeita e

propositalmente arredia, não dando mais atenção a mim do que... a qualquer outro

Page 100: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

homem. É mais do que me é possivel suportar. É preciso que sejas minha, inteiramente,

exclusivamente. Minha, acima de tudo. Até hoje nunca me importara com nenhuma

jovem, mas tu me deslumbraste, fizeste de mim um escravo.

Robin ergueu os olhos, assombrada ante os sentimentos que seu noivo lhe

confessava. Nunca o julgara tão emocionavel — jamais pudera conceber Kay, o rapaz

alegre, despreocupado e leviano, com aquela flama a arder-lhe nos olhos cendrados,

aquele rictus quase de tortura nos lábios tensos. E, atraves daquela espécie de

fascinação, chegava-lhe aos ouvidos o estribilho da canção eterna — ele amava-a —

amava-a!

E, entretanto, havia em tudo aquilo qualquer coisa que Robin não podia

compreender. Qualquer coisa que se erguia do meio da louca felicidade daquela

revelação e como que a amedrontava. Tinha mesmo a impressão de que despertara no

intimo de Kay algo que talvez fosse melhor tivesse ficado adormecido.

— Mas, não me amaste sempre, Kay? — balbuciou ela por fim. — Quando... te

forcei a me pedires em casamento, não me amavas, então?

— Quando me forçaste a te pedir em casamento, revoltei-me ao sentir-me como

presa de uma armadilha. Revolto-me ainda. Mas deixei isso de parte. Nada me interessa

agora, senão tu. Na tua opinião não sei pintar. Achas que meu trabalho não vale coisa

alguma. Cheguei quase a te odiar quando me disseste isso, tal a fúria que provocou em

minh'alma o veneno de tuas palavras. Agora, porém, nada mais posso fazer além de

amar-te com loucura. Pouco me importa o que penses de meus quadros, nem me

interessa voltar a pintar, contanto que sejas só minha.

Com estas palavras deu um longo suspiro e puxou-a mais para si. Robin, porém,

resistiu e manteve-se onde estava,

Aquilo não era amor, na expressão mais alta da palavra; atraves do vertiginoso

palpitar do sangue em suas veias, esta reflexão apoderou-se de seu espirito; mas era

tarde, pois também ela fora arrastada pelo tumulto de emoções que á volta de ambos se

criara. Não mais lhe era possivel raciocinar com clareza; seria algo além de suas forças

fazer uma pausa para refletir; um único pensamento enchia-lhe o cérebro: ali, em

resposta a seu amor estava o milagre do amor de Kay.

Hallam curvou-se para ela. Seus olhos fitaram os da jovem num súbito relampejar de

cólera.

— Não há mais ninguém, há? Não me vais dizer que... que amas algum outro?

Robin meneou a cabeça, pois seus lábios recusavam-se a falar.

— Juro-te, Robin, si eu suspeitasse que davas um pouco de importância a... ele,

seria capaz de esmagá-lo! — acrescentou.

— Ele? — balbuciou Robin. — Dar importância a ele? A quem? Não... não te

compreendo, Kay.

— A... qualquer outro que não seja eu. Oh, Robin. — (A cólera desaparecera como

que por encanto, deixando em sua fisionomia uma expressão infantil e suplicante). —

Amo-te tanto! Dize que te casarás comigo. Fico doente de pavor só de pensar que podes

gostar de outro.

Isto não se assemelhava mais ao Kay que conhecia. Ao erguer os olhos para o rosto

enternecido do rapaz a tensão que lhe prendia o espirito como se partiu.

Page 101: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não gosto de nenhum outro, Kay. Não soubeste sempre disto? — replicou ela

com voz tremula.

Kay apertou-a contra si.

— Mas gostas... de mim? — sussurrou.

— Sempre gostei — confessou-lhe ela.

Com um grito ele tomou-a nos braços.

— És minha, então! Só minha! — exclamou triunfante, apertando-a cada vez mais.

— Kay! Kay! — balbuciou Robin, sem ar.

Hallam afrouxou levemente os braços e num gesto possessivo derrubou para tras a

pequenina cabeça de sua noiva.

— E, olha aqui, isto também é meu.

E com uma gargalhada beijou-a nos lábios.

Robin manteve-se em atitude passiva dentro do circulo dos braços de Hallam, olhos

cerrados, dando-lhe seus lábios sem a menor resistência.

Por fim ele levantou a cabeça. As palpebras de Robin tremularam.

— Querida! Agora vais beijar-me para que eu acredite em teu amor — disse ele,

sorrindo.

Ela sacudiu a cabeça, agitando graciosamente os negros ancis de sua cabeleira.

Soltou-a subitamente e recuou um passo.

— Dá-me a certeza do teu amor — prosseguiu ele, rindo-se como uma criança feliz.

— Dá-me completa certeza de que me amas. Prova-me teu amor de maneira que não

mais me reste uma só duvida.

A pequena distancia que os separava estava ligada apenas por um olhar. Então,

Robin deu um passo á frente, colocou o rosto de Kay no mesmo nivel que o seu e pousou

nos dele seus lábios trêmulos.

— Eu te amo, querido — murmurou, em surdina.

Mas, ao afastar-se para contemplá-lo, com um adorável sorriso de timidez a brincar-

lhe nos lábios, a expressão de felicidade desaparecera da fisionomia de Hallam. Esta

tornara-se de novo nublada por qualquer coisa que ela não podia compreender.

— É a primeira vez que dizes isso? — perguntou ele de chofre.

Robin recuou como que ferida, mas ele, agarrando-a pelo braço, puxou-a de novo

para junto de si.

— Nunca disseste a um homem que o amavas? — repetiu.

— Não! — foi a resposta firme que recebeu.

— Nunca beijaste um outro homem antes de mim?

— Nunca, Kay!

Seu pequenino grito reprovava-o, cheio de ofendida dignidade. Ele tomou-a

novamente em seus braços.

— Oh, Robin, tu me enlouqueceste! Não sei que faria si tivesse que... perder-te,

agora! — exclamou, sua voz como que a implorar perdão.

— Amo-te, Kay, e continuarei a amar-te. É sempre assim, bem sabes, quando

amamos sinceramente alguém — disse-lhe ela delicadamente.

— E és minha, não és? Inteiramente, absolutamente minha? Oh, ceus, se soubesse

o contrario!...

Page 102: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Se não sou tua, não sou de mais ninguém — replicou Robin.

E viu-se, mais uma vez, dominada pela paixão intoxicante daqueles braços viris.

Terminou, prometendo-lhe que se casariam assim que seu filme estivesse pronto.

Isso o satisfez, mas, se Robin tivesse refletido melhor, teria compreendido que

aquele ciúme louco não passava de um outro aspecto do egoísmo em que se baseara

sempre sua existência. Este deixara sua marca em tudo que compunha a vida de Kay —

suas alegrias, suas tristezas, seus desaectos, e agora — seu amor. Tudo fora atingido

pelo estigma desfigurante do amor-próprio excessivo e vicioso. Antes de compreender

que amava a Robin, servira-se de sua beleza, do seu raro talento, apenas para divertir-se.

E, agora que se sentia inflamado por seu recem-despertado amor, pela ânsia de posse

que dele se apoderara, Robin tinha que ser sua — inteiramente, absolutamente, e

imediatamente. Por tal forma se deixara arrebatar por seus desejos que, naquele instante,

parecia ter esquecido inteiramente a maneira pela qual ela se tornara sua noiva. A revolta

que lhe causava a lembrança do compromisso que fora forçado a tomar e de tudo que

Robin dissera para criticar e zombar de seu trabalho — nada se sobrepunha aquela nova

emoção que rebentara ante uma súbita e violenta crise de ciúmes, ante a compreensão

de que um outro poderia roubá-la de si.

Mas ele a amava. Se não era ainda a emoção grandiosa, desinteressada, ideal, que

caracteriza o verdadeiro amor, é porque não esquecera ainda o egoismo e ociosidade de

uma existência desfrutavel. E vinte e cinco anos de vida não podem ser esquecidos num

momento, ainda mesmo num momento iluminado e vivificado pelo amor.

E Robin?

Sentindo intensa necessidade de estar a sós para voltar um pouco á realidade e

refletir sobre os acontecimentos, fugiu, a correr, para o quarto elegante e batido de sol

que lhe fora reservado.

Sentando-se á beira do leito, cobriu, com ambas as mãos, o rosto esfogueado,

tentando pensar, compreender e quase incapaz de acreditar.

Que se teria passado desde o dia em que declarara a Mr. Hallam que nada a faria

desposar Kay?

Então, não sabia que ele a amava. Mas como teria podido o amor de Kay alterar o

que fora, para si, um principio? Seria ele mais forte ou mais digno porque a amava? Seria

menos egoísta, menos perdulário?

Não. E bem o sabia. Seria seu trabalho menos inferior? Sua vida menos futil?

Não. Mas ele a amava. Tudo que dissera, pensara e sentira, parecia ter-se

evaporado diante deste mágico acontecimento. Ele a amava! e como a amava! Sua

respiração tornou-se opressa só de lembrar a violência das expressões amorosas de Kay.

E como Mr. Hallam a recebera bem! Como era delicioso ser querida e amada

daquele modo! Era o balsamo mais suave, a consolação mais doce que lhe fora dado

conhecer. Sentia-se como que a desabrochar, radiosamente, sob o mais benigno dos

sois; como se, fora do circulo generoso e quente de sua luz, tudo mais fosse frio e

solidão. Ela que jamais conhecera a doçura de um verdadeiro lar — que a experimentava

agora pela primeira vez — sentiu que lhe era impossível abrir mão de um bem tão grande,

tão suave, tão tentador.

Page 103: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Poucos minutos antes, naquele dia maravilhoso, entrara em acordo com Mr. Hallam,

comprometendo-se a desposar Kay desde que era esse o desejo de todos, mas com a

condição dele cortar um pouco a mesada do filho. E então ficara conhecendo o ardor da

paixão que inspirara a Kay. Dera-lhe amor por amor, beijo por beijo. A vida, antes desse

mágico instante, parecia-lhe irreal e confusa.

Queria ir para onde a amavam. Queria aceitar a grande dádiva de amor e felicidade

que lhe fora ofertada, sem pensar, interrogar ou temer. Se Kay desejava simplesmente

viver, rir e amar, sem levar coisa alguma a serio, seu desejo também seria viver, amar e

rir com ele. E si dinheiro, conforto e luxo lhe eram necessários...

Um assobio vindo de fora interrompeu suas meditações, fazendo-a correr á janela.

Olhou para baixo e deu com a cara descontente de Kay.

— Vem cá embaixo, meu anjo — disse ele. — Como pode um mortal suportar a vida

si te escondes dele todo o tempo?

Robin, olhos brilhantes de ternura, riu-se, um riso cristalino.

— Não é preciso fazer uma carinha tão triste — prometeu ela. — Estarei ao teu lado

dentro de um segundo.

Uma vez rendido ao amor de Robin, Hallam continuou a amar com toda a força de

seu egoísmo. Só se sentia feliz quando podia estar com ela; queria que a jovem

dedicasse todos os minutos de seu tempo exclusivamente á sua companhia.

Mas, findas as ferias de Robin, ela teve que voltar aos trabalhos do seu filme. Pelos

seus cálculos, com mais duas semanas este ficaria pronto.

— E agora, Kay... — disse ela, deixando o olhar que trocavam terminar a frase em

seu lugar.

Em companhia de Mrs. Quest, voltou aos seus aposentos; Kay ao seu atelier.

A atitude deste ultimo para com o trabalho de Robin era curiosamente confusa.

Sentia-se assustadoramente orgulhoso dos seus triunfos. Gostava de ouvir os elogios que

faziam ao seu talento, mas ressentia-se do tempo que ele lhe tomava e enfurecia-se ante

a idéia de que ela pudesse ter um interesse tão grande por uma coisa que, em nada, se

relacionava com sua pessoa. Alem do mais, a volta de Robin ao estúdio significava estar

ela diariamente com Fable. Mas sabia como iria suportar isto.

Seu primeiro encontro com Fable, depois da pequena altercação que tiveram, foi

bastante frio. Esbarraram-se diante das grandes portas giratorias do estúdio

cinematografico.

— Meu velho, como vais? — exclamou Hallam, com afetada naturalidade.

Ia seguir seu caminho, mas Fable o agarrou pelo braço.

— Kay, isto não basta — disse ele.

Hallam hesitou.

— Não sei que mais podes desejar — replicou este ultimo com fingido ar de

inocencia.

— Apenas que me permitas pedir-te desculpas — continuou Fable calmamente. —

Eu não tinha o direito de dizer-te tudo que te disse o outro dia.

— Nenhum homem gosta de saber que os outros amam a sua namorada —

começou Kay.

Page 104: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Terás que te habituar a isso — replicou Fable. — O amor dos homens é a única

coisa que Robin jamais conseguirá evitar. Não te peço desculpas por amá-la. De que

serve pedirmos desculpas daquilo contra o que nada podemos? Nesse caso deveríamos

pedir desculpas por termos olhos azuis, pés grandes ou qualquer outro predicado ou

defeito com que nascemos. Além do mais, não se pede perdão pelas coisas das quais

não nos envergonhamos. Mas eu duvidei que fosses capaz de fazer a felicidade de Robin.

Duvidei mesmo da tua sinceridade. Por isso quero que me perdoes, Kay. Ela é,

atualmente, a criaturinha mais radiosamente feliz da terra. E foste tu que o conseguiste.

Diante disto, Kay, impulsivamente, estendeu-lhe a mão.

— Andy, meu velho, meu querido amigo, fui um estúpido por ter brigado contigo.

Mas eu me sentia infeliz e exaltado naquele dia. Provavelmente disse uma porção de

coisas... provocantes. Até então eu não sabia que eras capaz de amar desta maneira e

tive a impressão de que me haviam esbofeteado no rosto. As coisas entre mim e Robin

ainda não estavam acertadas e firmes como estão agora.

Apertaram-se as mãos.

— Obrigado — disse Fable.

— Ela sabe? — perguntou Hallam.

Uma onda rubra inundou as faces de Fable.

— Oh, sim — replicou ele. — Ela repudiou-me, pois foste sempre o eleito de seu

coração.

Nesse ponto Hallam, repentinamente, descobriu que os ciúmes que Fable lhe

inspirara não mais existiam. Ninguém poderia ter ciúmes de um amor sentido com tanta

nobreza, tão francamente confessado e desinteressadamente concebido. A única coisa

que sentia agora, era uma enorme piedade por Fable.

— Não calculas até que ponto te lamento, meu caro — disse ele por fim, levemente

gago. — É... realmente duro.

Fable, porém, sorriu.

— Duro? Vê-la feliz como está agora? Não, meu velho, estás muito enganado.

E com isso separaram-se — Fable para a rua, Hallam para o longo corredor que

dava acesso ao estúdio. Não sei de onde, como que de distancias remotas e

desconhecidas, chegou, adejante, ao espirito de Hallam, a impressão de que acabava de

provar a mais bela e maior emoção de sua vida. E, embora não a compreendesse bem,

essa impressão foi uma espécie de sedativo para sua alma.

A caminho de casa, havia algo novo em sua voz ao dizer a Robin:

— Meu amor, não me contaste que o pobre Andy estava tão seriamente enamorado

de ti.

A jovem voltou-se para ele, levemente enrubescida.

— Achei... preferivel calar-me — replicou ela — mas fico contente por ver que ele

próprio te fez conhecedor disso. Quero que saibas de tudo, querido.

— Fiquei com muita pena dele. Coitado, é uma grande alma.

Robin concordou com um movimento de cabeça. Continuaram em silencio até que

Hallam parou o pequeno carro diante do prédio de apartamentos.

— Senti terríveis ciúmes de Andy — disse ele então, abruptamente.

Havia uma rara nota de confissão no tom de suas palavras.

Page 105: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Kay! — exclamou Robin, olhos arregalados de espanto.

Kay enrubesceu.

— Sim, eu sei — volveu ele calmamente. — Mas que podia fazer si os sentia?

Desceu do carro e ajudou-a a fazer o mesmo.

— Não era preciso — replicou ela.

— Mas isso passou.

— Não precisas ter ciúmes de ninguém, Kay. Não sabes disso?

— Acho que sei — admitiu ele com certo azedume na voz.

— Kay! — exclamou ela ferida pelo seu tom. — Não tens ciúmes de ninguém, tens?

— Oh, Robin, tenho ciúmes de tudo que te afasta de mim...

— Kay, Kay, que devo fazer para convencer-te? — perguntou ela, uma expressão de

desespero na voz e no olhar.

Ele inclinou a cabeça até que seus lábios ficassem colados aos ouvidos de Robin.

— Casar comigo, apenas — murmurou ele. — Ser toda minha...

— Bem sabes que o farei; já tens minha promessa. Assim que o filme...

Mas Kay afastou-se dela, carrancudo, e o que disse do filme não foi muito lisonjeiro.

Depois mudou de assunto e manteve-se mal humorado e implicante pelo resto da noite.

Quando Hallam viu que os quinze dias combinados se haviam passado sem que o

filme ficasse pronto, começou a inquietar-se. Viu seu casamento com Robin adiado

indefinidamente.

Um dia, pela manhã, mandou-a para o estúdio num taxi, em lugar de levá-la em seu

carro, dizendo-lhe que iria buscá-la á tarde, como de costume. Sua atitude era quase

misteriosa e Robin sentia-se bastante intrigada; nada perguntou porém e ele veio buscá-la

durante o dia justamente no momento em que ela tirava o seu “make-up”.

— Eu disse a Shale que tu não virias ao estúdio amanhã — anunciou Kay a caminho

de casa.

— Kay... mas por que? Tenho tanto que fazer. Minha tarefa é apertadíssima —

replicou.

— E a minha também — respondeu Kay, rindo-se excitadamente.

Voltou-se então para a jovem, fisionomia radiante.

— Anjinho adorado, vais te casar comigo amanhã, em vez de ires ao estúdio. Já tirei

a licença. Está tudo arranjado, sabes?

O espanto como que paralisou a voz de Robin.

— Kay! — foi tudo o que pôde dizer. Ao mesmo tempo seu rosto nublou-se.

— Não estás contente? — perguntou ele. — Não queres casar comigo?

— Bem sabes que sim. Apenas estou surpreendida. E Shale planejou tanta coisa

para amanhã...

— Oh, deixe Shale, o filme e tudo mais! Não sou eu mais importante que esse film?

Não significo mais para ti? — explodiu ele.

Robin pousou a mão num de seus ombros.

— Bem sabes que vales mais que tudo, para mim. Mas amanhã! Tão... depressa,

tão de repente!

O pequeno tremor de sua voz deixou Hallam comovido.

Page 106: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Robin, não achas que vai ser divino? Ficarás sendo minha, de verdade. Mrs. Kay

Hallam! Querida, até as alianças eu já comprei!

À meia luz do hall, junto á escada que dava para o apartamento de Mrs. Quest,

subitamente, Robin abraçou-se a Hallam, fazendo-o abaixar a cabeça até o nivel de seus

lábios.

— Estou contente, contente, contente — murmurou ela rapidamente, fugindo logo

após pela escada.

Casaram-se na manhã seguinte ás onze horas e a primeira coisa que fizeram foi

mandar um telegrama ao velho Hallam, comunicando-lhe a nova.

Depois disto, voltaram ao atelier para almoçar. Encontraram, ali, tudo preparado

para recebê-los, pois Mrs. Quest se encarregara dessa parte.

E ambos ficaram de pé a contemplar a mesa do almoço.

— Nosso almoço de núpcias — disse Kay com uma nota de vibrante excitação na

voz.

Robin ergueu os olhos tímidos e plenos de ternura e pousou-os nos dele. No mesmo

instante viu-se entre seus braços.

Por fim Kay soltou-a novamente para ajudá-la a despir o casaco; tirou depois o

pequenino chapéu, arrumou-lhe os cabelos negros e encaracolados, sorriu-lhe e

conduziu-a ao lugar que lhe fora reservado na mesa.

Sentou-se depois diante delia e inclinou-se para a frente.

— Dá-me um beijo, querida?

Por cima da pequena mesa seus lábios se encontraram.

— Oh, como eu te amo! — exclamou ele. Separaram-se, sem tirar os olhos um do

outro e ele derrubou um pequeno maço de cartas que estava junto ao seu prato.

Abaixou-se para apanhá-las.

— Se me amares sempre assim... Oh, uma carta de papai — exclamou,

interrompendo-se.

Contemplou o envelope por um momento, depois rasgou-o, abriu-o e retirou a carta

que ele continha. Leu-a a principio com uma expressão intrigada, depois alarmada e por

fim de franca contrariedade.

— Que aconteceu? — perguntou Robin rapidamente.

— Que aconteceu? Papai ficou maluco! Deve ter ficado, por força. É absurdo! —

exclamou.

— Kay, mas que foi? Que queres dizer com isso?

— Deixou-me sem um shilling! Cortou minha mesada! Diz-me que trabalhe e ganhe

para manter-me! Bom Deus! Ele está louco!

Levantou-se e começou a passear agitadamente pela sala.

— Jamais vi uma coisa semelhante. É desproposital! Ridiculo! — continuou Kay,

andando para baixo e para cima. — Nunca o supus capaz de cometer uma mesquinhesa,

na vida. E agora prega-me uma peça destas. Não pode ser verdade. — (Voltou

novamente á carta). — E, contudo, é mais que verdade! Não há mais duvida. Mas por

que? Para que? Que fiz eu para merecer tal coisa? Deixou-me a nenhum. Não me resta

um centavo, além do pequeno saldo que ainda tenho no banco. Por Deus, vou escrever-

lhe um carta e ele se arrependerá quando recebê-la!

Page 107: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Nesse momento Robin pôs-se de pé, com expressão resoluta, uma das mãos sobre

o espaldar da cadeira, a outra sobre a mesa, e encarou-o.

— Kay — disse ela quase num fio de voz — a culpa não é dele. Não deves escrever-

lhe.

— A culpa não é dele? — repetiu o rapaz. — Então de quem é?

Robin ergueu a cabeça e respondeu, já agora com voz perfeitamente segura:

— Minha!

— Tua? Mas que tens a ver com isto? — indagou sem compreender.

— Pedi a teu pai para fazê-lo — explicou ela.

Fez-se um súbito silencio na sala.

— Tu lhe pediste para fazê-lo? — ecoou a voz de Hallam, por fim.

Robin confirmou com um movimento de cabeça.

— Pediste-lhe para abandonar-me deste jeito? Pediste-lhe para dar-me este golpe e

deixar-me sem um único centavo? Pediste-lhe tudo isto?

Mais uma vez ela sacudiu a cabeça afirmativamente.

— Sim, Kay. Eu lhe pedi.

Hallam passou a mão pelo cabelo e esfregou a nuca.

— Robin, que loucura me estás dizendo aí? — explodiu.

— Não é loucura alguma. Apenas a verdade — replicou a jovem, com menor

firmeza.

Tanto quanto Kay, chocara-se ante o assombroso exagero com que Mr. Hallam

cumprira a promessa que lhe fizera. Assustava-se agora diante do resultado devastador,

do que fizera, visando unicamente a felicidade de Kay. Não fora aquilo o que pedira.

— Não compreendendo coisa alguma do que estás dizendo — continuou Hallam. —

É um absurdo tão grande! Tão excessivamente fantastico!

— É a verdade — interrompeu a jovem. — Será melhor que acredites nela.

— Pediste a papai para cortar minha pensão? Para abandonar-me deste modo? —

insistiu Kay.

Robin hesitou um momento.

— Não foi bem isso. Pedi-lhe que não te desse uma mesada tão... tão horrivelmente

grande, eis tudo.

Compreendeu, á medida que as pronunciava, que suas duas ultimas palavras

haviam sido quase inadequadas.

— Eis tudo — repetiu Kay, de um modo singular. — E é mesmo verdade?

— Sim, é verdade — assegurou ela.

Subitamente Hallam deixou-se caír na cadeira em que estivera sentado, como se as

forças lhe faltassem.

— Pois bem, estou... vencido — balbuciou ele lentamente, cravando os olhos em

Robin.

Havia uma espécie de terror na expressão do olhar de Kay; como se,

repentinamente, ele tivesse descoberto que, em vez da jovem que conhecia e amava,

Robin não passava de uma estranha para si.

E, então, tendo na voz uma incrível nota de dor que Robin jamais pôde esquecer, ele

exclamou:

Page 108: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Eu... julguei que me amavas. Oh, Robin... eu julguei que me amavas...

Isto foi dito de uma maneira tão infantil e amarga que Robin, com a rapidez de uma

flecha, deu volta á mesa e foi ajoelhar-se ao seu lado.

— Kay, não digas isso. Não digas isso, querido. Eu te amo. Sabes que te amo.

E passou os braços á volta dele.

— Como podes amar-me... se fizeste uma coisa destas? — replicou ele. — Não é só

o dinheiro... mas tu voltaste papai contra mim. Fomos sempre bons amigos e agora tu... o

voltaste contra mim. Como podes dizer que me amas?

Robin achava-se admirada ante a maneira calma pela qual ele estava encarando o

acontecimento, pois esperava por uma verdadeira tempestade. Era como se sua dor

fosse grande demais para dar lugar á cólera.

— Não o voltei contra ti. Ele continua a ser tão teu amigo como d'antes. Mais ainda,

Kay — mais ainda, contestou ela.

— Jamais me lembro de tê-lo visto cometer um ato mesquinho e pouco generoso

como este. Jamais! Que fizeste a papai? Como conseguiste influenciá-lo a ponto de

transformá-lo deste jeito? É como se tivesses enfeitiçado a nós todos. Conseguiste fazer

com que eu te amasse. Forçaste-me a brigar com meu maior amigo e agora voltas meu

pai contra mim. Que fizeste conosco? E por que? Qual o teu intuito?

Os braços de Robin afrouxaram-se, afastando-se de Hallam. Ergueu-se, fitando nele

os olhos, com uma expressão de horror.

— Kay! Estás farto de saber que isso não é verdade! Sabes que não mereço

semelhante acusação. Como poderia eu forçar-te a me amar? Alguma vez tentei seduzir-

te? Vamos, responde-me!

— Quem pode lá saber o que tentaste? — tornou Hallam.

— Fui eu que te fiz brigar com Andy? Se assim foi, podes estar certo de que agi

inconscientemente. Nem sequer sabia o que se passava. Não tenho culpa que ele me

ame. A não ser que me queiras culpar de ser... eu. E, quanto ao teu pai, é bom que

saibas que, embora te pareça cruel, mostrou-se mais teu amigo agora, que nunca. Antes,

nunca se lembrara de te dar uma oportunidade, e foi simplesmente isso o que lhe pedi

que fizesse: dar-te uma oportunidade.

Conteve a respiração no tremor de um soluço. Hallam ergueu-se subitamente, tendo

na voz o reflexo da tempestade que em seu intimo se formava.

— Que direito tinhas tu? Que direito tinhas tu de intervir? — inquiriu com violência.

Robin firmou-se onde estava e continuou a enfrentá-lo.

— O simples direito de que... te amava loucamente e se me tornara impossível ver

por mais tempo dissipares a vida da maneira que o fazias. Tudo por teres dinheiro em

demasia, por veres tudo tão fácil diante de ti a ponto de jamais teres tido a menor

necessidade de fazer um esforço, de qualquer espécie que fosse — continuou ela,

respiração opressa.

— Com que então foste tu que o induziste a fazer semelhante coisa? Convenceste-o

de que sou o dissoluto que me tens em conta e conseguiste que ele fizesse isto?

— Eu não lhe pedi para fazer exatamente isso. Estou tão surpreendida como tu.

— Pretendes negar tua responsabilidade?

Page 109: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Robin levantou a cabeça, uma resposta inflamada aflorou-lhe aos lábios, mas

tornou-se fria antes que fosse traduzida em palavras, pois ela reconheceu a justiça da

acusadora pergunta de Kay.

— Não. Não pretendo negar que sou a responsável pelo ato de teu pai. Sou. Apenas

não tentei fazer com que teu pai te julgasse um dissoluto. E eu própria não acho que

sejas tal. Kay, bem sabes o que penso de ti!

— Não sei coisa alguma. Minha cabeça é um caos. Não sei qual a verdade, nem o

que devo pensar. Além disso... fui suficientemente idiota para amar-te. E desiludiste-me

como jamais ninguém o fez em minha vida. Em quem mais poderei acreditar si não posso

crer em ti? Quem será meu amigo se papai não o é?

Em meio de tudo que a angustiava naquela cena, uma circunstancia vinha alegrar-

lhe a alma. A perda de sua fortuna, até aquele instante, pouco impressionara a Kay. As

coisas que em primeiro lugar ele sentira perder foram a amizade de seu pai e a confiança

que depositara em sua noiva. Isto era como uma punhalada para o pequenino coração de

Robin, mas, ao mesmo tempo, alegrava-o.

Tentou convencê-lo do contrario, tentou fazer voltar a fé e o amor perdidos, mas foi

tudo em vão, Kay não podia acreditar que seu pai, sendo ainda seu amigo, tivesse feito o

que fizera. Não podia crer que Robin, amando-o sinceramente, tivesse desejado

semelhante coisa. Parecia impossível afastar de seu espirito a convicção de que Robin

influenciara seu pai a que o tivesse em conta de dissoluto e indigno; que, por algum

motivo inteiramente inexplicável, conseguira prendê-lo nessa armadilha, fingindo que o

amava.

Nesse momento, Robin aproximou-se e, segurando-lhe os ombros com suas

mãozinhas nervosas, obrigou-o a fita-la de frente, erguendo para ele o rosto tremulo.

— Não podes pensar tudo isso de mim, Kay. É simplesmente impossível. Acaso não

vês como nos temos, amado? Teriam estas ultimas semanas sido apenas uma ilusão?

Kay, volta os olhos para esses dias adoráveis, lembra-te de tudo que se passou. Nada

mais te peço, querido. Podíamos ter sido... profundamente felizes como fomos... se um de

nós dois estivesse fingindo? Tu compreendes... tu deves compreender que seria

impossível!

Pelo semblante de Hallam passou a sombra leve de uma duvida e Robin continuou

com verdadeira avidez.

— Parecia eu fingir, quando deixei que me tomasses nos braços e me beijasses?

Poderiam ser falsos os beijos que te dei? Oh, meu amor, se eu fosse capaz de

representar com tal perfeição não teria tentado alcançar o posto de “estrela”

cinematográfica — (sorriu-lhe com lábios trêmulos) — desde o primeiro instante meu

nome rebrilharia sob a luz ofuscante da gloria e da celebridade... Mas tu sabes que eu

não estava fingindo, Kay. Sabes o quanto fui sincera contigo, com teu amor, não é, Kay?

E com isto alçou-se nas pontas dos pés até que sua cabeça atingisse o nivel do

rosto de Hallam. Por um instante o rapaz vacilou, mas, súbito, desvencilhou-se das

pequeninas mãos que o prendiam.

— Por que fizeste aquilo, então? — indagou ele.

Robin recuou um passo e seus olhos inundaram-se de pranto.

Page 110: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Por te amar com... loucura — replicou desanimada. — Oh, não é preciso

acreditares em mim. Bem sei que não o farias. Contudo é verdade. Jamais existirá

verdade maior. Talvez pareça um absurdo, Kay, mas eu te amo. Sempre te amei. Desde

aquela tarde em que dancei na feira, acho eu. Parece mesmo que não me recordo de

tempo algum, em que não te amasse. Por isso sentia-me enlouquecer de desgosto diante

da vida ociosa que levavas. Confessei-o a teu pai. A única coisa que ele fizera até então,

fora dar-te dinheiro e mais dinheiro, como se fosses um aleijado, incapaz de cuidar de si

próprio, como se não possuisses um cérebro para pensar e mãos para trabalhar. Disse-

lhe eu que jamais conseguirias coisa alguma com tuas pinturas e que... para cada dia de

trabalho, passavas pelo menos dez, entregue a diversões e passatempos. Eu

testemunhara isso, Kay, e lhe estava contando unicamente a verdade. E tu sabes que é

verdade. És capaz de contemplar todos estes pequenos, confusos e inacabados esboços

que nos rodeiam e afirmar que pintá-los é profissão digna de um homem?

— Deixa meus trabalhos em paz. Já sei o que pensas deles; já me disseste! —

berrou ele. — Mas deixa-me dizer-te que as pessoas entendidas em arte não estão de

acordo contigo. Isso nada tem a ver com o caso. E o caso é que me puseste neste

desgraçado embrulho e que tuas explicações parecem perfeitamente incoerentes.

Confessares que me arruinaste, que persuadiste meu pai a fazer de mim um mendigo,

pela única razão de me amares é... é ridículo, Robin. Pelo menos é um meio muito

esquisito de dar provas de afeto.

E, com isto, deu uma volta pela sala, fisionomia carrancuda. Súbito, parando diante

de Robin, acrescentou violentamente:

— Seja lá como for, não é essa espécie de amor que ambiciono.

— Muito bem — replicou a jovem, calmamente. — É o único que te posso dar.

Houve um instante de silencio.

— Que irei fazer agora, subitamente deserdado desta forma? — explodiu ele.

— Poderias... trabalhar — sugeriu Robin.

— Em que?

Robin voltou para ele seus grandes olhos.

— Pois bem, Kay, se faço um juízo tão errado sobre tua arte, porque não fazes dela

um meio de vida? — indagou lentamente.

— Eu... eu... — começou ele, gaguejando, pois no intimo de sua alma reconheceu

que aquilo era impossível, que, de sua arte, jamais faria um meio de vida. — Que estás

pensando? — acrescentou com voz áspera, para disfarçar o próprio desapontamento. —

Julgas que um artista pode ser julgado apenas pelo que ganha? Que seu valor pode ser

calculado pelo numero de libras que ele consegue obter em troca de seu trabalho? Meu

Deus, tu não sabes o que é arte...

— Kay — exclamou Robin, olhos subitamente acesos. — Se eu tivesse visto uma só

pincelada tua capaz de despertar a admiração de alguém, capaz de arrancar de uns

lábios esta frase "Ele nunca fez outra coisa na vida, mas foi um verdadeiro artista", então

eu te diria: "Continua, sê rico ou pobre, mas continua", porque valeria a pena. E se fosses

rico eu viria e seria rica contigo, assim como se fosses pobre compartilharia de tua

pobreza. Mas nunca conseguiste dar essa pincelada. E nunca o conseguirás. Não

nasceste para isso. E a culpa é dos amigos interesseiros que te rodeiam, enchendo teu

Page 111: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

espirito de ilusões e alimentando tua vaidade a troco de passeios, festas e diversões.

Acho que fui a primeira pessoa que te disse a verdade. Julgas que senti prazer nisso?

Enganas-te. Foi o maior dos sacrifícios para mim. Oh, no fundo do meu coração, eu sabia

que não devia me casar contigo! — terminou ela, contendo-se a custo.

— Então, por que o fizeste?

Esta pergunta saltou-lhe dos lábios em tom ríspido e cruel.

— A razão é a mesma de sempre — replicou a jovem com voz pouco firme. — Eu te

amava demais para não o fazer. Julguei que não quisesses e quando descobri que esse

também era teu desejo... fiquei, simplesmente, cega de felicidade. E então a tentação foi

grande demais para minhas forças. Pensei que pudéssemos esquecer tudo... para nos

amarmos e sermos felizes. Contudo, no fundo, eu sabia que era impossível.

Ao findar estas palavras apanhou o capote e o chapéu e dirigiu-se á porta.

— Para onde vais? — perguntou Hallam, rapidamente.

— Lá para baixo... outra vez — respondeu ela.

Só então a tempestade estalou; esgotou-se a paciência de Kay. Acaso ela pensava

que podia metê-lo no lodo de suas tramas e depois abandoná-lo calmamente? Se assim

era, estava muito enganada. Deixara-o pobre, mas, por Deus, obrigá-la-ia a ficar e ser

pobre consigo.

Disse então uma porção de coisas cuja única lembrança, mais tarde, o faria corar e

terminou, abrindo a porta do seu quarto e empurrando Robin para dentro.

— Olha — ordenou-lhe com voz rouca.

Robin obedeceu e, em surdina, murmurou uma exclamação. O quarto de rapaz no

qual, certa noite, ela permitira que Mayhew Tearle a surpreendesse, transformara-se,

agora, num elegante apartamento feminino, com brancas e vaporosas cortinas, ás

janelas, um lindo acolchoado de cetim rosa sobre o leito e todos os seus objetos —

pentes, caixas de "rouge" e pó de arroz — arrumados sobre o gracioso psyché.

Ela ficou em muda contemplação, durante alguns minutos.

— Quem foi que arranjou tudo isto? — perguntou.

— Eu e Mrs. Quest — respondeu Hallam com brutalidade.

— Todas as minhas coisas! — balbuciou Robin. Entrando subitamente no quarto,

correu para o grande guarda-roupa e abriu-o. Todos os seus vestidos ali estavam,

enfileirados na mais admirável ordem.

— Não iremos fazer papel de loucos perante os outros, não é? — rosnou Hallam.

Robin colocou o casaco e o chapéu em uma cadeira e o encarou.

— Está claro — concordou lentamente, os lábios muito trêmulos. — Mas... que

vamos... fazer?

Atraves do pequeno espaço que os separava seus olhos se encontraram.

É uma linha muito fina que separa uma emoção forte de outra. O riso, muitas vezes,

se confunde com o pranto; muitas vezes deixamos escapar uma lagrima atraves do riso e,

assim, a fúria de Hallam desapareceu, repentinamente, sob uma emoção mais forte.

Aproximou-se rapidamente da jovem... e puxou-a para junto de si.

— Casaste comigo... não é? — perguntou-lhe com voz vacilante.

Robin sacudiu a cabeça em silencio.

— Portanto, és minha.

Page 112: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Seus braços enlaçaram-na. Robin agarrou-se avidamente a ele.

— Podes perdoar-me, então, Kay? Tudo volverá... a ser como antes, entre nós? —

sussurrou.

— Posso perdoar tudo, tendo-te em meus braços — respondeu ele com ardor,

pousando os lábios nos delia.

Mas Robin desvencilhou-se dele e afastou-se.

— Oh — exclamou quase num sopro. — Não... não posso... ser amada deste modo!

E fitou-o com uma espécie de pavor nos grandes olhos umidos.

Por um momento os olhos de Kay, inflamados de paixão, refletiram-se nos da jovem.

Depois, deixando escapar um longo suspiro:

— Muito bem... compreendo. Desculpe-me. — (E deu-lhe subitamente as costas). —

Oh, deixa-me saír um pouco e... pensar — balbuciou.

Sem mais uma palavra dirigiu-se á porta e saíu, batendo-a violentamente. Robin ali

ficou, respirando rapidamente, as mãos crispadas sobre o peito, a ouvir o som dos passos

de Hallam que morriam pela escada abaixo.

CAPITULO X

Era tarde — quase seis horas — quando Hallam voltou. Robin passou por todos os

terrores que sua viva imaginação pôde criar com respeito a ele, desde a possibilidade de

um atrito com Mr. Hallam, até o suicídio. Lá pelas cinco horas preparou um lunch e deixou

tudo pronto para quando ele voltasse. Sentando-se ao lado da pequena mesa posta, pôs-

se á escuta, o coração batendo violentamente a cada ruido que percebia na escada.

Súbito ouviu passos de alguém que subia e parava diante da porta. Como que parou de

respirar, á espera do barulho da chave na fechadura. Em vez disso, porém, ouviu uma

pancada na porta.

Levantou-se e abriu-a. Fora, estava o homem que ocupava o apartamento do andar

inferior.

— Vim apresentar-lhe minhas congratulações, Mrs. Kay — disse ele, sorrindo e

estendendo-lhe a mão.

— Oh — exclamou ela com voz apagada. — Muito agradecida mas... Kay saíu... por

um momento... — (Por seu espirito passara a lembrança da recomendação de Kay; não

deviam fazer papel de loucos perante os outros. E não o faria, pensou esforçando-se por

sorrir). — Como foi que o senhor veio a saber? — perguntou.

— Soube-o pela velha Mrs. Quest. A senhora e Hallam são os seus encantos. Ela

está espalhando a novidade pela vizinhança.

— Oh, pobre Mrs. Quest! — exclamou Robin com indisfarçavel amargor. — De

qualquer modo, porém, agradeço-lhe muito. Comunicarei sua visita a Kay assim que ele

voltar.

Despediram-se, sorrindo, e Robin fechou a porta. Seu sorriso, porém, morreu-lhe

nos lábios ao sentar-se novamente em sua cadeira. Todo mundo iria saber, agora.

Horrível, o que acontecera! Como poderia ela continuar a fingir, quando sentia o coração

partido em mil pedaços? Continuou sentada, á espera.

Page 113: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Hallam voltou, por fim, mas ao sentir que se aproximava da porta, percebeu que não

vinha só. Passos de mais alguém misturavam-se aos de Kay e minutos depois ele abria a

porta, dizendo secamente:

— Vamos entrar.

Robin levantou-se nervosamente e ficou em expectativa.

Hallam entrou seguido por Fable. O coração de Robin parecia arrebentar de tanto

bater. Que significaria tudo aquilo? Por que teria Kay trazido Fable ali? Percebeu que

estendera a mão a Fable e que sorria um sorriso radiante, mas nunca pôde saber como

conseguiu isto.

— Mil felicidades, Robin — disse Fable, curvando-se sobre sua mão. — Os meus

mais ardentes votos de felicidade.

— Obrigada — replicou ela com voz tremula, perguntando a si própria até que ponto

estaria Andy ao par da verdade.

— Senta-te e fuma, Andy — aparteou Hallam.

Fable obedeceu; com a permissão de Robin começou a fumar seu cachimbo. Os

últimos raios de sol ainda brilhavam e Hallam recuou as cortinas para que penetrassem

na sala.

Apanhou então um de seus quadros que estava no chão com a frente voltada para a

parede e, olhando para Fable, virou a tela para que este ultimo pudesse vê-la.

— Vamos. Dize-me a verdade, já que até aqui ainda não o fizeste. Que achas disto?

— indagou ele.

Por um instante, francamente surpreso, Fable contemplou o quadro sem saber o que

fazer.

— A verdade, por favor — insistiu Hallam.

Diante disso Fable tirou o cachimbo da boca e pronunciou a verdade com uma única

palavra.

— Péssimo.

O silencio que se seguiu parecia queimar os ouvidos de Robin. Vendo, atraves de

um véu de lagrimas, a expressão de profundo desconsolo que se estampara no rosto de

Kay, seu primeiro impulso foi protestar contra o veredictum de Fable, reprovar sua

brutalidade, magoá-lo mesmo. Ansiava por apagar a dolorosa expressão que nublara o

olhar de Kay, ainda que, para isso, fosse necessário mentir, proferir um falso elogio.

Mas este tumulto de pensamentos e sensações findou-se antes que houvesse dito

qualquer coisa. E agora murmurava consigo mesma:

— É verdade... é verdade. Ele precisa saber. É preciso que alguém lhe diga. Mas,

oh, meu Deus, eu não queria mais ver em seu rosto essa expressão horrível!

Hallam atirou a tela ao chão, deu alguns passos e voltou com outra.

— Péssimo — repetiu Fable.

Esta tela seguiu a primeira. Uma terceira teve igual destino e assim a quarta. A

quinta mereceu um comentario mais animador.

— Melhor, mas fraco.

Sexta, sétima, oitava e nona, foram todas condenadas com o mesmo "péssimo". A

décima era um esboço de Robin.

— Este é o melhor de todos — disse Fable.

Page 114: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Valeu a pena fazê-lo? — indagou Hallam.

— Sob que ponto de vista? — contraveio Fable.

— Sob o único importante, o ponto de vista artístico.

Fable hesitou.

— Não — retorquiu afinal, com voz firme.

O pequeno esboço de Robin seguiu os outros.

— E é esse o melhor? — repetiu Hallam.

— Sim.

— E, mesmo assim, não valeu a pena fazê-lo?

— Não.

Hallam respirou profundamente, enchendo os pulmões de ar.

— Muito bem; então é verdade. Eu não presto para nada. Sou um estroina, um

pretencioso, um idiota. Muito obrigado, Andy; era tudo que eu desejava de ti.

Fable ergueu-se e retirou-se quase em silencio, o que foi admirável de sua parte,

pois Robin estava longe de poder falar; só lhe era possivel continuar sentada, olhos

boiando em pranto e fixos num ponto.

Assim que a porta se fechou por tras de Fable, Hallam dirigiu-se ao monte de

quadros que jazia no chão. Tirou do bolso um canivete e principiou a separar as telas da

armação de madeira a que estavam presas. Feito isto, enrolou-as juntas e enfiou-as num

grande cesto de papeis inúteis.

— E este é o fim dos meus pobres ideais — considerou ele.

Robin continuava sem encontrar o que dizer.

— Com que então venceste, hein, Robin? — acrescentou.

Seu tom era agressivo. Parecia desafiá-la a triunfar com sua derrota; estava mesmo

certo de que ela o faria.

Robin, porém, ergueu um rosto contraído e tremulo que, segundo depois, procurava

ocultar com as mãos.

— Oh... se soubesses o quanto eu preferia ter sido vencida! — exclamou ela, em

pranto.

Hallam olhou-a, sobrolho cerrado. O desespero da jovem era perturbador. Mas o fato

de que ela o repelira pouco antes dominava ainda amargamente sua lembrança.

— Vamos — disse-lhe secamente. — Temos um balanço a fazer.

Robin ergueu o rosto umido de lagrimas, enxugou os olhos e tentou conter o ritmo

alterado de sua respiração.

— Sim, Kay, estou pronta...

Hallam acercou-se da secretaria, de onde retirou um livro de cheques e uma

caderneta. Após atirar esses objetos para cima da mesa, puxou uma cadeira, sentou-se e

pôs-se a investigar sua situação financeira.

— Parece que ainda tenho a meu credito a magnífica soma de dezessete libras,

onze shillings e dois pence — concluiu ele. — E, isso mesmo, por generosidade tua e de

meu ilustre pai.

O sarcasmo das palavras de Kay foi como uma chibatada que só serviu para

enrijecer o coração brioso de Robin.

Hallam tirou do bolso a carteira e um punhado de moedas. Contou tudo.

Page 115: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Nove soberanos em notas — disse ele. — Doze shillings, sete pence e meio em

miúdos. Acrescentemos a isto o saldo que me resta no banco, e meu capital total soma...

— (Escreveu os algarismos nas costas de um envelope). — Vinte e sete libras, tres

shillings, nove pence e meio. Podes ficar com o meio penny para mascote —

acrescentou, atirando a moedinha a Robin que, do outro lado da mesa, enfrentava a

insolencia do seu olhar.

Ela estendeu a mão e apanhou a moeda.

— Muito obrigada — retorquiu calmamente.

Hallam curvou-se.

— E agora, tendo-me reduzido a isto — continuou ele, indicando com um gesto o

dinheiro que jazia sobre a mesa — espero que tenhas a infinita bondade de explicar-me o

que devo fazer.

— Creio... que ninguém poderá fazê-lo — replicou a jovem.

Kay riu-se.

— Isso é muito peculiar aos grandes reformadores como vocês. Destroem com a

maior facilidade, mas, quando chega o momento de reconstruir, confessam a própria

incapacidade. Sabem muito bem atirar os outros ao chão mas não são capazes de os

auxiliar a se levantarem novamente.

— Pois bem, terás que fazer algo que te dê dinheiro — volveu ela, sentindo-se

quase esmagada pelo comentario de Kay.

— Isso é evidente. Mas que? E é preciso ser algo que um homem, um verdadeiro

homem, possa honestamente chamar trabalhar, não é? E, agora, eu queria saber quais

são os homens que, em tua valiosa opinião, podem proclamar a honestidade de seu

trabalho? Pedreiros? Funileiros? Deverei seguir uma dessas duas profissões?

Mas a ironia de Hallam passara os limites da paciência de Robin; suas próximas

palavras queimaram como fogo.

— Mas ambos esses oficios, de pedreiro ou funileiro, necessitam uma certa tecnica,

uma certa pratica, certas qualidades. Receio, Kay... — interrompeu-se, deixando que um

pequeno e marcado silencio terminasse sua frase.

Hallam mordeu os lábios e suas faces tornaram-se rubras.

— Então terá que ser qualquer coisa menos... ambiciosa — volveu ele, mas seu

sarcasmo muito perdera da antiga firmeza. — Qualquer coisa suficientemente simples,

que esteja de acordo com a minha incapacidade.

— Kay — atalhou Robin, observando-o agudamente — não há absoluta necessidade

de trabalhares. O que ganho é suficiente para vivermos, e meus salários serão

aumentados no próximo filme.

Parou de falar, pois Kay se pusera de pé.

— Com que então terei que viver a tuas expensas, não é? — perguntou ele com

uma expressão que Robin desconhecia.

— Muitos e muitos homens... não se importam que suas esposas... os ajudem, —

retorquiu ela.

— Pois bem, não estou no meio deles. Lembra-te disso, sim? — replicou Hallam

com voz rouca.

Page 116: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Perfeitamente... pensei apenas... — balbuciou ela, a agudeza de seu olhar um

pouco mais acentuada. — Kay, por que não escreves a teu pai, pedindo-lhe um... um

auxilio?

Por um momento seus olhos se encontraram em silencio. Súbito Kay deu um murro

tão forte na mesa que todos os objetos que ali se achavam, oscilaram.

— Preferia ir antes para o inferno — exclamou ele rudemente.

E embora fixasse os olhos em Robin com verdadeiro ressentimento, o coração desta

ultima palpitou de subita esperança. É que sob esse ressentimento havia uma sincera e

inabalável determinação, provocada por um odio violento, mas nem por isso deixando de

ser uma determinação. Robin teve ímpetos de correr para ele, abraçá-lo e dizer-lhe que

continuasse assim; que se realmente seu intuito fosse ir para o inferno, iria com ele —

não o abandonaria em hipotese alguma. Nada fez, porém; continuou sentada onde

estava, sem dar a menor demonstração do que lhe ia n'alma. Estava resolvida a não fazer

o menor apelo ao amor de Kay.

— Estou arruinado; completamente arruinado, por culpa tua, e não tens uma idéia,

uma única sugestão que me auxilie a erguer-me de novo. Não que eu me importe com

isso. Não preciso do teu auxilio. Caí e talvez nunca mais me levante, mas si um dia o

fizer, fá-lo-ei sozinho...

Fez uma pausa para fixar os olhos em Robin.

— Sim, compreendo — redarguiu ela.

— Terei que enfrentar mil dificuldades, mas não pedirei auxilio a quem quer que

seja. Depois disto não existe ninguém em quem eu possa confiar. Vocês todos me

desiludiram — todos. Se havia, no mundo, um homem em quem eu julgava poder confiar,

esse homem era Andy — e, contudo, ele vinha a me fazer de idiota durante anos e anos.

Sobre pape, nada direi, mas ele deixou-se influenciar contra mim. E quanto a ti — pois

bem, creio que essa parte já ficou bem clara e não mais temos necessidade de discuti-la.

Mas agora que vocês já obtiveram o que queriam, podem retirar-se e deixar-me em paz.

Compreendes?

— Sim, compreendo. Mas, Kay, nós... — começou ela.

Hallam interrompeu-a.

— Sobre nós... sobre nosso casamento? Pois bem, estamos casados. Para isso não

há mais remédio, agora. O que está feito, está feito. Nada mais se pode fazer. Mas, em

tudo que diz respeito a mim, és livre de agir como bem entenderes, contanto que não

intervenhas na minha vida.

— Não intervirei. Dize-me apenas o que queres que eu faça.

— Não quero que faças coisa alguma. Podes seguir teu caminho, com a condição de

te conservares nele e não cruzares o meu. Felizmente ganhas bastante e não precisas

que eu te sustente.

— Sim. Nesse ponto não há razão para te preocupares — retorquiu Robin.

— Não me preocuparei — retorquiu ele, com brutalidade. — Se conseguir alguma

coisa, sustentar-te-ei. Mas se, ao contrario, falhar, terás que continuar trabalhando para

viver. Aliás, na minha opinião, nada te devo.

— Exceto odio e amargura — acrescentou Robin em voz baixa, os lábios

perfeitamente firmes, então.

Page 117: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Por um momento Hallam calou-se; depois, carrancudo, voltou-se para ela.

— Deves agradecer isso unicamente a ti própria.

— Tens razão, Kay — replicou ela.

Hallam apanhou a carteira, e os niqueis espalhados sobre a mesa, recolocou-os no

bolso. O livro de cheques e o caderno de contas foram guardados na secretaria.

— Terei que ficar aqui até que as coisas se decidam — tornou ele. — Não sei, ao

certo, o total de minhas dividas, mas provavelmente, vendendo todos os meus bens,

poderei pagar a maior parte delas. O atelier está pago até o fim do trimestre; se estiveres

bem certa de que não ha nenhuma espécie de objeção á hipotese de viver eu em relativo

conforto enquanto posso, farei aqui meu quartel general, até encontrar um emprego.

Depois então...

— Depois? — perguntou Robin, o coração a bater-lhe mais rapidamente, tal a

ansiedade com que aguardava a resposta do jovem.

— Depois, cortarei tudo, e todos, todos vocês, para sózinho lutar, vencer ou ser

vencido — replicou ele com cortante amargor.

— Vencerás, Kay. Estou certa, certa de que vencerás! — exclamou Robin.

— Isso é da minha conta e não da tua — volveu ele secamente. — A guerra não

conseguiu matar-me; não creio que isto o consiga.

Voltou-se de novo para Robin e fixou-a com um olhar de franca irritação.

— Também eu não o creio — repetiu ela, pois Kay parecia á espera de uma replica.

Na realidade, porém, sentira não haver coisa alguma a dizer. Ela mesma criara

aquela situação. Se o pai de Kay fora muito além daquilo que lhe pedira, isso não alterava

o fato de ser sua a responsabilidade do que se dera. Seria fraco, idiota e, talvez, muito

pouco convincente fazer agora qualquer sorte de protestos de arrependimento. Além do

mais, aquilo não passava da lição que, a seu ver, Kay necessitava, levada ao extremo. De

que se arrepender pois? Não fora aquela oportunidade de submetê-lo a uma prova o seu

maior sonho? Não era aquele o "test" que sempre planejara para revelar o valor de Kay?

E, contudo, ele a desprezava. Isso pelo menos era o que lhe dizia a expressão dura e fria

do seu olhar. Expulsava-a de sua vida sem uma palavra de consolo, dizendo-lhe apenas

que era ela a culpada. E tinha razão. Mas era dificil suportar — conceber com calma a

idéia de que ia perdê-lo, talvez para sempre, e que era ela, ela própria, a causadora disso.

Um amontoado de desejos ergueu-se em seu intimo, aflorando-lhe aos lábios num

tumulto de palavras que, estava certa, não diria, não devia dizer.

— Poderemos ficar aqui, juntos, até que eu arranje para onde ir — foram as palavras

de Kay. — Uma mudança parecerá natural agora que... estamos casados. Depois

poderás ir para onde quiseres e eu... para onde puder. Não precisamos anunciar a toda

gente da vizinhança a estupidez que cometemos.

Robin, com um simples movimento de cabeça, concordou, e ambos mergulharam

em silencio. Pouco depois, Hallam tornou a falar no mesmo tom, se bem que mais

calmamente, e a jovem ouviu e mostrou-se de acordo com tudo. Novamente fez-se

silencio. Robin suportou-o o mais que lhe foi possivel, mas chegou um momento em que

não se conteve.

— Kay, não queres... jantar? — balbuciou, por fim.

— Arranjar-me-ei sozinho; obrigado — replicou ele secamente.

Page 118: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Robin emudeceu e súbito levantou-se.

— Vou dormir. Boa-noite, Kay.

— Boa-noite — rosnou ele.

Robin entrou no quarto que fora arrumado com tanto carinho para recebe-la. Despiu-

se e seu corpo desapareceu sob as cobertas.

Mas afinal era o que eu merecia por tê-lo amado demais para resistir á tentadora

felicidade que me ofereceu, e não amá-lo o suficiente para deixar que ele, antes de tudo o

mais, comprehendesse e corrigisse os erros de sua vida, disse consigo mesma, cravando

os olhos muito abertos na escuridão do quarto. Essa espécie de felicidade nos sai sempre

mais cara do que julgamos. E eu tinha quase certeza disso. Mas quem pode lá vencer a

força indomável do amor?...

Enterrou o rosto no travesseiro para não deixar correr as lagrimas que lhe

queimavam as palpebras.

A manhã lhe trouxe a sensação de que os acontecimentos da véspera não haviam

passado de um sonho mal. Ao despertar, levou algum tempo para reunir todas as vagas

recordações que lhe povoavam a memória e compreender que eram fatos. Levantou-se,

tomou banho e vestiu-se. Do seu quarto ouvia o leve ruído de qualquer liquido em

ebulição. Provavelmente Kay estava preparando o café.

Que efeito teriam produzido nele o repouso e o silencio da noite? Que estaria

pensando, sentindo? Por um instante de profunda fraqueza, desejou encontrá-lo disposto

a recorrer novamente a Mr. Hallam, ansioso por voltar aos velhos costumes, á vida fácil e

despreocupada que o tornava feliz. Contudo foi só por um instante que Robin desejou

semelhantes coisas, pois, na realidade, lhe seria ínsuportavel a certeza de que a

resolução de Kay falhara: de que toda a energia e altivez demonstradas na véspera

haviam sido impulsos tão frágeis e passageiros.

Foi, portanto, sob um verdadeiro tumulto de sentimentos que se encontrou com

Hallam no atelier. Estava sentado á mesa, tomando o café que Mrs. Quest lhes preparara,

e no rosto que ergueu para Robin havia dois olhos muito frios e uma expressão duríssima.

Só então Robin compreendeu, pela sensação de alivio que a invadiu, como fora insensato

o momentâneo desejo que tivera de encontrá-lo com a resolução da véspera

abandonada.

— Bom dia — disse ela ao entrar na sala.

— Esta será a resposta de papai — volveu Kay, sem corresponder á saudação de

Robin.

Em seguida estendeu-lhe um pedaço de papel. A jovem inclinou-se para ler o que

nele estava escrito. Era o seguinte:

"Papai:

Podes levar avante a tua resolução.

Kay".

Os lábios de Robin crisparam-se num sorriso cheio de naturalidade.

— É uma bela resposta, Kay.

— Oh, eu não estava pedindo a tua opinião — retrucou ele meio sem jeito. —

Julguei apenas que tivesses algum interesse em vê-la.

— Acertaste — concordou ela. — Devo ir ao estúdio hoje? — acrescentou.

Page 119: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Como hei de saber? — volveu Kay.

— Combinaste com Shale... ontem...

— O dia do nosso casamento — acrescentou Kay, arqueando levemente os lábios.

— Por acaso combinaste algo para hoje?

— Sim. Para hoje... havia uma lua de mel.

— E de que maneira iremos passá-la, Kay?

— Passáala-ei olhando para as pessoas que tiverem a bondade de comprar nossas

coisas. Tu poderás fazer o que quiseres — terminou secamente.

Aquele "nossas coisas" que lhe escapara dos lábios veio dar vida e calor ao coração

de Robin, apesar de tudo; que importava a dureza do tom si eram tão doces as palavras?

Sentou-se e tomou uma parte do lunch com o maior apetite que lhe foi possivel aparentar.

Robin não precisava ter receado que Hallam evitasse qualquer um dos aspectos de

sua repentina pobreza. Ele não o fez. Arranjou perfeitamente todos os seus negócios.

Suas dividas eram bem maiores do que calculara. Mas o produto da venda de alguns

objetos do apartamento, do seu grande carro de excursões, da baratinha, do pequeno e

elegante iate Adriana e de um par de valiosas abotoaduras, foi o suficiente para saldá-las.

Isto, porém, reduziu seus bens a uma insignificancia: uma pequena soma em dinheiro, o

contendo de seu guarda-roupa, o resto do contrato que fizera com o apartamento e um

belo relógio de bolso.

E foi assim que Hallam se dispôs a procurar emprego.

Robin nunca soube que resolução tomara ele nesse sentido, nem que espécie de

trabalho procurava. Sabia apenas que começara a responder dúzias de anuncios, recebia

grande numero de respostas e fazia infinitos apontamentos. Saía de casa cheio de

esperança, mas voltava meio desanimado e esse desanimo aumentava visivelmente com

o decorrer do tempo.

Kay conhecia muita gente, velhos amigos de seu pai, que teriam o máximo prazer

em dar-lhe uma colocação ainda que de simples secretario, mas ele não estava disposto

a pedir auxilio nem favores a ninguém. Naturalmente não lhe agradava recordar quão

precária era sua situação financeira. Esqueceu-se pois de que não mais estava em

condições de freqüentar os restaurantes de West-End e almoçar lautamente no intervalo

de uma entrevista fracassada e outra em perspectiva. E por isso seu dinheiro acabou-se

rapidamente. Robin só compreendeu isto ao notar que ele não mais usava seu relógio.

Kay, porém, nada disse. Não contava á jovem coisa alguma do que fazia e também nada

lhe perguntava sobre o seu trabalho. Robin continuava no estúdio; terminara o filme de

Fable e assinara contrato para um outro com salário mais elevado. Estando o dia todo

fora, não sabia em que consistiam as refeições de Hallam e este também não procurava

informá-la. Quando voltava a casa e preparava o seu jantar, convidava-o sempre a fazer-

lhe companhia, Kay, porém, nunca aceitara semelhantes convites e, obstinadamente,

recusava-se a provar sequer das refeições da esposa, pretextando sempre já ter jantado.

Robin quase adoeceu de tanto preocupar-se com ele.

Um dia, que ficou em casa, se dirigiu ao guarda-roupa de Hallam com o intuito de

passar uma revista em seus ternos e ver si precisavam de algum concerto. Abriu-o e o

encontrou vazio. A principio não pôde compreender, mas, minutos depois, a verdade

Page 120: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

surgiu nitida em seu espirito. Seus ternos tinham tido o mesmo destino que o relógio.

Fechou lentamente a porta do guarda-roupa e abismou-se em pensamentos.

Nada, porém, conseguiu saber quando ele chegou, á tarde, além do fato de que não

arranjara ainda coisa alguma e que iria falar com uma outra pessoa no dia seguinte.

Ante a quantidade de homens competentes que se achavam desempregados,

Hallam começou a compreender que suas chances eram pequenas. Pela primeira vez

Robin notou no olhar do marido uma expressão quase de fadiga.

Na manhã seguinte, percebendo que Hallam estava no banho, foi ao seu quarto e

passou uma revista em seus bolsos. Encontrou dezoito pence em prata e alguns em

cobre. Sua carteira estava praticamente vazia, pois não continha mais que algumas

cautelas de penhor e, mesmo estas, em numero insignificante.

Colocou, então, tres shillings entre as moedas, esperando que uma quantia tão

pequena passasse despercebida aos olhos de Kay. E, aparentemente, foi o que se deu,

pois este ultimo nada lhe disse ao encontrar-se com ela.

Depois disto, diariamente, Robin colocava dinheiro no bolso do marido, cada vez

menos cautelosa com relação á quantia, desde que ele parecia de nada desconfiar. E,

assim, sua situação a preocupava um pouco menos, dando-lhe aso a trabalhar com mais

sossego. Pelo menos, fornecia a Kay o suficiente para alimentá-lo. Muitas e muitas vezes

teve impetos de pedir-lhe para pôr um fim aquilo e escrever a Mr. Hallam; ou, se não

quisesse fazer isso, permitir-lhe auxiliá-lo — deixá-la ficar ao seu lado, amparando-o até

encontrar alguma colocação. Mas a atitude de Kay proibia-lhe de todo qualquer

aproximação; já então parecia ter-se afastado tanto do ponto em que seus sentimentos

para com Robin não passavam de simples raiva e ressentimento, que ela começou a

julgar-se realmente odiada. Se acontecia chegar do estúdio e encontrá-lo no atelier, ele

erguia-se abruptamente e retirava-se para seu quarto. Era como se fosse insuportavel a

simples presença de Robin.

Seis semanas causaram uma enorme mudança em Kay. Seu único terno, com o uso

contínuo, adquiriu rapidamente um aspecto surrado, e seu chapéu perdeu a elegância

perfeita de suas linhas. Ele próprio começava a ter menos escrúpulos com relação á

espécie de trabalho que desejava obter e já o procurava entre as mais baixas classes de

emprego. Em pouco tempo, porém, compreendeu que Robin tivera razão ao dizer-lhe que

os funileiros precisavam ter capacidade para soldar, os pedreiros para colocar os tijolos

uns sobre os outros. Ele parecia não ter capacidade para coisa alguma, salvo para vestir-

se bem e divertir-se. O aspecto da vida transformou-se inteiramente para ele e isso o

irritava; sentia um odio violento, estúpido, impotente, contra aquela situação, mas sabia,

contudo, que qualquer coisa em seu carater, antes jamais revelada, lhe impedia de

afastar-se um passo sequer da resolução que tomara de lutar sozinho. Amaldiçoava a si

próprio por essa idiotice de orgulho, teima, ou, o que quer que fosse, — como ele dizia —

mas sabia tratar-se de algo por demais inerente para que o pudesse trair.

Dois meses mais e seu contrato com o atelier findou-se. Por amor das aparencias,

em vista de serem tão conhecidos ali, concordaram em mudar-se juntos. Robin alugara

um pequenino apartamento. Hallam recusou-se terminantemente a morar com ela; tão

pouco a informaria de seus planos. (Robin sentia uma desagradável desconfiança de que

ele não os possuía). Acompanhou-a ao seu apartamento, com grande surpresa da jovem;

Page 121: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

ajudou-a a arrumá-lo. Feito isto, voltou-se para saír. Robin fitou nele os olhos muito

abertos e teve que engolir em seco, antes de falar. Então explodiu com voz tremula:

— Kay, fica! Fica!

Ele retribuiu friamente seu olhar. Robin notou que havia um circulo arroxeado á volta

de seus olhos, um leve rictus de amargura ao canto dos lábios e uma acentuada palidez

nas faces; mas não havia nele o menor vestígio de desanimo. Como não respondesse,

segurou-lhe um braço.

— Kay, queres ficar?

— Não.

— Eu... Querido, eu te imploro. Estás muito... abatido. Não me é possivel ver-te

assim.

Se a resolução de Hallam continuava firme, a da jovem — naquele momento, pelo

menos — fizera-se em pedaços.

— Sinto-me perfeitamente bem.

— Estás magro e com um aspecto horrível. Kay, não estás te alimentando direito.

Acho... acho que estás... com fome.

Uma onda de sangue afluiu ás faces do rapaz.

— Tenho tudo que desejo — replicou ele, tentando desnvencilhar o braço da mão de

Robin.

Esta ultima, porém, segurou-o ainda com mais força.

— Mas não tens tudo que precisas — insistiu ela. — Vejo perfeitamente bem. Kay...

ando assustada. Tudo isto nunca me passou pela cabeça. Tira-me a vida aos poucos ver-

te assim e... saber que sou eu a culpada.

— Devias ter pensado nisso mais cedo — replicou Hallam, frio como uma pedra.

— Se eu confessar isso — volveu Robin avidamente — se eu confessá-lo e suplicar

teu perdão — oh! com todas as minhas torças — farias minha vontade, Kay? Se eu te

confessasse que me enganei?

— Não sabes ainda se te enganaste. Afirmaste que eu era um perdulário. Resta-me

ainda provar que não o sou. Estás dizendo tudo isto porque julgas ser a responsável por...

qualquer coisa que eu possa estar sofrendo. Queres evitar as conseqüências do que

fizeste. Creio mesmo que te preocupas menos com o meu... desconforto, que com o

próprio receio de ser acusada.

A mão de Robin largou do braço do rapaz e seus olhos pousaram-se nele com uma

expressão de franco desconsolo. Hallam tocara num ponto tão próximo da verdade, que

se sentira envergonhada.

— Ao menos — suplicou então — dize-me para onde vais, que tencionas fazer.

Hallam meneou a cabeça em silencio. De novo surgiu no espirito da jovem a

desagradável convicção de que o motivo principal do silencio de Kay era a própria

ignorância do que iria fazer, a própria falta de projetos.

— Se... algum dia precisares de mim — murmurou Robin em surdina — estarei aqui.

Encontrar-me-ás sempre aqui... se... se tiveres necessidade de meu auxilio.

— Não precisarei de ti. Não tenho necessidade de... traidores — retorquiu Hallam

com fria crueldade.

Robin recuou, comprimindo a boca com as costas da mão.

Page 122: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Kay! — exclamou com voz apagada, mas cortante de desespero. — Nada mais

sentes por mim?

Hallam, após uma pausa, replicou lentamente, sem olhar para ela:

— Pelo contrario, acho que te desprezo. Traires-me, como o fizeste, e não teres

agora coragem de suportar as conseqüências. Que pensaste? Julgaste que eu iria

engordar com a realização do teu plano? — (Atirou-lhe esta pergunta e continuou, sem

esperar pela resposta) — Não és capaz nem sequer de sustentar as condições da

combinação que fizemos.

— Em que deixei de cumpri-las até agora? — balbuciou Robin.

— Não prometeste que não intervirias na minha vida?

— Sim.

— Então que me dizes disto?

E atirou sobre a mesa um embrulho, que tilintou ao chocar-se com a madeira.

Robin olhou de Hallam para o embrulho e de novo para Hallam. Este ultimo pôs o

chapéu na cabeça, abriu a porta e saíu.

A jovem abafou um grito com a mão e quedou-se, olhos cravados na porta que se

fechara. Depois, lentamente, apanhou o embrulho, rasgou o papel e despejou o seu

conteúdo sobre a mesa.

Diante de seus olhos, rolou então um monte de moedas de prata — shillings, florins,

meias-coroas.

Era todo o dinheiro que, ás escondidas, colocara nos bolsos de Kay. Ele percebera,

juntara-o e o guardara. E continuara sem se alimentar, sabendo que o dinheiro ali estava

para ser gasto, sabendo que lhe davam com alegria, espontaneamente, sabendo que era

dele.

— Ah, Kay! Tu vencerás, tu vencerás! — murmurou Robin, enquanto duas grossas

lagrimas tombavam, indo juntar seu brilho ao reflexo das moedas.

CAPITULO XI

Quando Kay partiu, aquele dia, Robin teve a impressão de que ele a abandonara

para sempre. Continuou a trabalhar com tenacidade e a viver calmamente; mas a vida

tornara-se-lhe solitária, vazia. Nem todos os louros e triunfos que conquistava em sua

carreira conseguiam apagar de sua lembrança a expressão da fisionomia de Kay, quando

o vira pela ultima vez. Onde estaria ele? Que estaria fazendo? Estas perguntas

torturavam-na sem tréguas. Todos os dias despertava dizendo: "Talvez ele volte hoje", e

todas as noites tentava dormir com um pouco de esperança: "Talvez amanhã; quem

sabe?" Mas ele não vinha.

Chegou o inverno, em seguida o Ano Novo e ela não sabia noticias de Hallam. Sabia

apenas que estava vivo, pois de quinze em quinze dias Mr. Hallam recebia um postal seu;

contudo, ninguém descobria seu endereço e eram tão regulares seus protestos de que

tudo ia bem, que Robin percebeu não passar aquilo de uma simples fórmula.

Não podia crer que tudo lhe corresse bem; si assim fosse estava certa de que ele

escreveria ao pai mais explicitamente.

Page 123: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

O velho Hallam veio procurá-la para perguntar-lhe se não sabia algo mais definido,

mais promissor, sobre Kay. Mas, Robin, olhar sombrio, não fez mais que sacudir a

cabeleira negra e murmurar por entre lábios convulsos:

— Nada, nada.

— Não tens tido noticias dele? — indagou Mr. Hallam.

— Nem uma linha! Nenhuma palavra! — respondeu Robin quase num soluço. —

Mas ele vencerá — acrescentou, erguendo levemente a cabeça. — Ele vencerá. Vi a

expressão do triunfo em seus olhos...

Só ela, porém, sabia a dor que lhe despedaçava o coração. Não havia uma única

pessoa que lhe pudesse dar noticias de Kay. Até mesmo Fable nada lhe podia dizer.

Aquele postal que Mr. Hallam recebia quinzenalmente era a soma total de tudo que se

sabia sobre ele.

Mas um dia, quase no inicio do novo ano, Robin avistou-o. Deu com os olhos em

cheio no rosto de Kay, mas, por um enlouquecedor ardil do destino, não pôde detê-lo.

Encontrou-o para perdê-lo no mesmo instante.

Estivera fazendo algumas cenas de rua para o seu filme; era uma cena de miséria e

fora filmada nas estreitas e imundas ruelas que ficavam a poucas centenas de metros, por

traz da arte e do conforto do distrito de Chelsea.

Foi por um dia friorento de fins de fevereiro e as primeiras sombras da noite desciam

sobre a terra. Robin estava morta de cansaço. Detestava cenas de rua; os passantes

atravessavam-se no caminho e Shale zangava-se; outros paravam para assistir á

filmagem e deixavam-na nervosa. Sempre se sentira exausta ao fim dessa espécie de

trabalho. E naquele dia não era menor a sua fadiga. Recostada a um canto da grande

limousine em que Shale a mandara para casa, semi-cerrava os olhos, deprimida ante a

miséria das ruas atraves das quais era conduzida pelo elegante e perito chofer de Shale.

Havia momentos em que a tortura de seu coração se tornava intolerável.

Numa hora em que o carro diminuiu a marcha para dobrar uma esquina, sua

atenção voltou-se para um homem que caminhava na calçada, em direção contraria á do

automóvel. Não trazia sobretudo, a gola do paletó surradissimo estava erguida, tinha as

mãos enterradas nos bolsos e vinha curvado para a frente, tentando esconder o rosto do

vento cortante que soprava.

Como, ao virar a esquina, o chofer tocasse a buzina, o homem levantou a cabeça;

sob a luz fosca do anoitecer suas faces eram de uma palidez mortal.

Robin debruçou-se rapidamente á janelinha, pondo a cabeça para fora.

O passante voltou na sua direção o rosto magro e livido e, por um instante, seus

olhos se encontraram.

— Kay! — gritou ela.

Mas o carro já dobrara a esquina, desusando rapidamente por uma outra rua e

Hallam perdera-se de vista.

No mesmo instante Robin pôs-se a bater freneticamente no cristal que a separava

do chofer, ordenando a este que parasse. Obedecida sua ordem, saltou, disse-lhe que

esperasse e correu para a esquina. Não podia enxergar muito longe; a luz tornava-se

cada vez mais embaçada; mas, até onde chegava sua vista, não havia o menor vestígio

de Hallam. Dobrou a esquina e correu pela rua em que o encontrara, examinando todos

Page 124: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

os lados. Mas Kay desaparecera. Foi até á próxima esquina e aí parou, volvendo olhos

ansiosos para todas as direções; nada viu, porém. Mas, certamente, em tão curto espaço

de tempo Kay não poderia ter ganho tamanha distancia. Ou teria demorado mais do que

supunha para descer do auto? De qualquer modo, de nada adiantava correr sem rumo

por aquelas ruas imundas. Se Kay tivesse atingido aquela esquina poderia ter tomado tres

direções diferentes — direita, esquerda e fronteira. Que chance, pois, lhe restava de

alcançá-lo, se tomasse a direita? Voltou desanimada. Então lhe veio ao cérebro a

lembrança de que ele poderia morar em uma daquelas ruas miseráveis; talvez tivesse

desaparecido tão rapidamente por ter entrado em algum daqueles pobres casebres. Mas

em qual deles? Duas longas filas dessas sórdidas habitações alinhavam-se diante de

seus olhos. Tentaria descobri-lo de qualquer maneira.

Bateu á porta da primeira casa. Veio abri-la um homenzinho de faces encovadas e

cabelos cor de areia, enfiado num par de calças de um cinza duvidoso e numa camisa

encardida. Sua surpresa ao vê-la arrancou-lhe uma exclamação; essa exclamação

provocou um acesso da mais terrível tosse que jamais chegara aos ouvidos de Robin. A

tosse, por sua vez, provocou a presença de uma mulher gorda e horrenda, que surgiu dos

fundos da casa, em meio de uma verdadeira tempestade de insultos e palavrões. Quem

era ela? Que desejava? Com que direito vinha bater á porta de uma casa respeitável para

obrigar uma pobre alma doente do peito a ir de encontro á morte? Em resumo foi isso que

a mulher disse; a expressão era consideravelmente menos agradável e mais decorativa.

Robin afastou-se da porta, apavorada ante o que, sem querer, provocara. E, da calçada,

balbuciou que batera apenas para indagar si Mr. Hallam morava ali.

— Não, não mora aqui. Nunca ouvi falar nele e nem quero ouvir — foi a violenta

resposta.

Em seguida a porta foi batida em pleno rosto da jovem. Mais uma vez Robin viu-se

em meio das sombras da rua. Deu alguns passos antes de arriscar-se a maiores

investigações. Mais duas ou tres tentativas falharam como a primeira, embora fosse

recebida com menos violência. Mas uma faisca de esperança nasceu em seu coração,

quando uma senhora de fisionomia bondosa lhe disse que devia procurar Mrs. Hopkins,

no numero 63.

O numero 63 ficava do outro lado da rua, próximo á esquina em que encontrara Kay.

A luz dos pequenos farois traseiros do grande carro de Shale lembrou-lhe que

dissera ao chofer para esperar. Correu até á limosine e retirou a ordem dada, dizendo-lhe

que podia ir embora. Encontrara um conhecido, explicou ela, e iria para casa só, com toda

a facilidade. O chofer tocou no boné, pôs o carro em movimento e este começou a

deslizar pela rua. Assim que Robin o perdeu de vista, atravessou a rua para tentar a sorte

no numero 63.

Uma porta roída pelo tempo foi aberta diante de si por uma mulher magra,

esquelética e quase esfarrapada. Atraves da penumbra ela parecia anormalmente alta e

seus olhos fixaram-se em Robin com uma expressão dura e pouco acolhedora.

— Disseram-me que talvez a senhora pudesse... — começou Robin, interrompendo-

se para terminar mais simplesmente: — Por acaso Mr. Hallam mora aqui?

A mulher magra lançou-lhe um olhar de suspeita.

— Que deseja com Mr. Hallam? — perguntou ela.

Page 125: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Então ele mora aqui? A senhora o conhece? Oh, poderei vê-lo? Por um minuto

apenas. Sou... sou... uma grande amiga sua — balbuciou Robin, ansiosa.

O olhar de suspeita continuava a pairar sobre ela. Robin não estava certa se a

suspeita daqueles olhos fora provocada por sua presença, ou se era uma expressão

natural e permanente.

Súbito a mulher voltou-se e da casa, gritou para o interior:

— Emy, sobe lá em cima e vê se Mr. Hallam está! Ele ocupa o sotão dos fundos; é

um verdadeiro gentleman — acrescentou, voltando-se para Robin.

Emy, uma pequena de olhos enormes e cabelos em desalinho, apareceu, olhou para

Robin e disse com rústica cordialidade:

— Oh, ele tem um retrato da senhorita. Seria capaz de conhecê-la em qualquer

lugar.

Robin foi conduzida ao pequenino hall.

— Sim, sou uma velha amiga dele. Poderei subir contigo? A senhora dá licença que

eu suba com Emy? — suplicou, voltando-se para a mulher que a recebera.

Evidentemente Mrs. Hopkins possuía um coração, encaixado em algum canto do

seu arcabouço de pele e ossos, pois consentiu que Robin seguisse Emy pela estreita

escada.

Com o sangue a vibrar-lhe nas veias, Robin acompanhou a pequena de cabelos em

desalinho, até ao sotão. Suas pernas tremiam ao pararem em frente á porta, á qual a

menina bateu.

A expectativa de uma resposta foi simplesmente intolerável. Ninguém respondia.

Emy tornou a bater, esperou e ao cabo de um instante empurrou a porta e enfiou a

cabeça pelo quarto.

— Ele não está — disse ela, recuando.

— Deixa-me espiar um pouquinho lá para dentro? — implorou Robin em voz baixa.

— Deixa-me ver como é o quarto dele? Por favor, Emy! Se consentires isso terás a minha

gratidão pelo resto da vida.

— Meus Deus, para que tanta coisa? Pode entrar. Que mal há em olhar?

E Robin viu-se no quarto de Kay. Emy ao seu lado. Parou na porta e lançou um olhar

á volta, sentindo o coração gelar-se.

Era um quarto pequenino, cuja janela estreita deixava entrar as derradeiras

claridades do dia. Fora, como único panorama, via-se uma enfiada de fundos de quintais

repugnantes de imundicíe e, contra o céu pardacento, desenhava-se, em cinza escuro, a

silhueta desigual de telhados e chaminés. O teto do quarto era baixo e parecia ainda mais

baixo por ser quase preto. O papel rasgado e sujo que cobria a parede despregava-se

desta em um dos cantos, onde a umidade era visivel. Não havia fogão de inverno e era

com dificuldade que um leito estreito e duro, uma mesinha, um lavatorio e duas cadeiras

de pau conseguiam vencer a escassez de espaço. Um farrapo de tapete estendia-se sob

os pés de Robin; cobria o leito uma velha colcha de retalhos; um pedaço de filó rasgado

esvoaçava á janela como um trapo ao vento; sobre a mesinha, um pano vermelho

desbotado deixava ver uma infinidade de manchas de espermacete. Isto fez com que a

jovem tornasse a examinar as paredes; não havia no quarto uma única lâmpada eletrica.

Parecia-lhe que seus olhos não faziam mais que absorver um detalhe miserável após

Page 126: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

outro. Era aquele o quarto de Kay! Ele vivia, respirava e repousava seu corpo naquele

quarto umido e apertado! Kay! O rapaz que sempre vivera rodeado de toda sorte de

conforto! Vieram-lhe á lembrança os detalhes do atelier de Chelsea, a pouca distancia

daquele miserável lugar... O rico mobiliário, as luxuosas comodidades... E o contraste

parecia incrível...

E, súbito, á cabeceira do leito, semi-oculto pela penumbra da hora, Robin descobriu

sua própria imagem.

Atravessou o quarto, debruçou-se por cima da cama e examinou o retrato que fora

tirado, havia meses, no estúdio cinematografico; os olhos muito abertos pareciam

embebidos em melancolia e o mais leve de todos os sorrisos entreabria-lhe os lábios.

Que significava a presença daquela fotografia no trágico exilio de Kal? Seria um

aguilhão para manter sempre aceso seu ressentimento contra si, para incitar sua

resolução quando esta ameaçasse fraquejar? Ou quem sabe ainda lhe tinha uns restos

de amor e era para diminuir sua solidão que guardava junto a si aquele retrato? Por

ventura, ao pousar os olhos em sua imagem, lembrar-se-ia ele de que se haviam amado?

Que espécie de sentimento o teria levado a colocar sua fotografia junto á cabeceira de

sua cama, para onde, de manhã e á noite, seu olhar fatalmente teria de voltar-se?

— É o seu retrato, não é? — indagou a rapariga de olhos enormes e cabelos em

desalinho.

Robin afastou-se apressadamente, voltando-se para a pequena.

— É, sim. Emy, que faz ele? Em que trabalha? — perguntou com acentuado tremor

na voz.

Emy, porém, meneou a cabeça. Ignorava. Robin nada pôde saber com ela. Todas as

perguntas que lhe vieram á lembrança, fê-las em vão. Emy nada sabia e nem sequer se

mostrava interessada.

Robin teve ímpetos de chorar. Ter chegado tão perto de Kay e nada conseguir

saber!

Pediu licença para esperar por ele e obteve-a. Emy saíu em busca de uma vela,

mas, como não a encontrasse, Robin sentou-se em meio da escuridão do quarto, disposta

a esperar.

Hallam, porém, não vinha. Ás dez horas Mrs. Hopkins expôs-lhe conscienciosas

objeções e Robin compreendeu que precisava retirar-se.

Saíu, presa agora dos maiores tormentos, levando no espirito uma verdadeira

confusão de sons e visões — a tosse horrível do homenzínho de rosto encovado, os

desaforos e a voz estridula da mulher gorda, a rua imunda, o olhar desconfiado e a

magreza de Mrs. Hopkins, os cabelos despenteados de Emy. Todos esses miseráveis

detalhes pareciam gravados no cérebro de Robin. Era preciso que Hallam estivesse na

mais negra miséria para morar ali. Chegou ao seu apartamento inteiramente vencida pela

tortura de seus pensamentos.

Dizem que uma desgraça nunca vem só. Ao abrir a porta do apartamento, Robin

voltou-se maquinalmente para a caixa de cartas. Encontrou apenas uma, para si. Retirou-

a da caixa e, rasgando o envelope, dirigiu-se ao seu quarto.

Page 127: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Sentada á beira do leito, a carta diante dos olhos, ficou por algum tempo como que

inconsciente até que aquelas breves palavras se fizeram nítidas em seu espirito. Ainda

assim levou a mão á fronte, sem compreender bem.

A carta informava-a laconicamente, com a fria crueldade das comunicações oficiais,

que seu pai falecera na véspera.

A infeliz continuou sentada por muito tempo, rígida, olhos cravados na missiva

terrível, incapaz de compreender a verdade. Quando a compreensão chegou, ela não

mais estava em condições de chorar. Tombou para traz e seu corpo ali ficou, atravessado

no leito, inerte, como que petrificado.

Tres dias lentos e dolorosos se passaram, durante os quais Robin teve a sensação

de que tudo era irreal, incrível. Esperara tanto tempo pelos dias futuros em que seu pai

tornaria á liberdade. Trabalhara para que, então, a vida lhe fosse suave e fácil;

economizara seu dinheiro para que seu sonho de fazê-lo feliz se realizasse. Tudo em vão.

Ele morrera miseravelmente só, isolado de todos, da maneira mais amarga e cruel.

Tres dias lançaram-na, das profundezas da ansiedade e da tristeza, para as areias

desertas da solidão.

Seu pai estava morto e enterrado; Kay sofria sabe Deus que espécie de misérias e

privações. Fora-lhe impossível, no desespero daqueles três dias horríveis, tentar

novamente encontrá-lo, mas, ao caír da quarta tarde, preparou-se para fazê-lo. Acabara

sua pequena “toilette” e ia saír, quando a campainha da porta tilintou.

Abrindo-a, viu-se frente a frente com Alison Tearle. Alison, com as faces lividas e

uma expressão de desespero no olhar.

— Oh, Robin, posso entrar? Por favor! Preciso falar contigo. Não me mandes

embora! — exclamou ela, rapidamente, sem esboçar sequer uma saudação.

Robin ficou muda por um momento, surpreendida com o inesperado do

acontecimento. Alison era a ultima pessoa no mundo que desejava ou esperava ver, mas

o desespero da jovem era por demais intenso para não recebê-la.

— Pois não, entra — replicou, após uma pequena pausa. Conduziu Alison á

pequenina saleta de estar e convidou-a a sentar-se.

Alison aceitou o oferecimento com os olhos rasos d'agua, torcendo e retorcendo

nervosamente o lenço.

— Que é que há, Alison? — perguntou Robin. — Para que me procuraste?

Alison, porém, não podia responder. Cobriu o rosto com as mãos e começou a

soluçar ruidosamente, com uma espécie de gemidos roucos que poderiam inspirar

piedade numa criança, mas que irritavam, numa mulher.

— Acalma-te — continuou Robin com uma certa impaciência. — Por favor, Alison.

Tenho que saír.

Subitamente, Alison ergueu para a outra o rosto umido de lagrimas.

— Oh, Robin, não me trates com aspereza. Ser-me-ia impossível suportá-lo. Creio

que enlouqueceria. Robin, papai foi-se.

— Foi-se? Quer dizer que ele morreu? — indagou Robin.

Alison meneou a cabeça.

Page 128: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não, foi-se embora. Abandonou-me. Abandonou tudo. Tomou todo o dinheiro que

possuiamos e... desapareceu, deixando-me sozinha. Robin, não tenho um centavo

sequer. E... estou horrorizada!

Estendeu as mãos e segurou os braços de Robin.

— Oh, não te desesperes desse modo — exclamou Robin. — Não há que recear.

— Mas estou inteiramente só e não tenho dinheiro! Que devo fazer? Não é horrível,

Robin? Oh, Robin, não achas que é horrível?

Robin desvencilhou-se das mãos que a prendiam.

— Sim, acho... acho que é, de fato, horrível. Quando se deu isso, Alison?

— Só descobri hoje pela manhã. Ele partira, deixando-me um bilhete em que dizia

não voltar mais. Assim como eu soubera estragar tudo estupidamente, tambem saberia

arranjar-me sozinha. Foi isso que ele disse. Corri imediatamente ao banco e verifiquei que

retirara todo o dinheiro que havíamos depositado nas ultimas semanas. Como vês, ele

planejou tudo com antecedência — planejou deixar-me nesta situação. Agora estou eu

sem um penny na bolsa. E não posso ser pobre, Robin. Não posso! Não nasci para isso.

Seria a minha morte. Oh, seria a minha morte, bem sei.

E de novo ocultou o rosto com as mãos para continuar seu irritante soluçar.

Robin afastou-se um pouco, reprovando a própria falta de caridade e, contudo,

francamente incapaz de sentir qualquer espécie de simpatia para com Alison, a não ser

uma leve piedade que muito se aproximava do desdém. Mas que fazer? Havia em Alison

algo que a repugnava.

— Robin, deves lembrar-te, ainda, das jóias maravilhosas que eu possuía. Pois ele

as levou também. Carregou tudo, menos a pulseira que estava comigo... Oh. Robin, sou a

moça mais infeliz do mundo!

Mais uma vez explodiu em soluços; soluços fortes e angustiados que lhe

convulsionavam as frágeis espaduas.

Se ao menos, pensou Robin, tentando ser mais agradável do que até ali vinha

sendo, si ao menos Alison chorasse de um modo mais sincero, mais comovente...

— Oh, para que chorar? Dar-te-ei dinheiro. Possuo-o em quantidade e agora não

tem a menor utilidade para mim — disse ela um tanto abruptamente. — Senta-te direito e

enxuga teus olhos até ficarem bem secos. E... tenta sorrir.

Alison obedeceu.

— Robin, estava falando a serio quando disseste que me darias dinheiro? Podes

fazer isso? Estás assim tão bem? Podes dar-me bastante? Bastante mesmo?

Robin riu-se — não lhe foi possível conter-se -— mas o som de seu riso era quase

mordaz.

— Poderei dar-te o suficiente pois, como sabes, continuarei a ganhar — replicou

com certa dureza.

— Oh, sinto-me tão aliviada, tão fantasticamente aliviada! É natural que não tenhas

muita coisa a fazer do teu dinheiro, não? Quero dizer que não estás habituada a uma vida

de muito luxo, como eu, que sempre fui rica e...

— Alison — explodiu Robin, interrompendo-a — és verdadeiramente cômica. Uma

cômica realmente admirável, mas... peço-te, não estiques demais o meu senso de

"humor": poderás arrebentá-lo — acrescentou com um pequeno e singular tremor na voz.

Page 129: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Bem sei que estás economizando para o teu pobre pai. Mas ele se contentará

com qualquer coisa, depois...

Robin voltou-se brusco e encarou-a, olhar inflamado de exaltação.

— Meu pai morreu — exclamou com voz tensa e surda. — Se eu ainda o tivesse

para reservar-lhe minhas economias, creio que seria capaz de te ver morrendo á fome e

não te oferecer um único penny. Mas ele morreu e todo o meu dinheiro me é... inútil.

Podes ficar com ele. Só te digo uma coisa: não permito que alguém, seja lá quem for, se

refira a papai nesse tom. Não permito, ouviste? E quando se tratar de pais, é bom que te

cales, pois o meu, pelo menos, roubou para mim e não de mim. Compreende bem tudo

isto, porque é... é muito importante.

Sua voz cessou e fez-se silencio.

Alison quedou imovel onde estava, ocupada em assimilar bem o conselho de Robin;

acabou compreendendo que tal aviso era igualmente importante para si.

— Desculpa-me, Robin — volveu ela, o mais sinceramente que lhe foi possível.

Robin sacudiu a cabeça.

— Estar direito — replicou secamente. — Que queria, dizer teu pai quando te

acusou de ter estragado tudo?

— Queria referir-se a Kay, bem sabes — retorquíu Alison em tom diferente.

— Sim, mas de que maneira?

— Papai queria que eu... me casasse com ele... pela sua fortuna. Aquela noite que

eu estive... no atelier, lembras-te? Pois bem, papai tencionava encontrar-me lá. Eu

estraguei todo o plano dele, voltando para casa. Ele queria obrigar Kay a desposar-me,

porque perdera quase tudo que possuíamos.

— Compreendi tudo isso. Nunca me enganei a respeito de teu pai.

— Robin, tu e Kay estão casados, agora, não estão?

— Sim, estamos.

— E não vivem juntos? Que aconteceu? Dizem tanta coisa... esquisita... e

desencontrada. Realmente não se sabe em que acreditar.

— A mim pouco se me dá que acredites ou deixes de acreditar no que dizem, —

retrucou Robin.

— Oh, está claro, se pretendes levar a conversa para esse lado... Mas é que sei

uma coisa.

— Que?

— Não estou bem certa si devo contar-te — começou Alison.

— Tens que me contar! — replicou Robin, voltando-se para receber a informação.

Alison lembrou-se de que não era conveniente contrariar Robin e contou-lhe o que

sabia.

— Meu pai extorquiu muito dinheiro de Kay — disse ela.

Os olhos de Robin arregalaram-se cheios de interrogações.

— Extorquiu dinheiro de Kay? Como? Para que?

— Para guardar segredo sobre a tua presença no quarto de Kay áquela... hora da

noite.

Robin caíu das nuvens. Alison confirmou com a cabeça.

— Ele obrigou Kay a pagar por isso? — perguntou.

Page 130: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Sim; diversas vezes.

— Quanto?

— Não sei. Milhares de libras, acho eu.

— E Kay deu todo esse dinheiro ao teu infame pai, unicamente para salvar meu

nome? Estás bem certa disso? Absolutamente segura?

— Absolutamente! Papai mesmo me contou.

— E que o levou a fazer-te semelhante confissão?

— Ele ficou furioso comigo por... por... — Alison começou a gaguejar e uma súbita

expressão de medo refletiu-se em seus olhos.

— Por que? — insistiu Robin, dando um passo na direção da jovem.

— Porque dei com a língua nos dentes e... estraguei o seu jogo. Oh, Robin, perdoa-

me. Lamento sinceramente o que fiz. Perdoa-me por favor!

— Com que então foste tu que andaste espalhando tudo aquilo a meu respeito,

hein? — murmurou Robin lentamente.

— Oh, bem sei que meu procedimento não foi correto, principalmente levando em

conta a maneira generosa pela qual me livraste de papai, aquela noite.

— Estás muito enganada! — protestou Robin desdenhosamente. — Não fiz o que fiz

para livrar-te de teu pai. Fi-lo para livrar Kay de ti.

O desapontamento que se estampou na fisionomia de Alison tinha qualquer coisa de

cômico.

— Oh, pensei que o tivesse feito... por mim — balbuciou ela com voz débil.

— Foi por essa razão que, depois, me difamaste? — retorquiu Robin.

— Robin, não vais dar importância a isso, não é? Quero dizer que não vais voltar

atras com tua palavra e deixar-me desamparada, agora. Não faças isso, Robin, eu te

imploro. Do fundo do coração eu te peço que me perdões. Reconheço que foi uma

baixeza de minha parte ter feito o que fiz. Só te peço uma coisa. Não me abandones, nem

me mandes embora. Não tenho para onde ir nem a quem recorrer. Oh, Robin, perdoa-me

e cumpre tua promessa.

— Oh, pelo amor de Deus, cala-te, Alison! Tuas queixas me irritam. Perdoar-te?

Tolinha, sou-te muito grata. Pelo menos com teu despeito impediste teu pai de continuar a

extorquir dinheiro de Kay.

E, então, acrescentou como que para si própria:

— Agora compreendo por que restava tão pouco dinheiro a Kay. Ele deu-o todo por

mim. Kay, Kay, como poderei alcançar teu perdão?

Cobriu o rosto com as mãos e quedou imovel. Um certo instinto de simpatia

apoderou-se de Alison, por um momento, fazendo-a guardar silencio. Súbito, murmurou

com timidez:

— Robin, que é que te aflige? Não poderias contar-me? É por causa de Kay?

A nova expressão da voz de Alison foi como gota d'agua para a aridez do coração

de Robin. Ao responder, pois, sua voz, tremula, também se transformara:

— Ele está numa miséria horrorosa, Alison, extremamente pobre e sozinho. Fui eu a

única culpada disso e agora contas-me que ele pagou uma fortuna a teu pai, por mim,

para salvar-me!

Page 131: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Nesse caso, Robin, em lugar de dares teu dinheiro a mim, ajuda Kay com ele, —

sugeriu Alison sob um impulso raro e momentâneo, que logo em seguida lhe causou certo

temor.

— Ele não me permitiria. Já fiz uma tentativa. Kay não aceitará coisa alguma de

mim. Nem mesmo alguns shillings!

Isto provocou, no mais intimo de Alison, um instintivo sentimento de alivio. Percebeu-

o e sentiu uma leve vergonha.

Robin levantou-se.

— Preciso saír, Alison. Já resolveste onde vais ficar?

— Não sei. A casa está vazia. Todos os empregados arrumaram suas malas e

partiram, ao saber do acontecido.

— Podes ficar dormindo aqui esta noite, se quíseres. Tenho um pequeno quarto

desocupado. Vai á tua casa e traz o que te for necessário. Se eu não estiver de volta

antes de ti, aperta a campainha e chama pelo zelador. Amanhã poderemos fazer planos

melhores.

Dirigiu-se á porta. Alison pôs-se de pé e seguiu-a. Antes de saírem, Robin parou

novamente.

— Creio que nunca poderemos ser... verdadeiramente amigas — disse, lentamente,

á outra. — Sempre vivemos mais ou menos de ponta, não é? Mas, todavia, sinto uma

espécie de gratidão estranha e esquisita, pelo que me revelaste hoje. Não te abandonarei,

Alison, portanto não precisas preocupar-te.

Deixaram o apartamento juntas e desceram a mesma rua.

— Tens algum dinheiro? — perguntou Robin.

— Sim, papai não chegou propriamente até minha bolsa — replicou Alison, em tom

submisso.

Um momento antes de se separarem tornou a falar:

— Robin, por que não havemos de ser amigas? Desejo-o sinceramente. Nunca te

conheci bem. Robin, bem sabes que nunca amei Kay; tudo aquilo era obra de papai. Por

que, pois, não podemos ser amigas?

Havia uma espécie de afetada vaidade naquela descarada asserção.

Robin ergueu os olhos para a companheira e deu uma risada curta.

— Talvez por seres a mais engraçada de todas as mentirosas, Alison — retorquiu

ela.

Assim dizendo, fez sinal a um taxi e deixou Alison de pé na calçada, olhando-a,

espantada e enrubescida.

CAPITULO XII

Tarde da noite, quando Robin voltou ao apartamento, encontrou Alison na sua sala

de estar. Esta ultima pusera-se perfeitamente á vontade. Fora até sua residência, reunira

todos os seus objetos de uso e, então, se achava refestelada na mais confortável

Page 132: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

poltrona, envolta rum colante "peignoir" de veludo de seda, folheando

despreocupadamente uma revista.

Parecia muito satisfeita mas, assim que deu pela presença de Robin, armou uma

cômica expressão de sofrimento. Estava tão habituada a fingir que o fazia instintivamente.

Mas não havia fingimento nas faces lividas e nos lábios contraídos de Robin. Seus

olhos fixos e muito abertos pareciam envoltos em sombras. Caminhou lentamente para a

mesa, deixou caír sobre ela a bolsa e começou a descalçar as luvas.

— Ele não estava lá — disse de chofre. — Mudou-se e não sabem para onde foi

nem o que está fazendo. E, também disso, sou eu a culpada.

Seus lábios tremiam convulsamente.

— Estás te referindo a Kay? És a culpada? Por que? — perguntou Alison.

— Contaram-lhe que eu o procurava outro dia e ele mudou-se. Receberam-me com

uma torrente de pragas porque fiz com que perdessem um pensionista — explodiu ela. —

Alison, ele deve odiar-me, para me evitar desse modo, não achas?

Alison não pôde conter a pequena onda de triunfo que se ergueu em seu coração.

Robin a recebera na hora de maior e mais desesperadora necessidade; prometera-lhe

casa, dinheiro e comida; mas isto não alterava o fato de ser Robin a mulher que lhe

roubara Kay. Sua consciência dizia-lhe que devia sentir vergonha por regosijar-se com a

desgraça de sua protetora e a pequena parte nobre de sua alma envergonhou-se. Mas

seu egoísmo era mais forte e, por um momento, a chama do triunfo ergueu-se tão alta em

seu intimo que se lhe refletiu nos olhos. Robin viu-a; não podia deixar de ver e disse com

um sorriso impregnado de amargura:

— Oh, bem sei que todos zombam de mim, Alison, mas eu o amo de corpo e alma e

não me envergonho disso.

Alison sentiu-se devorada por um sentimento de remorso que jamais experimentara.

— Robin, perdoa-me — murmurou rapidamente. — Lamento sinceramente tua sorte

e faria tudo para melhorá-la. Mas que se vai fazer? Quando um homem não gosta de uma

mulher ninguém pode obrigá-lo a lhe ter amor, não achas?

Robin, com a paciência esgotada, proferiu uma frase cuja lembrança, mais tarde,

não a deixaria muito orgulhosa.

— Sem duvida aprendeste isso á própria custa.

Alison tornou-se escarlate e Robin, imediatamente arrependida, acrescentou:

— Oh, não tive intenção de ofender-te, Alison. Deixemos de ironias e procuremos

ser mutuamente sinceras.

Alison, quase comovida, reuniu toda a coragem que lhe era preciso para aceitar a

proposta de Robin.

— Para ser franca contigo, Robin, Kay nunca me deu uma gota de confiança. Talvez

te seja algum consolo sabê-lo — confessou ela afinal.

— Obrigada, Alison — respondeu Robin calmamente. Fez-se um pequeno silencio;

Alison continuava a folhear lentamente a revista; Robin abotoava e desabotoava os

colchetes de sua luva.

— Mas, Robin, como podes saber ao certo se ele te odeia? — perguntou Alison, de

súbito. — Talvez ele se mudasse, receoso de que o encontrasses na miséria.

Page 133: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Ele sabe que isso não teria importância para mim — replicou Robin. — Sabe que,

rico ou pobre, eu o amaria do mesmo modo. Mas não quis que eu o encontrasse e por

esse motivo mudou-se. Se me amasse não faria isso; pelo contrario, ser-lhe-ia um prazer

tornar a ver-me.

— Mas estás bem certa de que ele se mudou por tua causa? Uma infinidade de

outros motivos poderiam tê-lo obrigado a isso. Talvez o quarto não fosse confortável. Foi

o que se deu com papai e comigo o ano passado, em Cowes. Não havia um hotel que

prestasse em toda a cidade e éramos obrigados a pernoitar lá. Nunca vi tamanha falta de

conforto, minha cara. Nem sequer um banho podia-se tomar! E quanto á comida — ora,

bem sabes como papai era exigente nessa matéria. Queria que visses os pratos que

punham na mesa! Papai pagou as despesas e fomos embora. Não é possivel viver desse

modo, não achas? Talvez se tenha dado o mesmo com Kay. Ele estava habituado a tanto

conforto...

Robin ouvia, quase sorrindo, as palavras de Alison que revelavam o quanto esta

ultima estava longe de imaginar a situação de Kay.

Kay mudar-se daquela casa horrível por achar o quarto sem conforto! Como se ele

ainda pudesse influenciar-se por tais escrúpulos e exigências! Mas Robin compreendeu

que Alison, com a pobreza e a futilidade de seu espirito, procurava bondosamente

encorajá-la, por isso limitou-se a sacudir a cabeça dizendo:

— Não creio que seja uma dessas a verdadeira razão.

— Mas, Robin, ele já te amou, não é? Por que iria ele casar-se contigo se não te

amasse?

Robin, porém, não podia conversar com Alison sobre isso.

— Oh, não sei! Para mim tudo isto não passa de um enigma, o mais horrível e

trágico de todos os enigmas. Vamos comer qualquer coisa? — indagou, procurando pôr

ponto final ao assunto.

A proposta foi aceita e a conversa terminou. Alison tratou de se pôr á vontade no

pequeno apartamento de Robin. Servia-se dele exatamente como se fosse um hotel,

saíndo e entrando á hora que entendia, trazendo suas amigas para almoçar e jantar

consigo e comendo todas á custa de Robin. Trouxe tudo que restava de seu em sua

antiga casa e instalou-se com Robin como que para o resto da vida. Seu pai não voltara.

Parecia ter sumido de uma vez, o que fornecia a Alison largas oportunidades de tornar

ainda mais patetico o papel de heroina-martir que em certas ocasiões representava.

Robin, por sua vez, estava demasiadamente ocupada com os trabalhos do estúdio e por

completo absorvida pela angustia de seu coração, para importar-se com os atos de

Alison.

Uma tarde, porém, esta ultima chegou ao apartamento num estado de grande

excitação. Robin chegara do estúdio havia pouco tempo e estava em seu quarto, quando

Alison, surgindo á porta do aposento, exclamou:

— Robin! Encontrei Kay!

Robin que, diante do espelho, penteava sua negra cabeleira, ficou imovel por um

momento. Depois voltou-se lentamente, as faces inundadas por súbito rubor, um tumulto

de perguntas a saltar-lhe dos lábios.

— Kay? Onde? Como estava ele? Que é que te disse? Chegaste a falar-lhe?

Page 134: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Alison entrou e sentou-se no leito, visivelmente cheia de novidades e ansiosa por

contá-las.

— Foi numa ruazinha próxima á Estação Victoria e seu aspecto era horrível, minha

querida!

O coração de Robin tornou-se frio como gelo.

— Horrível, Alison? Que... que queres dizer com isso? — balbuciou.

— Tão mal vestido! Quase não o reconheci. Ele costumava andar sempre tão

elegante.

Atras de todas as emoções do momento, Robin acabou de convencer-se de que

Alison era uma idiota. Só uma pessoa incuravelmente imbecil poderia ter feito semelhante

comentario.

— Ele está pobre — explicou-lhe por fim.

— Foi a impressão que tive. Nunca pude conceber Kay com umas roupas tão

surradas, quase maltrapilho, Robin. Ele trazia uma espécie de lenço á volta do pescoço e

— (involuntariamente abaixou a voz) — eu acho que ele estava sem colarinho. É incrível!

Francamente, tive receio que alguém me visse conversando com ele. É um escrúpulo

natural.

— Alison!

O grito de Robin traduzia menos indignação que angustiada simpatia por Kay.

— Se o fiz foi unicamente por ti. Sei o quanto desejas ter noticias suas. Além disso,

já era quase noite e não havia muita gente na rua.

— Conta-me apenas o que ele te disse — interrompeu Robin, sentindo os lábios

secos e tensos.

Alison tomou uma pequena respiração e deu inicio á sua narrativa.

— Contei-lhe o que papai fez, a maneira cruel por que fui tratada, e de como vim

morar contigo sem me importar com a falta de espaço do teu apartamento, o que é de

admirar, dado o conforto em que sempre vivi.

— Oh, conta-me o que ele disse! — exclamou Robin.

— Disse-me que estava com muita pena de mim, pois calculava o quanto eu não

teria sofrido. Como é natural, também eu lamentei que ele tivesse perdido tudo que tinha,

embora a minha situação seja pior do que a dele, visto eu ser mulher.

— Mas não descobriste o que está ele fazendo? Como está sua saúde? Onde

mora? Não procuraste indagar alguma coisa importante? — perguntou Robin, ardendo de

impaciência ante o egoísmo de Alison.

— Não era preciso perguntar se ele ia mal. Isso entrava pelos olhos da gente. Seus

punhos estavam poidos. Imagine-se Kay com punhos poidos! Suponhamos que ele

encontrasse alguns dos velhos amigos; que iriam pensar?

— Oh, pelo amor de Deus, não me fales mais nas suas roupas! Dize-me como

achaste a sua pessoa — insistiu Robin, crispando nervosamente as mãos.

— Um tanto magro. Nem sombras do rapaz bonito que era. Foi uma terrível

decepção para mim.

Nesse ponto, Robin sorriu amarga e desconsoladamente.

— Alison, tu és... oh, não sei bem o que és! Se apenas... se apenas eu o tivesse

encontrado, em teu lugar!...

Page 135: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Ele não teria falado contigo — replicou Alison, com um movimento de cabeça.

— Kay te disse isso? — perguntou a outra avidamente.

— Mais ou menos.

— Por favor, repete-me todas as suas palavras.

— Contei-lhe que tinhas tentado vê-lo e ele disse-me que sabia disso.

— Sim? — exclamou Robin, inclinando-se para a companheira.

— E eu falei-lhe de como vives a imaginar o quanto ele te odeia para fugir de ti da

maneira que foge. A isto ele virou-se, fez menção de seguir seu caminho, mas súbito

voltou e disse: "Dize-lhe..." Mas não terminou a frase, murmurando apenas quase em

surdina: "Não lhe digas nada".

— Estás bem certa de que ele não pronunciou mais nem uma palavra?

— Absolutamente certa. Nem sequer um adeus.

— E foi-se embora?

— Sim.

Robin deu um passo á frente e agarrou Alison pelos ombros.

— Não estás mentindo? — indagou, enérgica.

— Não sejas tola. Está claro que não.

— Mas disseste que ele não teria falado comigo. Ele te declarou isso?

— Pois eu já não te disse? Isso era suficientemente compreensivel. Nem sequer te

mandaria um recado.

Robin deu-lhe bruscamente as costas, cobrindo o rosto com as mãos; não obtivera

resposta a nenhuma das perguntas que lhe torturavam o cérebro; mais que nunca se

sentia devorada pela duvida. Se ao menos pudesse saber qualquer coisa de positivo! Se

ao menos pudesse vê-lo! E contudo, se ele nada lhe tinha a dizer, se queria apenas evitá-

la, esconder-se dela, como podia desejar vê-lo?

De tudo aquilo apenas uma coisa emergia, nitida e decisiva; era o fato de que, a um

simples olhar sobre a pobreza de Kay, Alison o riscara de suas cogitações. Como era

possível a uma jovem gostar de um homem que não tinha dinheiro nem para comprar um

colarinho era algo que sua filosofia não conseguia responder. Naquela ocasião ela

alimentava um flerte promissor com um rapaz muito rico e talvez por isso tivesse

suportado com tanta indiferença o infortúnio de Kay.

Aquele estado de perpetua ansiedade começou a manifestar-se no fisico de Robin.

Seus lindos olhos perderam a expressão despreocupada e infantil que outrora os enchia

de encanto; sua boca adquiriu o habito de pender levemente nos cantos. A mudança em

toda ela tornou-se tão acentuada que, ao termino do filme que estavam fazendo, Shale se

lhe aproximou e disse:

— Olha aqui, Robin, tens trabalhado demais. Estás esgotada e tristonha. Tens que

tirar umas ferias para encontrar de novo a alegria de viver.

Robin teve impetos de dizer que um simples descanso não conseguiria isso.

— Teu contrato comigo terminou agora, mas tenho um outro que tomará os teus

próximos tres anos.

— Oh, esplendido! — exclamou ela, procurando imprimir entusiasmo á voz, mas

com o pensamento voltado para uma amarga reflexão.

Page 136: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Consigo mesma dizia: “Enquanto ganho dinheiro a rodo, Kay não pode comprar

sequer um colarinho! Oh, é horrível!"

Todavia aceitou o conselho de Shale e partiu para uma pequena aldeia da costa, em

Devonshire. Ofereceu-se para levar Alison, mas esta ultima achou que pequenas aldeias

da costa, principalmente naquela epoca do ano, não lhe agradariam. Além do mais tinha

que atender a seus interesses particulares e estes reclamavam medidas urgentes.

Por dez dias, Robin suportou aquela vida rústica mas, ao cabo desse tempo, sentiu-

se demasiadamente inquieta para continuá-la. Kay estava em Londres e, ainda que

ignorasse seu paradeiro exato, era para lá que se sentia atraída.

Assim, pois, o décimo primeiro dia encontrou-a de volta. Uma pequena surpresa se

lhe deparou ao chegar.

Em lugar de Alison, encontrou ela apenas uma carta á sua espera. Essa carta

informava-a de que Alison contratara casamento com Teddy Despart — o tal rapaz muito

rico — com cuja família ela fora ficar. Dizia também que, não tendo ela um trapo decente

para usar, fora forçada a comprar alguns vestidos novos. A historia, segundo as próprias

palavras de Alison, era assim: "Eu sabia, Robin querida, que jamais me perdoadas se eu

fosse para a casa de Sir Edward e Dady Despart sem um guarda-roupa decente.

Pareceria tão mal, não achas? Por isso fui ao Dale & Kenion, comprei as coisas mais

indispensáveis e mandei debitar em tua conta. Teddy é fabulosamente rico e está

perdidamente apaixonado, portanto creio que eu não poderia ter arranjado coisa melhor

para mim, não é?

Robin concordou. Fez uma pausa para refletir nesse final de carta onde se revelava

todo o carater de Alison e continuou: "P. S. — Junto incluo a conta de Dale & Kenion.

Estou certa de que irás achá-la muito razoável".

Robin, nesse ponto, foi obrigada a rir; Alison chegava a fazer de sua conduta leviana

e arrogante uma virtude. A conta, ao ser examinada, proporcionou-lhe uma nova

surpresa: As "coisas mais indispensáveis" que Alison comprara em sua conta incluíam

grande numero de futilidades caríssimas. Havia mesmo na conta toda a evidencia de que

Alison visitara a seção de jóias de Dale & Kenion, de onde não saíra com as mãos vazias.

Em resumo, a conta era absurda.

Robin refletiu diante daquele total aterrador e tirou a conclusão de que, para saldá-

lo, precisaria dispor de todas as suas economias.

A principio ficou muito zangada. O procedimento de Alison fora tão leviano, tão

desonesto! Por muito menos, Robert Golden fora preso. "Mas há pessoas capazes de

praticar as maiores infâmias e continuarem impunes", refletiu ela. Tornou a olhar para a

conta. Foi buscar sua caderneta de banco e fez alguns cálculos...

Súbito, empurrou tudo para dentro da sua pequena secretaria e disse em voz alta:

— Oh, para que todo esse dinheiro, afinal? Tenho diante de mim o contrato de Shale

e ninguém que precise de dinheiro.

Além do mais, é um alivio ficar novamente só, no apartamento. Há uma única

pessoa no mundo capaz de curar minha solidão e está claro que essa pessoa não é

Alison.

Telefonou para o estúdio e contou a Shale que estava de volta, pronta para estudar

o contrato, se ele lhe quisesse enviar.

Page 137: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

O contrato veio pelo correio, chegando-lhe ás mãos na tarde daquele mesmo dia.

Era um bom contrato, melhor do que Robin esperara e ela começou uma carta a Shale,

agradecendo e aceitando sua nova proposta.

Não traçara mais que estas palavras:

“Caro Mr. Shale. Muito agradecida pelo contrato. Eu...", quando uma batida á porta

do apartamento veio interrompê-la.

Dirigiu-se ao pequeno hall, abriu a porta e estacou como que petrificada. Atraves da

meia penumbra da hora, os olhos de Kay fixaram-se nos delia e sua voz disse num

singular tom de interrogação:

— Robin?

Ele estendeu rapidamente a mão e conteve um soluço.

— Kay! — sussurrou, tentando mostrar-se fria e calma. — Entra.

Enquanto o rapaz entrava, Robin acendeu a luz e fechou a porta. Voltaram-se então

um para o outro, seus olhos inteiramente incapazes de se encontrarem.

Ao conduzi-lo á saleta de estar, Robin notou que ele tremia da cabeça aos pés e que

seus joelhos ameaçavam dobrar-se.

Por fim tornaram a fitar-se, desta vez, porém, olhos nos olhos. Os de Robin

abaixaram-se em primeiro lugar, passeando ao longo da alta figura de Kay e notando os

detalhes de sua vestimenta, até chegarem aos sapatos rotos que ele usava.

A descrição que Alison fizera dele não fora absolutamente exagerada. Kay estava

quase maltrapilho, porém trazia ao pescoço um colarinho perfeitamente novo. Os olhos de

Robin ergueram-se de novo e, um segundo depois, mergulharam nos dele.

E, se seu coração se despedaçou ante o aspecto miserável do homem que amava,

uma felicidade infinita invadiu-lhe a alma ao notar-lhe no rosto uma nova força, uma nova

coragem, uma nova e máscula dignidade. Que importava, pois, que suas roupas fossem

velhas e surradas se a expressão de seus olhos adquirira uma nova beleza?

Robin estendeu a mão e tocou de leve o braço de Hallam.

— És tu... mesmo? — balbuciou ela com voz vacilante. — Custa-me acreditar. Oh,

Kay, tenho esperado, esperado... desejava tanto ver-te!

Voltou-se bruscamente, lutando por dominar-se. Após um breve silencio tornou a

falar:

— Senta-te, Kay, e... e conta-me... tudo que te aflige.

Kay sentou-se mas nada lhe contou; limitou-se a fazer-lhe uma pergunta:

— Como vais de trabalho? Sempre bem?

— Sim — replicou a jovem, mostrando-lhe o novo contrato de Shale.

No intimo, porém, não compreendia como lhe era possível gastar momentos tão

preciosos com um assunto tão sem importância. Hallam passou os olhos pelo contrato,

colocou-o sobre a mesa e disse:

— Otimo.

Fez-se um novo silencio longo e insuportavel. Robin tinha a impressão de que cada

segundo que se passava afastava-a mais de Kay; era como si a distancia, entre eles,

estivesse crescendo, crescendo e tornando-os cada vez mais estranhos um ao outro.

Começava a sentir que mais um só minuto daquele detestável silencio bastaria para

Page 138: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

separá-los irremediavelmente, mas a voz de Kay veio trazer vida a seu coração, que aos

poucos se ia gelando de desespero:

— Robin, Alison não te falou do encontro que teve comigo?

— Sim.

— Repetiu ela algo da nossa conversa?

— Sim, todas as tuas palavras — replicou Robin.

— É verdade que andavas pensando que eu te odiava?

Robin tornou-se sensivelmente enrubescida.

— Era a única explicação que eu podia dar aos fatos — volveu ela.

— Que fatos?

— A maneira pela qual me evitavas. Penso que ainda guardas um odio amargo

contra mim.

— Eu não te odeio, Robin. Foi para dizer-te isso que vim cá. Era preciso. Eu não

podia consentir que continuasses a pensar tal coisa...

Nesse ponto calou-se e, mais uma vez, ambos emudeceram. Agora, porém, Robin

não mais se sentia longe dele: suas palavras, a expressão de seu rosto trouxeram-na

para perto. Mas, apesar de tudo, não lhe era possível encontrar uma resposta. Com os

sentimentos todos perdidos num caos de alegria, as palavras fugiam-lhe dos lábios.

— Como vês, estavas com a razão — continuou Kay, após um momento. — Sou um

perdulário. Minha pintura não prestava e eu continuo a não prestar para coisa alguma;

não há uma única coisa util que eu saiba fazer. Mas pelo menos, reconheço o que sou.

Pelo menos abri os olhos e não mais me deixo iludir pelo meu próprio egoísmo, pela

minha própria vaidade. Agora que estou só, sem o dinheiro de meu pai, compreendi que

sou um inútil.

— E mesmo sendo eu a única culpada... tu não me odeias? — perguntou Robin,

incapaz de abandonar o ponto que mais intensamente a interessava.

— Não.

— Por que, Kay?

O rapaz hesitou.

— Tentei odiar-te, Robin, empreguei para isso os maiores esforços e... houve um

momento em que acreditei consegui-lo. Como sabes, eu era um homem que freqüentava

a mais alta sociedade, trajava-me com a máxima elegância e envaidecia-me ao notar que

todos os olhares se fixavam em mim. Ora, se alguém vem dizer a um homem assim que a

razão de todo o mundo se voltar á sua passagem é ter um engraçado escrito com letras

vermelhas, ás costas do seu paletó impecavelmente talhado, a palavra "imbecil", o seu

primeiro impulso é matar aquele que, apontando-lhe a verdade, fez tombar sua vaidade

como um balão incendiado. Mais tarde, porém, se ele for sincero consigo mesmo, há de

alegrar-se por conhecer a verdade. E eu estou alegre, Robin.

— E é por isso que não me odeias, Kay? Porque me és grato? É... é um motivo

muito... forte — disse ela com voz tremula.

Mas não era o motivo que seu coração de mulher ansiava por ouvir.

— Eu tinha certeza de que acabarias por vencer — volveu ela, tentando afastar de

sua voz os reflexos da labareda de amor que lhe devorava o coração.

Page 139: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Vencer, Robin? — repetiu Hallam com um riso curto. — Olha para mim! — (E

espalmou as mãos, olhando para suas roupas surradas). — E sabes por que não te

procurei antes? Imediatamente após meu encontro com Alison?

Robin meneou a cabeça.

— Porque, em primeiro lugar, tinha que ganhar dinheiro para comprar um colarinho e

cortar o cabelo. Arranjei o colarinho, mas... ele teve que ficar embrulhado durante uma

semana á espera que eu pudesse cortar o cabelo.

Tudo isto ele o dissera sem o menor tom de queixa e até com bastante bom humor,

mas o pequenino riso tremulo de Robin dificilmente não se transformou em pranto.

— Não... precisavas ter... ter feito isso por minha causa — replicou ela, fazendo um

esforço enorme para arrancar de seus lábios essas palavras, pois seu desejo não era

falar e sim correr para ele e abraçá-lo.

— Justamente por ti é que eu precisava fazê-lo — retorquiu Hallam.

Novamente fez-se silencio. Desta vez, porém, foi Robin quem o rompeu.

— Kay... como conseguiste ganhar o suficiente? Ás vezes... é preciso trabalhar

muito para comprar um colarinho e pagar um corte de cabelo — balbuciou, sorrindo.

— Consegui-o, fazendo o que tenho feito durante estes últimos seis meses,

aceitando todo e qualquer trabalho que aparece.

— Em que tens trabalhado, Kay? Poderias... não te importarias de dizer-me? Oh,

querido, tenho andado doente de aflição por ti!

Esse grito partiu a barreira de seus lábios e ela não o pôde conter.

Hallam inclinou-se para a frente, cotovelos fincados nos joelhos, a crispar

incessantemente as mãos; seus olhos abaixaram-se tanto que Robin não lhes pôde ver a

expressão.

— Tenho feito, céus, que tenho eu feito? — exclamou ele após um momento de

silencio. — Vejamos. Fui chofer de um dos mais cômicos tipos de novo-rico. Ele possuía

oito carros, distribuídos entre si, sua mulher e duas filhas. Estas ele trazia cobertas de

brilhantes, ao ponto de andarem resplandecentes como estrelas. Fui despedido depois de

uma semana de trabalho, por ter furtado um espanador ou coisa semelhante — não

consegui saber ao certo o que foi. Robin, foi esse o primeiro choque que realmente me

abalou, pois eu não tinha dinheiro para defender-me contra a acusação que me haviam

feito. Jamais me senti tão desgraçado como então. Despedido sem um atestado de

conduta! Não é brincadeira, posso assegurar-te. Consegui, porém, empregar-me como

criado de quarto de um aristocrata a cujo serviço ninguém aturava ficar por mais que

cinco minutos e que por esse motivo não era muito exigente em matéria de referencias.

Tive o prazer de colocar as abotoaduras em sua camisa quando ele estava em condições

de usá-la e enfiá-lo no banho quando a bebedeira era grande demais. A família dele

mandou-o para uma casa de saúde e novamente fiquei na rua, sem um penny, pois meu

nobre amo se esquecera de pagar-me. Foi então que tentei ingressar na tua profissão,

Robin, e passei dois dias rondando um estúdio cinematografico. Nada conseguindo,

arranjei serviço como mecânico em uma oficina. Dei-me muito bem com essa espécie de

trabalho mas o negocio faliu. E o pior de tudo é que fiquei com as roupas estragadas.

Depois... Mas, Robin, isso é suficiente, não achas?

— Não. Quero saber tudo — insistiu ela em voz baixa.

Page 140: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Pois bem; depois minha sorte não foi das melhores. Fui trabalhar como

carregador de moveis em uma empresa de mudanças. Servi como garçom em um

restaurante e num café. Carreguei bagagens, chamei taxis, trabalhei nas docas, levando

carga para bordo. Enfim, tenho andado de emprego em emprego e experimentei os mais

estranhos serviços.

— E... durante os intervalos do trabalho, Kay? — perguntou Robin, com o coração

suspenso á espera da resposta.

— Oh... arranjo-me como posso.

— Como tens te... alimentado?

— Bem, pois do contrario não estaria vivo diante de ti.

— E dormes?

-— Sim, é lógico.

— Mas explica-me tudo — insistiu ela.

— Queres mesmo saber?

— Não vês que não desejo outra coisa? Quero que me contes os menores detalhes

de tua vida.

— Tenho comido onde posso e... como posso.

— E... quando... não podes?

— Paro de alimentar-me... automaticamente — replicou ele, rindo com certa

amargura.

— Por quanto tempo? — indagou a jovem quase em surdina.

— Uma ocasião passei quatro dias em jejum, sem conseguir obter sequer uma fatia

de pão duro — respondeu Hallam vagarosamente. — Esse foi o pior pedaço que passei.

— Onde moras?

— Onde posso.

— E onde dormes?

— No mesmo lugar.

— Kay! — murmurou ela.

— É o castigo da inutilidade, Robin.

— E tudo isso por minha culpa! Alison falou-me sobre o dinheiro que pagaste ao pai

dela.

— Oh, isso não fez a menor diferença.

— E a despeito de tudo... de tudo que tens sofrido... não me odeias, Kay?

Hallam ergueu rapidamente os olhos, tornando a baixá-los em seguida.

— Não — retorquiu ele.

E mais uma vez Robin indagou:

— Por que?

O rapaz esboçou um singular sorriso e pôs-se de pé.

— A razão é simples. Eu te amo, Robin. Sempre te amei... sempre tive necessidade

de amar-te. Eis tudo.

Robin também se levantou e fitava-o com um olhar radiante.

— Tu me amas? Oh, Kay... estás... bem certo? — balbuciou ela.

— É a única coisa que sei ao certo — replicou Hallam calmamente, pousando, nos

da jovem, seus olhos ternos e serenos. — Oh, não, não é mais o desejo ardente e

Page 141: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

material que me impelia a tornar-te minha a todo custo, sem me preocupar com coisa

nenhuma. Disseste-me que não te era possível ser amada dessa forma. É verdade. Que

grande desajuizado era eu! Pois, apesar de tudo, sempre te amei. Ainda que não fosse...

um amor digno como é agora. Mas talvez eu te ofenda com essas confissões?

— Ofender-me? — balbuciou Robin. — Ofender-me por que?

Com estas palavras voltou-se e seus olhos fixaram-se no contrato de Shale, que

jazia, dobrado, sobre a mesa, ao lado da carta que começara.

— Oh — exclamou ela com voz débil. — Preciso terminar isto.

Hallam observou-a enquanto ela, inclinada sobre a mesa, traçava, com mão tremula,

o final da carta. E, embora não tivesse vindo ali com a menor intenção de exigir alguma

coisa da jovem, sentia-se mal por ver que num momento daqueles ela colocava em

primeiro lugar seus negócios.

Por fim Robin dobrou a carta, colocou-a com o contrato em um envelope, selou-o e

ergueu para o rapaz um olhar singularmente excitado.

— Vou levar isto ao correio — disse ela. — Espera por mim. Saíu apressadamente

sem chapéu nem casaco, deixando Hallam perplexo ante a sua súbita mudança de

atitude. Minutos depois voltava, rosto em fogo, respiração opressa, olhos vivos e

brilhantes.

— Ofender-me? — repetiu ela como si não houvesse decorrido um só minuto do

momento em que lhe fizera essa pequenina pergunta.

— Não — replicou Hallam, lentamente. — Não creio que minhas palavras te tenham

ofendido, ainda que... Pois bem, devemos ter coragem para enfrentar todas as verdades,

quaisquer que sejam, não achas?

— Sim, Kay. E queres que eu te ponha frente a frente com uma verdade, com uma

grande verdade? — perguntou ela, entreabrindo os lábios num sorriso cheio de ternura.

Hallam leu a verdade nesse sorriso e nos dois olhos negros que fitavam os seus.

— Não, não faças isso — replicou, voltando-se rapidamente para um lado.

— Disseste que devíamos ter coragem para enfrentar a verdade, não foi, Kay? Não

foi isso que disseste?

Kay voltou-se de novo para ela.

— Pois bem, enfrentá-la-ei. Podes falar.

E Robin falou.

— Eu também te amo, Kay. Sempre te amei, sempre tive necessidade de amar-te.

Eis tudo.

No silencio que se seguiu, a confissão de Robin parecia vibrar. Hallam suspirou.

— Obrigado, Robin. Deste-me coragem. Estava-se-me tornando um pouco dificil

deixar-te.

— Kay, não me deixes — suplicou ela bruscamente. — Nunca mais tornes a

abandonar-me. Aconteça o que acontecer estejamos sempre juntos.

— Robin, não posso viver á tua custa — explodiu ele. — Julguei que já o tivesses

compreendido. Nunca esperei que tornasses a fazer-me essa sugestão.

— Mas não estou sugerindo coisa alguma. Não quero que vivas á minha custa. Pelo

contrario. Quero voltar contigo para... o nosso lar, Kay.

Page 142: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Para o nosso lar? Mas, querida... onde é o nosso lar? — perguntou Hallam cuja

voz, pela primeira vez, perdera a firmeza.

— Onde quer que estejas haverá um lar para mim. Leva-me contigo, Kay.

— Mas teu trabalho?

— Não tenho trabalho algum.

— Aquele novo contrato?

— Recusei-o, Kay.

— Robin!

— A carta já foi posta na caixa, querido, portanto não há mais remédio.

— Com que então era isso! Não devias ter feito uma coisa dessas, Robin! —

exclamou ele.

Robin acercou-se mais e fitou-o com uma expressão muito seria.

— Kay, uma vez assumimos o compromisso sagrado de caminharmos juntos pela

vida, tanto nos dias de alegria, como nos de adversidade, tanto na riqueza como na

pobreza. Acaso irás quebrar tua palavra, ou eu a minha, porque o destino te fez pobre?

— Mas estou praticamente na miséria.

Robin sacudiu a cabeça.

— Pois irei compartilhar da tua miséria.

— É tão pouco o que espero...

— Não importa, juntos enfrentaremos um futuro vazio.

— Mas lembra-te de teu pai.

— Sim, posso apenas lembrá-lo, Kay. Papai morreu.

— Morreu? Meu amor, e tiveste que sofrer tudo sozinha?

— Mas de hoje em diante não mais precisaremos sofrer sozinhos, Kay! — exclamou

ela.

— Tens o dinheiro que estavas economizando?

— Não. Dei-o a Alison.

— Oh, Robin, por que recusaste a proposta de Shale?

— Porque desejo ficar ao teu lado nas mesmas condições em que estás, Kay.

— E, para isso, desceste até o meu nivel?

— Não. Subi para alcançar-te.

— Deixa-me, antes, vencer esta prova por que estou passando...

— Já a venceste. Triunfaste na mais alta extensão dessa palavra. No fundo estás

bem certo disso, Kay.

— Mas como posso pedir que abandones todas as promessas do teu futuro por

minha causa?

— Mas, que eu saiba, não me fizeste semelhante pedido, Kay — replicou ela,

sorrindo. — E, além do mais, quais são essas promessas? Que futuro poderia esperar-

me? Gosto de varrer, limpar, remendar, serzir e ter alguém para cuidar. Não fui feita para

outra coisa. É um mal para maridos e mulheres que se amam, viverem separados.

Kay riu-se ante o seu adorável arzinho de sabedoria.

— É a nossa oportunidade, Kay. Oh, não estou te propondo isto por medo á solidão

ou por te amar loucamente, mas sim porque é justo. Se fosse melhor para nós

Page 143: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

continuarmos a viver cada qual do seu lado eu te deixaria ir embora sem uma palavra.

Amo-te o suficiente para fazer qualquer espécie de sacrifício.

— Também eu te amo assim. Seria até capaz de pedir-te para escrever de novo a

Shale.

— Então ainda tens muita coisa a aprender em matéria de amor, Kay — volveu ela

com voz tremula. — Nem sempre a renuncia á felicidade é o maior sacrifício; algumas

vezes é mais corajoso aceitá-la; lutar por ela, sofrer por ela. Faze o que ditarem os teus

sentimentos, Kay. Segue teu instinto e eu suportarei com paciência as conseqüências.

Ia dar-lhe as costas, mas a mão de Hallam em seu ombro a deteve.

— Sentimentos... instintos... pode-se lá confiar nisso? — perguntou ele.

— Não és mais o desajuizado que eras — replicou Robin em tom resoluto.

— Nem tão pouco o rapaz rico que fui.

— Não é só o dinheiro que torna uma pessoa rica.

— Devo ir-me embora?

— Kay, não podes fazer-me calar — volveu ela com um pequeno riso. — Não

porque eu deseje aborrecer-te ou importunar-te, mas sim porque o direito é que vivamos

unidos. E creio que, nem mesmo havendo entre nós a distancia de dois pólos,

conseguiriamos fugir um do outro por muito tempo. De algum modo, em alguma parte,

algum dia, encontrar-nos-iamos de novo frente a frente, com todas estas questões

irrespondidas.

— E que resposta dar a elas, Robin?

— Simplesmente a de que devemos nos unir, aconteça o que acontecer. Para o bem

ou para o mal. Essa é a minha resposta, Kay. Resta encontrares a tua.

Após um pequeno silencio Kay respondeu:

— Todos os meus sentimentos dizem que estás com a razão. Cada batida de meu

pulso clama contra o erro da nossa separação. A própria vida parece falsa longe de ti. O

mundo se assemelha a uma grande mentira. Será esta a resposta, Robin? Poderá ela ser

justificada por alguma das cautelosas leis do homem?

A voz de Robin ergueu-se clara, meiga, tranquila.

— Talvez não. Mas as leis de Deus, que são mais sabias, justificam-na de sobra.

Kay abriu os braços.

— Pois então, anjo de minh'alma, vamos para o nosso lar!

CAPITULO XIII

Robin atirou-se aos braços do esposo e ambos, estreitamente unidos,

permaneceram algum tempo no mais eloqüente de todos os silêncios. E os braços que

agora a enlaçavam não mais eram os braços impetuosos do rapaz apaixonado, leviano e

egoísta, mas os braços fortes e protetores do homem que a reclamava, menos pelo

desejo egoista de possuí-la, que pela mutua necessidade de se pertencerem um ao outro.

Quando Robin se afastou um pouco para fitá-lo, seus olhos tinham uma expressão feliz,

pensativa e infinitamente terna. Hallam curvou a cabeça para ler as profundezas desse

olhar, para sorvê-lo até que seus olhos se perdessem nos dela.

Page 144: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Robin ofereceu-lhe, então, os lábios trêmulos, dos quais se erguia o vago perfume

de um sorriso e, uma vez mais, Kay a tomou em seus braços.

Depois sentaram-se no sofá um ao lado do outro, mãos e braços dados. Hallam

voltou a cabeça e encostou o rosto á cabeleira negra e macia de Robin.

— Não compreendo por que me queres tanto — disse Kay após um longo silencio.

— Eu é que não compreendo por que não havia de querer-te — retorquiu Robin,

sorrindo e tendo ainda na voz a quietude do silencio que há pouco se partira.

Kay também sorriu.

— A resposta é robinesca, mas não há nada mais delicioso que te ouvir novamente

a voz. Um retrato nunca foi companhia satisfatoria, embora, para mim, tenha sido melhor

que a solidão.

— Meu retrato, Kay? Aquele que vi á cabeceira de tua cama?

— Sim.

— Fiquei na duvida se o guardavas para que ele não deixasse esfriar o teu possível

odio contra mim, ou por me amares um pouquinho. Mas quando soube que te havias

mudado de pensão unicamente porque eu te fora procurar, a primeira hipotese venceu e

fiquei certa de que me odiavas.

— Como te enganaste! Guardava comigo tua fotografia porque te amava, mas não

tive coragem de encontrar-me contigo por não estar ainda seguro de mim mesmo.

Primeiramente, era necessário passar por um exame de consciência para saber se já me

tornara digno de apresentar-me diante de ti. Creio que agora já sei reconhecer o meu

lugar na ordem das coisas e era isso o que mais eu precisava aprender.

— É preciso que saibas também que o teu lugar é o meu e que estarei sempre onde

quer que estejas — murmurou ela, recostando a cabeça ao ombro do rapaz.

— Onde quer que eu esteja — repetiu ele. — É bom que fiques bem certa disso,

querida, porque, atualmente, não estou em parte alguma. Dois quartinhos, Robin, dois

quartinhos abafados em um bairro muito pouco elegante. Estás disposta a suportar isso?

— São dois agora, Kay? — perguntou ela. — Era apenas um, quando fui procurar-te.

Dois! Mas, meu amor, deve ser um palácio! Como conseguiste alugar dois quartos?

— Estou trabalhando, bem sabes.

— Não, eu não sabia. Nada me disseste.

— Se não o fiz foi por achar divino ouvir-te dizer que me amavas, apesar de toda a

minha miséria. E, realmente, o que ganho é o mesmo que nada, comparado aos teus

elevados salários de "estrela".

— Oh, por favor não toques mais nisso, Kay... Falas como se eu tivesse feito um

grande sacrifício.

— E não foi isso que fizeste? Nunca poderei esquecer a nobreza de tua atitude.

— Como conheces pouco o amor, Kay. Acaso não sabes que não é sacrifício

renunciarmos áquilo que nos vem matando aos poucos? Mas deixemos isso de lado para

me pores a par do teu novo emprego.

— É numa empresa siderúrgica, o nome da firma é Hallam & Hallam, Robin, —

acrescentou vagarosamente, após uma breve pausa.

— Hallam & Hallam? Mas... mas essa é a firma de teu pai — replicou a jovem.

Hallam confirmou com a cabeça.

Page 145: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Kay!

— Oh, não se trata de um comodo emprego arranjado atraves de alguma influencia.

Estou trabalhando como simples operário e ninguém sabe quem sou. Para todos, lá

dentro chamo-me John Allen. John é realmente um dos meus primeiros nomes e como o

rapaz que me atendeu tivesse compreendido que meu sobrenome era Allen, deixei que

continuasse a chamar-me assim. Não te importas de ser Mrs. John Allen durante algum

tempo?

— Enquanto eu for realmente Mrs. Kay, tudo o mais pouca importância terá —

respondeu ela, rindo. — Mas, Kay, que dirá teu pai?

— Talvez algum dia eu vá procurá-lo para ouvi-lo — replicou Hallam. — Robin, não o

tens visto? Como vai ele?

— Não, querido, não o vejo há muito tempo, mas sei que ele vai muito bem. Hallam

& Hallam! Que situação estranha e irônica, Kay. Quando começaste a trabalhar?

— Sexta-feira passada recebi o meu primeiro salário — duas libras, Robin — e daí

tive que tirar o aluguel dos quartos, as refeições de uma semana e um corte de cabelo.

Robin desmanchou-lhe o penteado com mãos acariciantes, mas como ele

protestasse, tratou de reparar cuidadosamente a desordem que fizera.

— Conta-me tudo que fizeste, Kay — pediu ela e ali sentados de mãos dadas, as

sombras da noite tornando-se mais densas ao redor, Hallam principiou a falar.

Era simplesmente a historia de um homem que, tendo compreendido a

impossibilidade de obter uma colocação elevada, decidira principiar pelo posto mais

baixo. Se conseguisse subir teria sido á custa do próprio esforço. Terminou com um

ultimo aviso:

— Queres arriscar, Robin? Sou atualmente um operário e um operário pobre,

ganhando apenas aquilo que sua incapacidade pode exigir. Pensa no que isto significa,

meu anjo, pensa-o com calma.

— Já pensei — respondeu ela.

— Refletiste no futuro que te espera ao meu lado? Um pequenino lar de pobres...

pouca comida... roupas surradas.

— E o teu amor — atalhou ela com ternura.

— Nada de taxis, teatros, restaurantes — continuou Kay.

— Mas juntinho de ti — acrescentou novamente a jovem.

— Um lugar de seis pence num cinema barato, talvez (oh, amarga ironia!) para

assistir a um dos teus próprios filmes e lembrar-te o que poderias ser se não tivesses sido

tão tolinha.

— E tu, sentado ao meu lado, para lembrar-me o que poderia deixar de ser se eu

não tivesse sido tão esperta.

— Será uma vida de trabalho e dificuldades, Robin. Para comprares um alfinete

terás que esperar, fazer cálculos e por, fim ainda perder algumas horas para conseguir

uma pequenina redução no preço. E tudo isso debaixo de perene ameaça de me

despedirem e nos vermos com os bolsos vazios, passando fome e sem ter para onde ir...

— Em tua companhia os maiores sofrimentos serão suaves para mim.

— Oh, Robin, nada te amedronta? — exclamou ele por fim.

Page 146: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Nada, contanto que estejamos juntos. Se sou tua esposa minha obrigação é

compartilhar de todas as tuas dificuldades, revezes e infortúnios, para merecer teu amor e

ter direito a uma parte das tuas alegrias e das tuas glorias. Kay, sou e serei sempre tua

esposa, tua companheira e tua amiga.

Fez uma pequena pausa e acrescentou em tom espirituoso:

— E pode chamar-se esposa á mulher que não sabe remendar, varrer, limpar e fazer

compras com pouco dinheiro? Compreende-se lá uma companheira incapaz de

transformar dois quartos num lar, uma amiga que não sabe fazer, de um lugar de seis

pence num cinema barato, um camarote de opera, de um copo de refresco, uma taça de

champagne, de um bond, uma Rolls-Royce, enfim, da terra, um paraíso?

Ambos puseram-se a rir.

— És adorável, Robin — murmurou ele, fitando-a ternamente.

Esperaram uma semana para dar a Robin tempo de tomar as necessárias

providencias e desalugar o apartamento, assim como para arrepender-se, se acaso

perdesse a coragem de sustentar a resolução que tomara. Kay insistia nesse ponto. Era

muito serio o passo que ela ia dar. Assim, pois, passou-se a semana de espera, durante a

qual Kay preparou o espirito de sua locatária para o aparecimento de “Mrs. John Allen” e

fez todo o possível para dar algum conforto aos quartos. Entretanto era bem pouco o que

podia fazer; faltavam-lhe recursos e, além disso, dois quartos nunca deixam de ser

apenas dois quartos, por mais que se faça. Todavia fez o que pôde e a estreita saleta de

estar parecia em festa, quando, no fim da semana, Robin chegou.

— Já uma vez, antes desta, preparei um lar para te receber — disse Hallam

enquanto, da porta, contemplavam, abraçados, o seu novo ninho.

— Mas nem se podia comparar a este — sussurrou Robin.

— Quero que me digas isso daqui a um mês — retorquiu o rapaz, rindo-se. —

Depois que tiveres conhecido a pobreza dos seus limites.

— Achas que um mes, um ano ou dez anos possam fazer alguma diferença?

— A qualquer outra faria, por certo, mas não a ti, Robin. Há poucas mulheres no

mundo capazes de colocar o amor acima de tudo e creio que és uma delas. Agora, só não

compreendo é o que terei eu feito para merecer uma esposa como tu.

Ela fitou-o com uma suave alegria no olhar.

— Oh, em breve estarás habituado, querido. Quando vires que eu fico, fico e fico, e

que não te podes livrar de mim, não terás outro remédio senão te conformares...

Hallam, porém, não a deixou terminar e seus braços comprimiram-na de encontro ao

coração.

Estavam num sabado e, assim sendo, Kay trabalhara apenas meio dia, ficando livre

até a noite. Sentaram-se, pois, á pequena mesa de almoço, posta com a máxima

simplicidade e, após a refeição, guardaram a louça e saíram.

— Vamos celebrar a data, indo a um cinema — anunciou Kay.

Ante a nota intencional de sua voz, Robin ergueu rapidamente os olhos para ele.

— Está bem — replicou.

Não se mostrou surpreendida nem mesmo ao entrar em um luxuoso cinema que

anunciava como principal atração um filme de “ROBINETTA GOLDEN”. Ao entrarem

sorriu para Kay, um sorriso cheio de significação e, tateando pela sala escura,

Page 147: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

encontraram enfim seus lugares. Mal se haviam acomodado teve inicio a passagem do

grande filme. Assistiram quase em silencio mas, ao findar-se, quando a Robin da tela

passou por todas as alegrias e tristezas do enredo, para finalmente encontrar amor e

conforto, Kay voltou-se para ela e murmurou:

— Eis aí o que ainda está em tuas mãos obter, meu anjo. Eis o que renunciaste em

troca deste grande tolo que escolheste para marido.

Robin deslizou a mão pelo braço de Hallam e chegou-se mais junto a ele.

— Kay — sussurrou. — Sabes qual foi a ultima vez que me senti feliz?

— Não. Quando? — indagou ele.

— No dia em que nos casamos. E nem mesmo nesse dia fui feliz como sou neste

momento. Não nos amávamos então, como nos amamos agora. Mas, desde aquele dia

até hoje, nunca mais tive felicidade. Portanto, meu amor, não digas mais isso porque não

é verdade. Renunciei á minha carreira artística pelo único homem que amo no mundo; o

único capaz de fazer-me feliz; e ele nada tem de tolo; para mim...

Nesse ponto, porém, alguém clamou por silencio com um indignado "psiu" e Robin

lembrou-se de que estavam num cinema e que sua conversa, embora em voz baixa,

incomodava os outros. Os outros, no entanto, nunca poderiam avaliar o quanto era

importante para aquele casalzinho tudo que conversavam.

Findo o espetáculo, voltaram para casa e, ao abrirem a porta, Kay perguntou:

— Então não há mesmo o que te convença da tolice que estás fazendo?

Robin ergueu para ele dois olhos cheios de ternura.

— Não — respondeu-lhe com voz firme.

— Nesse caso só me resta dar graça a Deus por tanta felicidade — volveu Kay

preso de intensa emoção.

— E ás tuas preces de gratidão juntarei as minhas — murmurou a jovem.

Robin dissera que uma esposa devia ser esposa, companheira e amiga e foi com

verdadeira arte que desempenhou esses tres papeis. Destituído do luxo que outrora,

considerava indispensável, Kay viu-se dono de uma felicidade jamais sonhada.

Como dissera, a firma Hallam & Hallam não lhe concedia regalia alguma pelo fato de

ser ele quem era. Saía muito cedo para o serviço, mas Robin o acompanhava até á porta;

trabalhava sem descanso o dia inteiro, mas á tarde, ao voltar, encontrava á sua espera

uma esposa feliz e carinhosa. E assim, gradualmente, começou a interessar-se pelo seu

trabalho.

Uma tarde em conversa com Robin, disse-lhe:

— Uma vez julguei que o aço tivesse penetrado em minh'alma, mas enganei-me; ele

está apenas no sangue que herdei de tres gerações. Mas, seja lá como for, amo o aço;

agrada-me seu poder e a sua força. Acho uma beleza infinita na sua maleabilidade. A

maneira por que ele se deixa derreter, moldar e curvar, transformando-se em maquinas

maravilhosas.

Passados alguns meses, porém, uma nuvem surgiu no horizonte do casal.

Hallam foi promovido do seu antigo posto para um outro melhor, com aumento de

salário; até aí só havia motivos de regosijo. Mas Kay, desde o momento em que assumiu

o novo lugar, indispôs-se com seu capataz — e, já então, ele tinha experiência suficiente

para saber o que isso significava. Kelly, o capataz, era um sujeito alto, irritadiço, olhar

Page 148: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

duro, cabelos e um pequenino bigode cor de areia, índole má e turbulenta. Cada palavra

sua era como uma chibatada para seus subalternos. Era um bom operário, considerado

por seus superiores, mas a autoridade de seu posto como que lhe transtornara a cabeça.

Seus subordinados tinham-lhe um odio ardente que uma só faísca seria o bastante

para fazer explodir. Essa faísca quis o destino que fosse Hallam e a primeira labareda

ergueu-se, um dia, no patio da fundição. O admirável nessas seções é que haja tão

poucos acidentes como há, pois os homens ali trabalham em meio de constantes

fagulhas; suas roupas ficam queimadas, rotas e manchadas, mas eles saem sempre

ilesos. Como muitas vezes acontece quando o perigo está sempre presente, os operários

habituam-se tanto a ele que não mais o receiam.

Kelly parecia sentir um prazer diabólico em conduzir seus homens a esse

departamento, em colocá-los frente a frente com o perigo. Para um capataz desse tipo

não há freio possível, pois ele pode sempre explicar qualquer acidente, pretextando a falta

de cuidado de um operário, ou desobediência ás suas ordens. Assim, pois, Kelly reinava

ali com todas as garantias, odiado pelos homens que dirigia e aparentemente alegre com

isso. Antipatizou-se com Kay desde o primeiro momento em que o viu. Havia nos olhos

cinzentos do jovem Hallam um certo destemor que o irritava; um certo aspecto de

fortaleza na sua compleição moça e vigorosa, que levou Kelly á decisão de que John

Allen precisava ser posto á margem.

Em pouco tempo Kay compreendeu a decisão de Kelly, pois este lhe demonstrava o

seu odio por todos os modos imagináveis.

A bomba estourou no dia em que um dos homens, inesperadamente acometido de

um desmaio, não pôde desviar-se de uma enorme fôrma oscilante de esfriar aço. Seus

camaradas gritaram, advertindo-o do perigo e o homem das maquinas ergueu a alavanca

com o fim de imobilizar a gigantesca fôrma, mas Kelly, dentes cerrados e olhar furioso,

saltou sobre ele, berrando:

— Continua! Por que paraste? Hei de ensinar este canalha a saír do caminho!

Com estas palavras estendeu a mão para baixar novamente a alavanca; por um

segundo aqueles homens mantiveram-se dominados por uma tétrica expectativa. Antes,

porém, que a forma fosse posta de novo em movimento, Kelly sentiu um golpe fortíssimo

no queixo que o atirou, cambaleante, ao outro lado do patio, enquanto o operário

desfalecido era carregado e posto fora de perigo.

Ao voltar a si e abrir os olhos a primeira visão que se deparou ante Kelly foi o rosto

enfurecido de Kay.

Com uma espécie de ronco surdo que nada tinha de humano, o capataz saltou sobre

Hallam e, durante muito tempo, os trabalhadores que ali estavam não conseguiram

distinguir qual daqueles dois corpos atracados era o de Kelly ou o de Hallam.

Por fim Kelly tombou sem sentidos. Fora derrotado.

Mas se Kay saíra vencedor naquele encontro de homem contra homem, isso, como

era de esperar, forneceu a Kelly o pretexto que há tanto procurava. Aquela tarde Kay

deixou o trabalho de Hallam & Hallam, mais uma vez despedido mas levando, nos pulsos

e ombros doloridos, uma sensação de curioso alivio e satisfação.

Dera aquele infame Kelly a lição que, pelas leis da justiça, ele próprio vinha

recebendo havia tempo.

Page 149: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Mas que diria Robin? Oh! por certo ela compreenderia que seu procedimento fora

correto.

Galgou, de dois em dois, os degraus que conduziam ao seu apartam ente, sentindo-

se gloriosamente ágil e assobiando pelo caminho.

A despeito da sua ruidosa aproximação, Robin aparentemente não o ouvira; não

viera, como de costume, recebê-lo á porta da estreita saleta e, quando ele entrou, foi

encontrá-la sentada junto á mesa, debruçada sobre uma revista aberta, completamente

absorvida por qualquer coisa que lia. Ao notar, porém, a presença do marido, fechou

bruscamente a revista e voltou-se para ele.

O arzinho assustado de Robin era tão adorável e Kay amava-a tanto que, sem

mesmo lavar o rosto e as mãos enegrecidas pelo trabalho, tomou-a nos braços.

— Que foi, amorzinho? — indagou ele, notando na jovem companheira qualquer

coisa nova e subtil.

Inclinou a cabeça, e fitou profundamente o rosto de Robin que continuava presa em

seus braços. Súbito o vago pressentimento que se erguera em seu espirito tomou vulto,

acelerando o ritmo de seu coração. Estendeu rapidamente a mão e voltou as paginas da

revista que se achava sobre a mesa; seus olhos se pousaram justamente na pagina que

Robin devorava com tanta avidez, no momento da sua entrada.

Viu, então, meia dúzia de modelos de pequeninas peças misteriosas e a emoção

que sentia tornou-se mais forte. Ao alto da pagina, em grandes tipos, lia-se o seguinte: “O

Enxoval do Bebê". Ele parecia antes ouvir a frase que a soletrar. Riu-se nervosamente.

Voltou-se, lento, e tornou a fitar a esposa, que, levantando os olhos ternos, sacudiu

a cabeça afirmativamente.

— Esta é a melhor e mais bela de todas as responsabilidades, não é? — murmurou

ela com voz impregnada de suavidade. — Eu não queria te contar antes de estar bem

certa, Kay!

O nome de Hallam saíu de seus lábios quase num grito, pois uma expressão de

horror embaciara o olhar do rapaz ao tempo que.

— Não... Robin! — balbuciava — Não pode ser! Não pode.

— Mas, Kay... não estás contente? Não te sentes feliz? — indagou ela com voz

entrecortada de ansiedade.

Hallam afastou-se e, deixando-se caír numa cadeira, enterrou o rosto nas mãos.

Receber uma noticia daquelas justamente no dia em que perdera o emprego. E tudo por

sua própria culpa! Se ao menos não tivesse encostado as mãos naquele desgraçado

Kelly! E agora Robin teria que sofrer — no momento mais grandioso de sua vida —

justamente quando suas necessidades eram maiores. Como fora estúpido! Seus

pensamentos interromperam-se e ele voltou-se bruscamente.

— Feliz, Robin? Mas, querida, estou desempregado. Fui despedido... hoje... e por

minha própria culpa. Como posso estar contente?

Mas, então, com um pequenino grito de indizivel alivio, Robin correu e foi ajoelhar-se

ao lado do esposo.

— É só isso? — indagou com voz tremula. — Oh, Kay, como me assustaste. Julguei

que fosse coisa muito pior. Pensei que não quisesses o nosso filhinho.

Os braços de Hallam enlaçaram-lhe a cintura.

Page 150: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Meu amor, receio por ti. Foi unicamente por minha culpa que perdi o emprego.

E narrou-lhe em poucas palavras os acontecimentos do dia.

— Mas, Kay, procedeste muito bem — replicou ela quando Hallam parou de falar. —

Não tinhas outra coisa a fazer senão esbofeteá-lo. Eu, eu mesma, em teu lugar, o

esbofetearia.

— Mas não temos dinheiro agora, querida — justamente quando mais necessitamos!

— Arranjar-nos-emos de qualquer modo, verás. A única coisa que desejo é ver-te

contente.

— Não fosse eu ter perdido o meu emprego, seria, agora, o homem mais feliz da

terra, Robin.

— Por favor alegra-te. É adorável, não achas?

Ergueu a cabeça e encostou o rosto no de Hallam.

— Adorável — repetiu ele num sussurro. — Meu anjo, poderá haver ventura mais

suave? Assim que tiver idade suficiente ele irá trabalhar na firma de papai. Nada de

perder tempo com artes de segunda ordem.

— Estás assim tão certo de que será "ele"? — perguntou a jovem, sorrindo.

Kay riu-se.

— Oh, foi uma distração minha. Robin, dize-me uma coisa: durante quanto tempo

poderemos viver sem ganho?

— Fiz algumas economias, bem sabes.

— Só Deus sabe como o conseguiste, mas foi uma sorte. Para quanto tempo darão

elas?

— Tres semanas, mais ou menos, se formos cautelosos.

— Não me conformo de acontecer isto logo agora que precisas de mil cuidados e

tratamentos!

— Nada mais necessito, além de alimentação suficiente e... felicidade completa.

Como ambas essas coisas serão facilimas de arranjar, não é preciso te preocupares.

— És a mulhersinha mais corajosa do mundo! — exclamou Hallam.

Mas, entre um beijo e um sorriso, Robin o contradisse:

— Oh, não, apenas uma das mais felizes.

O primeiro resultado do incidente foi que todos os operários que jamais haviam

entrado em contato com Kelly, fizeram greve. Hallam, ouvindo rumores sobre o fato,

dirigiu-se aos arredores das oficinas com o intuito de colher alguma informação mais

segura. Do lado externo das oficinas os homens, divididos em pequenos grupos,

discutiam a questão. Indagando sobre o motivo que os levara á paralisação dos trabalhos,

Kay veio a saber que a greve se baseava em duas causas: em primeiro lugar os

trabalhadores exigiam a immediata demissão de Kelly e, em segundo, a readmissão d'ele

próprio, Kay.

— Há aqui um ou dois diretores que nós gostariamos de ver pelas costas — disse-

lhe um velho operário. — Para mim não será de espantar si esta greve se alastrar e tomar

feições mais graves. Há muita gente aqui que não anda satisfeita e tem motivos de sobra

para isso.

Page 151: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Kay mostrou-se vivamente contrariado. O trabalhador referia-se á empresa de seu

pai e suas palavras vinham cheias de ameaça.

— De quanto tempo para cá surgiu esse descontentamento? — perguntou Hallam.

— Tudo andou muito direito até o dia em que o velho se afastou e entregou a chefia

ao gerente.

— O velho? Quer referir-se ao velho Hallam?

O operário confirmou.

— Calculo que ele tenha deixado a fabrica por desgosto. Todo homem deseja que

seu filho o substitua — e o filho do velho Hallam, pelo que dizem, não presta para nada.

Diante disso o pobre do velho aborreceu-se e desinteressou-se do negocio.

Nesse ponto o operário fez uma pausa para encher o cachimbo.

— Todo homem deseja que seu filho o substitua — repetiu ele. — É lei da natureza

e dos negócios também. Um bom filho tem o dever de substituir um bom pai.

Hallam deixou o velho trabalhador e partiu mergulhado em meditações. Quanto mais

se informava, mais nitidamente compreendia que ele não fizera mais que apressar a

explosão inevitável de um antigo ressentimento. E, estudando as causas desse

ressentimento, chegou á conclusão de que a maior parte delas era justificável, fosse qual

fosse a direcção de Hallam & Hallam no tempo em que esse nome era algo mais que um

simples titulo comercial. A actual direção nada tinha de satisfatoria.

Nunca imaginou que aquilo o ferisse tão profundamente. Torturava-lhe o amor-

proprio saber que seu pai permittira aquele estado de coisas; ainda mais, porém, o

magoava a reflexão de que, tivesse ele ingressado na firma ao tempo em que seu pai

esperara, poderia assim ter evitado todos os desagradáveis acontecimentos presentes.

Não lhe era possível compreender um sujeito da espécie de Kelly, permanecendo por

mais de cinco minutos, em qualquer negocio do qual ele fosse o chefe.

— Papai teria conservado seu entusiasmo pelo negocio se eu estivesse ao seu lado

para auxiliá-lo. Todo homem quer que seu filho o substituta. Um bom filho tem o dever de

substituir um bom pai — pensou ele.

Com o decorrer dos dias tornou-se evidente que os empregados das outras seções

abandonariam seus postos e seguiriam a atitude dos companheiros, alguns por simpatia

para com as vitimas de Kelly, outros por próprio descontentamento. Alastrada a greve,

calculou Kay que dentro de uma semana se fechariam as portas de Hallam & Hallam.

Sentia-se oprimido por uma assombrosa sensação de responsabilidade. Era ele o

culpado. É certo que mais cedo ou mais tarde a greve teria de sobrevir; se ele não a

tivesse provocado, alguma coisa, ou alguém, o faria em seu lugar. Ainda assim não lhe

saía da mente a idéia de que fora o seu causador. Não havia argumento que o fizesse

esquecer isso.

Tomou a si, pois, a tarefa de evitar que o movimento grevista adquirisse maior vulto.

Não sabia como dirigir-se aos operários, mas, no momento preciso, as palavras saltaram-

lhe dos lábios. Compreendeu que os homens estavam com a balança da justiça a pender

francamente para o seu lado, mas compreendeu, de igual modo, que a paralisação

completa do trabalho seria um desastre para todos.

De uma coisa, contudo, estava certo: é que Kelly e os da sua espécie precisavam ir

para a rua. Se não pudessem eliminar esses elementos perniciosos por meios corretos e

Page 152: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

pacíficos, se os chefes se recusassem a ouvir as justas queixas dos operários, então

teriam que recorrer a outros metodos.

Sua influencia sobre os trabalhadores era grande, pois, afinal de contas, era ele o

martir da causa particular que defendiam. Hallam conseguiu, afinal, que adiassem a

greve. Tendo obtido isso, estava ele a resolver qual seriam seus próximos passos,

quando a direção destes foi bruscamente desviada para um caminho inesperado.

Encerrado o expediente, falava Kay a um grupo de operários, do lado externo do patio

central, quando uma voz familiar, vinda de muito perto, exclamou:

— Onde está esse tal John Allen que vem provocando tantos aborrecimentos? É ele

o homem que desejo encontrar.

Kay voltou-se e, com o coração aos pulos, viu-se face a face com seu pai.

— Sou eu John Allen, sir — disse ele com tanta firmeza quanto lhe foi possível.

O velho não se deixou perturbar. É claro que na presença de todos aqueles homens

não lhe era possível trair a situação. Por um momento encarou fixamente seu filho o

depois lhe disse:

— Gostaria de falar contigo no escritorío, Allen — dentro de dez minutos. Quero

ouvir o teu caso e o do resto de... meus homens...

— Sim, senhor — replicou Kay, seguindo o pai que se retirava.

Dez minutos mais tarde via-se de novo frente a frente com Mr. Hallam, já agora

sentado á grande secretaria do escritorio. Fechou-se a porta e ficaram a sós.

— Então, Kay? — disse o velho Hallam.

— Aqui estou, papai — volveu Kay.

Houve um silencio durante o qual seus olhos se encontraram.

— Que estás fazendo aqui? — indagou Mr. Hallam.

— Como disseste agora há pouco — provocando aborrecimentos.

— Estou achando tudo isto muito serio.

— E tens razão para tal.

— Que pretendes fazer?

— Endireitar a situação, é claro.

— Como?

— Não estou bem certo quanto a detalhes — replicou Kay. — Meus planos, porém,

estão perfeitamente esboçados.

— Por ti próprio?

— Sim.

— Tinhas intenção de consultar-me antes de os pôr em pratica?

O velho tinha o rosto inclinado e rabiscava lentamente a folha de mata-borrão que se

estendia sobre a mesa.

— Está claro que sim.

A sinceridade da afirmação fez com que o velho Hallam silenciasse por um instante.

— Pois bem; conta-me tudo.

Kay expôs a seu pai, com a máxima clareza, o caso dos operários; falava bem e

com extrema lucidez. Mr. Hallam sorriu.

— O negocio está precisando de ter um Hallam pela frente — disse ele.

Page 153: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— E por ventura não é um Hallam o seu diretor? — retorquiu Kay. — Nosso nome

figura duas vezes, á frente desta empresa e, contudo, não soubemos evitar esta situação.

Mr. Hallam enrubesceu ligeiramente.

— Estou velho, Kay, e perdi o interesse.

— E eu que sou jovem, só agora começo a senti-lo.

— Somos ambos culpados.

— É verdade.

Novamente seus olhos se encontraram. Súbito Kay como que explodiu:

— Papai, sinto-me coberto de vergonha por ver que homens da espécie de Kelly

vêm trabalhando aqui há tanto tempo. Não são homens... são verdadeiros animais!

— E te sentes envergonhado, Kay?

— Amargamente.

— Isso é novo, em ti, não?

— Sim; completamente novo, mas terrivelmente forte. Sou teu filho.

Entre ambos fez-se um curto silencio.

— Meu filho... nem sempre pensou assim — volveu Mr. Hallam vagarosamente.

— Teu filho, agora, é um operário e sabe o que isso significa.

— Quanto tempo estiveste trabalhando aqui, Kay?

— Tres meses... mais ou menos... trabalhei ombro a ombro com os operários;

confundi-me com eles, aprendi a viver com eles.

— E sempre como John Allen?

— Sempre. Nem um dos operários suspeitos que eu fosse um Hallam... Talvez não

se tivessem mostrado tão meus amigos, se soubessem que eu, com a minha indiferença,

contribui para esta deprimente situação.

Mais uma vez emudeceram.

— Kay, vai e dize-lhes que um Hallam assumiu de novo a direção da firma... —

ordenou Mr. Hallam.

Havia nos olhos do velho uma expressão significativa. Kay, porém, atalhou:

— Então, voltarás ao trabalho, papai?

— Não, serás tu o meu substituto.

Kay meneou a cabeça.

— Algum dia, talvez; não agora. Preciso merecer essa posição.

— Continua, pois, e faze por merecê-la!

— E enquanto isso...

— Voltarei á direção do negocio — replicou lentamente o ancião. — Hallam &

Hallam tornará a ser o que já foi. Promettes auxiliar-me, Kay?

A resposta do rapaz foi dada em silencio. Inclinando-se por sobre a larga secretaria,

estendeu a mão que o trabalho tornara rude e áspera. Duas mãos, brancas e enrugadas,

cerraram-se sobre ela.

— Meu filho... meu filho!

O instante que se seguiu foi de profunda comoção. Após um breve silencio Mr.

Hallam falou:

— Não me disseste uma só palavra sobre... o que te fiz.

Kay riu-se.

Page 154: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Francamente, não me lembrei. Estás te referindo ao corte de meus rendimentos?

— Sim. Permittes que as coisas voltem a ser como eram antes?

— Não! — foi a resposta súbita e espontânea.

— Então deu resultado.

— Pleno e absoluto. Obrigado, papai.

— E agora, que vais fazer?

— Continuar a trabalhar. Uma coisa poderás fazer por mim — é ser eu readmitido no

posto que obtivera nas oficinas.

— Só isso?

— Só. Farei o resto por mim mesmo, se tem que ser feito.

O velho fitou nele os olhos pensativos.

— Estás casado, não é, Kay?

— Sim.

— E, já agora, tua mulher vive contigo?

— Raramente se encontra um casal tão unido — replicou Kay com um sorriso de

felicidade.

— E ela compartilha do pouco que tens; nada mais exige além d'aquillo que John

Allen lhe pode dar?

— Exatamente. Nada exige de mim, e dá-me, em troca, todo o tesouro de amor que

possui.

Havia na voz de Kay um mundo de expressões venturosas.

— E que pensa ela de ti?

— Vamos até em casa comigo e ela te dirá.

Mr. Hallam ergueu para o filho dois olhos risonhos.

— És assim tão feliz? — perguntou.

— Vem comigo e verás — volveu Kay, rindo.

CAPITULO XIV

— Robin, aqui está papai que veio jantar conosco! — anunciou Kay, introduzindo Mr.

Hallam na pequenina sala.

Robin, com seu vestido cuidadosamente coberto por um gracioso avental, mangas

arregaçadas até os cotovel-los, voltou as costas para o pequenino fogareiro a gas que

ficava oculto a um canto da saleta, e arregalou os olhos numa expressão de franca

incredulidade — tão perplexa por um momento que nada pôde dizer e quando a fala lhe

voltou pôde apenas balbuciar:

— Para jantar? Oh, que bom! Espero que o senhor goste de salmão. Gosta?

Esta ultima interrogação, feita com marcada ansiedade, provocou uma risada que

veio facilitar muito a situação; todos agradeceram-na intimamente, pois aquele súbito

encontro causara grande emoção.

— Robin... minha filhinha querida! — exclamou Mr. Hallam, estendendo ambas as

mãos.

Page 155: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

A jovem tomou-as nas suas rapidamente, ergueu dois olhos quase tímidos e, então,

num movimento impulsivo, levantou o rosto até o nivel do de Mr. Hallam, e beijou-o

afectuosamente. Feito isto, quiz afastar-se do velho, mas este não a soltou

immediatamente.

— Como estás, querida? Tens uma aparencia esplendida. Continuas a ser a jovem

mais bonita da Inglaterra.

— Seria melhor dizer a mais feliz — contestou ela.

— Ou a mais corajosa, a melhor, a mais carinhosa, a mais adorável e a mais

querida! — acrescentou Kay com exuberância.

Mr. Hallam riu-se e soltou as mãos de Robin. E, então, como se não tivesse havido o

menor intervalo entre a pergunta desta ultima e a sua resposta, disse com toda a

seriedade:

— Sim. Não só gosto de salmão como é dos pratos que mais aprecio.

— Vou buscar um outro salmão, Robin, para celebrarmos este grande dia —

cochichou Kay. — Conversa com papai, querida, e faze tudo para evitar que ele perceba

a minha ida ao peixeiro.

Saíu rindo. Depois de fechar a porta, Robin voltou-se e mais uma vez ergueu os

olhos para pousá-los na fisionomia bondosa do velho Hallam.

— Sabe o senhor que foi para mim a maior das alegrias tornar a vê-lo? — disse-lhe

ela com um jeitinho todo seu.

— É serio? Kay está satisfeito, não achas? — retorquiu o velho com avidez e

ingenuidade quase infantis.

— Ele está como que no ar — volveu a jovem com sua habitual franqueza. — Sente-

se tão feliz que por um dedinho a mais de felicidade seria capaz de estourar.

— Vieram dizer-me que as coisas estavam tomando um aspecto muito serio na

oficina e desci para ver o que podia ser feito. Fui um desleixado, Robin; um desleixado!

Perdi o amor ao negocio quando me pareceu ver que Kay jamais se interessaria por ele.

Assim sendo, achei que não valeria a pena levá-lo avante. O meu maior sonho foi sempre

fazer com que Kay assumisse a direcção da firma...

E sua voz cansada tornou-se quase apagada.

— E era natural. Todo homem deseja que os filhos o substituam. Foi para mim uma

decepção amarga quando Kay montou aquele atelier. Se ele fosse realmente um grande

artista... pois bem, isso seria coisa muito diversa.

— Sim, bem sei — aparteou Robin. — Seria muito bonito ter um grande artista na

família, não é?

O velho Hallam riu-se.

— Está claro — concordou. — Um verdadeiro artista é, sempre, algo digno de

admiração.

— Quero dizer que o senhor se orgulharia dele, nesse caso, mas nunca poderia

orgulhar-se de um... pintorzinho a toa como o que Kay se estava tornando. Ele não ignora

que é essa a minha opinião — acrescentou Robin. — Nada lhe estou dizendo que não

seja capaz de repeti-lo a Kay. Tudo isto ele já ouviu de meus lábios.

— Bem sei — replicou Mr. Hallam. — Tu sempre o amaste da melhor maneira.

Page 156: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não — protestou Robin. — Isso não é exato. Quando nos casamos eu não o

amava assim. No fundo eu sabia que estava aceitando a felicidade, sem refletir se se

tratava da melhor, da mais nobre espécie de felicidade. E essa não é a melhor maneira de

amar uma pessoa.

— Quanta sabedoria nuns lábios de criança! — considerou Mr. Hallam com um

sorriso.

Estava sentindo um curioso prazer em conversar daquele modo franco e expansivo

com a mulher de Kay. Longe de perder um filho como acontece a tantos pais, quando

seus filhos se casam, Mr. Hallam sentiu que ganhara uma nova filha, da qual intimamente

se orgulhava. Era admirável a intrepidez com que Robin sabia encarar os problemas da

vida. Jamais recuara diante de uma dificuldade, por maior que esta lhe parecesse. E era á

custa de muita coragem e fidelidade, que lograva manter tão alta a sua pequenina flamula

de dignidade. Não passava de um átomo humano entre milhões, mas cumpria altivamente

sua pequena missão, deixando pela vida o rasto luminoso de sua passagem.

Por um momento o velho Hallam deixou-se levar por estes pensamentos, mas,

súbito, lembrando-se de que Robin lhe pedira para narrar seu encontro com Kay,

apressou-se em satisfaze-la.

— Não há excusa possível para mim, Robin — continuou ele. — A despeito da

grande decepção que meu filho me causara, eu não devia permitir que meu interesse pelo

negocio oscilasse. Era um encargo de confiança que meu pai me entregara. Eu não devia

ter faltado a esse compromisso; Hallam & Hallam custou a meu pai uma vida de trabalhos

e esforços. Não; não há perdão para mim. E eu não procurarei desculpar-me. Farei

apenas tudo que estiver dentro de minhas forças para reparar os prejuízos.

— Isso é o que há de melhor a fazer — concordou Robin. — E a que proporções

atingiram esses prejuízos?

Mr. Hallam contou-lhe, então, tudo que Kay lhe informara, e de que maneira se

haviam encontrado. Robin ouviu-o atentamente, com uma expressão de profundo

interesse, sacudindo, de quando em vez, a cabeleira negra e dando um ou outro aparte.

— Eu não tinha a menor idéa de que o rapaz estivesse lá. É verdade que o nome

era desconhecido. Ele prestou um grande serviço á firma, impedindo que a greve se

alastrasse.

E assim terminou Mr. Hallam a sua narrativa.

— O único mal de Kay era excesso de dinheiro e esse agora está reparado — disse

Robin, sorrindo para o velho.

Este ultimo, ao erguer o rosto, não pôde ocultar uma expressão de profundo

sofrimento.

— Sim, de fato, esse mal agora está reparado — volveu ele.

E lançou um olhar pela pequena sala.

— Robin — explodiu de súbito, preso de grande comoção. — Não me é possível ver

vocês dois nesta miséria. Quero ter Kay ao meu lado, na firma, como meu sócio. Hallam,

Hallam & Hallam — não achas que fica excelente? Mas ele não quer aceitar, por nada.

Queres fazer-me um grande favor, Robin?

Esta ultima, de pé ao lado da cadeira de Mr, Hallam, fitou-o com olhos de duvida.

— Tudo depende... — começou ela vagarosamente.

Page 157: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

Mr. Hallam, porém, interrompeu-a.

— Faze-o mudar de resolução. Ele o fará si lhe pedires. Acederás ao meu pedido?

Robin meneou a cabeça.

— É-me odioso recusar-lhe qualquer coisa. Mas eu não poderia fazer isso. E, ainda

que o fizesse, não creio que ele cedesse. Além do mais já é demasiado tarde para que o

senhor se preocupe com a nossa pobreza. Quero dizer... — acrescentou Robin

delicadamente, sendo interrompida por Mr. Hallam.

— Sim, bem sei o que queres dizer. O culpado disso sou eu. Mas nunca me passou

pela cabeça que as coisas pudessem chegar a este ponto. Nunca imaginei que o rapaz

fosse tão altivo e sempre alimentei uma esperançazinha de que, a qualquer momento, ele

voltasse para pedir-me dinheiro. E eu lhe daria. Dar-lhe-ia tudo, para ter novamente a sua

amizade!

— É esquisito como ás vezes fazemos certas coisas, sem nos passar, sequer, pela

mente a importância do que estamos fazendo — disse Robin pensativa. — Ao lhe pedir

para cortar uma parte da mesada de Kay, eu nem sonhava com isto; e quando o senhor a

cortou definitivamente, não poderia calcular que estava dando inicio a algo tão importante

que não mais seria possível recuar. Não posso fazer o que me pediu, Mr. Hallam. Não

posso.

— Mas, minha filha, corta-me o coração ver vocês dois obrigados a contar penny por

penny. Percebi muito bem as proporções de caso gravíssimo que tomou a simples

compra de um miserável salmão.

— E é verdade — confessou a jovem. — Cada penny que gastamos representa

muito para nós. Mas Kay está, desempregado, o senhor bem sabe.

— Já não está mais.

— Vai readmiti-lo?

— É lógico. Só o que me aborrece é que ele insiste em voltar para o mesmo posto

em que estava.

— Faça-lhe a vontade. Ele tem toda a razão.

— Ele que podia pedir tudo que quisesse! — exclamou o velho, preso de visivel

comoção.

Robin abaixou-se, pousou uma das mãos no joelho de Mr. Hallam e fitou em seu

rosto os olhos ternos.

— O senhor diz isso mais pelo grande amor que lhe dedica e pela intensa alegria de

tornar a vê-lo do que... por achar que ele deva ocupar um posto muito mais alto.

Os olhos de Mr. Hallam evitaram os de sua nora.

— Talvez em parte tenhas razão — confessou. — A verdade, porém, é que ele tem

a arte de saber lidar com os operários. Eles são seus amigos e ouvem-no.

— Pois então o senhor deve dar-lhe uma chance de acrescentar, a isso, um perfeito

conhecimento pratico do negocio. Depois disso duvido que o senhor encontre um gerente

melhor do que ele.

— Oh, minha querida, mas ver-te neste... neste... — (e lançou um olhar pelo

compartimento). — Não. Nem com um grande trabalho de imaginação eu poderia... —

continuou ele.

Page 158: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Alargar esta sala, não é? — terminou Robin, rindo-se. — Isso seria, de fato,

impossível; mais vale, porém, uma salinha estreita como esta, repleta de felicidade até ao

teto, do que um vasto salão cheio de tédio e amarguras. O senhor não pode imaginar o

que significa, para nós, este pequenino lar.

Ao lado de Mr. Hallam, a cabeça graciosamente inclinada, o olhar perdido numa

expressão pensativa, contou-lhe ela tudo que se passara desde o dia em que Kay se vira

privado do auxilio paterno. Descreveu-lhe o ressentimento e o odio que o dominaram no

primeiro momento. Narrou-lhe de como tentara ajudá-lo secretamente com algum dinheiro

e o modo pelo qual Kay lhe restituira tudo. Depois os seus sofrimentos, a fome, o

desabrigo; tudo, enfim, por que ele passara. E o dia que fora procurá-la, não para pedir-

lhe que fosse compartilhar de sua miséria, mas unicamente para confessar que era ela

que estava com a razão; apenas para dizer-lhe que á custa de odio e amargura, recebera

uma grande lição de amor que antes jamais pudera compreender. Robin terminou,

falando lentamente:

— Portanto este pequenino lar em que vivemos é, para nós, algo mais que dois

quartos velhos e pouco confortáveis. É... é... Oh, não encontro palavras capazes de dizê-

lo! Mas o senhor me compreende; há neles qualquer coisa sagrada. Não podíamos seguir

outro rumo, voltar atras, ou fugir, agora. Seria grande demais a nossa perda. Nunca mais

teríamos coragem de fitar um ao outro, nos olhos. O senhor não pode desejar que Kay

abandone, assim por nada, o resultado de tanto esforço e de tanto sofrimento.

O velho Hallam quedou-se silencioso durante algum tempo. Kay, sem pão, sem teto!

Gelado, faminto e sem ter onde repousar! Esta simples idéia torturava-o. Finalmente, ao

erguer o rosto, Robin notou-lhe nas faces o brilho de duas lagrimas.

— Mas ele venceu e tornou-se um homem — disse ele com voz pouco firme. —

Nada mais direi, nada mais quero. Deixemo-lo subir sosinho e a seu modo. Ele o fará,

pois a trilha que escolheu é a trilha da dignidade.

Mais uma vez calou-se.

— E ninguém soube escolher também melhor companheira — continuou, de súbito.

— Robin, querida, se jamais um homem se descobriu diante de uma mulher, eu o faço

diante de ti.

Robin esboçou um sorriso de franca alegria.

— Vejo que o senhor está ficando tão tolo como Kay — redarguiu. — Ele parece

achar sempre algo assombroso, em que eu tenha vindo para junto de si compartilhar da

sua pobreza. Meu Deus, se o senhor soubesse que agonia era para mim a vida longe de

Kay!... Se soubesse o que padeci em saber onde ele estava e imaginando que pudesse

estar passando fome e frio, não se admiraria tanto de me ver aqui. E se visse como Kay

está bom agora, como vive alegre com o nosso amor...

Um pequeno tremor veio pôr fim á historia, já que palavra alguma pudera fazê-lo.

Um instante mais tarde, porém, acrescentou:

— Mas não faz mal. Continue a admirar-me, isso me agrada. É mesmo das coisas

mais adoráveis da vida.

E, curvando-se, beijou de leve a cabeça de Mr. Hallam. Este sorriu, erguendo os

olhos para ela.

— E tu, querida? — indagou. — Nunca mais pensaste na tua carreira?

Page 159: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— Não. Encontrei outra melhor e mais bela.

— Desististe completamente da idéa de te tomares celebre como estrela?

— Sou uma estrela muito maior dentro do meu lar — volveu Robin, rindo-se.

— E tua voz? Pretenderás abandonar uma voz adorável como a que possuis?

Robin silenciou por um momento. Súbito, ajoelhou-se ao lado de Mr. Hallam.

— Hallam, Hallam & Hallam — murmurou ela, e nada se assemelhava a uma

resposta antes de soarem suas próximas palavras. — Sim, vou fazer com a minha voz a

coisa mais importante do mundo. Vou cantar para adormecer o pequeno Hallam numero

quatro. Não acha que é o meio mais lindo de empregar minha voz?

Suas palavras não encontraram resposta, mas dois braços velhos e cheios de

paternal ternura enlaçaram-na demoradamente...

Quando Kay voltou, trazendo dois suculentos salmões, um potinho de mel e tres

pães, o jantar foi servido. Robin desconfiou que ele se retardara propositalmente, mais do

que fora necessário, para dar-lhe oportunidade de conversar algum tempo com seu pai. O

jantar decorreu na maior alegria.

Kay e seu pai voltaram a discutir seus planos sobre a firma e chegaram a diversas

conclusões úteis; concordaram facilmente em muitos pontos, onde o argumento era

desnecessário e quando suas opiniões não coincidiam resolviam o caso com o melhor

humor. Kay era jovem, irrefletido; o velho Hallam falava com mais vagar, aplicando a

experiência que a vida lhe ensinara; cada qual cedeu um pouco e, mais tarde, ao se

separarem, o afeto que sempre os ligara tornara-se mais profundo. Já agora ambos se

respeitavam, e isso era algo que tanto tinha de novo quanto de belo. Antes de saír, Mr.

Hallam fez com que o casal promettesse ir passar um domingo comsigo em Hertfordshire.

A principio Kay mostrou-se indeciso, mas o velho estava tão firme na resolução que ele

não teve outro remédio senão ceder e prometer. Mal, porém, seu pai se retirara, voltou-se

para Robin e perguntou-lhe:

— Se formos passar um domingo com papai, em meio de todo aquele conforto e

com um exercito de criados para nos servir, como poderás, na volta, habituar-te de novo á

nossa pobreza?

— E tu? — contestou Robin.

— Oh, é muito differente. Sou um homem.

— Pois bem, e eu sou uma mulher. Sou até alguma coisa mais que isso. Lembras-te

qual foi sempre o meu nome?

— Robin.

— Não. Robin, a Maltrapilha. Essa é a verdadeira Robin. Essa, a Robin que sempre

hei de ser, Kay. Há uma parte de mim que se sente tão á vontade aqui como num palácio;

há outra parte que se sente tão á vontade em um palácio como aqui. E, finalmente, existo

eu inteirinha, que apenas desejo estar onde estiveres. Seja lá onde for.

— Meu anjo, procura suportar agora a pobreza do nosso lar e, mais tarde, terás o

teu palácio. As coisas estão endireitando. Já entrevejo diante de mim um futuro.

Beijou-a e ambos se puzeram a tirar a mesa do jantar.

— Mais que nunca temos que trabalhar agora — continuou Kay. — Robin, contaste

a papai que ele em breve será avô?

Robin confirmou com um silencioso movimento de cabeça.

Page 160: A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA MERREL Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara

— E ele mostrou-se satisfeito?

— Muito mais do que imaginas.

— Que foi que ele disse?

— Nada.

— Então como podes saber?

— As verdadeiras emoções não precisam de palavras para as revelar...

— Querida...

— Meu sogro é um homem simplesmente adorável — continuou ela.

E, então, como se suas próprias palavras houvessem trazido á sua lembrança um

outro homem, voltou-se para Kay, que reunia os pratos e lhe disse com um certo temor:

— Kay, eu gostaria de tornar a ver Andy, e tu?

Kay ergueu rapidamente o olhar e avermelhou.

— Eu devia dizer o mesmo, pobre Andy! Oh, Robin, como eu era idiota!

Inclinaram-se um para o outro, cada qual se apoiando com as mãos sobre a mesa

que os separava. E, com uma graça infinita, Robin beijou-lhe a ponta do nariz.

— Robin, a Maltrapilha! Robin, a Maltrapilha! — exclamou ele, erguendo tanto a

cabeça que o próximo beijo foi caír no lugar certo.

Separaram-se, então, rindo-se.

— Meu Deus! — exclamou ele, apanhando os pratos sujos e despejando seu

conteúdo na lata de lixo. — Devemos ser um caso perdido para podermos nos amar por

cima dos restos de um banquete de salmões, como este!

— Está claro que somos um caso perdido. Francamente perdido. Oh, Kay, custa-me

a crer em tanta coisa boa! Acho que sou a mulher mais feliz da terra...

— Pois eu tenho a certeza de que sou o homem mais feliz — retorquiu Kay.

— Não tens nem um pouco de saudades da vida fácil e alegre que abandonaste,

Kay?

— Alegre? Inútil e vergonhosa, Robin. Podes estar certa, querida; eu não tornaria a

viver daquele modo estúpido, nem que me pagassem. Não compreendo como podia eu

desperdiçar todas as horas do dia, louca e inutilmente, e não morrer de tédio! A simples

lembrança disso dá-me a impressão de um pesadelo.

— Mas, Kay, como será, então, quando tivermos o palácio que me prometeste?

— Continuarei a trabalhar, Robin.

— E deixarás que eu faça o mesmo?

— Trabalhar? — perguntou ele sem compreender bem.

Robin sacudiu a cabeça afirmativamente.

— Deixar-me-ás trazer o palácio em ordem? Cuidar do palácio, de ti e... e do

pequeno Hallam numero quatro? Não me forçarás a entregar todos esses adoráveis

deveres a arrumadeiras, criados e amas, não é?

E lançou-lhe um olhar de sincera aflicção. A resposta de Kay, praticamente, não foi

resposta. Limitou-se a murmurar suavemente:

— Robin, minha Robin Maltrapilha, haverá no mundo uma criatura mais doce?

E após um momento, acrescentou:

— Agora, mulherzinha do coração, vamos acabar de lavar estes pratos!

FIM