A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA...
Transcript of A MALTRAPILHA CONCORDIA MERREL - Visionvox · 2017-12-18 · A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN CONCORDIA...
A MALTRAPILHA RAGGED ROBIN
CONCORDIA MERREL
Durante uma excursão com os amigos, Kay Hallam encontrou uma jovem de rara
beleza, dançando na feira, mas era selvagem e maltrapilha. Encantou-se por ela e
prometeu ajudá-la de alguma forma. Robin, guiada por um impulso desesperado, resolveu
aceitar a oferta, afinal, era a filha de um presidiário agora e não tinha para onde ir.
Mas logo percebeu que ele era um homem egoísta, levava uma vida luxuosa e sem
ideais, tinha amigos bajuladores, e passou a expô-la ao ridículo. Além disso, Robin, ainda
sofria com as armações de uma mulher interesseira, que pretendia fisgar Kay. Diante
disso, Robin decidiu dar uma dura lição em Kay, seria algo ele jamais esqueceria... e ela
sabia do risco que corria, e precisava aceitar o desprezo dele depois.
Disponibilização: MARISA HELENA
Digitalização: MARINA
Revisão: TALISSA
CAPITULO I
Kay Hallam chegara ao dia em que completava seus vinte e cinco anos de idade,
sofrendo da fatal habilidade de fazer diversas coisas puramente supérfluas, com uma
noção por completo errônea dessas aptidões e com uma considerável fortuna.
Era um pouco ator, um pouco escritor, um pouco cantor e, porque acaso se
distinguia mais em pintura, proclamou-se a si próprio artista, alugou um magnífico atelier
em Chelsea, bem provido de telas em branco, pincéis, estojos de tinta, e se dispôs a
encher o tempo, discutindo arte.
Acreditava-se francamente capaz de conquistar, um dia, a admiração de toda
Londres.
Bom coração, impulsivo, correto, sem um sentimento equivoco, poderia ter feito
alguma coisa útil na vida se um pai milionário não o tivesse, tão generosamente, provido
de dinheiro.
Nessas condições, em pouco tempo se viu rodeado de um enxame de amigos
fáceis, cuja principal virtude era uma ilimitada capacidade para se divertirem, — á sua
custa, naturalmente. Eis aí por que Kay começava a adquirir o habito de passar a vida de
diversão em diversão.
Seu atelier era, em geral, cenario de alguma festa; as telas continuavam imaculadas,
os pincéis nos estojos e as tintas nos tubos. Ele, porém, continuava a discutir
acaloradamente sua arte.
Mas, no dia do seu vigésimo quinto aniversario, o fado incumbido de vigiar Kay
Hallam cansou-se, repentinamente, de esperar que toda Londres o aclamasse um idolo e
achou que era chegada a hora de agarrar aquele jovem pelas orelhas e levá-lo a um
destino diferente.
E o levou para junto de Robin, a Maltrapilha, do seguinte modo:
Para celebrar seu aniversario, organizou Kay uma excursão — geralmente a
comemoração dessa data durava uma semana — a bordo do seu branco iate, Adriana,
fundeado em Romansgold Creek, Little Molesbury (Essex).
O grupo de excursionistas era formado por Alison Tearle, uma loura muito elegante e
cheia de vontades, que, segundo o que se dizia, muito em breve se tornaria Mrs. Kay
Hallam; Mahyew Tearle, pai de Alison; Mrs. Pennington, um pouco tola mas bonita, meiga
de índole, e Andrew Fable, o amigo intimo de Hallam, perfeito sob todos os pontos de
vista.
Quando sairam de Chelsea o tempo mostrava-se magnífico e uma suave brisa
soprava, mas, já pelo meio-dia, ao chegarem á aldeia de Molesbury, formou-se um pé de
vento, cuja velocidade devia ser de umas quarenta milhas por hora; começou a chover
torrencialmente e a formidável tempestade oferecia um espetaculo maravilhoso ao longo
do grande rio.
Não havia, pois, outro remédio, senão tocarem em linha reta para Creek House,
onde, á margem do rio, tinha Hallam um pequeno e confortável cottage, e ordenar a Mrs.
Dawkins, sua velha caseira, que fizesse os preparativos necessários para que todos os
excursionistas pudessem passar ali a noite.
Alison se aborreceu horrivelmente e deu demonstrações disso em tom e maneiras
peculiares ás pessoas excessivamente mimadas, quando acaso se vêem contrariadas.
Kay, porém, extremou suas atenções para com ela até a hora do lunch1, findo o qual
propôs a todos darem um passeio, em vista de ter o tempo inesperadamente serenado.
Só Mahyew Tearle preferiu ficar em casa com um livro e um charuto.
— Porque não embarcamos agora para dar inicio á excursão? — perguntou Alison,
enquanto passeavam, gozando a atmosfera fresca e transparente que a chuva purificara.
— Porque não há maré — respondeu Hallam.
— E que importância tem isso?
Hallam sorriu.
— Alison, demonstras uma perfeita e deliciosa ignorância das planícies pantanosas
de Essex. Não poderemos sair enquanto a agua não tiver subido bastante.
— E quando subirá esta cacetissima e estúpida maré?
— Ainda teremos que esperar umas duas horas. Só lá pelas oito.
— E poderemos partir, então?
— Mais vale irmos para bordo e sairmos do rio com a luz do dia.
— E a maré seguinte quando é?
— Numa hora em que estarás ressonando tranquilamente na tua camazinha.
— Oh, que grande caceteação! Quando partiremos, afinal?
— Amanhã, ao meio-dia.
— Todo esse tempo aqui? Oh, Kay!
— Mas, minha cara, não sou eu o culpado.
Com um sorriso tomou-lhe carinhosamente uma das mãos. Kay tinha um sorriso
persuasivo e atraente, que causara maiores danos á paz de espirito de Alison do que ele
poderia imaginar; a jovem, como todo o mundo, estava mais que convencida de tornar-se
um dia Mrs. Kay Hallam. Dava isto por coisa decidida; mimada como era, estava
habituada a conseguir tudo que desejava e Kay era o único homem no mundo que lhe
servia. Este ultimo não sabia disto, apesar de ser uma circunstancia sabida e comentada
por todos. Embora dedicasse um grande afeto a Alison, a idéia de um casamento com ela
ou com qualquer outra, ainda não tomara uma forma definitiva em seu espirito.
— Claro que a culpa é tua — aparteou Andrew Fable, rindo-se. — Para que serve
um hospedeiro senão para suportar as reclamações de seus hospedes diante dos
acontecimentos que lhes vêm prejudicar o conforto?
Hallam riu-se com o amigo, mas Alison, enrubescida, voltou-se para Fable.
Acreditava ela que ultimo não visse com bons olhos sua amizade com Kay e estava
quase certa de que sua intenção fora irritá-la.
— Andy acha que, por ser escritor, deve se mostrar sempre ou muito engraçado, ou
muito inteligente — disse ela.
Fable contemplou-a com uma expressão brejeira nos olhos bondosos.
1 Almoço
— Desvaneces-me — replicou ele.
— Não faças caso do que ele diz — aconselhou Mrs. Pennington que, como toda
gente, mimava Alison.
— Sim, nem eu permito que alguém a importune — acrescentou Kay como se
estivesse lidando com uma criança.
Nada encantava mais a Alison do que se ver tratada assim e isso concorreu muito
para serenar-lhe o animo.
Deixaram a rua principal e passaram para os becos sujos e estreitos da parte baixa
da aldeia.
Fable, levemente carrancudo, ia atras, conversando com Mrs. Pennington.
— Não desejas que isso aconteça, não é verdade? — perguntou, de súbito, Mrs.
Pennington.
— A que se refere? — replicou Fable.
Com um movimento de cabeça ela indicou Alison e Kay, que, mais á frente,
caminhavam de braços dados.
— Por que pensas assim? — indagou Fable.
— Oh, por nada! Nunca penso nada. Não tenho cabeça, mas ás vezes percebo as
coisas — replicou Mrs. Pennington, sorrindo.
— Kay é um excelente rapaz! — considerou Andrew.
— Bem, mas tu...
— Oh, nada tenho a objetar. Porventura isso já está combinado?
— Por parte deles não, porém, por parte dos outros, sim.
— Kay precisa que o animem.
— E quem poderá fazê-lo?
— Quem sabe ela...
— É que... — Mrs. Pennington não pôde terminar sua frase, pois, subitamente,
ouviram-se as notas alegres de uma charanga. — Oh! que é isso? — perguntou ela com
os olhos muito abertos.
Alison e Hallam, que haviam parado, se voltaram.
— O som vem de lá — observou Hallam, indicando o campo.
— Oh! quantas luzesinhas! — exclamou Alison, que já estava novamente de bom
humor.
— É uma feira! — acrescentou Mrs. Pennington. — Vejo o toldo das barracas e uma
porção de bandeirinhas multicores. Vamos até lá! Faz muitos anos que não vejo uma
festa semelhante.
Todos se riram de sua excitação; mas os risos cessaram imediatamente: é que o
vento trazia, além dos acordes da charanga, as notas cristalinas de uma deliciosa voz de
mulher, clara, melodiosa e firme. Acompanhando a musica rústica, a voz subia, morria,
ressurgia para tornar a morrer; tinha acentos de pranto e estridências de riso e acabou
por encher o ambiente crepuscular de sons que pareciam ecos de um sino harmonioso.
Ficaram todos imoveis, ouvindo em silencio, até que a ultima nota se perdesse. Mrs.
Pennington foi a primeira a falar:
— Meu Deus, que voz! — exclamou, boquiaberta ante tanta beleza.
— Mas que diabo fará uma voz destas, perdida neste deserto? — perguntou Fable.
— Já sei como tirar isso a limpo — atalhou Hallam. — O som vem da feira, não é?
Fable concordou em silencio.
— Pois então, vamos até lá para trazer o misterio á luz do dia — propôs Kay.
Rodearam o campo e viram-se diante de um enorme portão, já quase em minas, que
dava entrada ao recinto da feira. Compraram bilhetes e entraram.
Uma vez dentro, se detiveram um momento para acostumar a vista á luz bruxoleante
das velas de parafina e os ouvidos á barafunda de vozes estridulas que se erguia á volta
deles.
Grandes risadas vinham dos balanços; um vendedor de cocos apregoava com toda
a força de seus fortes pulmões: "Dois cocos por um penny!"
E, sob a luz fosca da tarde, girava o grande carrocel com seus cavalos, cisnes e
avestruzes, entre o brilho dos florões de latão e a estridencia da musica.
Inesperadamente, ergueu-se de novo a voz maravilhosa, não no compasso igual e
monótono de uma aria determinada, mas sim modulando as mais suaves cadências.
Seguindo a direção do som, Hallam e seus amigos chegaram a uma roda de
marítimos com suas mulheres, filhos e noivas, no centro da qual puderam ver a cantora.
Naquele momento ela dançava; a mais delicada figurinha imaginável, tão leve e
esvoaçante que dificilmente se assemelhava a um ser humano; tão instintivamente
graciosa, em seus movimentos, que cada pose sua era digna de um quadro. Ao ritmo
discordante de um estranho instrumento musical que, a um canto, um homem manejava,
executava ela seus passos alegres e suas originais piruetas; sua pequenina saia
mostrava-lhe os joelhos, no gracioso revolutear dos farrapos que a formavam; seus
braços nus brilhavam aos reflexos frouxos da luz alaranjada das velas e, de momento em
momento, seus lábios deixavam escapar trechos da canção que marcavam as batidas de
seus pés descalços.
— Por Júpiter, que quadro! Daria tudo para pintá-lo! — exclamou Hallam com sua
sensibilidade de artista realmente excitada.
Alison, que continuava com o braço enlaçado ao dele numa atitude de proprietária
absoluta, fez cara de aborrecimento.
— Vamo-nos — disse ela. Já a vimos dançar bastante.
Mas ninguém pareceu ouvi-la.
— É adorável, não? — comentou Fable.
— Nunca vi nada mais sedutor — aparteou Mrs. Pennington.
— Mas quem será esta menina? — perguntou Kay.
Um marinheiro que estava ao seu lado, retirando da boca um pequeno cachimbo,
respondeu:
— Essa que está dançando? É a filha do velho Golden, aquele que mora com
Bealby lá em baixo, em Creek House.
— Pertence ela ao pessoal desta feira? — perguntou Hallam.
— Não; mas ás vezes dão-lhe qualquer coisa para dançar porque atrai gente.
Chama-se Robin. Nós, porém, a tratamos por "Robin, a Maltrapilha" — acrescentou o
homem, rindo-se.
Ao ouvir pronunciar seu nome, a pequena dançarina interrompeu seu bailado e,
equilibrando-se um momento nas pontas dos pés, passeou os grandes olhos escuros e
assustados por cima das cabeças que estavam na frente e fixou-os no rosto de Hallam,
faces rubras e lábios entreabertos. A cabeleira curta e negra emoldurava-lhe o rosto com
graciosos anéis.
Praticamente era a primeira vez que Hallam fixava o semblante da jovem e foi
obrigado a conter a respiração tal a sua formosura. Jamais vira criatura mais fascinante.
Insensivelmente qualificara-a de menina. Mas teria acertado? Não seria antes uma
mulher? Ou quem sabe uma fada?
De fada eram as madeixas negras e revoltas que lhe circundavam o rosto radiante.
De criança aqueles olhos escuros que o fitavam assustados. Mas de mulher eram os
lábios que se cerravam, formando uma linha arroxeada por cima do queixo oval; de
mulher altiva, o jeito de erguer o busto e atirar para traz a pequenina cabeça orgulhosa,
diante dos olhares de admiração de um homem desconhecido.
Subitamente a jovem voltou-se para um grupo de meninos que havia por traz de si:
— Dê-me meus sapatos! — gritou com certa violência. — Quem pegou meus
sapatos?
Quando lhes deram, calçou-os rapidamente, lançou mais um olhar de desafio a
Hallam e desapareceu por traz do grupo de curiosos.
Hallam riu-se; não podia deixar de rir. Que absurdo teria passado pela cabeça
daquela pequena? Que ele ia come-la? O gesto orgulhoso de sua deliciosa cabecinha!
Ofender-se tanto por um simples olhar de admiração! E, contudo, agradava-lhe aquele
pudor selvagem e sincero. E como era encantadora, cheia de vida, espiritualidade e
alegria!
Um ríspido puxão em seu braço trouxe-o novamente á realidade.
— Kay, — disse a voz insultada de Alison, — vamo-nos daqui pelo amor de Deus!
Andy e Mrs. Pennington foram dar uma volta no carrocel.
— Mas, Alison, não achas que ela é um pessego? — replicou Kay. — Não daria um
quadro com sua cabeleira negra, todos aqueles farrapos esvoaçando á sua volta e
aqueles adoráveis olhos assustados?
Alison meneou a cabeça desdenhosamente.
— Francamente, Kay, estás fazendo um papel ridículo — volveu ela. (Está claro que
os olhos de Alison eram cinzentos). — Não achas que ela é demasiadamente vulgar? —
acrescentou friamente.
— Por que? Você mesmo afirmou que sua voz era maravilhosa.
— Oh, a distancia, sim! Mas de perto seu encanto ficou reduzido á expressão mais
simples. — (Subitamente lançou um olhar á roda e, voltando-se rapidamente, acrescentou
em voz mais alta). — O que acho melhor nela é o nome — Robin, a Maltrapilha. Assenta-
lhe muito bem porque, afinal de contas, não passa de um pequeno especimen vulgar,
esfarrapado e sujo, não achas?
Hallam tinha pavor a discussões, especialmente com pessoas de sua amizade; por
isso devemos declarar, em seu favor, que hesitou antes de responder:
— Oh! talvez! Mas bem sabes, querida, os olhos do artista vêem um pouco mais
longe.
Nesse momento, viram-se assediados por Mrs. Pennington, que insistia na idéia de
"arriscar a vida" no carrocel, para onde os arrastou em meio de risos e galhofas; por isso
Hallam não viu que Robin, a Maltrapilha, os grandes olhos negros faiscantes de
indignação, estava bem atras deles e estendera o braço para detê-lo, no que foi impedida
por uma fila de jovem alegres que, de braços enlaçados, abriam passagem pela multidão.
Alison e Kay acomodaram-se em dois avestruzes gêmeos, ela no circulo interior e
ele no exterior; a divertida roda começara a girar, quando um pequenino corpo saltou do
meio do povo, vindo abraçar-se ao pescoço do imponente avestruz que Hallam montava.
— Retire suas palavras! — exclamou Robin, a Maltrapilha, quase sem fôlego.
— Meu Deus! — gritou Hallam, segurando-a alarmado, pois o avestruz se erguia
majestosamente, levantando da plataforma o corpo da menina.
— Retire suas palavras imediatamente! — repetia ela, furiosa.
— Que palavras?... Mas pelo amor de Deus! Agarre-se bem que é capaz de cair...
Retirar o que?
— O senhor disse que sou vulgar e suja — explicou Robin.
— Eu não... — começou Hallam numa tentativa de protesto.
— O senhor não, mas ela sim.
E, passando o braço pela frente de Kay apontou para Alison, chegando quase a
tocar-lhe o rosto com o pequeno indicador.
— Kay! — exclamou esta ultima. — Como se atreve essa mulher a ofender-me?
Faze-a descer.
— Impossível. Esta maldita roda anda com demasiada velocidade — replicou Kay.
— Ela disse, e o senhor concordou — continuava Robin. — Eu posso ser vulgar e
maltrapilha, mas não suja. Tão pouco sou um "especimen", seja isso o que for!
— Kay! — gritou Alison, enfurecida. — Como admites que me insultem desse modo?
— Se os ceus permitissem que este desgraçado avestruz não subisse e descesse
com tanta rapidez! — replicou Kay, com um braço, sustentando Robin, para evitar que ela
caisse, com o outro, abraçado ao pescoço do avestruz. — Olhe aqui, — continuou,
voltando-se para a pequena bailarina, — não sabe que não se deve insultar ninguém?
— O que não se deve é chamar uma pessoa de suja quando isso não é verdade. Eu
não sou suja, o senhor pôde ver!
E Hallam viu. A blusinha que ela trazia estava tão limpa como a de Alison; a pele de
seu pequenino rosto enfurecido era branca e macia; a cabeleira sedosa e brilhante. Só
então o rapaz compreendeu, com um certo desapontamento, que uma satisfação era
devida, não a Alison, mas sim a Robin.
— Minha mãe era uma lady — dizia Robin — e meu pai tem negócios em Londres.
Suas palavras vinham impressas de um indescritivel tom de amor e orgulho.
Alison deu uma gargalhada de escarnio. Hallam, porém, tratou de disfarça-la,
dizendo:
— Lamento muito o que aconteceu e peço-lhe perdão. Eu... quero dizer, nós,
retiramos as expressões que a insultaram.
— Perfeitamente — replicou Robin. — Eu e o senhor estamos quites.
Alison sentia-se invadida por tal indignação, que não podia nem pensar nem proferir
uma única palavra; antes que pudesse coordenar seus pensamentos, o carrocel começou
a diminuir a marcha e Robin, livrando-se do braço de Hallam, saltou para a plataforma,
desaparecendo com a mesma precipitação com que surgira.
Então Alison exprimiu seu ressentimento com uma verdadeira tempestade de
palavras irritadas.
— Humilhares, a mim, diante de uma esfarrapada dessas! — exclamou. —
Francamente, Kay, é... é imperdoável!
— Mas, Alison...
— Oh, deixemos de lado esse estúpido incidente e voltemos para casa! A tarde foi
um completo fracasso, — replicou a jovem, sem esperar pelas desculpas de Kay.
Desceram do carrocel e Hallam ofereceu-lhe amistosamente o braço que foi por ela
recusado. As negociações da paz duraram mais de meia hora. Ao fim desse tempo Alison
já se acalmara e estava disposta a esquecer o sucedido, mas sem ceder em coisa
alguma; seu perdão devia ser implorado. Agradava-lhe comprovar assim seu dominio
sobre Kay.
— Kay — disse ela — não é bonito brigar deste modo.
— Certamente, minha querida Alison — concordou Hallam, encantado de pôr um
ponto final á discussão.
Já era tarde quando voltaram para casa e, não com pouca surpresa, encontraram
em grande excitação a pequena aldeia de Molesbury, cujos habitantes, acostumados a
deitar-se ás dez, formavam, áquela noite, vários grupos, conversando em plena rua.
— Reminiscencias da feira, suponho — comentou Fable.
Ao passarem por um grupo que se formara nos arredores da entrada de Creek
House, onde todos falavam agitadamente, Hallam perguntou:
— Que aconteceu?
Varias vozes responderam-lhe a um só tempo.
— Goraen, sir, o que mora com Bealby, foi preso por roubo. Agarraram-no em
Londres. É o pai da pequena Robin. Nós sempre desconfiamos que eles não fossem
muito honestos.
— Está bem — replicou Hallam secamente, conduzindo os amigos ao cottage, com
passo rápido.
— Pobre menina! — exclamou Mrs. Pennington, ao atravessarem o pequeno hall. —
É uma vergonha horrível!
Alison voltou-se para Hallam com olhos brilhantes.
— Filha de um ladrão. Oh, a miserável e estranha criatura! — murmurou
suavemente.
Mas, se as palavras pareciam compassivas, havia em sua voz um certo tom de
triunfo que as desmentia.
A aventura da tarde impressionara intensamente Hallam, tirando-lhe o sono e,
quando todos se retiraram para descansar, saiu para dar um passeio pelo jardim
enluarado; transpondo o portão de madeira que ficava ao fundo, escalou a muralha
inclinada que impedia o rio de tragar Creek House.
O nivel das águas estava baixo e o rio reduzira-se a uma estreita faixa de prata. A
pouca distancia, divisava-se seu elegante iate que resplandecia á luz da lua, balouçando-
se tranqüilamente á flor das águas.
Caminhou por cima da muralha, cujo topo era largo e plano, em direção a Roman's
Creek. A casa de Creek Island — ilha somente com a maré alta — parecia uma nodoa
negra na planície.
— A casa de Bealby — murmurou ao mesmo tempo que os acontecimentos da tarde
lhe voltavam á lembrança.
Chegou a um sitio onde a muralha se inclinava para o chão, formando quase um
angulo reto. Do lado do rio, junto a esse declive as sombras eram densas e aveludadas e,
inesperadamente, partiu do meio delas um rumor de soluços.
Hallam estacou e lançou um olhar para baixo; em meio da escuridão lobrigou
qualquer coisa branca no chão; o mesmo som abafado dos soluços chegou-lhe de novo
aos ouvidos e ele desceu até á margem do rio, disposto a investigar o que se passava.
De bruços sobre as rochas, o rosto apoiado nos braços, soluçava Robin, a
Maltrapilha, como si lhe houvesse despedaçado o coração.
Hallam parou e tocou-lhe de leve, no ombro; cessaram os soluços e, assustada, a
joven pôs-se rapidamente de joelhos. Mas, ao verificar quem era a pessoa que estava ao
seu lado, a expressão de terror que se estampara em seu rosto transformou-se em
ressentimento e desafio.
— Que quer? — perguntou com hostilidade.
— Não... não chore assim... por favor — gaguejou Hallam.
— Não estou chorando, estou? — perguntou ela, erguendo para o rapaz o
pequenino rosto esfogueado, para que ele o examinasse.
— Não — admitiu Hallam. — Não está chorando, agora, mas soluçava ainda há
pouco e...
— Bem, mas que tem a ver com isso? — retorquiu ela. — Ninguém poderá chorar
sem sua permissão?
— Sim, naturalmente que pôde, mas... seja como for, não é muito agradável ouvir-se
uma pessoa chorar.
Uma parte da hostilidade de Robin desapareceu. Seus grandes olhos nublaram-se,
aplacando-se de um modo trágico e curioso.
— Às vezes — murmurou ela com voz tremula — não se pode evitar. Não se pode!
Acontecem coisas de tal forma horríveis!...
— Já sei — replicou Hallam com espontânea simpatia. — Ouvi alguns comentarios,
na rua, quando voltava.
Instantaneamente Robin tornou-se de novo agressiva.
— Todos falavam dele, não é? — perguntou com violencia. — Não tinham nada
melhor a fazer, acho eu.
Crispou as mãos.
— Bem sabe... lamento-a de todo o coração — disse Hallam.
— Quem está precisando de suas lamentações? — replicou ela. — Eu não, sabe?
— Bem, mas de qualquer modo lamento-a — insistiu o rapaz. — Não posso evitar
isso.
Sob a suavidade juvenil do olhar de Kay, o ressentimento de Robin vacilava; seu
rosto palido estremeceu e debruçou-se de novo sobre as pedras, toda sua violência como
que desvanecida.
— Ele... ele era ladrão, ha muitos anos... e eu de nada sabia — soluçou ela.
Hallam teve que engolir saliva antes de dizer:
— Compreendo. É horrivel.
Após um pequeno silencio a jovem continuou:
— Como o senhor sabe, apanharam-no em Londres e lá o detiveram. Não posso vê-
lo; vão mandá-lo para um cárcere. Não sei por quanto tempo. Anos e anos, segundo me
disse Sally. O homem contou-lhe?
— Que homem?
— O que veio de Londres e fez muitas perguntas e anotações em um livro.
— Já sei. E quem é Sally?
— Minha irmã por parte de pai — Sally Bealby. Eu e papai moramos com ela e Ben,
um sujeito terrível e odioso como Sally. Eles são capazes de deixar papai louco quando...
quando o soltarem e ele voltar. Sally sempre teve ciúmes porque meu pai amava mais
minha mãe que a dela. Mas minha mãe era uma lady encantadora e a dela não passava
de uma mulher má e vulgar. Garanto-lhe, acredite ou não, que papai vale mil vezes mais
que Sally e Ben juntos, apesar de ser um ladrão. E nunca conseguirão que eu o despreze.
Nunca!
O tom apaixonado e surdo de suas palavras perturbava a calma da noite. Kay
permanecia em silencio, deixando-a desabafar-se.
— Papai e eu fomos sempre muito amigos; não havia segredo entre nós. Não
compreendo como pôde ele ter sido ladrão durante tanto tempo, sem que eu o soubesse.
Todas as semanas ia a Londres e eu nunca pude desconfiar que... que...
— É natural... Foi uma desgraça...
— Não sei que fazer — continuou Robin. — Se houvesse...
— Escute, Robin... — começou Hallam.
— Com ordem de quem me chama de Robin? — atalhou ela, mudando bruscamente
de atitude.
Hallam confessou que ninguém lhe dera semelhante ordem.
— Portanto meu nome é Miss Golden; compreende? Robinetta Golden. Minha mãe
deu-me esse nome por ser diminutivo de Robert, que é como se chama papai.
— Não me esquecerei — replicou Hallam, submisso. — Pôde confiar em mim como
em um amigo.
— Não pense em semelhante coisa — disse Robin. — Além do mais o senhor olhou-
me, na feira, com um olhar diferente; como se me admirasse...
Seus olhos brilharam cheios de acusação. Hallam riu-se.
— Mas é claro que eu a admiro — replicou com franqueza. — Já encontrou algum
homem que o fizesse?
— Não — respondeu ela secamente. — É justamente por isso.
O riso de Hallam como que lhe morreu nos lábios.
— Compreendo — volveu respeitosamente. — Mas, seja como for, não posso deixar
de reconhecer seus encantos. E, como eu, ninguém o poderia.
Robin olhou-o fixamente.
— Menos aquela moça loura que estava consigo — contestou ela.
Hallam tornou-se escarlate.
— Bem, mas... — começou ele.
Robin, porém, cortou-lhe a frase:
— Ela apenas achou-me vulgar, maltrapilha e...
— Mas olhe aqui; já estávamos de bom humor, por esse lado.
— Eu e o senhor. Mas ela não. Ela não foi capaz de pedir-me desculpas, embora o
senhor o fizesse por ambos.
Houve uma pausa.
— E sabe por que ela não o fez? — acrescentou.
— Não — respondeu Hallam cada vez mais embaraçado.
— Porque o senhor me admirou — continuou Robin. — Foi só por isso.
Era verdade e Kay sabia-o, mas não queria acreditar.
A jovem prosseguiu.
— Por aí o senhor pôde ver quantos aborrecimentos nos podem vir de admirarmos
alguém.
— Tem razão — replicou o rapaz.
— Ela riu-se quando falei que papai tinha negócios em Londres — acrescentou com
grande amargura na voz. — Oh, e tinha razão para rir-se de mim! Negócios! — (Fez uma
pequenina pausa). — Por que não se ri o senhor também?
— Porque isso não me diverte — respondeu Hallam delicadamente.
— Ele está em Londres e eu não posso vê-lo; levá-lo-ão para um cárcere e eu não o
verei por muitos anos — balbuciou ela.
— Que... vai fazer? — perguntou Hallam, francamente embaraçado.
— Não sei. Gostaria de arranjar um emprego e formar um pequeno lar para ele, de
maneira que não precisasse mais voltar a viver com Sally e Ben. Só que não sei em que
poderia trabalhar. Papai costumava dizer que eu era uma lady e um dia seria rica e não
precisaria trabalhar.
Sua voz tornou-se ainda mais tremula.
— Sei que ele só fez o que fez por mim! — acrescentou receosa de que Hallam a
contradissesse.
É claro que ele não o fez e ambos ficaram em silencio a contemplar as águas.
— Sabe que poderá ganhar dinheiro com sua voz? — perguntou ele afinal.
— Que quer dizer com isso? Cantando?
— Sim.
Ella sacudiu a cabeça afirmativamente.
— Oh, bem sei — disse com indiferença. — Ganhei um shilling esta tarde, na feira.
— Em Londres poderia ganhar muito mais de um shilling, se educasse
convenientemente a voz.
— Podia? Verdade? E como é que se educa?
— Teria que arranjar um professor de canto e...
— E ele cobra alguma coisa? — interrompeu-o ela.
— Oh, sim; mas...
— Então não se pensa mais nisso — replicou Robin desanimada.
— Olhe aqui — disse ele — embora com pouca certeza. Vou-me embora amanhã e
talvez não volte este ano. Desejaria fazer qualquer coisa por si.
Fez uma pausa e, com espantosa falta de tato, ofereceu-lhe dinheiro.
A recusa da jovem, expressada num tom de voz abafado e tenso que se casava
maravilhosamente á quietude noturna que os rodeava, chegou aos ouvidos de Kay como
verdadeiras chicotadas. Ao calar-se, Robin tinha o rosto esfogueado e os lábios trêmulos
de indignação.
— Não tive intenção de ofendê-la — desculpou-se Kay, contrariado. — Julguei
apenas que estivesse precisando de dinheiro. Foi tudo.
Repentinamente, Robin se pôs de novo a chorar, cobrindo o rosto com as mãos.
Embaraçado, Kay deixou-a desabafar-se. Um momento depois, porém, a jovem ergueu a
cabeça e pousou nele os olhos umidos.
— Desculpe-me si o magoei — exclamou ela. — Acredito que sua intenção tenha
sido boa. Mas é que ainda não estou pedindo esmola e...
Seus lábios tremiam, impedindo-a de falar.
— Por favor, não! — implorou Hallam. — Diga tudo o que quiser, mas não chore.
Não posso vê-la chorar. Não posso!
— Esta é a primeira vez que choro assim, depois de muitos anos — replicou Robin,
contendo-se. — Eu nunca choro. É uma coisa tão tola...
— Nem sempre.
— Mas esta noite meu único desejo é morrer. E si eu, aqui fora, onde tudo é livre,
sinto esse desejo, que desejará papai na sua prisão? Oh, é horrivel! Parece que o mundo
não é suficiente para conter tanto horror.
Kay, que até aquele momento estivera de pé ao lado de Robin, ajoelhou-se.
— Tudo há de acabar bem — disse ele, embora sem grande convicção. — Não deve
desanimar.
Sentia-se dominado por um louco desejo de tomá-la em seus braços para consolá-la
e isso como que o desconcertava.
— Surpreender-me-ia si isso se desse — replicou a jovem lentamente. — Planejei
tantas coisas para papai e para mim!... Dias tão adoráveis! Longe de Sally e de Ben. E
agora nunca mais se realizarão!
— Mas virão dias melhores — retorquiu Hallam, encorajando-a.
Seus olhos enormes, onde se refletia o desconsolo de sua alma, passavam por cima
dos ombros de Kay, indo pousar-se nas águas prateadas do rio.
— Uma noite como esta! — murmurou ela. — Não lhe parece impossível acontecer
coisas tão cruéis? — (Sua voz parecia um soluço abafado). — De qualquer modo não
poso acreditar. Tenho a impressão de que de repente vou acordar e ver que tudo não
passa de um terrível pesadelo. Ao mesmo tempo, a realidade corta-me o coração como
que a repetir-me: "É verdade! É verdade!"
Cravou os olhos em Hallam.
— Talvez a realidade esteja enganada — disse este ultimo com voz enrouquecida.
Permaneceram em silencio durante algum tempo; só o rumor das águas e o sopro
delicado da brisa perturbavam a quietude da noite.
— A maré está subindo! — exclamou Robin, de súbito. — Vê como os barcos se
balançam?
— Bonito, não acha? Aquela embarcação branca é a minha.
— Aquela que está na boca da enseada?
— Sim, o Adriana. E se a maré está subindo é porque já deve ser quase meia-noite.
Precisamos separar-nos.
— Sim — replicou a jovem, obediente. Levantaram-se.
Kay quis auxiliá-la a subir até ao alto da muralha, mas ela recusou.
— Não quero que Sally me maltrate — disse. — Continuarei pela margem do rio.
— Irei consigo até onde a enseada... — começou ele.
Robin, porém, meneou a cabeça, interrompendo-o.
— Não, siga seu caminho — replicou ela secamente.
— Prefere ir só?
— Sim.
Ali ficaram por algum tempo, um em frente ao outro. Por fim ela ergueu os olhos
para o rapaz.
— Vai partir amanhã naquele barco? — perguntou de chofre.
— Sim.
— E não voltará este ano?
— Não — respondeu Hallam, olhos fitos nos delia. — Oh, não sei, talvez... —
acrescentou rapidamente.
Houve um outro silencio.
— Que está esperando? — perguntou Robin.
— Nada — replicou Hallam. — Boa-noite.
Estendeu-lhe a mão e Robin a tomou entre as suas.
— Boa-noite — murmurou.
— Oh, — exclamou Hallam — não posso deixá-la assim! Não poderei ajudá-la de
algum modo?
Ela meneou novamente a cabeça.
— O senhor parece diferente da maioria dos homens. Mas não quero auxilio de
ninguém.
Suas mãos se separaram.
— Está muito bem — replicou Hallam secamente. Com estas palavras, escalou
novamente a muralha e desapareceu.
CAPITULO II
Quando Robin se assegurou de que Hallam não mais poderia vê-la, virou-se e
correu ao longo da muralha, até chegar a um ponto em que a margem do rio ficava ao
nivel da ilha. Aí parou e, com toda a cautela, lançou os olhos á sua volta, esforçando-se
por verificar se estava só como julgava. Nada encontrou além do perfil da muralha — do
qual ela conhecia todos os detalhes, tão bem como os traços de seu próprio rosto — que
se desenhava sobre o límpido esmalte da noite de verão. Cuidadosamente, caminhou
pelas grandes pedras que serviam de degraus para chegar á casinha da ilha. Uma vez ali,
parou diante da porta e colou o ouvido ao buraco da fechadura para escutar. Tudo parecia
silencio no interior da casa; portanto, sem fazer ruido abriu a porta e entrou.
Felizmente não havia luz no quarto da frente; isto significava que Sally Bealby e seu
odioso marido dormiam. Robin tranquilizou-se, pois não estava disposta a suportar uma
cena, que sabia inevitável, aquela noite. Já sofrera demais, como testemunhava o rictus
doloroso de seus lábios ainda trêmulos.
Já bastava ter que ouvir a Sally no dia seguinte, quando esta lhe viesse cravar o
aguilhão dos trágicos acontecimentos da véspera; por ora já lhe causava grande
satisfação verificar que Sally não estava acordada para maltratá-la.
Um segundo depois, compreendeu que sua satisfação fora infundada, pois uma voz
estridente a chamava do alto da escada:
— Robin! És tu?
— Sim, Sally, sou eu — respondeu Robin calmamente.
— E tens coragem de voltar aqui, depois do que aconteceu? — continuou a
desagradável voz.
— Aonde iria então? — indagou Robin com a mesma tranquilidade.
Não obteve resposta, mas ouviu passos na escada. Em seguida viu surgir Sally com
uma pequena lâmpada de quarto na mão. Vinha enfiada em um chambre de flanela que
um dia fora cor de heliotropio, mas que, então, desbotado pelas lavagens, se tornara de
um indefinido tom acinzentado. Seus cabelos ásperos, brilhantes e vermelhos, formavam
uma trança apertada e comprida que lhe caia até ao meio das costas. A volta da fronte
enrolara, á guisa de turbante, um trapo de linho branco. Tinha olhos claros e quase não
se lhe percebiam as pestanas e sobrancelhas ralas e ruivas. Seus lábios finos fechavam-
se com dificuldade sobre os dentes disformes e salientes. Era um rosto magro e vulgar, o
que dava a impressão de que entre Sally e Robin não havia o menor parentesco. Parecia
impossível que duas criaturas tão diversas fossem filhas do mesmo pai; mas a diferença
entre elas provinha da diferença existente entre as duas mães.
O pai de Robin era homem fraco, bondoso, que jamais tivera vontade própria nem
firmeza suficiente para seguir um caminho reto. Desde muito jovem, começou a dar
passos errados na vida. Amigos indignos e vagabundos foram seus guias e acabaram por
deixá-lo seriamente comprometido. Como pela primeira vez se achou definitivamente fora
da lei, nem ele próprio poderia explicar. Parecia-lhe que cometera o primeiro roubo em um
estado de completa inconsciencia. Por sua lamentável fraqueza de carater, podiam levá-lo
onde quisessem. Muito moço, contraiu matrimônio com uma mulher magra e feia, de
gênio violento, que o dominou inteiramente. Vivia ameaçando-o e jamais se preocupou
em conservar-lhe o afeto. Como era singularmente bem afeiçoado, despertava nela
ciúmes constantes e terríveis; a historia deste primeiro matrimônio se resume em eternas
brigas e amargas recriminações que ele evitava sempre que lhe era possível.
Longe de ajudá-lo a conservar-se no bom caminho, essa mulher, com sua maldade,
dele o afastou ainda mais. Quando ela morreu, o pai de Robin jurou que as mulheres se
haviam acabado para si; mas, ao dizer isso, ignorava o poder do verdadeiro amor. A mãe
de Robin foi uma pequena criatura bela e nobre de espirito, cujo único defeito era uma
saúde extremamente frágil. Ficara orfã e sem recursos. Quando Robert Golden a
conheceu, era "nurse" e governante em casa de uma família onde as crianças eram muito
mais numerosas que as libras esterlinas. Tinha debaixo de cuidados especiais três
meninos menores de seis anos, gordos e travessos. A tarefa era superior ás suas forças;
vivia, pois, sempre cansada e aflita para dar conta do serviço. Golden encontrou-a
durante o passeio que fazia diariamente com os meninos e, então, não era mais que a
sombra de uma jovem. Desde então começou entre eles uma boa amizade. Ela vivia
demasiadamente só para desprezar qualquer afeto - que se lhe oferecesse. E dessa
amizade nasceu o amor.
Golden, envergonhado de sua vida passada, prometeu, como fazem os homens
fracos, jamais voltar aos antigos erros. Desta vez, porém, fê-lo sem contar com a
espantosa fraqueza que tão fatal lhe havia sido sempre.
E ocultou seus roubos da mãe de Robin como, ultimamente, fazia com esta. Era o
único meio que possuía de proporcionar-lhe algumas das coisas agradáveis da vida, que
tanto ansiava por vê-la desfrutar. Apesar de suas falhas, Kobert Golden conseguiu fazer-
se amado por duas mulheres: sua segunda esposa e filha. Por sua vez, as queria com
loucura. Sofreu horrivelmente quando a mãe de Robin faleceu, poucos dias depois de ter
posto no mundo a pequena de olhos e cabelos negros, para a qual Golden transferiu todo
seu carinho. Sua única ambição era ganhar bastante dinheiro, honesta ou
desonestamente, com o fim de construir um lar para si e para Robin, onde se vissem
livres da perversidade de Sally e seu marido. Nunca, porém, alcançou esse ideal e,
lutando por ele, cometeu alguns atos puniveis que o fizeram cair em poder da justiça.
Foi assim que Robin se viu, de um momento para outro, inteiramente só no mundo e
cercada por toda a sorte de problemas desconhecidos. Primeiro era o de Sally. Que lhe
iria dizer Sally? Esta não tardou a esclarecer-lhe este ponto. Assim que se pilhou diante
de Robin, disse-lhe:
— Agora? Robin, vamos nos entender.
Havia em seus olhos um terrivel brilho de vingança.
— Sim — replicou Robin — acho que será necessário. É horrível, Sally, já sei! Não o
nego — acrescentou com voz vacilante.
— Nossa família sempre foi respeitável — disse Sally. — Nunca passamos por uma
vergonha dessas.
— Já sei. Oh, Sally, sou tão infeliz como tu!
— Infeliz! — gritou Sally. — De nada adianta seres infeliz; isso não é solução.
— Está claro que não. Mas só sei que sou muito infeliz. Pensei que também o fosses
e seria algum consolo... se pudéssemos nos unir em nossa infelicidade.
— Hum! — exclamou Sally com cortante ironia. — E, com isso, tudo se arranjaria.
— Não, pouco ou nada se arranjaria. Apenas julguei que, sendo irmãs... uma
espécie de irmãs... fosse nosso dever ajudar-nos mutuamente — volveu Robin.
— Irmãs! Graças á minha boa estrela não sou tua irmã, Robin! Sempre tive minhas
duvidas a respeito do teu pai!
Uma onda de sangue invadiu o rosto de Robin. Foi obrigada a morder os lábios para
não deixar sair as palavras de protesto que clamavam por serem pronunciadas. A muito
custo reprimiu-as e disse com bastante calma:
— Papai também é teu pai, Sally.
— Pôde ser — retorquiu Sally. -— Mas minha mãe, graças a Deus, não foi a tua.
Havia no tom de suas palavras um mundo de intenções odiosas e cruéis. O rubor de
Robin acentuou-se ainda mais.
— Não digas uma única palavra contra minha mãe, Sally — intimou ela com voz
mais alta. — É só o que te peço.
— Ameaças-me? — berrou Sally.
— Não sei bem si te ameaço — replicou Robin no mesmo tom. — Só te previno que
não abras a boca para falar mal de minha mãe.
Sally começou a gritar: era assim que dava expansão á sua cólera quando se via
contrariada.
— Quem és tu para impor-me o que devo ou não devo dizer? Quem és tu? Gostaria
que me dissesses. A filha de um ladrão, eis o que és. Nem mais nem menos que a filha
de um ladrão!
Robin teve que morder os lábios com mais força que nunca.
— De nada adianta dizeres coisas contra papai, — disse ela. — Parece que te
esqueces que, ofendendo meu pai, ofendes, igualmente, o teu.
— Desgraçadamente isso é verdade! — continuou a voz de Sally, cada vez mais
alta. — Mas minha mãe era uma excelente mulher!
— Quererás insinuar que a minha não o era? — inquiriu Robin com o olhar
inflamado de indignação. — Quererás insinuar que minha mãe não era uma excelente
mulher?
— Estou dizendo como era a minha — começou Sally.
Mas Robin não se interessava pelo que ela estava dizendo sobre a própria mãe.
Apenas lhe importava o que dissera da mulher á qual Robert Golden sempre se referia
com tanta veneração e ternura. A meiga e delicada personalidade de sua mãe, que não
chegara a conhecer, tornara-se uma coisa real, atraves das palavras de seu pai.
Portanto, repetiu a pergunta com o olhar ainda mais ameaçador.
— Queres dizer que minha mãe não foi uma excelente mulher?
Cada minuto de silencio que se passava vinha aumentar o furor da tempestade, que
pairava sobre as duas irmãs, prestes a se desencadear. Por fim, Sally declarou que fora
aquilo precisamente o que quisera dizer.
— E mais — acrescentou aos gritos. — Direi a todo o mundo que toda a tua raça
não presta, nem nunca há de prestar! E hei de fazer-te confessar isso, antes de liquidar
as contas contigo!
— Está aí uma coisa que não conseguirás com todo o teu berreiro — replicou Robin.
— Nunca hei de negar que minha mãe foi a mais adorável e meiga das mulheres... Estás
mas é com ciúmes de minha mãe, porque sabes que ela era uma lady e a tua não
passava de uma mulher vulgar! E porque sabes que papai adorava minha mãe e
detestava a tua! E porque sabes que minha mãe era lindíssima e a tua não era! És
mesquinha e perversa! Mas não me obrigarás a dizer que papai, mamãe e os meus não
prestam, porque sei que isso não é verdade. Papai, apesar de ser ladrão, é melhor que tu
e melhor que Ben, com toda a sua carolice.
— Quem é melhor que eu? — indagou uma voz vinda da porta.
Voltando-se, Robin viu que Ben Bealby em pessoa se achava diante dela. Como
Sally, vinha enrolado num chambre; como Sally, tinha o rosto igualmente magro e
estúpido. Seus olhos se fixavam ora em Robin, ora em Sally. Pela fisionomia de Robin
passou uma expressão de terror ao dar com a cara brutal de seu cunhado.
— Eu estava dizendo que papai é melhor que tu — sustentou ela.
Por um momento Ben encarou-a em silencio.
— Oh, disseste que teu pai é melhor que eu, hein? Afirmaste que o ladrão, o
mentiroso, o canalha do teu pai é melhor do que eu, não foi?
Seu rosto era a coisa mais fria e bestial que se pode imaginar e Robin estremecia á
sua simples vista. Continuou, porém, a enfrentá-lo.
— Sim — confirmou.
— Pois então — replicou Ben, lentamente — sabes que quanto mais depressa o
desdisseres melhor para ti, compreendes?
—- Não... não posso — balbuciou Robin. — Não posso!
— Não podes? Veremos. Quem sabe se isto fará com que o digas?
Puxou das costas um chicote de couro. Robin arregalou os olhos de terror, mas,
embora Ben desse os primeiros passos em sua direção, não se moveu de onde estava.
Seu coração batia furiosamente, mas ficou impassível, vendo-o aproximar-se.
Já agora Ben se achava a um passo de distancia da jovem e esta continuava firme,
em seu lugar, preparando-se para enfrentar os golpes da chibata que ameaçava descer
sobre seu corpo.
— Vamos — disse Ben com voz surda. — Confessa que teu pai é um ladrão sujo e
imoral e que eu sou melhor do que ele.
Ergueu a chibata pronto para vibrá-la ante a menor desobediência de Robin. E esta
se achava resolvida a desobedecer-lhe.
— Meu pai é ladrão, bem sei; mas não é nem sujo, nem imoral, nem mau. Pelo
menos não muito mau. Oh, bem sei que ele parece ser mau, mas tenho certeza de que
seu coração é bom; não podes forçar-me a dizer o contrario.
— Forçar-te-ei a dizer o contrario, minha pequena — replicou Ben. — Que achas
disto?
E, com uma força brutal, vibrou o chicote sobre as frágeis espáduas de Robin. Esta
conteve a respiração, empalideceu, mas não fez um só movimento, nem seus lábios
deixaram escapar um só gemido.
Ben mostrou os dentes num sorriso, ou talvez seja o bastante dizer que mostrou os
dentes, pois, na realidade, pouco havia de sorriso em sua expressão.
— Dirás ainda que teu pai é melhor que eu?
Havia uma crispação de dor nos lábios de Robin ao responder:
— Devo dizê-lo, porque é verdade.
A chibata estalou novamente, com maior violência. Robin, porém, continuou imovel.
Encarou a fera que a tratava daquele modo e disse, com palavras apenas audíveis por
causa da dor que lhe repuxava os lábios:
— E não fazes mais que prová-lo; cada chicotada que me deres só servirá para
prová-lo mais.
Ben, olhos chamejantes de fúria, ergueu novamente o látego, mas a paciência de
Robin se esgotara. Deu um salto para o lado com o olhar igualmente inflamado.
Até onde se podia lembrar sempre tivera medo de Sally e de Ben; mas, naquele
momento, uma certa força, inteiramente desconhecida, parecia ter despertado em seu
coração, tornando-a subitamente corajosa; revoltara-se contra a baixeza e a perversidade
daquele tirano; contra os anos de sofrimento que ele lhe proporcionara bem assim como a
seu pai.
— Não te atrevas a bater-me novamente com isso — gritou ela fora de si. — Não te
atrevas! Tu, pretenderes ser melhor que papai! Tu! Papai pôde roubar; pôde ter sido
apanhado pela policia e estar trancado num cárcere, mas é muito melhor que tu, que não
serias digno nem sequer de limpar-lhe as botinas! Nem para isso prestarias, Ben Bealby!
Não és digno de limpar-lhe as botinas! Grandíssimo hipocrita! Hipocrita, carola, falso!
Julgas que poderás obrigar-me a insultar papai, á força de pancadas? Nada o
conseguiria, nem mesmo a morte! Papai vale mil vezes mais que tu, e hei de afirmá-lo
ainda que me esfoles viva!
Robin fez uma pausa e ficou diante dele, com a respiração opressa. Ben olhava-a
boquiaberto. Era a primeira vez que Robin se rebelava e tanto o furor como a energia de
sua revolta paralisaram-no de espanto. Mas, enquanto Ben assim se deixava tomar pela
estupefação, Sally resolveu aderir á luta e a cena que se seguiu foi simplesmente odiosa.
Sally esbravejava, berrava e praguejava; açoitou Robin com sua Iingua envenenada, tanto
quanto Ben o fizera com o chicote. O estribilho de sua cólera era que Robin podia ir para
o olho da rua; que saísse imediatamente e nunca mais tornasse a aparecer na casa da
ilha.
— Para onde irei? — perguntou Robin, preocupada com esse novo aspecto do caso.
— Não tenho para onde ir... Bem sabes.
— Devias ter pensado nisso, antes de vires morar conosco, antes de deixares o
esgoto onde vivias com teu infame pai! Devias ter pensado nisso; e agora podes ir
embora. Some-te daqui, pois não serei eu quem irá se preocupar contigo. Vai para onde
quiseres!
— Está muito bem! — replicou Robin. — Eu irei! Não tenho dinheiro, mas prefiro
fazer qualquer coisa a continuar aqui contigo! Afasta-te dessa porta e deixa-me ir lá em
cima apanhar minhas coisas.
— Não levarás coisa alguma daqui — trovejou Sally. — Irás como estás. Tudo que
tens ficará em paga dos anos que te demos casa e comida! E por falar isso, onde está o
dinheiro que ganhaste esta tarde na feira?
— Esse é meu — disse Robin, mas Sally avançou para ela e começou a revistar-lhe
a blusa em busca do lenço no qual Robin costumava guardar seus pequenos ganhos.
Robin entregou o shilling sem uma palavra de protesto porque receava que Sally
encontrasse uma certa medalha que trazia presa ao pescoço e que morreria antes de
entregar. Voltou-se e dirigiu-se á porta. Os gritos de Sally seguiram-na.
Saiu, batendo a porta e viu-se só com a noite serena e admirável. Ficou parada um
momento, aspirando o ar puro e transparente como se este fosse um balsamo para sua
alma amargurada. Fora enxotada. Enxotada! Esse pensamento assaltou-a em meio da
solidão da noite e um riso nervoso crispou-lhe os lábios. Estava só; em todo aquele
mundo não havia uma única pessoa á qual tivesse o direito de recorrer.
As características planícies da região de Essex, onde os pantanais iluminados pelo
luar se estendiam a se perder de vista, sem uma única saliência que alterasse a linha do
horizonte, faziam com que o mundo lhe parecesse um vasto deserto. Estava só mas —
esta reflexão veio-lhe repentinamente — menos só ali fora, com a lua, a noite e a brisa
acariciante, do que lá dentro — fez um gesto de cabeça em direção á casa — com Sally e
Ben. A revelação dessa estranha verdade trouxe-lhe uma sensação de curioso bem estar.
Pôs-se a considerar sua situação de um modo mais pratico. Não tinha para onde ir. Nem
um só amigo a quem se dirigir — a não ser...?
Estacou um momento sob a luz do luar, o coração a pulsar furiosamente. A não
ser...?
Mais uma pequena reflexão, e pôs-se a correr precipitadamente em direção ao rio.
A maré subia agora com a maior rapidez e a escada de pedras já estava submersa.
O bote que costumava usar para atravessar o rio, fora suspenso da pequena praia
inclinada, localmente conhecida por "Praia do Bealby", e flutuava. Robin contemplou-o
pensativamente; é certo que um bote vem a propósito quando precisamos transpor um
rio; mas a embarcação era de Ben e não sua. Caso se servisse delia, como devolvê-la?
Para isso seria necessário dirigir-se a algum marinheiro, para incumbi-lo de entregar
novamente o barco ao dono, e não entrava nos planos que traçara ser vista por alguém.
Não, decidiu, não faria uso do bote. Há uma outra coisa que vem a propósito, quando
precisamos transpor um rio: é a habilidade de saber nadar como um peixe. E Robin
possuia essa habilidade.
— Mas a maré ainda não subiu o suficiente — falou consigo mesma. — Terei que
esperar um pouco.
Assim, pois, sentou-se, fincou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos, e seu
olhar perdeu-se nas águas tranquilas, á espera que elas atingissem uma altura
suficiente...
Mal isto se deu, pôs-se de pé, tirou o saiote esfarrapado e enrolou-o, como um
turbante, á volta da cabeça.
— O resto de minhas roupas que leve a breca — monologava ela, á medida que se
acercava da beira do rio.
Seus pés descalços encontraram o primeiro degrau de pedra e, cautelosamente,
procuraram os seguintes; não estava disposta a enfiar os pés no celebre lodo de
Molesbury. Quando achou que a profundidade era suficiente para lançar-se ás águas sem
perigo de tocar o fundo, abaixou-se até sentar-se na pedra.. Estava prestes a deixar-se
levar pela correnteza, quando uma súbita idéia fê-la estacar. Puxou a pequena medalha
que trazia ao pescoço e colocou-a na boca com corrente e tudo. Estava pronta e,
desusando lentamente pela superfície das águas, que o luar marchetava de prata, nadou
para o centro do rio.
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, o Adriana largou ferros com Hallam e
seus amigos a bordo, comandado por George Dawkins, filho da velha Mrs. Dawkins, e
com uma tripulação de quatro homens.
Tiveram uma esplendida entrada no mar, com maré e vento favoráveis e chegou a
tarde sem que nenhum acontecimento anormal viesse quebrar a perfeita tranquilidade da
viagem.
— A isto é que chamo perfeita felicidade — murmurou Alison que, com os outros,
estava sentada no convés, apreciando um glorioso pôr de sol. — Ninguém tem idéias
melhores que as tuas, Kay.
E atirou-lhe um beijo com as pontas dos alvos e delicados dedos.
— Sublime — suspirou Mrs. Pennington, arrebatada.
— Gostaria de navegar deste modo eternamente — acrescentou Alison.
— Vamos ver se dirás o mesmo quando o mar engrossar — replicou Hallam, rindo-
se.
Kay estivera o dia todo preocupado e abstrato e, ao som daquela risada, Alison
sentiu-se reanimar.
— Não sejas importuno! — disse ela, entendendo-lhe graciosamente a mão que
Hallam tomou levemente entre as suas, com um sorriso.
De fato, Alison parecia perfeitamente feliz.
Nesse momento um dos marinheiros subiu e perguntou si podia falar com Hallam.
Este ultimo seguiu-o e ambos desapareceram numa escotilha.
— É no castelo da popa, sir. Gostaria que o senhor desse uma olhadela lá dentro —
disse o homem com ar misterioso.
Abaixando-se, Kay dirigiu-se ao sitio indicado.
— Meu Deus! — exclamou.
A um canto, por trás de uma vela dobrada, dois enormes olhos negros num
pequenino rosto palido de fadiga, se erguiam para ele.
— Eu disse que não queria seu auxilio, mas resolvi o contrario — explicou Robin, a
Maltrapilha. — Sally enxotou-me de casa.
Hallam continuava mudo, uma expressão de franco estupor nos belos olhos
cinzentos.
— Oh... sim... está claro — gaguejou ele quase incoerente.
— Ela queria obrigar-me a injuriar papai e eu me recusei. Não podia fazê-lo!
Ninguém o conseguiria!
Apesar da fadiga havia energia suficiente no tom de desafio de suas palavras.
— Certamente... — murmurou Hallam, nada mais conseguindo dizer.
O inesperado aparecimento de Robin abalara-lhe o espírito, deixando-o presa de
uma verdadeira confusão. O único pensamento que seu cérebro paralisado podia
conceber era o que iria dizer Alison! E isto despertava em seu coração um sentimento de
pânico quase ridículo. A vida parecia ter-se tornado subitamente complicada.
— O senhor disse que me ajudaria e eu acredito que o faça. Acho-o tão bom...
Portanto aqui estou — continuou Robin.
E ali, pensou Hallam, era muito provável que tivesse de ficar; estavam em alto mar.
Esta lembrança trouxe-lhe uma singular sensação de prazer e consternação.
Robin era bonita e seu temperamento selvagem intrigava-o excessivamente. E era
tão agradável contemplá-la... Sim, seria divertidissimo levarem-na com eles. Seria uma
nota de novidade. Por outro lado havia Alison. Pressentia dificuldades.
Coçou a cabeça com gesto de desespero.
— Saia de dentro desse buraco e explica-me direito as coisas — disse ele por fim.
— Ai, estou tão encolhida! Tenho a impressão de que nunca mais poderei endireitar
novamente o corpo.
Porém, com uma cautelosa manobra, conseguiu-o, e engatinhou até onde estava
Hallam. Pôs-se de joelhos e ergueu o rosto para o jovem.
Este movimento fez com que seu rosto ficasse perigosamente junto ao de Hallam,
pois a pequena altura do teto, naquela parte da embarcação, obrigava-o a manter-se
curvo. Kay sentiu-se arrebatado por um repentino e louco desejo e confessou a si próprio
que se ela não tivesse recuado rapidamente tê-la-ia beijado. Fora um impulso
repreensivel, está claro, mas que podia fazer? A verdade é que se sentira dominado por
ele. Fazendo-lhe justiça, devemos dizer que não tinha o habito de beijar todos os lábios
bonitos que lhe surgiam a jeito. Havia certos princípios que jamais deixara de seguir. A
despeito de tudo isto, o desejo de beijar Robin tornou-se quase incombativel e, si ela não
recuasse em tempo, ninguém pôde saber o que teria acontecido.
Mas ela recuou; Kay deu um suspiro de alivio e enrubesceu, lembrando-se do que a
jovem dissera dos homens que a admiravam. Robin colocou-se um pouco mais afastada
dele e sorriu-lhe.
— Então, perturbadora criaturinha, que aconteceu? — indagou ele.
O sorriso de Robin morreu-lhe nos lábios.
— Sally disse que não quer em sua casa a filha de um ladrão. Ela parece esquecer
que também é filha de papai. Acho que é porque ele nunca a tratou como a mim. Ela
disse que eu teria de esquecê-lo. Nunca mais tornar a falar nele e tratá-lo como si tivesse
morrido. Respondi-lhe que jamais faria isso. E disse-lhe que podia fazer o que entendesse
pois eu continuaria a amá-lo do mesmo modo. Não se pode evitar isso quando amamos
alguém, não acha?
Pousou os olhos no rosto de Hallam.
— Certamente. Continue — replicou ele.
— Pois bem, então ela me enxotou de casa e eu respondi-lhe que não tinha para
onde ir. Disse-me que nada tinha a ver com isso e que eu fosse para onde quisesse.
Queixei-me de que tinha apenas o shilling que ganhara na feira e ela o tomou de mim,
alegando que ficava em pagamento do que eu lhe devia. E depois...
Fez uma pausa.
— Então — continuou ela vagarosamente — disse-me que, se eu não tinha dinheiro,
o fosse roubar, como papai! Que a melhor coisa a fazer era ir-me embora e tornar-me
ladra, como ele.
— Oh! que perversidade! — exclamou Hallam com sincera indignação.
Os olhos de Robin incenderam-se subitamente.
— Se o senhor soubesse o que senti naquele momento! Mas não lhe posso explicar
— era algo por demais estranho. Se tivesse ficado lá por mais um segundo, acho que a
teria estrangulado. Por isso corri para fora da casa e Sally trancou a porta com chave.
Não era preciso ter-se dado a esse incomodo: eu não voltaria nem que me pagassem.
— E como chegaste até aqui?
— Nadei. Vi seu barco e lembrei-me de sua promessa de ajudar-me. Tudo estava
tranquilo e silencioso; não havia ninguém de pé a bordo; sem hesitar atirei-me ao rio e
cheguei até aqui, nadando.
— Vestida como estava?
— Sim, tirei apenas a saia que enrolei á volta da caneca. Quando me vi a bordo, tirei
o resto de minhas roupas e as pus no convés para secar; por isso estão tão sujas.
E quedou-se a olhar para a blusinha de algodão azul.
Terminara sua narrativa e Hallam inclinou-se sobre ela com uma expressão
pensativa. Seu ridículo temor desaparecera e não sentia, agora, a menor perturbação.
— É realmente lamentável — disse ele com sinceridade. — Mas por que não me
foste procurar em casa? Poderíamos ter arranjado tudo com mais conforto para ti.
Robin hesitou.
— Mas eu não sabia, ao certo, onde o senhor morava e...
— Facilmente terias informado; qualquer pessoa te diria.
— Sim, mas... — vacilou de novo, olhando vagamente para o chão. — Falei como se
fosse esse o verdadeiro motivo, não? — volveu ela por fim.
— Sim, e não foi?
— Não — confessou.
— Qual foi então?
Os negros olhos da jovem mantinham-se fixos e abertos.
— Tive receio que aquela... sua amiga se zangasse.
—- Pois bem; e que pensas que ela fará agora? — volveu Hallam, sem refletir no
que dizia.
Robin abriu ainda mais os olhos e agarrou-o pela manga do paletó.
— Mas ela não está a bordo, não é? — indagou aflita.
— Está, sim; ela e outros amigos.
Robin sentou-se pesadamente no chão e deixou escorregar a mão do braço de
Hallam.
— Meu Deus! E eu que não pensei nisso. Cometi uma estupidez. Vim comprometê-
lo. Vou voltar já para a terra.
— Estamos no mar. Porventura pensavas que estávamos no rio?
Robin caiu das nuvens.
— Oh, no mar? Eu não sabia. Estive dormindo. Oh, não se aborreça! Pode deixar-
me ficar aqui se quiser. Não desejo colocá-lo em dificuldades.
Mas Hallam compreendeu que comettera uma tolice com a frase inoportuna que
proferira. Admitindo que Alison pudesse zangar-se com a presença de Robin a bordo,
revelara a existência de alguma razão para tal.
Tentou disfarçar com uma risada o mal que fizera.
— Não digas tolices — exclamou com ar despreocupado.
— Que mais me resta fazer?
— O melhor é subires comigo para que eu te apresente aos amigos.
— E ela não se zangará?
— Por que haveria de fazê-lo?
— Porque esteve na feira...
— Mas que há nisso para que se zangue?
— Apenas... eu — tornou Robin com desconcertante franqueza.
Kay calou-se por um momento, compreendendo que ainda mais uma vez não
soubera ser hábil.
— Tens medo? — perguntou-lhe em desafio.
Nos olhos de Robin refletiu-se uma faisca de mau agouro.
— Medo dela? — exclamou, contraindo levemente os lábios. — Vamos, leve-me
para onde ela está!
Hallam conduziu-a ao conves.
Ao vê-lo assomar na escotilha, Alison estendeu-lhe a mão em sinal de boas-vindas,
mas, no mesmo instante, deixou-a recair, ficando imovel e carrancuda, em sua chaise-
longue2, ao divisar por trás da alta figura de Kay uma outra menor.
— Meus amigos! — exclamou Kay com naturalidade um tanto forçada. — Lembram-
se da pequena cantora da feira, isto é, de Miss Golden? Pois bem, ela está a bordo,
conosco!
Era uma explicação inútil e Hallam compreendeu que fizera um papel ridículo.
Seguiu-se um breve silencio; depois, ouviu-se a voz de Alison, cuja temperatura
estava abaixo de zero.
— Isso é um fato por si só evidente — replicou ela. E, com uma expressão de
despeito, voltou-se para Mrs. Pennington. Para sua amizade com Hallam isto era o mais
perigoso que podia ter feito, pois este ultimo odiava pessoas mesquinhas e despeitadas.
Mas ela não compreendera isto. Achava-se sob a impressão de que seu domínio sobre o
rapaz era tão forte, ao ponto de julgar que, si adotasse uma atitude altiva para com
alguém, ele não só lhe daria apoio, como faria o mesmo. Chocou-se, portanto, ao verificar
que isto não se dava. Pelo contrario, Kay enrubesceu, de tal maneira contrariado que, por
um momento, não soube como enfrentar a situação. Mas Andrew Fable, levantando-se de
onde estava, aproveitou a oportunidade para intervir.
— Não quer sentar-se, Miss Golden? — perguntou, com sua habitual gentileza. —
Não conhece ainda Mrs. Pennington e Mr. Tearle? Creio que Miss Tearle falou consigo
ontem, na feira.
A cena desenrolava-se com tanta naturalidade como se estivessem em um salão
londrino.
Alison corou até a raiz dos cabelos. Não lhe passara pela cabeça que Fable
houvesse presenciado o acidente do carrocel, na noite anterior. Nem ele nem Mrs.
Pennington haviam feito a menor alusão a isso. Mas então compreendeu que Fable
procurava lembrá-la de que devia a Robin pelo menos um pouco de cortesia. Aceitou a
insinuação e fez á recém-chegada uma fria e formal inclinação de cabeça, esforçando-se
por conter o rancor que lhe ia n'alma. Robin respondeu-lhe delicadamente e entrevia-se
em sua atitude uma firme determinação de evitar qualquer reprimenda e o desejo, em
favor de Hallam, de não ser desagradável.
Aceitou a cadeira que Fable lhe oferecera, fitando a uns e a outros com olhar
perscrutador, como que a estudar todas aquelas fisionomias.
— Ontem á noite, sentimo-nos simplesmente maravilhados com sua voz — disse
amavelmente Mrs. Pennington.
— Já me disseram que perdi algumas horas de verdadeira arte — acrescentou
Mayhew Tearle, em tom presumido.
— De fato — aparteou Fable.
2 Espreguiçadeira
— Surpreendente — exclamou Alison com um máximo esforço de sociabilidade —
principalmente a certa distancia...
— E ainda mais surpreendente de perto — acrescentou Fable calmamente.
Depois disto fez-se silencio longo e marcado. Ninguém sabia o que dizer, nem como
dizê-lo. Robin, subitamente, tornara-se um motivo de discórdia entre os excursionistas. O
desejo de parecerem tranquilos e corteses flutuava no ambiente. A tensão nervosa
atingira o auge.
— Acaso, algum dos senhores terá algo que eu possa comer? — indagou Robin em
dado momento. — Estou morta de fome!
A tensão nervosa desapareceu como por encanto. Hallam foi o primeiro a falar
depois de Robin.
— É lamentável que eu não me lembrasse disso antes!
— Venha comigo — disse Fable. — Sou o encarregado dos viveres.
E, seguido por Robin, dirigiu-se ao interior do iate. Quando desapareceram, Alison
voltou-se para Kay e lhe disse, esforçando-se por parecer calma:
— Isto foi uma grande surpresa.
— Não o foi menor para mim — retrucou Kay. Estas palavras tranquilizaram-na um
pouco.
— Pobre Kay — prosseguiu Alison com voz meliflua. — Afinal de contas é um
aborrecimento ter essa pequena se intrometido assim na tua excursão!
— Kay não parece muito contrariado com isso — retorquiu Mrs. Pennington,
impaciente e nervosa com as idiotices de Alison.
— É uma adorável menina — comentou Mayhew Tearle em tom paternal.
— Mas como veio ela parar aqui? — indagou Alison.
Hallam, que estava sentado á maneira oriental sobre o chão limpissimo do conves,
ergueu a cabeça para fixar a jovem.
— É natural que nenhum de vocês esperasse por esse acontecimento, mas... pois
bem, todos ouviram a historia do pai delia. É uma pequena tragédia. E agora, a irmã a
tocou de casa. A pobre menina não tinha para onde ir nem a quem recorrer.
— É de fato horrível! — exclamou com ardor Mrs. Pennington. — Podes estar certo,
caro Hallam, que nenhum de nós fará objeção de espécie alguma á estada dela a bordo.
Pelo contrario, ser-nos-á até um prazer tê-la em nossa companhia, quando a
conhecermos
— Obrigado, Mrs. Pennington — disse Hallam agradecido.
— Mas, por que razão recorreu ela a ti? — insistiu Alison.
— É que lhe pedi licença para auxiliá-la no que me fosse possível e ela lembrou-se
do meu oferecimento.
— Quando lhe pediste isso? Não te ouvi dizer coisa alguma — replicou a jovem, em
tom quase autoritário.
— Ontem á noite na...
—- Mas si eu estava contigo na feira — atalhou ela.
— Foi mais tarde. Dirigi-me á muralha para ver em que estado ficara o Adriana após
a tempestade e, então, a encontrei.
— Não me contaste isso.
Hallam sentiu-se irritado ante o tom de Alison; havia nele suspeita e uma certa
reprovação. Muito poucos homens suportam isso calmamente. Ainda mesmo quando
commetemos uma ação reprovável, é-nos doído aturar reprimendas e por aí se pode
calcular a revolta que se ergueu no intimo de Kay, ao lembrar-se de como fora inocente o
encontro que tivera com Robin. O sangue pareceu incendiar-se em suas veias.
— Não sabia que era obrigado a dar-te satisfações dos meus atos — volveu ele
secamente.
Era a primeira vez que se dirigia a Alison em tom de hostilidade e isso naturalmente
a assustou. Sentindo que todas as suas esperanças ameaçavam fugir-lhe, irritou-se e,
obstinadamente, tornou a situação ainda pior.
— Foi um encontro casual ou...? — inquiriu em tom mordaz.
Hallam sabia que mais cedo ou mais tarde aquilo teria de acontecer. Nunca a
perdoaria. Pôs-se a refletir sobre Robin e daí nasceu-lhe uma violenta indignação contra
Alison. Pensou em si próprio, igualmente e sentiu a mesma coisa, pois, a seu ver, o flerte
masculino era um dos hábitos mais vis. Lamentou que tais palavras tivessem sido
proferidas por Alison. Si fosse um homem tudo se resolveria facilmente, mas, desde que
se tratava de uma moça, achou de melhor política tomar a coisa por uma brincadeira de
mau gosto e riu-se. Mrs. Pennington salvou a situação.
— Lembrei-me agora, Kay — disse ela — de que a pobre menina não só necessita
de alimento como de roupas. Acho que as minhas lhe servirão bem. Devo falar com ela?
— Acho que sim. Sua gentileza é muito grande, Mrs. Pennington.
Mrs. Pennington retirou-se do conves. Hallam levantou-se e seguiu-a.
Mr. Tearle dirigiu-se á filha:
— Alison — disse ele, vagarosamente, — estás te conduzindo como uma tola, minha
cara.
Por um momento a jovem fitou-o zangada, depois, inesperadamente, rompeu em
pranto.
Em baixo, na cabina, sentados á mesa que se balançava levemente, ambos se
olhavam, diante da pequena refeição que Fable preparara para a recém-chegada.
Robin comeu em silencio durante um momento, porque estava faminta, mas não
deixava de fitar o rosto sereno e inteligente de Fable.
— Acho-o muito simpatico — disse ela de repente.
Fable agradeceu-lhe com toda a simplicidade.
— E sou capaz de confiar em si — acrescentou a jovem.
— Alegra-me saber que me julga desse modo.
— Não se pôde ter confiança em qualquer pessoa, não acha?
Ele sacudiu a cabeça. Robin fez uma pausa.
— Olhe aqui — continuou ela, inclinando-se para a frente em atitude confidencial. —
Acho que coloquei seu amigo numa situação extremamente dificil, vindo para bordo.
Quero dizer, perante aquela moça... Miss Tearle. Mas, pode crer que não foi esse meu
intuito. O senhor é mesmo muito amigo dele, não é?
— Efetivamente — confirmou Fable.
— Então queria que me ajudasse.
— Com todo o prazer. Mas de que modo?
A jovem calou-se por um instante.
— É ume pena que eu seja bonita — tornou, com um suspiro de desgosto. — Nem
um dos dois teria se importado comigo si eu fosse feia.
— A senhorita é muito perspicaz.
— Ela é capaz de zangar-se com seu amigo e eu não queria que isso acontecesse.
Eis tudo.
— Acho que ela não tem direito algum de zangar-se, ou criticar os atos de Kay —
volveu Fable, perguntando a si próprio si sua afirmação seria realmente justa.
Se não tivesse a certeza de que, entre Kay e Alison, qualquer outro sentimento,
além de uma simples amizade, acabaria, inevitavelmente, em desastre, não teria feito
semelhante afirmação.
— Não são eles muito amigos? — perguntou a jovem.
— Sim, mas isso lhe daria o direito de governar os atos de Kay? — contraveio o
outro.
— Oh, ás vezes há quem acredite que sim — replicou ela com um adorável ar de
sabedoria.
— Muita gente acredita, de fato, em tais absurdos — concordou o rapaz, rindo-se.
— Seria o senhor capaz de aborrecer um amigo seu por coisas dessa ordem? —
perguntou Robin.
— Está claro que não. E, por falar nisso, estavamos conversando sobre coisas
dessa ordem, não é verdade?
— Sim, eu queria saber claramente de tudo. Não desejo ser um obstáculo para seu
amigo, nem dar motivos a que Miss Tearle se comporte tão estupidamente, pois isso o
desgostaria. Se há alguma coisa acertada entre eles, melhor é que tudo continue como
está — terminou ela quase sem fôlego.
— Que eu saiba — replicou Fable — não há coisa alguma acertada entre eles. São
bons amigos e nada mais.
— E se houvesse entre os dois algo mais que amizade, o senhor saberia?
— Creio que sim; Kay tem por habito confiar-me todos os seus segredos.
— Oh, então...
— Então que? — perguntou Fable.
— Nada. Esqueçamos isto — replicou Robin, voltando á sua refeição.
A viagem não foi das mais felizes, para Alison. As palavras de seu pai lhe causaram
profunda impressão e tratou, por todos os meios, de reabilitar-se aos olhos de Kay. Até
certo ponto foi bem sucedida, pois Hallam desejava conservar sua amizade; mas suas
palavras haviam calado fundo no coração do rapaz, e não era possível, a este, esquecê-
las. Alison não conseguia vencer Robin em coisa alguma. Esta ultima mostrava-se sem-
pre muito gentil e agradável, porém absolutamente fria para com a outra. Além disto
estava habituada ao balanço das embarcações e passeava com absoluta firmeza pelo
tombadilho, o que trazia constante irritação a Alison que não conseguia dar dois passos
sem perder o equilíbrio. Robin manejava o timão com verdadeira habilidade e perícia,
enquanto que Alison era perfeitamente leiga no métier. Enfim, Robin estava no seu
elemento a bordo do Adriana, o que não se dava com a outra.
Trajando o delicioso vestido de lã branca que Mrs. Pennington lhe emprestara, Robin
estava simplesmente adorável e chamava sobre si todas as atenções. Hallam dizia, de
momento em momento, que precisava pintá-la. Fable não se cansava de elogiá-la. E
quando, ao cair da tarde, a jovem, sentada no conves, cantou para eles, todos se
deixaram prender pelo encanto de sua voz que ora se estendia, indo perder-se nas águas
prateadas pelo luar, ora se tornava suave e dolente, confundindo-se com o sussurrar do
vento contra as velas do iate.
Alison, positivamente, estava sendo perseguida pela má sorte, pois, ao quarto dia de
viagem, desencadeou-se violenta borrasca e ela foi para o leito vitima do enjôo do mar.
Robin, porém, continuou alegre e bem disposta como de costume. Tratou da enferma com
bondade e delicadeza mas, quando Alison não precisava de sua companhia, ia ter
livremente com Hallam, enquanto a outra continuava presa em seu camarote, remoendo-
se de raiva e desejando a morte. Os cuidados que Robin lhe dispensava com tanta
bondade não faziam mais que agravar o odio que lhe ardia no coração.
Por tudo isso Alison sentiu uma grande alegria, quando, finda a excursão, se viu
novamente em Londres.
Está claro que ela disse a Hallam que a viagem fora deliciosa e jamais passara dias
tão divertidos. Desembarcaram em Gravesend, deixando George Dawkins encarregado
de voltar com o Adriana para o lugar onde esperavam suas amarras. Seguiram de trem
para a cidade e, na estação, enquanto retiravam as bagagens e esperavam os taxis,
Alison chamou Kay á parte e lhe perguntou:
— Já resolveste algo sobre essa pobre menina, Kay?
— Até agora nada, de definitivo. Farei com que Mrs. Quest cuide dela — respondeu
Hallam.
Mrs. Quest era a zeladora do prédio de apartamentos onde Kay residia.
— É pessoa de absoluta confiança — acrescentou.
— Já refletiste bem sobre... a gravidade da situação, Kay? — perguntou a jovem.
— Não. Tudo isto se deu com tanta rapidez que ainda não tive tempo para pensar —
tornou Hallam sorridente.
— Meu caro Kay, não quero parecer pouco caridosa; isso me horroriza. Mas na
familia dela há sangue mau. Já te lembraste que também ela está arriscada a possuí-lo?
Que as faltas de seu pai poderão atingi-la?
— Minha cara, acredito que não haja maldade na tua suposição, mas não
compreendo como é possível pensares tal coisa de uma pequena como Robin.
— Não penso mal dela; só lembrei aquilo como uma possibilidade. A hereditariedade
é uma coisa muito esquisita, que nos causa as mais inesperadas surpresas, e não seria
de espantar que a filha de um ladrão viesse também a se tornar ladra.
Hallam cerrou o sobrolho.
— Parece-me uma precipitação julgar isso de alguém sem um motivo real —
retorquiu ele. — Não devemos nunca ter pressa em afirmar que uma pessoa é,
forçosamente, o que foram seus pais.
— Oh, é claro! Só te disse isso em carater de simples aviso. Tens muito bom
coração e estás sempre disposto a pensar bem de todo o mundo.
— A vida não valeria a pena de ser vivida se, constantemente, suspeitássemos de
todos os que nos cercam, não achas? — inquiriu ele.
— Sim — concordou Alison mais que depressa. — Meu Deus, Kay, o mundo já é tão
cheio de maldade que não devemos procurar aumentá-la.
E tomou uma expressão de grande meiguice, suspirando levemente.
— É isso justamente o que sinto — replicou ele.
Nesse momento um carregador começou a retirar as bagagens, levando-as para os
autos que esperavam do lado de fora. Ao despedir-se da jovem, Hallam estava longe de
sentir-se satisfeito.
A insinuação de Alison provocara o efeito desejado; esta teria compreendido isso se
estivesse junto de Kay para ouvir o dialogo que ele teve com Fable ao deixar a estação.
— Ouve, Andrew — disse Hallam. — Acreditas na lei da hereditariedade?
Fable que nem remotamente compreendera até onde queria chegar o amigo,
respondeu prontamente:
— Sim. E tu?
— Parece que somos forçados a isso. Mas creio que nem sempre o atavismo se
manifesta, não achas?
— Acho que, sendo realmente uma lei da natureza, podemos considerá-lo inevitável.
— Oh, é essa de fato tua opinião?
Fable sacudiu a cabeça afirmativamente.
— As leis naturais não falham, ou melhor, não têm motivos para falhar. Ignorando a
maneira pela qual elas atuam, nada podemos afirmar, pois quando acreditamos que não
exercem sua influencia, é quando agem mais intensamente. Mas por que me perguntas
isso, Kay? Em que estás pensando?
— Oh, em nada, meu caro Andrew! Pura curiosidade.
Um momento mais tarde todos se separavam, fazendo os costumeiros elogios á
deliciosa excursão que Hallam lhes proporcionara.
— Isto é Londres! — exclamou Robin, olhando através da janelinha do taxi, ao
passarem pelo centro da cidade. — Isto é Londres!... É aqui que papai está... Dá-nos a
impressão de um lugar enorme, horrível e inospitaleiro, não é verdade?
Pousou os olhos em Hallam e este notou que seus lábios tremiam.
— Mudarás de opinião quando a conheceres melhor. Quando estiveres habituada a
todo esse barulho e correria, parecer-te-á uma cidade amiga. Os dias melhores de minha
vida tenho-os passado aqui.
— Talvez me acostume — replicou ela em tom de duvida. — Mas ás vezes tenho a
impressão de que meus melhores dias já se foram.
— Oh, não deves pensar desse modo — volveu Kay, rapidamente. — Aliás não é de
estranhar esse estado de espirito em quem acaba de sofrer golpes tão cruéis.
CAPITULO III
— O senhor tem sido muito bom para comigo. — disse Robin, receosa de parecer
ingrata. — Mr. Fable também.
— Tolinha — retorquíu Hallam rindo. — Tudo que fizemos, fizemo-lo com o máximo
prazer, portanto não deves pensar mais nisso.
— Mas preciso... faz-me tanto bem... Acho agradabilissimo lembrar que alguém foi
bom para mim. Principalmente depois do que sofri com Sally e Ben...
— Muito bem; pois então recorda-o, se te agrada — volveu Hallam, rindo-se.
O resto do trajeto foi feito em silencio. Vinte minutos mais tarde, abria Kay a porta de
seu atelier, colocando-se de um lado para dar passagem a Robin.
— Aqui é o meu atelier — anunciou, seguindo-a e olhando á volta. — Agrada-te?
Robin sentiu-se encantada e confessou sua impressão, examinando todos os cantos
com seus grandes olhos escuros muito abertos e maravilhada com o bom gosto e
conforto do apartamento.
— E mora sozinho aqui? — inquiriu ela.
— Completamente só — respondeu Hallam, sorrindo.
— Não tem parentes? Pai, mãe ou alguém?
— Tenho pai somente. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas onze anos.
— Isso é uma das coisas mais terríveis da vida — exclamou Robin com sua voz
melodiosa a irradiar simpatia e doçura.
— Sim, para mim foi atroz. Minha mãe era dessas que nos fazem estremecer de
horror ante a simples lembrança da sua morte.
— O senhor é como eu. Nunca tive mãe. Isto é, não me recordo dela.
— Nesse ponto sou mais feliz. Lembro-me um pouco da minha.
Havia naquele dialogo ingênuo uma curiosa intimidade que teve o dom de uni-los
espiritualmente. Parecia que se conheciam ha muitos anos. Robin, a estranha migalha da
humanidade, sem dinheiro, sem mãe e em piores condições talvez do que se fosse orfã
de pai, possuidora de uma beleza que encantava e fazia vacilar os mais firmes espíritos
masculinos e Kay Hallam, mimado pelos deuses da fortuna, teciam, entre si, uma teia de
sutil intimidade e compreensão que jamais se partiria, fosse qual fosse a tensão feita
sobre ela, por seus gênios opostos, venetas e outras imperfeições humanas.
— Onde mora seu pai? — indagou subitamente a jovem.
— No interior; em um dos campos de Hertfordshire.
— E por que não vivem juntos?
— Porque preciso dedicar-me ao meu trabalho.
Falava sempre de seu trabalho com um instintivo tom de importância que os
verdadeiros artistas não costumam usar.
— Qual é o seu trabalho?
— Sou pintor. Artista, sabes?
— Oh!
Robin calou-se por um momento.
— Surpreende-me — tornou ela — que, tendo pai, o senhor não viva com ele. É
muito esquisito. Não gosta dele?
— Está claro que sim! É o melhor dos homens. Mas agora senta-te. Vou chamar a
velha Mrs. Quest para nos preparar um pouco de chá. Tenho a impressão de que ainda
estou a bordo. A terra parece dançar sob meus pés.
Riu-se, atirou para um lado o casaco e o boné e apertou uma campainha.
Mrs. Quest, uma mulher idosa, gorda e simpatica, surgiu incontinenti. Hallam
apresentou-a a Robin e pediu-lhe que servisse chá para dois.
Assim o fez Mrs. Quest e minutos depois os dois jovens sentavam-se á pequenina
mesa, posta com admirável bom gosto, para tomarem uma confortadora xicara de chá.
Por cima da mesa seus olhos se encontraram com uma expressão de franca amizade.
— Tenho estado a fazer diversos planos — disse Hallam após alguns minutos.
— Sobre o que irá fazer de mim? — indagou Robin.
— Sim.
— Sou um pequeno transtorno para si, não sou?
— Qual transtorno, qual nada; só o que precisamos é resolver o que iremos fazer.
Que achaste de Mrs. Quest?
-— Pareceu-me muito bondosa e simpatica. Por que?
— Porque minha idéia é pedir-lhe conselho e ver si ela sabe algum lugar para onde
possas ir.
— Sim; compreendo.
— E lembrei-me que, para começar, poderias servir de modelo para mim. Faremos
apenas um ou dois quadros.
— Mas por que quer pintar-me? — perguntou Robin.
— Por que és um modelo magnífico. Além disso, queres trabalhar, não é?
— E isso é trabalho?
— Certamente.
— Quer o senhor dizer que me vai pagar para fazer o meu retrato?
— É claro. Dez shillings por dia.
Diante disso os olhos de Robin tornaram-se maiores.
— Dez shillings por dia! — repetiu ela. — Não zombe comigo, por favor.
Hallam fixou nela um olhar de surpresa, mas finalmente conseguiu convencê-la de
que estava falando serio.
— Com tanto dinheiro compraria o Palácio de Buckingham para dar a papai, quando
o puserem em liberdade! — exclamou a jovem com voz tremula. — O senhor é muito
bom, — continuou impulsivamente após um pequeno silencio. — Pelo menos para mim.
Sou-lhe tão agradecida!... Gostaria de poder provar-lhe minha gratidão. Mas é que uma
pequena como eu nada pôde fazer para uma pessoa como o senhor.
— Deixa de tolices! Queres uma saidinha com azeitonas?
Robin aceitou mas não parou de falar.
— Seu amigo Mr. Fable pensa a mesma coisa do senhor.
— Andy é um velho amigo, bem sabes.
— Acho-o um rapaz adorável — exclamou Robin.
— Pois ninguém costuma achá-lo bonito.
— Não, não é bonito; quando digo adorável refiro-me á sua simpatia.
— Andy possui um carater de uma limpidez rara. Dedico-lhe uma amizade de irmão.
Mas olha aqui, precisamos conversar sobre negócios.
— Pensei que já estivesse tudo combinado.
— Tudo não. Tomo-te como modelo durante seis semanas e pagar-te-ei todos os
sabados. E se, por acaso, um ou outro dia não trabalharmos receberás do mesmo modo.
— E isso é direito?
— Certamente.
— Costuma fazê-lo sempre?
— É um velho habito meu.
— Espero que o senhor não esteja fazendo isso somente para ajudar-me.
— Não; podes estar descansada.
— Prefiro arranjar qualquer espécie de trabalho, mas não desejo viver da caridade
dos amigos. O senhor já fez muito por mim.
— Oh, não. Tu foste minha hospede durante uma semana. E, como tu, Fable e os
outros. Isso nunca foi caridade.
— Foi uma excursão, não foi? — replicou Robin.
— Sim. Para comemorar meu aniversario — explicou Hallam, rindo-se.
— Sim? E ganhou muitos presentes?
A descrição dos presentes que Hallam ganhara ocupou algum tempo.
As sombras crepusculares do belo dia de verão tornavam-se mais densas. Kay
levantou-se e apertou o botão da luz.
— Agora, — volveu ele — vou descer para conversar com Mrs. Quest e ver se
tomamos alguma decisão. Podes distrair-te, examinando o atelier, se quiseres. Olha; aqui
dentro encontrarás muita coisa bonita.
E, assim dizendo, colocou sobre a mesa um cofre de metal que retirara de um
armário. Abriu-o e mostrou á jovem o seu conteúdo: era um monte de objetos de pouco
valor com que ele costumava enfeitar seus modelos: colares de falsas ametistas,
braceletes de cristal lapidado, anéis e prendedores prateados.
Robin retirava tudo isto do cofre como que maravilhada.
— Oh, posso vê-los? — perguntou ingenuamente.
— Sim. Volto já.
Hallam saiu, deixando-a distraída em dispor sobre a mesa todos aqueles reluzentes
objetos de adorno. Demorou quinze minutos e, ao voltar, encontrou-a ainda ocupada em
admirar o conteúdo do cofre. Parou no limiar da porta, preso ao encanto do quadro que
ela formava. Nisto, percebeu que Robin tirava da caixa uma corrente de ouro com um
pendente de pérolas falsas. Estava de pé, ao lado da mesa, com as costas semi-voltadas
para ele e, ao levantar as mãos para examinar a joia mais de perto, esta ultima ficou fora
do alcance dos olhos de Kay. Robin contemplou intensamente o pendente pelo espaço de
um ou dois minutos e em seguida Hallam notou que ela guardava a joia no regaço,
comprimindo-a com a mão.
Hallam continuou imovel, o coração a bater-lhe precipitadamente, pois uma idéia
repentina lhe cruzara o cérebro. Lembrou-se das palavras que Alison lhe dissera na
estação. “Em sua família há sangue mau... o pai de Robin... Se ela viesse a ser vitima de
uma tara?”
Então, achara a hipotese inadmissível. Mas agora!... Não tinha acaso a prova diante
dos olhos? Alison estava com a razão! Robin era uma ladra! Tal pai, tal filha. Aliás era
uma coisa inevitável. Como poderia ela escapar? E como poderia ele ter sido tão idiota ao
ponto de se iludir daquela maneira? Mas que fazer? Que dizer?
Talvez, avivando-se em seu espirito a lembrança dos herois imperturbáveis que
encontrara nas novelas policiais, tomou a atitude mais serena que lhe foi possível e
exclamou:
— Ouve, pequena, isso não é teu.
Robin voltou-se bruscamente e fixou nele os olhos assustados, comprimindo ainda,
com as mãos, o objeto que guardara no regaço.
— Não é meu? Mas eu sei perfeitamente disso — replicou ela, sem compreender
bem.
— Então, não achas que não deves escondê-lo em tua blusa?
Os lábios da jovem entreabriram-se; seus olhos arregalaram-se desmesuradamente.
— Escondê-lo? — repetiu com voz tremula, como se a compreensão penetrasse
lentamente em seu espirito.
— Sim, não achas lamentável o que acabas de fazer?
— Não me disse o senhor que eu podia olhar tudo isto? — perguntou ela. — Não foi
o senhor mesmo quem foi buscar o cofre, colocando-o sobre a mesa e abrindo-o para me
mostrar o que ele continha?
— Sim, fui eu, mas...
Nesse momento a realidade surgiu, nitida, em todo o seu horror, diante dos olhos de
Robin.
— Oh! O senhor pensou que eu fosse... — começou ela.
— Não pensei; vi — atalhou Kay.
— Julgou que eu estivesse roubando, não é?
Havia uma serenidade fria e perigosa na voz da jovem.
— Vi quando guardavas o pendente no regaço.
— O senhor é um detetive de primeira ordem, não? — replicou ela com causticante
ironia.
E então, subitamente, sua serenidade desapareceu sob o estalar da tempestade.
Seus olhos pareciam feitos de fogo; sua voz cortava como um açoite. Mais uma vez
tornara-se a pequenina criatura selvagem e enfurecida que saltara sobre ele no carrocel
da feira.
— Com que então julga que eu sou isso? Pensa que assim iria eu pagar ao homem
que foi bom para mim? Só por que sabe que meu pai é um ladrão? O senhor é igual a
todo mundo... e eu pensei que fosse diferente... Roubar seus insignificantes pedacinhos
de vidro... Quem os poderia cobiçar?
Continuava com uma das mãos fechada, mas com a outra pôs-se a atirar, aos pés
de Hallam, todas as jóias que estavam sobre a mesa.
— Guarda-os!... guarda-os! guarda-os! — gritava ela.
Kay olhava-a, assombrado com a violência de sua fúria. As mulheres de sua classe
não faziam aquilo; podiam ser hipocritas mas não atiravam objetos contra ninguém... Que
perfeita selvagemzinha era ela! E como ficava linda assim enraivecida!
— O senhor pensou que eram aquelas pérolas de vidro que eu estava roubando,
não foi? — continuou ela quase sem fôlego. — Pois bem, cá estão elas, vê?
Estendeu o braço, abriu a mão que até ali conservara cerrada, e Hallam viu que o
pendente jazia sobre sua palma macia e branca.
— E o que eu tornei a guardar no meu regaço era isto... E isto não é seu... é meu!
Puxou uma corrente muito fina que lhe pendia do pescoço e pelo decote da blusa
retirou um pequeno medalhão, rodeado de pequeninas pérolas.
— Quis comparar estas pérolas com as suas para ver si eram iguais e são... Aqui
dentro há um retratinho de minha mãe e se eu não o odiasse com todas as minhas
forças... mostrar-lhe-ia. Oh, papai! Por que fizeste com que pensassem isso de mim?
Com este grito, a primeira reprovação que Hallam a ouvia proferir contra seu pai, a
tempestade amainou-se. Extinguiu-se num soluço e numa rápida torrente de lagrimas.
Robin ocultou o rosto com o braço num gesto todo infantil.
Hallam passou por cima do monte de jóias que jazia aos seus pés e aproximou-se
delia.
— Robin... sinto ímpetos de espancar-me a mim mesmo! Por favor, perdoa-me —
murmurou humildemente.
— Não adianta pedir perdão. O senhor pensou aquilo... é só o que me importa —
replicou a voz abafada de Robin.
— Oh, bem sei. De nada adianta eu falar... O que fiz é simplesmente imperdoável.
Não sei o que se passou comigo... foi como uma rajada de loucura... Robin, não calculas
como sinto o meu procedimento.
Robin ergueu para ele dois olhos fatigados pela fúria e disse vagarosamente:
— Não compreende que a vida seria suficientemente dificil para mim... sem que o
senhor me magoasse desse modo? Não vê que a maior parte das pessoas iria desprezar-
me sem...
— Oh, mereço tudo que disseres de mim. Tudo, Robin. Ouvir-te-ei calado. Dize tudo
que quiseres... tudo que pensas de mim... Nada poderá ser pior do que o juizo que faço
de mim próprio... Mas, quando acabares de falar, vê se consegues perdoar-me.
Suplicou-lhe, rogou-lhe o perdão com toda humildade e, embora lhe custasse algum
tempo, conseguiu fazer as pazes com a jovem.
— Compreendo que meus gestos lhe tenham parecido um tanto... esquisitos, —
admitiu ela por fim. — Além do mais o senhor foi muito bondoso para comigo e acho que
todo mundo está sujeito a um engano como esse. Está tudo acabado.
E com estas palavras estendeu a mão a Kay. Este ultimo sentiu um alivio quase
ridículo ao obter o perdão de Robin e apertou demoradamente a pequenina mão que se
lhe oferecia. Uma espécie de nó em sua garganta impediu-o de falar durante alguns
minutos. Finalmente ergueu os olhos e sorriu um pequenino sorriso de incerteza.
— Tu disseste que me odiavas com todas as tuas forças. É verdade, Robin? —
indagou com uma expressão de duvida.
— Não.
— E não te aborreces que eu te chame simplesmente de Robin?
— Não. Mas si continuar a chamar-me de Robin, eu o chamarei de Kay.
— Perfeitamente. Não farei a menor objeção. Mas por que fazes disso uma
ameaça?
Robin baixou os olhos, pousando-os em suas mãos que continuavam presas ás de
Hallam.
— Porque é uma vergonha ser tratado com intimidade pela filha de um ladrão... por
esse motivo todos me tratam com desprezo e superioridade — explicou lentamente. —
Compreende? — acrescentou, erguendo novamente o rosto.
Seus olhos se encontraram. Hallam compreendeu. Soltou as pequeninas mãos da
jovem.
— Compreendo, mas não importa — replicou ele, desviando o rosto, por onde um
leve rubor se espalhara.
Mrs. Quest se encarregou de instalar Robin e, tendo um quarto desocupado em seu
apartamento, ofereceu-o á jovem por um aluguel módico.
Robin aceitou o oferecimento, o que de modo algum agradou a Alison Tearle.
Em primeiro lugar, inspirado pela beleza de Robin, Hallam começou a trabalhar —
sim, praticamente, ele trabalhava — em esboços e estudos do raro tipo da jovem, ao
passo que jamais sentira inspiração para fazer mais que um ou outro insignificante
desenho de Alison. Além do mais, Robin, hospedada com Mrs. Quest, ficara mais ou
menos perto de Hallam.
Robin, para aliviar um pouco o trabalho de Mrs. Quest que, por ser muito gorda, se
cansava logo, adquiriu o habito de cuidar do apartamento de Kay, varrendo-o, tirando o pó
dos moveis e conservando-o em ordem.
Gostava de fazer todos esses pequenos serviços, pois via nisso uma oportunidade
de demonstrar o reconhecimento que sentia. E, ainda que julgasse impossível esquecer a
afronta que Hallam lhe lançara ao rosto, acusando-a de ter furtado o pendente de pérolas
falsas, descobriu que não mais lhe guardava o menor ressentimento ou rancor por isso.
Para tanto foi o bastante um ou dois dias de tratamento carinhoso; por outro lado o
incidente como que formara um novo laço entre eles, fazendo com que se
compreendessem melhor.
Para Alison, entretanto, as coisas haviam tomado um colorido negro. Procurava por
todos os meios enganar-se a si própria, fazendo por crer que tudo continuava como antes,
mas, no intimo de seu coração, sabia que a situação mudara por completo e receava que
jamais voltasse a ser o que fora. Punha cuidado especial em falar a Hallam dos encantos
de Robin e em exprimir, por ela, sua admiração.
E, assim, chegou a noite de uma grande festa no atelier de Hallam — um baile a
fantasia. Alison, magnificamente vestida de Cleopatra — fantasia inteiramente em
desacordo com seu claro tipo de inglesa — esperava constituir a atracção exclusiva da
soirée3. Sempre fora a figura predominante nas reuniões sociais de Hallam, nas quais
adotava uma forçada atitude de mulher livre e despida de convenções, que em nada
condizia com seu espirito vulgar e mesquinho.
3 Reunião social, ou de outro tipo, que ocorre à noite.
Aquela noite, portanto, exibindo a riqueza de sua fantasia que lhe deixava
inteiramente nus o colo e os ombros, era ela a rainha da festa. Flertava com seis rapazes
a um só tempo e divertia-se intensamente. Kay estava de excelente humor e ela chegara
quase a esquecer a desagradável e importuna pessoa de Robin, quando um escultor,
examinando um dos recantos da sala, estacou diante de um dos esboços que Hallam
fizera de sua protegida.
— Ceus, como é linda! Onde encontraste esta pequena, Hallam? — exclamou o
artista, mostrando o quadro a todos os convivas.
Imediatamente ergueu-se um coro de admiração.
Alison, roida de despeito ante a apresentação daquele retrato de Robin, exclamou
com acento irônico e frio:
— Oh, esse é o novo e maravilhoso modelo que Hallam encontrou lá nos confins de
Molesbury.
Entusiasmado pela admiração que seu trabalho provocara, Hallam teve uma idéia
grandiosa.
— Gostariam de conhecê-la? — indagou. — Querem que eu vá lá em baixo buscá-
la?
Alison protestou imediatamente, mas foi inútil, pois todos os outros convidados
aceitaram, sem hesitar, a sugestão de Hallam.
— Pois esperem um momento que já volto com ela — gritou, saíndo a correr.
— Ela mora no porão do prédio e faz alguns serviços domésticos para a velha Mrs.
Quest — explicou Alison, com pérfida intenção, aos que se achavam mais perto.
Fable mediu-a com um olhar indiferente e pensou lá com seus botões. “Alison
começa a mostrar os dentes”.
Em poucos minutos Hallam estava de volta, arrastando, pela mão, Robin que,
espantada e enrubescida, protestava e tentava evitar a entrada do atelier.
No limiar da porta, o jovem parou, fez uma mesura e exclamou:
— Damas e cavalheiros, permitam-me que lhes apresente Miss Robinetta Golden, o
original dos meus pobres trabalhos.
Imovel á entrada da sala, Robin, modestamente trajada, olhava estupefata para toda
aquela gente. Trazia as mangas da blusa arregaçadas, pois estivera ajudando Mrs. Quest
na lavagem da louça e as negras ondas de seus cabelos emolduravam-lhe o rosto num
adorável desalinho.
— Canta-nos qualquer coisa, Robin! — exclamou Hallam. — Mostra-lhes o que
sabes.
Com estas palavras sentou-se ao piano e improvisou um acompanhamento para a
melodia que Robin cantara na feira de Molesbury, quando ele a conhecera.
Por um momento Robin hesitou, e quem pudesse ler em seu rosto, notaria sintomas
perigosos. Seus olhos faiscavam ameaçadores ao se cravarem em Hallam, como se
quisessem fulminá-lo. Afinal decidiu-se e ás primeiras notas saídas de seus lábios, todos
os convivas emudeceram para ouvi-la melhor.
Terminou a canção. Um silencio mediou entre o ultimo som e o primeiro aplauso. A
este, porém, seguiu-se uma verdadeira ovação. Todos a rodearam, pedindo-lhe que
tornasse a cantar. Mais uma vez ela hesitou, lançando a Hallam um olhar suplicante.
Nada conseguindo, resolveu ceder.
Alison estava furiosa. Robin tornara-se o único encanto da reunião. E quando esta
ultima terminou sua segunda canção, Hallam ordenou-lhe que dançasse. Não percebia o
tom imperioso com que se dirigia á jovem; sentia apenas um curioso orgulho ante a
admiração que ela despertava em seus amigos. Robin, porém, compreendeu que estava
sendo exibida por Kay como algo exótico e fora do comum, e o olhar que lançou ao rapaz
foi cheio de magoa e reprovação. Não havia o que não fizesse por ele mas aquela
liberdade absoluta com que lhe dava ordens era algo que não permitiria a homem algum,
no mundo.
Não quis reagir diante de todas aquelas pessoas, pois isso o faria caír numa
situação ridícula e por esse motivo continuou a obedecer-lhe. Acompanhada por Kay,
executou um de seus bailados, cujo ritmo selvagem a todos seduziu. Ao terminá-lo o
jovem escultor, o mesmo que descobrira seu retrato, perdendo a cabeça com sua
formosura, ergueu-a nos braços, colocou-a sobre os ombros e, em triunfo, carregou-a
para o centro do salão.
Estalaram os risos e os aplausos e organizou-se um delirante cortejo. Palida de ira,
Robin gritava que a pusessem no chão, mas, com a algazarra reinante, o jovem artista
julgava que eram apenas exclamações de entusiasmo. Não lhe passava pela cabeça que
Robin pudesse ofender-se, e estava longe de ser essa a sua intenção. Por fim, parou no
centro da sala, mantendo-a no ar.
Alguém serviu champagne, levantaram-se as taças em sua honra e seu nome foi
brindado por todos, com exceção de duas pessoas: Alison que mal podia disfarçar seu
despeito e Fable que, ao notar a expressão de Robin, compreendera a verdade.
— Pobre pequena, estão a martirizá-la — disse consigo mesmo.
Finalmente o escultor fê-la deslizar até ao chão e Robin saltou para longe dele, onde
estacou com a respiração ofegante, olhando á volta de se como fera que se vê presa em
uma armadilha.
Fable acercou-se-lhe e parou ao seu lado, oferecendo-lhe calmamente o braço.
— Quer dar-me o prazer de cear comigo, Miss Golden? — perguntou ele.
Ao notar o olhar significativo de Fable, Robin sentiu todo seu receio desaparecer
como por encanto. Passou a mão pelo braço que o rapaz lhe oferecia e, ambos em
silencio, dirigiram-se á porta do atelier que se fechou por traz deles. No corredor Robin
exclamou com voz tremula de indignação:
— Como puderam atrever-se a tanto? Como?
— Não tiveram intenção de ofender-te — replicou o rapaz.
Sob a influencia das palavras de Fable, Robin acalmou-se e ergueu para ele os
grande olhos umidos.
— Uma vez eu disse a Kay que eras um homem adorável e agora vejo que não me
enganei — balbuciou correndo na direção da escada.
Fable quedou-se um momento onde estava, vendo-a desaparecer e quando tornou
ao atelier havia um sorriso em seus lábios.
No dia seguinte, Hallam resolveu ir ao campo, com o intuito de pintar Robin em
plena natureza.
Esta ultima, porém, sentada a um canto do vagão não sorria e quase não falava.
Quase ao fim do trajeto Hallam perdeu a paciência e indagou:
— Por acaso deixaste a lingua em casa?
— Olha aqui, Kay, tu me pagas para que eu te sirva de modelo e não para fazeres
de mim uma escrava.
Hallam arregalou os olhos de espanto e ela continuou:
— Sinto uma grande e sincera gratidão pelo que fizeste por mim, mas não sou
dessas bonecas que andam e falam, nem tão pouco me pareço com uma foca amestrada,
para que me exibas aos teus amigos e eles admirem e me carreguem nos ombros,
compreendes?
— Mas, Robin, eu não sabia... — começou Hallam.
— E ainda há muitas outras coisas que não sabes — atalhou ela.
— Ninguém podia imaginar que te sentisses insultada por tão pouco. Pensamos que
aquilo fosse uma honra para ti. Alison daria a vida para estar em teu lugar.
Foi uma imprudência de Hallam ter dito semelhante coisa. Robin contraiu levemente
os lábios.
— É possível — retorquiu ela. — Isso em nada me admiraria depois da maneira pela
qual ela se portou, ontem.
Hallam bufou de raiva.
— Olha aqui, não permito que critiques meus amigos dessa forma. Alison é muito
boa menina e sabe comportar-se.
— Tudo depende do que entendas por comportamento — replicou Robin secamente.
O resto da viagem decorreu em profundo silencio. Certamente não passava pela
cabeça de Hallam que Alison Tearle, uma moça pertencente á mais fina sociedade,
tivesse algo que aprender, em matéria de educação, com a filha dum criminoso vulgar.
Uma pequena que nem sequer sabia falar corretamente!
Estava aborrecido mas, influenciado pela beleza daquele maravilhoso dia de sol em
pleno campo, foi recobrando aos poucos o bom humor e pôs-se a preparar a palheta e os
pincéis, como se pretendesse realizar grandes trabalhos. Talvez fosse de fato esse seu
intuito. Robin era um modelo capaz de inspirar os mais terríveis troca-tintas.
E, assim, Hallam levou-a para um campo esmeraldino, estudando-a sob diversas
luzes, contra diversos fundos e em diferentes poses. Por fim armou o cavalete e deu a
primeira pincelada. Cinco minutos mais tarde, porém, estendia-se sobre o macio tapete da
relva e exclamava risonho:
— Que dia glorioso! Que ceu! Que nuvens! Que estupidez trabalhar num lugar
destes! Canta para mim, Robin.
Mas Robin não estava disposta a cantar e não o faria. Era inútil pedir-lhe. Diante
disso Hallam afastou-se a resmungar, com uma vaga sensação de descontentamento a
irritar-lhe os nervos. Robin, esquiva e arredía, parecia um pássaro selvagem.
E a causa de tudo era que a jovem se sentia desiludida. Seus grandes olhos negros
não lhe serviam unicamente de adorno; serviam-lhe também para ver e, aos poucos, ela
principiava a notar certas coisas com relação a Kay Hallam. Um ou dois fatos que,
separados, lhe causaram uma pequena impressão, unidos, ajudaram-na a formar certas
conclusões desagradáveis.
Em primeiro lugar Hallam suspeitara de sua pessoa, julgando que ela havia roubado
o pendente de pérolas falsas. Talvez isso fosse natural, mas ela não esperava
semelhante coisa de Kay. Fable, pensou ela, em circunstancia alguma ergueria contra si
semelhante suspeita. E depois fora o incidente do baile, na noite anterior. Sentia que ele
estava despreocupado; que fora insensível e egoísta. A Robin era mais fácil sentir que
pensar. A decepção que sofrera fora cruel e magoara sua fina sensibilidade de mulher.
Não podia, igualmente, deixar de compreender que Hallam, embora falasse muito do
seu trabalho, pouco mais fazia além de pequenos esboços inacabaveis e de valor
insignificante. Passava a maior parte do tempo fora do atelier e, quando isso não se dava,
havia sempre uma ou outra visita que o impedia de trabalhar.
Por isso, quando tão facilmente abandonou o trabalho que mal principiara, pedindo-
lhe para cantar, Robin sentiu que era impossivel fazer-lhe a vontade. Cantar é próprio de
um estado de espirito alegre e despreocupado e Robin com o coração afogado em
decepções não podia fazê-lo.
— Está bem. Tornemos a emalar as coisas — exclamou Hallam zangado.
Assim fizeram em silencio, Hallam atirando os objetos uns sobre os outros e
remoendo a irritação que o invadira. Depois das malas prontas tomaram o caminho da
estação, o qual cortava um grande pinheiral.
Uma suave brisa embalava lentamente os galhos altos e esguios dos pinheiros. Dir-
se-ia haver incenso no ar, tal o perfume que por aí vagava.
Hallam continuava um tanto amuado em conseqüência da recusa de Robin e das
censuras que ela lhe fizera com relação á sua conduta na noite da véspera. Como a
maioria dos homens, Kay não era despido de vaidade e não lhe agradava ver-se assim
censurado por Robin.
Por outro lado jamais Robin lhe parecera tão sedutora como naquele momento.
Seus cabelos negros esvoaçavam á brisa, o rosado de suas faces parecia mais vivo, seus
grandes olhos brilhavam com maior fulgor. Caminhava ao seu lado com o mais adorável e
gracioso de todos os passos. Por que se mostraria ela tão arredia? Esta pergunta e a
formosura da jovem o martirizavam. O domínio de si próprio, esse algo invencível que
havia em Robin, irritava-o. Sentia-se inquieto, aflito — aborrecido com ela e pouco
satisfeito consigo mesmo.
Súbito, do alto de um pinheiro lhes chegou aos ouvidos o canto mavioso de um
pássaro. Robin no mesmo instante ergueu a cabeça e de seus lábios, que já agora
sorriam, brotou uma nota cristalina que foi como o eco daquele trinado. Seu movimento
fora tão gracioso e espontâneo e era tão encantadora a naturalidade com que seus olhos
buscavam divisar no alto das agulhas verdes o pássaro cantor, que, uma vez mais,
Hallam sentiu-se dominado pelo desejo de beijar aqueles lábios vermelhos e
entreabertos.
Aproximou-se dela mudo, tremulo, deslumbrado, obediente ao impulso que o
invadira, sem saber sequer o que ia fazer, mas, sentindo cada vez mais a necessidade de
fazê-lo.
E fê-lo.
Uma sonora bofetada no rosto foi a recompensa que Hallam obteve com sua ação.
Robin encarava-o, tremendo da cabeça aos pés, o olhar aceso de indignação.
— Alto lá, amigo! — exclamou ela com mordaz e enfurecido sarcasmo. — Isto — (e
apontou para seus lábios convulsos) — isto não é teu!
CAPITULO IV
Durante um momento ficaram a se olhar em silencio. Ela, enrubescida, olhar
brilhante, respiração opressa — furiosa, enfim; ele, ofendido e ao mesmo tempo
envergonhado, esfregando com a mão a face dolorida.
Uma das primeiras coisas que o haviam atraído a Robin, fora a instintiva modéstia, a
espontânea indignação com que ela repelira o olhar de admiração que lhe lançara na feira
de Molesbury. E esses sentimentos tão nobres e sagrados ele não os soubera respeitar.
Estava mais que convencido do mal que praticara. Mas a ignomínia daquela bofetada
queimava-lhe ainda o rosto, fazendo borbulhar o sangue em suas veias. Sem se resolver
a confessar seu erro, cravava em Robin um olhar áspero e sombrio. Mas, como os
minutos se passassem e sua fisionomia não refleetisse a menor expressão de
arrependimento, o odio que fulgia no olhar da jovem transformou-se em algo inteiramente
diverso. Algo que traduzia maguas tão grandes que o perdão brotou suplicante dos lábios
de Kay.
— Robin... perdoe-me... Portei-me como um canalha, bem sei.
Mas a retratação viera tarde demais e Robin não a aceitou no mesmo momento
como Hallam esperara. Em silencio continuou a fitá-lo com aqueles grandes olhos
magoados.
Hallam começou a sentir-se mal sob esse olhar e, voltando-se, pôs-se a dar ponta-
pés nos galhos secos que havia pelo chão.
— Sempre tenho que estar a te pedir desculpas — disse ele mal humorado. —
Nunca tive que dar explicações a ninguém, deste modo.
— A culpa é tua — replicou Robin calmamente.
— Minha, não. Tu é que tens a triste habilidade de arrastar-me para o mal.
— Foi isso justamente o que disse Adão, não é verdade? E, todavia, saboreou até o
fim a metade da maçã que lhe coube.
— Já te pedi desculpas, não foi?
— Sim e estás desculpado. Mas as coisas não podem ficar como estão, Kay. Estás
farto de te desculpares. Pois bem; também eu estou farta de ouvir tuas desculpas.
— Não sei que queres dizer com isso — volveu o rapaz em tom alterado.
— Nesse caso explicar-te-ei. Sabes por que me beijaste, há pouco?
— Porque és espantosamente linda, acho eu. Por que é que um homem beija uma
pequena? — replicou ele com as faces levemente rubras.
Robin meneou a cabeça.
— Oh, não. Beijaste-me unicamente porque julgas-te poder fazê-lo. Se eu fosse uma
moça da alta sociedade não te atreverias a beijar-me, ainda que eu fosse cinquenta vezes
mais bonita do que sou.
Kay protestou ardentemente mais ela persistiu.
— É infame o juizo que fazes de mim! Que espécie de homem julgas que sou?
— Nenhuma, Kay — retorquiu ela rapidamente. — Não podes evitar que eu pense o
que penso de ti. És um gentleman e os gentlemen têm opiniões muito estranhas sobre
certas coisas. As pessoas como eu são uma dessas coisas sobre as quais eles têm
opiniões tão esquisitas.
— Que queres dizer? Pessoas como tu? Positivamente não te compreendo —
volveu Hallam em tom áspero.
Robin ergueu os olhos e fixou-o de frente.
— Bem sabes que é verdade — disse ela.
Kay, porém, fez-se de surdo e continuou no mesmo tom.
— Nunca pensei que fosses tão santinha. Se alimentas opiniões tão fortemente
contrarias ao beijo é melhor que te encerres em um claustro, onde homem algum possa
pôr os olhos em ti.
Hallam compreendeu que não devia dizer aquilo, odiou a si próprio por aquelas
palavras, mas foi incapaz de reprimi-las. Elas vieram-lhe aos lábios num súbito impulso de
ferir com o mesmo ferro com que fora ferido.
Os olhos de Robin inundaram-se de lagrimas.
— Não sou santa, nem tenho opiniões contrarias ao que quer que seja. Horroriza-
me, porém, a maneira leviana pela qual me beijaste — simplesmente porque sou bonita e
não tinhas coisa melhor para fazer. Nenhum homem há de beijar-me assim e ficar impune
— nenhum!
Parou de falar, procurando conter o ritmo alterado de sua respiração.
Não fora bem essa, a razão que levara Kay a beijá-la. Fora algo por demais violento
para ser tão insignificante; a própria violência do impulso o intrigava. Mas, apesar de tudo,
ele compreendeu que as palavras da jovem encerravam uma odiosa verdade. Sua
fisionomia transformou-se. O mesmo se deu com a voz de Robin ao dizer calmamente:
—- Não sou uma lady, Kay — não pertenço ao meio em que nasceste. Na tua
opinião não sou tua igual.
Kay, dolorosamente embaraçado, tornou a protestar. Robin, porém, cortou-lhe a
palavra.
— Por que não reconheces a verdade, Kay? Não tens culpa de ser um gentleman.
— Mas, Robin, não digas isso! Odeio todos esses idiotas preconceitos sociais.
— Mas, mesmo assim, se eu fosse uma moça de posição social não terias ousado
beijar-me daquele modo, não é verdade?
— Não sei. Se a moça fosse tão tentadora como tu, provavelmente a beijaria da
mesma forma. — (Baixou os olhos e continuou a dar pontapés nos galhos secos). —
Perdi a cabeça — confesso e espero que me desculpes. Foi essa a verdade. Não te beijei
levado por nenhuma dessas vis hipoteses que acabas de formular.
— Kay! — exclamou ela. — Isso não é verdade, tu bem sabes que não, e revolta-me
ver-te mentir. Não ha nada mais desprezível do que o homem que mente.
— Até hoje ainda não me haviam tomado por mentiroso.
— Não te chamei de mentiroso. Procuras apenas negar que estou com a razão para
não me magoar.
— Não vejo o que há nisto capaz de magoar-te. Nunca vi uma pequena com idéias
tão absurdas.
— E o que mais me entristece é ver que me julgas incapaz de encarar a verdade e
suportá-la em toda a sua crueldade.
— Mas se estou te dizendo que não é verdade. Nunca dei a menor importância a
preconceitos de família, nem avaliei o valor desta ou daquela pessoa pelos atos de seus
pais.
— Então por que razão pensaste que eu estava roubando as tuas jóias falsas? Não
erguerias uma suspeita dessa ordem contra Alison Tearle. Por que não me convidaste
para a tua festa de um modo correto e delicado em lugar de arrastar-me para lá do jeito
que me encontraste, para depois exibir-me aos teus, amigos? Não terias feito isso com
Alison Tearle. E por que me beijaste, hoje, daquele modo horrível e leviano que não
significava coisa alguma? Não serias capaz de beijar Alison...
— Oh, faze-me favor de pôr de lado o nome de Alison, sim? — disse ele secamente.
— Não, não posso. Não há outra com a qual eu me possa comparar. Alison Tearle é
uma lady. Ela faz coisas que por nada neste mundo eu faria, mas não deixa de ser uma
lady. Dizes que perdeste a cabeça há pouco. Pois bem, terias tido cuidado suficiente para
não perde-la si, também eu, fosse uma lady.
Robin expressava-se mal, porém com tal animo e firmeza que Hallam emudeceu.
Não tentava contestar os argumentos da jovem porque os sabia verdadeiros. Não teria
tratado uma moça de posição social, como tratara Robin. Compreendeu, então, que o
incidente da noite anterior tivera uma significação muito mais profunda do que, a principio,
supusera. Viu, de um momento para outro, que não poderia ter feito o que fizera a Robin,
si ela fosse sua igual. A compreensão de tudo isso cobriu-o de vergonha, mormente por
reconhecer que foram necessárias as palavras de Robin para retirar-lhe a venda dos
olhos.
— Ouve, Kay — continuou ela. — Durante estas quatro semanas que estou
morando com Mrs. Quest, tenho considerado muita coisa sobre a minha pessoa e a tua.
Só agora compreendo por que não me convidaste corretamente para a tua festa. Foi
unicamente porque não sei comportar-me nem falar convenientemente. E sabias que teus
amigos reparariam nisso. Mas, desde que eu me limitasse a cantar, dançar e diverti-los,
tudo correria bem.
Hallam continuava mudo, sem coragem para reconhecer a verdade e, diante da
atitude da jovem, francamente incapaz de mentir.
— Não sei falar direito, não é verdade? — acrescentou ela subitamente.
— É — replicou Kay laconicamente.
— E alguma vez já te lembraste de que está em tuas mãos corrigir meus erros,
ensinar-me?
— Não — volveu ele. — Nunca.
Robin passou os grandes olhos pensativos pela ramagem verde e esguia dos
pinheiros e depois volveu-os de novo para o rapaz.
— Kay, se tivesses uma irmã e surpreendesses um homem a beijá-la como há
pouco me beijaste, que farias a esse homem?
Esta súbita pergunta colocou-o frente a frente com o X do problema. Não mais lhe
era possivel deixar de responder.
— Abrir-lhe-ia a cabeça — retorquiu, sem ousar fitar de frente sua interlocutora.
— Até que enfim dizes alguma coisa sincera! — exclamou Robin. — Eu não tinha
um irmão para abrir-te a cabeça, Kay — por esse motivo reagi dentro do limite de minhas
forças. Vamos, continuemos nosso caminho.
E, ambos em silencio, seguiram.
Essa conversa alterou muita coisa entre os dois e Kay, ressentindo a nova situação,
tornara-se inquieto e apreensivo. Robin mostrava-se muito afavel e delicada todas as
vezes que o encontrava, mas sua amizade passara por uma grande transformação e
estava longe de ser o que fora. A intimidade que antes havia entre eles, desfazia-se aos
poucos. Nascera na atitude de Robin uma nova reserva que Hallam não lograva vencer
com coisa alguma. De um momento para o outro ela como que adquirira o ar grave e
ponderado de uma senhora e era estranha a maneira pela qual Kay sentia falta na
confiança que Robin a principio depositara nele.
Além do mais, Hallam receava que Robin o tomasse por homem de sentimentos
baixos, julgando que o incidente da semana passada, sob o pinheiral, fosse um fato
comum em sua vida.
Esforçou-se por reabilitar-se aos olhos delia, mas vivia a recaír nas mesmas faltas.
Por exemplo: durante toda a semana que seguiu ao dia que passaram no campo, Robin
não tornara a pousar uma única vez, porém ele a chamou ao atelier e tentou pagar-lhe, do
mesmo modo, o salário da semana.
Robin sacudiu a cabeça e recusou-se a aceitar o dinheiro. Nada fizera para ganhá-
lo. Foi em vão que Hallam procurou convencê-la de que isso seria faltar á combinação
feita. Sua resolução estava tomada e ninguém a faria ceder.
— Mas então não queres ganhar dinheiro? — insistiu Kay.
— Sim — replicou. — Quero ganhar dinheiro, mas não me apoderar dele dessa
maneira.
— Meu Deus, Robin, nunca vi uma pequena tão intransigente em coisinhas como tu.
Isto, porém, em nada alterou a decisão de Robin.
— Maldito beijo! — resmungou Kay quando ela saíu.
Mas a lembrança desse beijo lhe era bem doce, apesar de tudo.
Alguns dias mais tarde Hallam distribuiu convites para uma nova festa no atelier e
Robin foi contemplada com um dos cartões. Só ao ler a resposta da jovem é que ele
compreendeu a tolice que fizera. O bilhetinho, escrito com letra infantil, dizia o seguinte:
"Meu raro Kay:
Muito obrigado pelo convite, mas eu não irei. No fundo tinhas certeza de que eu não
iria. Tua muito afetuosa
Robin".
Essas linhas perturbaram horrivelmente o pobre Hallam. Quando faria ele alguma
coisa certa?
No dia seguinte, ao saír, encontrou-se com Robin junto á porta da rua. Parou e
indagou de chofre:
— Escuta, Robin, por que não queres ir á minha festa?
Robin levava uma vassoura em uma das mãos e um espanador na outra; sua
cabeleira negra e sedosa jazia oculta sob uma touca; tinha mangas arregaçadas e um
grande avental azul ia-lhe do pescoço até aos tornozelos. Ergueu os olhos para o rapaz e
pôs-se a fitá-lo muito seriamente.
— Já sabes a resposta antes que eu a diga — replicou ela.
— Acaso não pretendes mais perdoar-me aquele beijo? — indagou Hallam.
— Também para isso sabes qual é a minha resposta — retorquiu Robin
delicadamente.
Hallam afastou-se para dar-lhe passagem mas, ao vê-la seguir, agarrou-a por um
braço e puxou-a para tras.
— Ouve, Robin, não quero que faças mau juizo de mim por causa daquele beijo. É-
me odioso sentir que não mais confias em mim. Bem sei que eu não devia ter feito o que
fiz. Juro-te que obedeci a um simples impulso de momento, pois nunca tive hábitos tão
vis. Acreditas nisso?
Robin não respondeu com tão grande numero de palavras. Limitou-se a murmurar
com voz tremula e impregnada de pensativa melancolia:
— Qualquer um seria capaz de adivinhar a mãe admirável que tiveste, Kay.
Por um instante a surpresa manteve Hallam silencioso.
— Oh, mais que admirável — exclamou ele por fim. — A melhor de todas —
terminou, procurando ocultar a comoção que o invadia.
— Eu confio em ti, Kay. Acredito na nobreza do teu carater.
— Então irás á minha festa? Só para me dar uma prova?
— Não. Não farei isso.
Kay desapontou.
— Então não confias em mim?
Robin hesitou um momento.
— Se eu te der uma prova acreditará no que te disse? — perguntou ela com voz
abrupta e estranha.
— Como? Indo á minha festa?
— Não; de outro modo. De um modo capaz de varrer tuas maiores duvidas.
— Se de fato a prova for tão forte, não terei remédio senão acreditar nela, não é? —
replicou, sorrindo, satisfeito com o rumo que as coisas principiavam a tomar.
Ela quedou-se a fitá-lo intensamente. Súbito, com um adorável arzinho de
deliberação, encostou a vassoura á parede, colocou o espanador no chão e, erguendo o
braço, fez com que Hallam abaixasse a cabeça ao nivel da sua.
Um beijo muito leve e suave, dado com lábios trêmulos, foi pousar na face do rapaz,
quase junto á orelha.
Soltou-o em seguida e ele não pôde conter o rubor que lhe afluiu ao rosto.
Antes que Hallam tivesse recuperado forças para dizer qualquer coisa, já Robin
havia apanhado novamente a vassoura e o espanador.
— Robin, és um anjo! — exclamou ele por fim. — Eu andava certo de que me
julgavas como um canalha e acabas de desfazer, em um segundo, essa impressão
horrível que me vinha martirizando. Qual! decididamente, és a pequena mais adorável e
angelical que jamais encontrei no mundo!
Robin sentiu que uma doçura infinita lhe invadia a alma. Lentamente encaminhou-se
para a escada e começou a subi-la. Súbito parou, voltou a cabeça e sorriu para Hallam
que, lá de baixo, a contemplava embevecido. E, ao se pousarem no rosto atraente do
rapaz, seus grandes olhos de criança adquiriram uma expressão quase maternal.
Sua intenção não fora propriamente a de dar-lhe uma prova; agira daquele modo
porque se vira dominada por um forte impulso. Agora, porém, sentia que não só
convencera, como içara entre eles a bandeira da paz. Depois do escarcéu que fizera por
causa do beijo que Hallam lhe dera, um homem menos sensivel poderia não tê-la
compreendido. Mas Kay a compreendeu perfeitamente. E isso era muito importante, pois
revelava a alvura de seu carater. Robin continuou a subir a escada, o coração palpitante
de felicidade. Hallam voltou-se, correu para a porta como um relâmpago e, de um salto,
alcançou a calçada, tendo nos lábios o reflexo da alegria sã que também dele se
apoderara.
Robin pouco estivera com Andrew Fable desde o dia em que haviam deixado o
Adriana, após aquela acidentada excursão. A bordo passara todo o tempo mais em sua
companhia que em qualquer outra, mas, desde então, o encontrara apenas
ocasionalmente uma ou duas vezes que ele passara pelo atelier e no baile a fantasia que
tanto sofrimento lhe causara.
Fable não costumava tomar parte nas “reuniões” do atelier de Hallam. Era um
homem inteiramente dedicado ao seu trabalho. Sua fama de escritor era bem grande,
mas quem deseja conservar a celebridade precisa manter-se sempre á altura dela. Ele
era muitos anos mais velho que Hallam e conhecia da vida coisas que jamais haviam
passado pela cabeça de Kay. Sabia o que era morar numa água-furtada, trabalhar dia e
noite na esperança de ganhar a vida, trabalhar até sentir a cabeça arrebentando de dor e
ver seu trabalho recusado. Sabia o que era não ter leito, não ter fogo, não ter pão; sabia o
que significava tudo isso, porém nunca conhecera o desanimo. Nunca desanimara, nem
mesmo nos momentos mais trágicos da vida. Sempre possuirá coragem suficiente para
não desesperar. E, em compensação, provara a alegria indizivel de ver as horas de trevas
transformarem-se em luz, num horizonte radioso e próximo; de ver o futuro brilhar diante
de si.
Tudo isso o tornava profundamente simpatico. Todos acorriam a ele em seus
momentos dificeis, confessando-lhe coisas que a outro não ousariam confiar, tal a atração
e a confiança que ele inspirava. Como amigo era firme e constante. Robin sentiu por ele
uma afeição ardente e sincera. Essa afeição baseava-se no dom que lhe permitia ver
claramente, atraves da fisionomia serena e inteligente de Fable, o ouro de seu coração e
a brancura de sua alma.
Desde a festa de Kay, Robin não mais o vira, até que um dia, inesperadamente, ele
veio bater á porta do apartamento de Mrs. Quest, perguntando si podia falar-lhe.
Robin estava na cozinha ocupada em passar um monte de roupas e Fable,
entrevendo-a pela porta aberta enquanto Mrs. Quest o conduzia cerimoniosamente á sala
de visitas, parou e pediu licença para ir ao encontro da jovem.
Robin voltou a cabeça e, vendo quem era, recebeu-o com olhar brilhante e um
sorriso de sincero prazer.
— Muito ocupada? — indagou Fable.
— Sim, mas posso fazer um intervalo para receber-te — replicou ela com aquela
graça natural que sempre o encantara.
— Oh, não faças isso; não quero atrapalhar-te. Conversaremos aqui mesmo e,
enquanto isso, adiantas o teu serviço.
—- Está bem, si não te importas, pois tenho que terminar toda essa roupa antes do
anoitecer.
Robin ofereceu-lhe uma cadeira junto á mesa que uma toalha alvissima cobria.
Fable sentou-se e sorriu-lhe.
— Por acaso não queres um emprego, Robin? — perguntou.
— Sim, quero — replicou Robin, reunindo as quatro pontas de um lenço para passá-
lo. — Sabes de algum?
— Sim. Agora resta que o aceites. Trata-se do seguinte: uma de minhas novelas
está sendo filmada. O pessoal da “Nova Aurora” é que a está fazendo. Precisamos,
porém, de alguém que saiba dançar justamente como tu. Gostarias de fazê-lo? Eles estão
dispostos a pagar três guinéos por dia e ocupar-te-ão apenas durante tres. E... isso
poderia proporcionar-te mais ofertas semelhantes se teu trabalho agradar.
Robin, com o ferro eletrico no ar, arregalava os olhos em sua incredulidade.
— Eu, dançar para o cinema? Ora, mas eles não hão de gostar dos meus estúpidos
bailados!
— Como não? Sair-te-ás perfeitamente bem e eles vão ficar encantados.
— Tres guinéos por dia! Mas será possivel que exista tanto dinheiro no mundo? —
exclamava ela, rindo-se em tremula excitação.
Súbito largou o ferro sobre a mesa e voltou-se para encarar Fable.
— Andrew, olha bem para mim e dize-me si estás fazendo isso só por saberes que
preciso — disse ela com energia.
Fable ergueu para ela seus olhos francos e bondosos e Robin sentiu-se
imediatamente convencida.
— Então... é verdade — tornou vagarosamente, como se não pudesse compreender
bem.
— Verdade? — atalhou Fable. — Meu Deus, Robin, que estás pensando? Acaso
desconheces a raridade e o encanto de tua pessoa? Não sabes que aquilo que chamas
"teus estúpidos bailados" é a coisa mais graciosa do mundo e que, provavelmente, és
uma dessas criaturas sensacionais que só aparecem de geração em geração?
Robin continuava a arregalar os olhos.
— Não sou! — protestou ela quase indignada, não compreendendo bem o que
ouvira. — Kay não pensa assim. Ele me acha apenas bonitinha e mais nada. Nunca
achou nada de extraordinário em mim.
— Kay não entende disso — contestou Fable, rindo.
— Mas darei conta do recado?
— Não sabes dançar?
— Sim — si for só isso... Poderei executar qualquer espécie de bailado.
— Pois é só isso.
— Nada mais? Não... não será preciso representar bobagens, nem nada?
— Nada mais.
— Tres vezes tres, nove! Nove guinéos só para dançar! É uma fortuna! Mas irei
ganhá-la sem fazer coisa alguma.
— Pelo contrario. Vais ganha-la fazendo algo que só tu és capaz de fazer com
perfeição.
— Qualquer pessoa é capaz de dançar.
— Mas até hoje não encontrei quem se compare a ti.
— Mas é tão fácil...
— Para ti. É isso justamente o que te faz preciosa.
A jovem riu-se.
— Preciosa? Eu? Até acho graça.
— Aceitas?
— Dançar não é trabalho — objetou ela.
— Logo verás que sim.
— Como?
— Quando tiveres a obrigação de fazê-lo.
— Estarei ganhando, esse dinheiro?
— Ganhando? Santo Deus! Eu queria ter um por cento sobre tudo que ganhares nos
próximos cinco anos! Se irás ganhá-lo? É bom que saibas que tres guinéos por dia é um
preço ridículo para pagar teu trabalho.
Uma expressão mistificada passou pelo rosto de Robin.
— Muito bem, se é essa a tua opinião é porque é verdade. Sabes que acredito em
tudo que dizes.
— Será que mereço tanto? — perguntou Fable modestamente.
— Se o mereces? Dizes cada absurdo...
— Pensas assim porque ignoras a altura da honra que me concedes. Para mim a tua
confiança vale mais do que se o anjo da verdade viesse, em pessoa, condecorar-me com
o nobre titulo de cavaleiro.
— Cavaleiro? Fazer-te um "Sir"? — inquiriu ela, erguendo para o rapaz dois olhos
cheios de admiração.
Houve um minuto de silencio e súbito:
— Andrew, por que te interessas tanto por mim? Não sou ninguém.
— Talvez seja essa, justamente, a razão. Se fosses alguém — no sentido que dizes
— creio que serias uma pessoa muito interessante. Mas não és ninguém e, assim
mesmo, o mais importante alguém do universo não ousaria comparar-se contigo.
— Ás vezes dás para dizer coisas horríveis — observou Robin. — Não estou bem
certa de ter-te compreendido, mas acho que sim. Muito obrigada.
Discutiram depois o novo emprego e fixaram detalhes. Robin daria inicio ao trabalho
daí a dois dias. O estúdio cinematografico ficava em Tennerly Green, Buckinghamshire, e
Fable combinou levá-la para o serviço em seu carro.
— Andrew, terei que lhe dizer alguma coisa sobre... papai? — perguntou ela de
súbito.
— Nem uma palavra — replicou Fable.
— E será correto, isso?
— Robin! — exclamou o rapaz com uma espécie de angustiada piedade na voz. —
Não há a menor necessidade — acrescentou um minuto depois.
— Está bem. Nada direi, então. Mas se alguém perguntar serei obrigada a falar. Não
posso mentir sobre isso. Não posso!
— Perfeitamente! Mas só se te perguntarem.
— Farei tudo direitinho como recomendaste e te agradeço muito. És extremamente
bondoso. Espero que sejas sempre meu amigo, Andrew.
Ele apertou-lhe a mão num gesto carinhoso e fraternal.
— Poderás dar-me uma receita com a qual eu me possa tornar digno de ser sempre
teu amigo, Robin? — indagou, sorrindo.
Por um longo e suave momento Robin abandonou sua pequenina mão entre os
dedos grandes e fortes de Fable.
— Os homens são as criaturas mais incompreensiveis e diferentes do mundo —
disse ela por fim, com acento vagaroso. — Dizem-nos que somos tudo que existe de
admirável... outros acham que não podemos considerar-nos suas iguais...
Ela parecia abstrata ante o aspecto geral e pessoal do seu problema. Fable, porém,
compreendeu. Uma súbita onda de odio ergueu-se contra Kay em seu coração. Como
ousara o idiota feri-la com semelhante revelação? Mas Robin estava sob uma deliciosa
inconsciencia de que tivesse desvendado qualquer coisa ligada á conversa que tivera
com Hallam. Fable deixou-a nessa inconsciencia, compreendendo que ela estivera mais
pensando em voz alta que falando consigo. Depois de sacudir levemente a mão que ela
mantinha entre as suas, levantou-se.
— Achas que devemos subir e contar tudo ao rapaz? — sugeriu ele.
— A Kay? Vai tu. Tenho que terminar este serviço para Mrs. Quest.
Fable despediu-se e caminhou para a porta. Antes que ele saísse Robin disse
abruptamente:
— Andrew, tu o tratas de rapaz, mas já não é tempo de ter ele se tornado homem?
Fable parou, voltou-se e fitou-a por um momento. Sua resposta foi direta.
— Vamos fazer dele um homem?
— Nós? Tu e eu?
Ele confirmou com a cabeça. Depois riu-se.
— Oh, não sei — tornou. — É muito perigoso a gente querer bancar a Providencia
com alguém. Ele nasceu sob uma estrela tão feliz.
Robin mais uma vez voltou ao ferro.
— Mas ele é muito direito, bem sabes — falou curvada sobre seu trabalho.
— E, por essa razão, muito querido — acrescentou Fable.
— Disso já lhe dei uma prova — murmurou ela quase em surdina.
— Deveras?
Robin confirmou com um movimento de cabeça que fez dançar os caracóis negros
de sua cabeleira.
— Alegra-me sabê-lo, Robin — acrescentou Fable. O tom de sua voz era grave. Fez
uma pausa como se fosse falar, mas saíu sem dizer uma palavra.
Fable foi ao atelier e comunicou a Kay os planos que fizera com respeito a Robin.
Casualmente Mayhew Tearle se achava lá e ouviu toda a historia. Isto trouxe
conseqüências que Fable, com toda a sua imaginação, não poderia ter previsto.
Aquela noite Mayhew Tearle jantou a sós com sua filha, o que muito raramente
acontecia. A maioria das vezes ele jantava no club, ou com amigos. Estes últimos, tinha-
os ele de todas as espécies e Alison nada sabia sobre essas relações. Pouco se
importava com a vida do pai, contanto que este lhe desse liberdade e dinheiro suficiente
para saciar sua sede de luxo. E, até ali, tivera seu desejo realizado, pois Mayhew Tearle
não era homem miserável e não dava importância ao dinheiro, quando o tinha em
quantidade. Pelo contrario, sua vida era cheia de extravagâncias. Fazer alarde de sua
pessoa e de seu dinheiro era uma de suas maiores ambições. Em que empregava ele seu
tempo, e como era feito seu balanço no banco, eram coisas que Alison jamais procurara
saber. Era-lhe bastante que seu tempo ele o passasse longe de si e que o resultado de
seus balanços financeiros fosse, aparentemente, satisfatorio. Entre eles nada havia de
profundo, pois suas naturezas eram puramente superficiais. Viam-se superficialmente,
viviam superficialmente e nada mais desejavam.
Foi, portanto, uma surpresa para a jovem quando, depois de servido o café, livres
por fim da presença do mordomo, ele voltou-se e disse-lhe:
— Estive no apartamento de Kay, hoje, durante o dia.
— É? — exclamou Alison. — Havia mais alguém lá? — acrescentou casualmente.
— Fable — replicou o pai, secamente.
E após um minuto de silencio:
— Alison, como vão as coisas com Kay?
— Do mesmo jeito que sempre estiveram — volveu a outra rapidamente.
Mayhew Tearle mudou bruscamente de atitude.
— Não te faças de tola, minha cara — retorquiu em tom desagradável. — Nada
continua do mesmo modo desde que essa maltrapilha Robin entrou em cena.
Alison sabia que isso era verdade, mas não ousava confessá-lo nem a si própria.
— A pequena é demasiadamente bonita para deixar que as coisas continuassem na
mesma — prosseguiu. — Não és cega e viste perfeitamente o efeito que ela causou.
— Kay jamais pensaria em namorar seriamente uma pequena daquela espécie. Ela
nem sequer pertence á classe social — argumentou Alison, tornando-se rubra de raiva.
— Qual classe, qual nada —- retorquiu Tearle desdenhosamente. — Para um rosto
bonito não existe classe e os homens hão de ser sempre homens. Hoje, porém, fiz uma
descoberta: Fable está enamorado de Robin.
— Quê?!
— Podes crer no que digo.
— Andrew enamorado! Que idéia louca!
— Louca? Não sejas criança, Alison. Ha muito tempo que não tenho uma idéia tão
boa.
— Como? Não compreendo.
— Pois bem; resta apenas que ela corresponda ao amor de Fable, para que teus
problemas se solucionem, não é?
— A solução dos meus problemas não depende em absoluto do que essa infeliz
possa fazer — respondeu Alison obstinadamente.
— Não te fies muito. Não podes deixar uma carinha daquelas perdida no meio de
homens e esperar que as coisas continuem a correr bem como antes. Não é possível.
Acredita no que te digo. Conheço os homens.
Por um minuto Alison quedou silenciosa.
— Muito bem — exclamou ela de súbito. — Onde queres chegar com isso?
— Kay está te namorando? — indagou Tearle de chofre.
A jovem tornou-se rubra.
— Todo o mundo diz que ele o faz abertamente — replicou ela.
— Pois foi coisa que nunca pude notar.
Alison mordeu os lábios.
— A única coisa que consegui observar em tudo isso é que andas como louca atras
do rapaz — continuou Tearle brutalmente.
Alison, de salto, pôs-se em pé.
—- Papai! — exclamou. — Como podes, como te atreves a falar-me desse modo?
Tearle esboçou um gesto de desprezo.
— Senta-te; senta-te e ouve-me — ordenou.
Tremula, a jovem baixou os olhos e obedeceu-lhe. Tearle inclinou-se sobre a mesa
para achegar-se mais á filha.
— Fable contratou a pequena para fazer parte de um certo filme em que ele está
interessado. Parece que pretende fazer dela uma segunda Mary Pickford. E não podemos
negar que a garota tem muitas probabilidades de triunfar. No dia em que isso se der, os
preconceitos de classe desaparecerão; compreendeste-me?
Alison, sem erguer os olhos, sacudiu a cabeça afirmativamente.
— Ela dará inicio ao seu novo trabalho depois de amanhã, sob a proteção de Fable.
Esse serviço veio afastá-la temporariamente do convívio de Kay; deves, portanto,
aproveitar a oportunidade para ganhar terreno. É bom que saibas que isso é da máxima
importância, Alison.
— Conduzir-me-ei da maneira que me parecer melhor! — explodiu ela.
— Faze o que entenderes, mas só te peço que o faças depressa, compreendes? —
volveu Tearle.
— E que tens a ver com isso? — indagou Alison era tom ostensivo e irritado.
— Muito mais do que te parece — retorquiu Tearle. — Repito que deves firmar as
coisas com Hallam o mais depressa possivel. Disseste que era um caso resolvido e,
acreditando em tua palavra, fiz minhas operações, contando certo com um genro rico.
Os olhos claros de Alison dilataram-se de terror; começara a compreender o
significado trágico das palavras de seu pai.
— Que queres dizer? — balbuciou.
— Simplesmente que estou arruinado. Nada mais me resta. Hallam é rico e tem um
pai milionario.
Levantou-se e deu um forte murro na mesa, fixando em Alison um olhar duro.
— Agarra-te a ele e agarra-te bem, pois, do contrario, caíremos para nunca mais nos
levantarmos. O que estou dizendo é tão verdade como estar eu agora diante de ti.
Alison ergueu para seu pai um rosto livido de terror e ambos se olharam fixamente
durante algum tempo.
CAPITULO V
Mayhew Tearle conseguira provocar um verdadeiro pânico no pobre e despeitado
coração de sua filha. A hipotese de que Robin pudesse separá-la de Hallam a
desesperava. O aviso de seu pai, sabia ser exato, e embola lhe custasse muito confessá-
lo a si própria, causara a seu instinto de mulher o mesmo efeito que o primeiro olhar de
Hallam para Robin. Desde o momento em que estes se encontraram, nunca mais tivera
sossego. Não queria dar o braço a torcer, mas era essa a verdade, pois, na realidade, a
atitude de Hallam para consigo estava longe de ser amorosa. Kay convinha-lhe
extraordinariamente. Era riquíssimo e um dia o seria ainda mais. Não se interessava pela
grande empresa siderúrgica, intitulada Hallam & Hallam, da qual seu pai era o proprietário
e isto agradava imensamente a Alison. Não queria um marido que se interessasse por
qualquer coisa além de si própria; teria que se ocupar unicamente em proporcionar-lhe
uma vida de alegrias e prazeres.
Via-se já transformada numa deslumbrante figura do grand monde. Kay, atualmente,
se cercava de gente boemia, mas estava certa de que, com jeito e delicadeza, lograria
conduzi-lo a um meio diferente. Com seu dinheiro, distinção e bom carater, nem uma
porta lhe seria fechada. Por seu lado, ela também poria em jogo sua atividade, seus
atrativos, tudo enfim que fosse necessário para que a vida lhes corresse agradavelmente.
Por que não havia de ser assim, estando casada com Kay? Por que não seria sua
vida um eterno mar de rosas? Estava certa de que isso aconteceria... Desejava-o com
todas as forças de seu egoísmo e de seu amor ao luxo e ao conforto. Não é, pois, de
admirar que se sentisse profundamente aterrorizada ao ouvir suas próprias e mais intimas
aflições descritas brutalmente por seu pai. Mormente sabendo que Mayhew Tearle, a
despeito de seu temperamento rude e grosseiro, possuia o dom de observar
acuradamente os fatos e as pessoas todas as vezes que se tratava de seus interesses
pessoais. Além disso, havia também uma outra ameaça nas palavras de seu pai. A
ameaça de um desastre financeiro. Mas Alison achava quase impossível pensar nisso.
Em sua imaginação via quadros aterradores de absoluto chãos todas as vezes que
tentava considerar seriamente o que significaria a ruina para eles. Via-se vendendo suas
jóias, sem toilettes custosas para usar... vivendo sem empregados e tendo que se
satisfazer com um único colar por semana em vez de sete...
Mas seu espirito não conseguia compreender nada disso claramente. Era-lhe
demasiadamente terrível essa idéia. Assim, pois, foi sob o pavor de que a vida lhe
deixasse de sorrir, que, daquele dia em diante, se dispôs a caçar Hallam. Não podia, não
tinha forças para deixá-lo fugir. Seguiu o conselho de seu pai e apertou o cerco á volta de
Kay, aproveitando a otima ocasião que se lhe oferecia com a ida de Robin para o cinema.
O primeiro contrato de Robin como artista cinematografica certamente não foi o
ultimo. Fable profetizara isso e não se havia enganado.
Teve ela a sorte de ter por seu primeiro diretor um certo Mersey Shale, homem
famoso pela habilidade com que sabia escolher os prodígios entre as centenas de
criaturas que aspiram á gloria do cinema. Chegava a apostar no sucesso das
personalidades promissoras que descobria e mal seus olhos se pousaram na figurinha
delicada e graciosa de Robin, teve a certeza de que se achava diante de uma futura
rainha da arte das sombras. Seu porte mignon, seus traços perfeitos e sedutores, eram
predicados superficiais, mas ele entreviu em Robin o não-sei-que — o inestimável não-
sei-que tão dificil de encontrar; uma personalidade artística e fascinante.
Ela não achou lá muita facilidade em se habituar ao regimen do estúdio. Tudo ali era
tão esquisito... Em primeiro lugar era obrigada a vestir-se no mesmo camarim, juntamente
com mais sete moças; todas essas moças eram "extras" da companhia, Essa
circunstancia fez com que Robin se tornasse um tanto timida. Além do mais eram moças
que conheciam bem a profissão, pois, quase todas, trabalhavam há anos na companhia.
Conheciam, pois, todas as particularidades da arte de fazer filmes e falavam a linguagem
complicada dos estúdios. Desse modo, a maior parte do que conversavam era grego para
Robin. A pobre sentia-se isolada e as extras, em pouco tempo, aumentaram esse
sentimento de solidão, pois, vendo-se incapazes de pô-la á vontade, abandonaram-na
aos seus pensamentos e projetos e foram cada qual para o seu lado. Algumas tomavam-
na por orgulhosa; outras diziam que era timida e insociavel. Contudo, muitas, vendo-a
com os olhos da experiência, notavam em Robin aquilo que Mersey Shale descobrira, e
estas instintivamente a receavam. Robin era uma nova força; algo que vinha ameaçar
suas probabilidades de atingirem um posto mais alto e, portanto, uma inimiga. Que Robin
era extraordinariamente bela, porém, era coisa dificil de negar.
Assim, por diversos motivos, Robin não se sentia bem na cabina do vestuário. Os
que têm alguma idéia do que seja o trabalho do conjunto, ou das multidões, no cinema,
compreendem a sua importância e sabem que, na maioria das vezes, os extras passam
mais tempo esperando, que representando. Dá-se mesmo o caso de esperarem uma
semana inteira, para fazer uma cena que leva vinte minutos para ser filmada. Tudo
depende da organização do estúdio, do tempo, ou do progresso em que se achem as
cenas principais. Por isso Robin passava, ás vezes, longas horas, sentada a um canto da
cabina, vestida de cigana, sufocada pelas pinturas e pomadas que lhe cobriam o rosto, e
ouvindo o incessante tagarelar das companheiras e sem compreender um terço do que
diziam. Sentia-se desajeitada e fora de seu elemento e quase morria de saudade da brisa
agradável de Molesbury, do rumor do grande rio a bater contra a muralha, das velas alvas
sob o sol, e até do cheiro da relva e da lama! Tinha ímpetos de fugir daquela cabina
sempre repleta, onde se sentia tão isolada.
Por outro lado achou que o próprio trabalho não entusiasmava. Shale encontrou
muita dificuldade em dirigi-la, pois a atmosfera artificial do estúdio a desanimava; sentia-
se mal com toda aquela pintura, seus gestos tornavam-se duros e sem naturalidade,
sentia-se tolhida por todo aquele aparato. Ensaiar uma cena era-lhe uma tortura, parecia-
lhe uma coisa inútil, estúpida; só queria dançar no momento de filmar a cena. Shale
resolveu confiar na sua espontaneidade e deu inicio á filmagem. Uma vez os refletores
funcionando com sua força animadora, a musica tocando e a multidão de extras
trabalhando, Robin reviveu, esquecendo tudo, menos o ritmo e a vibração de sua dança;
o sangue ardeu-lhe nas veias e, mais uma vez, tornou-se a Robin da feira; a pequena
Robin selvagem e maltrapilha, que Fable conhecera em Molesbury.
Shale, enxugando o rosto com um lenço, ao terminar o ultimo dia de trabalho de
Robin no estúdio, voltou-se para Fable e disse:
— Faze-me um cenario próprio para ela — uma historia em que possa aparecer na
tela como realmente é, e ainda faremos, da pequena, uma grande artista.
E Fable, cheio de entusiasmo e, devemos dizer, tomado de intensa animação,
escreveu uma historia clara e humana, impregnada de ternura e do mais fino espirito.
Isto veio aumentar o interesse de Robin, despertando-lhe o entusiasmo. A
personagem que tinha de representar lhe parecia mais real, possuía seu próprio
temperamento; suas dores, seus sofrimentos eram-Ihe mais familiares, assim como
também suas alegrias; por isso podia chorar ou rir com uma sinceridade que nada tinha
de artificial. Aquilo não era representar; era, como dizia Shale, a própria Robin refletida na
brancura da tela.
O enredo interessou-a por tal forma que não teve tempo de compreender que estava
ganhando uma invejável reputação como atriz cinematografica. Nunca, porém, se teve em
conta disso. Fora do estúdio, era simplesmente Robin, a maltrapilha; seus triunfos em
nada a alteraram; aliás, compreendia tão pouco a extensão de seus triunfos que se tornou
estrela sem perceber.
Estava fazendo uma coisa que era de enorme importância para si; de muito maior
importância que qualquer fama pessoal: estava ganhando dinheiro. E isso era para seu
pai, para quando ele saísse da prisão. Estava fazendo mais do que podia ter sonhado
fazer.
Fable defendia os interesses de Robin. Esta, por sua vez, só gastava o necessário,
guardando a maior parte para o dia em que seu pai voltasse á liberdade.
Como é natural, ocupada como andava, Kay raramente podia vê-la e Alison se
regosijava grandemente com isso. Quanto á atitude de Robin para com Kay, Fable, que
olhava por ela mais do que ninguém, ainda não pudera compreender. Ela não falava
muito em Kay. Se sabia que ele ultimamente passava a maior parte do tempo em
companhia de Alison, era outra coisa que Fable ignorava. Ele próprio só sabia disto
atraves dos comentarios que ouvia. Se Robin também os ouvira não dava a menor
demonstração disso a Fable, que, não querendo aborrecê-la, nada lhe contou. O estúdio
já lhe fornecia suficientes aborrecimentos para que ele ainda os fosse aumentar.
Havia ainda certos detalhes de seu trabalho, aos quais Robin não conseguia
habituar-se.
É claro que, então, já possuia um camarim só para si e isto lhe facilitava muita coisa,
mas, contudo, restavam-lhe ainda mil dificuldades a vencer. Uma destas podia ser
resumida numa simples palavra: homens.
Como Mayhew Tearle dissera a Alison, não se podia deixar um rostinho como o de
Robin perdido no meio de homens e esperar que nada acontecesse. Como dissera, isso
era impossível; e, dizendo-o, apenas proferira um axioma. Naturalmente, no seu novo
trabalho, Robin entrou em contato com muitos homens. E naturalmente as coisas foram
acontecendo. Por exemplo, o rapaz que representava o papel de um jovem e elegante
perdulário no filme que se estava fazendo, sentiu-se consideravelmente atraído por Robin.
Não era mau rapaz; mas convencera-se da própria beleza e acreditava sinceramente ser
irresistível. Aliás para isso não lhe faltavam motivos, visto que as moças lhe faziam
ridículas demonstrações. Mimavam-no, rodeavam-no, elogiavam seu ultimo gracejo,
ambiciosas de seus olhares que disputavam entre si, fazendo enfim tais tolices que o
estranho era que ele não tivesse uma opinião ainda mais elevada da sua própria pessoa.
Chamava-se Reginald Carstairs e havia uma porção de cenas em que representava ao
lado de Robin, de maneira que estavam sempre juntos. Ora, Robin não o mimava, não o
lisonjeava, não ambicionava seus olhares, não se desmanchava em exclamações ante
seus gracejos, enfim, não fazia coisa alguma do que ele estava habituado a receber de
todas as mocas. Seguiu-se daí que Reginald, a principio, sentiu-se intrigado pela
extraordinária novidade de uma pequena que não fazia tais coisas e, então,
compreendendo que essa atitude era inalterável, e tudo que fizesse não a tornaria igual
ás outras, não pôde conter uma certa irritação.
Um dia, Robin ensaiava uma cena em que teria de dançar como costumava fazê-lo
na feira, onde Fable a vira nela primeira vez. A cena passava-se numa feira semelhante:
alguns detalhes de cenario haviam sido construidos no estúdio, mas as vistas gerais
filmavam-nas ao ar livre. Até a metade do bailado tudo correu bem, mas nesse ponto o
ensaio interrompeu-se para que se discutisse a próxima cena.
Mersey Shale explicou:
— Miss Golden, está dançando no meio de uma roda de curiosos... Foi isto o que
acabamos de filmar. Agora, vamos apanhar a chegada de Carstairs, que entra na feira e
se aproxima do pequeno ajuntamento para saber o que lhe atrai a atenção. A senhorita,
então, dança para este lado — continuou ele, indicando as posições. — Carstairs
consegue atravessar o anel humano que a cerca... Contempla-a... ri... a senhorita olha-o
indignada; bate o pé; ele, então, agarra-a e dá-lhe um beijo...
Robin até ali sacudira a cabeça em sinal de compreensão ás palavras do diretor,
mas nesse ponto encarou Shale com olhar cortante.
— Eis uma coisa que ele não conseguirá — disse ela em tom de desafio.
Shale cravou na jovem um olhar perplexo e depois consultou o manuscrito que
estava em suas mãos.
— Sim, ele o fará. Assim diz a historia — replicou o diretor.
— Pouco me importa o que a historia diga. Não há ninguém neste estúdio que me
possa beijar... — respondeu Robin.
— Mas, Miss Golden, isso faz parte do enredo — protestou Shale.
A experiência ensinara-o a encher-se de paciência, todas as vezes que se tratava de
lidar com Robin. Esta não se dava os ares de importante “estrela”, mas assim mesmo
apresentava algumas dificuldades.
— O enredo terá que se arranjar sem isso — tornou ela.
Shale argumentou, implorou, ameaçou e desesperou-se em vão. Robin,
obstinadamente, sustentava que nada no mundo faria com que se deixasse beijar por
Carstairs.
— Mas não é Carstairs — explicava-lhe Shale desesperado. — É o personagem que
ele está representando; o rapaz dissoluto e perdulário da historia de Fable. Veja se
consegue separar seu espirito da realidade, para uni-lo à ficção...
Nada, entretanto, abalava a resolução de Robin. Não queria ser beijada por
Carstairs e estava tudo acabado.
A discussão durou perto de vinte minutos e, durante esse tempo, os trabalhos
ficaram interrompidos. Robin não cedia e Shale, depois de atirar longe o manuscrito, pôs-
se a passear de um lado para outro, batendo os pés, descabelando-se e maldizendo a
hora em que iniciara aquele ingrato negocio de fazer filmes e descobrir estrelas.
— Mas será possivel que não compreenda que isso é necessário ao enredo? —
berrou ele por fim. — Ele beija-a e a senhorita ganha-lhe o odio eterno, dando-lhe uma
tremenda bofetada no rosto...
— Farei essa parte — retorquiu Robin, condescendente.
— Mas não poderá esbofeteá-lo gratuitamente. Ele terá que fazer qualquer coisa
para provocá-lo — argumentou Shale.
Robin, porém, não podia compreender. A novela de Fable era excessivamente real
para que lhe fosse possivel convencer-se de que tudo era fingido. Carstairs era Carstairs
para si, no filme ou fora dele, e antipatizava-se solenemente contra o rapaz.
A excitação entre os extras era grande e, evidentemente, alguém levara, ao jovem
Carstairs, a noticia da discussão e dos motivos que a causaram, pois ele, que ainda não
saíra de seu camarim, surgiu justamente quando Shale chegava ao auge de seu
praguejar e, colocando-se diante de Robin, fixou o monoculo para fita-la.
— Disseram-me que se opõe terminantemente a deixar-se beijar por mim, Miss
Golden?
Robin fulminou-o com seus olhos escuros.
— Não serei beijada por ninguém — redarguiu ela em tom obstinado.
— Bravo! — exclamou Carstairs com ar satisfeito, muito mais satisfeito do que na
realidade se sentia, pois sua vaidade fora profundamente ferida. — São coisas como essa
que fazem uma companhia cinematografica assemelhar-se a uma grande família feliz!
As jovens extras dessa vez não se atreveram a aplaudir, com os costumeiros
gritinhos, a ironia do rapaz; compreenderam que Shale não estava em condições de
suportar calmamente tais manifestações. Lançaram, porém, olhares risonhos para ò
elegante Carstairs e, silenciosamente, lhe insuflaram encorajamento.
— Além do mais — continuou Carstairs — uma estrela não pode ser estrela sem
exibir, de vez em quando, seu gênio violento e seus caprichos. São as faiscas que
chamam a atenção para sua luz...
— Se o senhor julga que estou procurando exibir-me, está muito enganado —
replicou Robin.
— Exibir-se? Minha cara Miss Golden, não se diz uma coisa dessas de estrelas...
Quando uma estrela procura criar dificuldades, nós chamamos a isso temperamento. Mas
em pessoas menos importantes, não passa de um meio de cair fora...
O tom de suas palavras era de uma insolencia indescritivel e, afastando-se de
Robin, ele correu para Shale; agarrou-o pelo braço e disse-lhe com voz que foi ouvida por
todos os que ali se achavam, embora fizesse menção de falar confidencialmente:
— Isto é o que há de pior nessas atrizes amadoras. Nunca podem apanhar
perfeitamente o ponto de vista profissional. Mas posso suprimir o beijo, desde que nossa
primeira artista é tão pudibunda4... Que me dizes de fazê-la esbofetear-me antes que a
beije?
— Sim, é o que teremos de fazer, acho eu. Queria que Fable estivesse aqui para
convencê-la... Podem chamar-me de sem vergonha, se eu tornar a dirigir uma
desconhecida com a intenção de transformá-la em estrela!
E assim terminou Shale a discussão. Voltou-se e dirigiu-se a Robin.
— Muito bem, Miss Golden, eu me entrego. Carstairs se aproximará de si, o olhar
cheio de intenções, e a senhorita o esbofeteará, antes que ele tenha uma chance de
beija-la.
— Nessas condições estou pronta a iniciar o trabalho — concordou Robin
ingenuamente.
E a cena começou a ser filmada.
Robin dançava; Carstairs atravessou a roda de curiosos e dirigiu-se lentamente a
ela, olhar cheio de intenções, como recomendara Shale.
Esse olhar ele o fazia extremamente bem — talvez sua grande pratica na vida real
tivesse concorrido para que se saísse com tanta perfeição. Shale começou a dar
instruções a Robin.
— Veja-o; pare de dançar... bata o pé... Muito bem! Agora erga o braço e dê-lhe uma
bofetada! — gritou e Robin obedeceu-lhe.
Ergueu o braço e ia desferir a bofetada, mas foi então que Carstairs,
traiçoeiramente, se desviou do plano que ele próprio sugerira, pois, levantando Robin em
seus braços, beijou-a nos lábios repetidamente...
Se esta fora sua intenção, ou si agira sob o impulso do momento, Robin não o sabia.
Nem se importava de sabê-lo. Só sabia que fora traida e estava sendo beijada de um
modo infame e terrivelmente real... Não havia ficção alguma nos beijos com que Carstairs
a ultrajava. Tinha tanta certeza disso, como si ele próprio lhe tivesse confessado...
Beijava-a, não porque isso fosse indispensável ao enredo do filme, mas sim porque queria
fazê-lo; porque entrevira uma oportunidade e resolvera aproveitá-la... Por isso lutou com
todas as suas forças, com todas as energias de seu instinto selvagem, subitamente
despertado.
E como lutou! O filme, os extras, os refletores, Shale, o ruido da câmara, tudo isso
desapareceu de sua consciência, ante a sensação ultrajante daqueles lábios odiosos
sobre os seus.
E Shale, também, esquecera a nova combinação e continuava a filmar... Carstairs
com uma expressão de verdadeiro triunfo nos olhos; Robin com uma fúria real faiscando
nos seus e lutando como uma leoazinha nos braços do rapaz...
— Formidável! — exclamou Shale. — For-mi-da-vel! Assim!... Muito bem! Grupo A,
avançar um pouco! Grupo B, mais á esquerda! Não muito... isso!
4 Pessoa pudica, vergonhosa. Que tem pudor em abundância
— Agora, Carstairs, podes soltar Miss Golden! Solte-a, homem! Miss Golden, afaste-
se!
Carstairs, porém, não a soltava; Robin esmurrava-lhe o peito com seus pequeninos
punhos cerrados. De novo se tornara o pequenino ser selvagem e a ordem que Shale lhe
dera para afastar-se, nem sequer a ouvira. Aquilo não era representar. Aquilo era real.
Homem algum jamais a tratara levianamente sem se arrepender... Já dissera isso a
Hallam, e era verdade...
Os extras que formavam o conjunto começaram a compreender que aquilo era mais
que a simples representação de uma cena. Shale mostrava-se assombrado, Só o
operador continuava imperturbável, virando a manivela da maquina, como si nada
houvesse; mas é que nem Deus é capaz de deter um bom operador, enquanto ele não
recebe ordens de parar.
Quando se aplacaram as chamas de sua ira, Robin lançou um olhar hostil á sua
volta e, correndo para as grandes portas giratorias que davam para o corredor,
desapareceu por tras delas. O jovem Carstairs, rosto esfogueado sob a maquilagem
amarela, procurava-a, encolerizado. Shale também a procurava e, só então
compreendendo o que se passara, atravessou a vasta sala em direção ás portas
giratorias.
Em frente á porta fechada da cabina de Robin, estacou e bateu. Uma voz quase
apagada disse-lhe que entrasse. Ao fazê-lo deu com sua estrela, de pé junto á mesa de
toilette, reunindo tudo que era seu e atirando os objetos para o interior de uma valise
aberta.
— Queria dizer-lhe... — começou Shale espantado, sendo imediatamente
interrompido por Robin.
— Não adianta dizer coisa alguma — replicou ela. — Vou-me embora e acabou-se!
Shale procurou acalmá-la com bons modos.
— Muito bem — exclamou. — Pode ir; não precisa mais trabalhar hoje e pôde ir para
casa descansar... Obriguei-a a trabalhar demais... Amanhã sentir-se-á novamente
disposta e pronta para voltar ao trabalho...
— Não voltarei mais — atalhou ela com lábios firmes.
Shale protestou e tentou agradar-lhe, mas Robin mostrava-se inflexível. Procurou
lisonjeá-la, mas, em resposta, ela continuou a arrumar a mala. Visivelmente desesperado,
deixou-a e voltou ao estúdio. Lá, com grande alivio, encontrou Andrew Fable que acabava
de chegar e saber uma das versões sobre o incidente.
— Que há de verdade em tudo isto? — inquiriu Fable, indo ao encontro do diretor.
— Vai perguntar a Robin — respondeu Shale, demasiadamente contrariado para
dizer mais e, aliás, sem saber ao certo o que se passara, embora julgasse adivinhá-lo.
— Onde está ela? — indagou Fable.
— No seu camarim, arrumando as malas — acrescentou o diretor.
Fable dirigiu-se ao camarim e entrou. Robin recebeu-o com uma expressão
reprovadora nos olhos grandes e brilhantes.
— Oh, Andy! — exclamou ela. — Quando me ofereceste este trabalho de filmes,
disseste-me que eu teria unicamente de dançar, cantar e mostrar-me alegre, ou triste,
segundo o enredo, mas não me contaste que eu teria de ser beijada...
Fable fechou a porta e aproximou-se dela.
— Robin — murmurou calmamente. — Conta-me apenas o que aconteceu, sim?
— Ele beijou-me... Afirmou que não o faria. Mr. Shale disse que não era necessário,
mas ele o fez. E eu não queria ser beijada, Andy; muito menos por um homem daqueles!
— Estás bem certa de que ele não se deixou levar pela cena, ao beijar-te, Robin? —
volveu Fable.
— Qual levar pela cena qual nada — replicou Robin com o vigor de sua linguagem
simples. — Ele beijou-me e foi tudo. Não só uma vez, mas diversas. Essa foi sua intenção
desde o começo. Percebi muito bem! Só porque eu não queria submeter-me! Ele é dessa
espécie de homens. Eu o conheço. As moças tanto se derretem por sua causa que
acabaram convencendo-o de que todas as mulheres se orgulharão de serem beijadas por
ele. E só porque viu que eu era diferente das outras, tomou a resolução de beijar-me e me
beijou! E tu, Andy, nunca me preveniste a respeito desse negocio de beijos, pois, do
contrario, eu te diria que não me era possível aceitar o emprego.
Fable ouviu-a de pé, a cabeça levemente inclinada para fita-la.
— Robin — tornou ele calmamente — lamento de todo o coração o que te
aconteceu. Eu devia ter pensado nisso, mas não me lembrei. Compreendes; não julguei
que isso te parecesse tão real...
— Mas não parecia, era real — atalhou ela.
— Nesse caso Carstairs comportou-se como um cão. Mas, real ou irreal, não haverá
mais beijos nas historias que eu escrever para ti, Robin... Continuarás sendo a pequenina
selvagem adorável e inatingivel que és.
Disse isso mais para si próprio que para Robin, e havia um mundo de ternura em
seus olhos.
— Queres desarrumar essa valise e continuar a trabalhar, minha querida? —
acrescentou Fable.
Robin ergueu os olhos para o amigo. Uma caricia de Fable parecia-lhe sempre algo
tão doce... Não pôde resistir e cedeu.
— Sim. Mas só si prometeres estar aqui sempre — redarguiu ela.
— Está prometido — volveu Fable, apertando-lhe ambas as mãos e agradecendo-
lhe.
Retirou-se, então, para ir falar com Shale. Quando acabou a explicação, o diretor
passou a mão pela cabeça.
— Meu Deus, que susto me passou o diabo da pequena! — exclamou. — Depois de
filmados mais de mil metros de celuloide, com cenas suas, todas perfeitas, ameaçar-nos
de deixar o estúdio! Seria um verdadeiro desastre!
— Muito bem. Vai fazer as pazes com ela. Robin te aprecia muito — tornou Fable.
— E Carstairs?
— Entender-me-ei com ele.
— Obrigado. Dize-lhe que se não respeitar todos os caprichos dela, ponho-o na rua.
— Perfeitamente. Mas, Mersey, não cometas o engano de chamar a isso um de
seus caprichos. É algo muito mais nobre. É parte do pudor instintivo de sua alma de
mulher, portanto deves dar-lhe o devido valor.
Shale era homem de bons sentimentos; provou-o a resposta curta que deu a Fable.
— Isso é tão raro nas moças de hoje que a gente até se engana... — redarguiu ele,
retirando-se para o interior do estúdio.
Minutos depois, voltava para anunciar que estava firmado seu tratado de paz com
Robin.
Fable nunca soube de que maneira isso se dera; mais tarde, porém, Robin
confessou-lhe que achava Mr. Shale excessivamente simpatico; era só questão de
conhecê-lo bem. Feitas as pazes com este ultimo, Fable enviou Carstairs á procura de
Robin com a mesma incumbência. Isto foi bem dificil e Robin nunca chegou a mudar de
opinião sobre Carstairs, com o fizera com Shale. Limitou-se apenas a esta explicação:
— Ele pediu-me desculpas e nada mais tenho a dizer.
E assim terminou o incidente, dando aso a que a filmagem da pelicula prosseguisse
com a máxima tranquilidade.
Mas aconteceu algo que obrigou Robin a esquecer tudo aquilo; algo que a levou
novamente de um modo brusco e inesperado para junto de Alison Tearle e de Kay.
CAPITULO VI
Alison, para sua grande alegria, encontrara Kay nesse estado de animo dócil e
tratavel que se apodera da gente, quando a ausência de alguém que nos habituáramos a
ter sempre ao nosso lado, desperta em nosso intimo um sentimento de vaga e
desconfortável solidão. Temos a impressão de que a vida saíu levemente dos eixos e de
que, tanto o trabalho, como as distrações e o repouso, não são interditos; o único recurso
é não dar a nós mesmos tempo para pensar, procurando vencer as horas carregadas de
tédio que, por seu turno, ameaçam vencer-nos.
Tomado desse estado de espirito, era agradável a Kay ter Alison ao seu lado,
fazendo-lhe todas as vontades, distraindo-o e arrastando-o para um sem-numero de
divertimentos — chás, teatros, bailes e ceias.
— Oh, querido Kay, não creio que haja aqui outro rapaz que dance como tu —
suspirava Alison languidamente, entregue aos braços vigorosos de Hallam, enquanto
rodopiavam sobre o soalho reluzente do Hewitt's Club, onde se podia obter uma ceia
finíssima, ouvir otima musica e dançar aos acordes de um "jazz" magnífico.
— É um sonho de perfeição ritmica, ser guiada por ti — acrescentou ela.
Kay riu-se ante aquela extravagante lisonja.
— Que tolice! — exclamou, embora no intimo estivesse satisfeito.
A lisonja fazia-lhe bem, no seu atual estado de espirito. Robin nunca lisonjeava.
— Temos passado uns dias adoráveis ultimamente, não achas? — continuou ela. —
Tenho me divertido tanto! És simplesmente encantador, quando queres, Kay.
— Quando quero? — repetiu ele, bem humorado. — E não o quero sempre?
— Não — sussurrou Alison. — Algumas vezes, não. E, então, Kay, sabes o que
sinto?
Ela tinha um jeito muito gracioso de erguer levemente as palpebras com uma
expressão ingênua. Isto era de grande éfeito, especialmente sobre um homem que não
estava disposto a procurar a verdade, mas tentava somente distrair-se, para esquecer um
sentimento muito intimo, que, nem de longe, podia compreender. E, assim, Alison obteve
o efeito desejado.
— Não, minha carinha de anjo. Conta-me; que sentes, então? — volveu ele,
apertando-a levemente contra si.
— Sinto que... não te importas comigo como antigamente — murmurou Alison. —
Tenho a impressão de que alguma coisa veio colocar-se entre nós, tornando-nos
indiferentes um para o outro. E isso faz com que eu me sinta tão infeliz, Kay. Tão... tão
terrivelmente infeliz, querido!
O tom acariciante de sua voz era irresistivel. Kay sentiu-se — ou julgou-se —
comovido.
— Mas, Alison, eu não mudei — nem um pouquinho. — Continuamos a ser os
mesmos otimos camaradas de sempre, não é?
Alison ficou desapontada. Queria ser mais que uma otima camarada.
— Não me faças sentir isso, peço-te — murmurou ela com voz efetivamente tremula.
— Não me faças senti-lo, Kay. Isso... isso fere fundo demais.
Deu um leve suspiro e voltou para um lado os olhos ingênuos. Artimanhas,
certamente, e, contudo, já estava tão habituada a usá-las que chegavam a lhe parecer
sinceras. E, de fato, Alison amava Kay tanto quanto é possível a uma criatura egoísta. Se
a ameaça de ruina das palavras de seu pai lhe fizera compreender desesperadamente
que as coisas precisavam resolver-se o mais cedo possível, foi porque a acovardava a
idéia da pobreza e desde a noite em que seu pai deixara calmante seus olhos a mascara
de bondade que até ali usara, pusera-se também a receá-lo.
Se naquele momento arriscava no jogo eterno do amor, por dinheiro e por medo á
vida, fazia-o também pelo impulso de seu coração e porque amava.
— Não penses mais nisso, Alison. Sabes que é uma tolice. Sou o mesmo; sinto a
mesma coisa. Seremos sempre, sempre amigos, querida — afirmou ele.
Amigos, sempre amigos — sempre isso e nada mais! Revoltada, Alison reconhecia e
confessava a si própria a verdade daquilo. Não havia palavra, contato ou olhar, com que
pudesse arrancar de Hallam a prova de ternura que ambicionava. E, todavia, naquele
instante ele parecia á beira de uma certa emoção bem mais profunda do que sóe
provocar uma simples amizade.
Onde estaria a chave do coração de Kay? Se pudesse encontrá-la ao menos!... Mas
se nem ele próprio ainda a descobrira!...
Seu desejo era chorar de desapontamento, mas compreendia que isso seria pior.
Sorriu, portanto, com a maior doçura que lhe foi possível afetar. Por um segundo ou dois,
Hallam tomou todas as precauções de defesa contra os encantos de seu par; contra a
fragrancia perigosa de seus cabelos graciosamente penteados e o perfume inebriante que
emanava de seu corpo.
Em resumo, por um segundo ou dois, tornou-se um homem inquieto e entediado,
que perguntava a si próprio se não teria encontrado, enfim, algo suficientemente doce e
agradável para acalmar sua inquietação e matar-lhe o tédio. As palavras de amor que
Alison ansiava por ouvi-lo pronunciar, jamais estiveram tão junto de seus lábios. E se ele
não procurasse averiguar antes, que motivos possuía para sentir-se inquieto, aborrecido e
dominado por toda a sorte de sensações absurdas, talvez as tivesse dito.
Mas essas reflexões interessaram por tal forma seu espirito que o momento passou,
o impulso morreu e as palavras continuaram impronunciadas.
Era tarde quando acabaram de dançar; mais tarde ainda ao terminarem a ceia e
batia meia-noite quando Kay levou para casa sua companheira.
— Vamos andar — propôs ela, pousando a mão no braço de Hallam. — A noite está
tão linda e eu tão sem sono... Vamos, Kay?
— Tua sugestão não é má — retorquiu Kay, a quem a idéia de ver terminada uma
noite tão feliz também desagradava.
Alison fora a mais adorável das companheiras, aquela noite; tão feliz em sua
companhia e dando tanto valor á sua amizade... Tinha o dom de deixá-lo contente
consigo mesmo; algumas pequenas — Robin, por exemplo — davam-lhe a sensação de
que talvez, no final de contas, ele não fosse um especimen humano tão perfeito como
outras o faziam julgar.
Kay gostava de estar satisfeito consigo mesmo. Não chegara ainda ao ponto em que
se consegue ver e avaliar a própria conduta.
E assim caminhavam. Por acaso passaram pelo atelier de Kay. Ao chegarem á
esquina da rua, o auto de Fable, que trazia Robin para casa, surgiu na esquina seguinte.
Um pequeno acidente no trajeto do estúdio para Chelsea causou-lhes grande atraso e,
por isso, chegavam tão tarde.
Robin desceu do carro, disse boa-noite a Fable e correu em direção á larga entrada
do prédio. Fable deu marcha ré e o auto desapareceu numa curva.
Kay estava longe demais para reconhecer o carro, pois a rua não primava pela
iluminação e Alison achava-se demasiadamente absorvida na contemplação de Hallam
para reparar em qualquer outra coisa. Ao chegarem á porta do prédio Kay fez menção de
continuar o passeio, mas Alison fê-lo parar.
— Kay, eu queria ver o atelier á noite — só uma olhadinha da porta. Deixas? Nunca
pude vê-lo á noite, a não ser em dias de festa.
— É tarde demais — protestou Kay. — Meia-noite passada.
— Só uma olhadinha, Kay; seria assim tão impróprio?
Hallam riu-se.
— Mas não há o que ver lá dentro.
— Oh, mas me agradaria tanto... Eu quero, Kay. Já me resolvi a entrar — insistiu ela
meio zangada.
— Não, Alison. Não devo permiti-lo — replicou Kay. Mas, subitamente, Alison deu
uma corrida e escalou agilmente os degraus da entrada. Ele seguiu-a, um tanto
contrariado.
— Alison! — chamou, procurando abafar a própria voz, mas a moça já estava no
meio da escada que levava ao apartamento.
Robin, que se dirigia aos seus aposentos, ouviu a voz de Kay e estacou com o
coração aos pulos. Impulsivamente, voltou ao topo da escada, no fim do longo corredor
que sabia do hall. Mas quando, do canto sombrio em que se achava, divisou a figura de
Alison já no meio da escada, envolta num vestido de cetím rosa e numa elegante capa de
baile dourada, que brilhava á luz do hall, ficou imovel onde estava.
Não sabia o que Hallam dissera; ouvira apenas sua voz e recuou, gelada ante a
idéia que lhe raiara na imaginação.
— Com toda a certeza ele tem passado todo o tempo com Alison, ultimamente —
pensou.
Kay subiu a escada atras de Alison, mas esta não se deixava alcançar e dançava
diante do rapaz de um modo tentador. Robin ouviu-o dizer:
— Alison, por favor, sê prudente. É por ti mesma que falo, não por mim.
Mas Alison, em resposta, ria-se dele.
— Oh, Kay; nunca pensei que fosses tão timido! — Alison alcançou a porta do atelier
antes de Kay. Foi em vão que este ultimo lhe suplicou que voltasse; ela insistiu em o ver
antes.
Com relutância, Kay tirou a chave do bolso e abriu a porta, dizendo:
— Bem; só uma olhadinha, então...
Mas, uma vez a porta aberta, Alison escancarou-a e entrou pelo atelier a dentro em
meio de mil exclamações.
— Oh, como fica lindo á luz da lua. Oh, Kay, nunca vi um lugar tão adorável...
desejaria viver aqui sempre, sempre!
— Alison, não sejas louca! É preciso que voltes para tua casa! — advertiu Kay, um
tanto irritado.
Subitamente a atitude alegre da jovem desapareceu. Aproximou-se dele, palida sob
o luar, pousou-lhe as mãos nos ombros e fitou-o nos olhos.
— Kay — murmurou ternamente — não me leves embora, ainda. A noite está
adorável; deixa-me aproveitá-la por mais dez minutos. Kay, sinto-me tão... tão
miseravelmente só...
Para maior espanto de Kay, ela rompeu em pranto, apoiando a cabeça encantadora
contra seu peito.
Hallam procurou livrar-se dos braços alvissimos que o enlaçavam; tentou acalmá-la,
mas ela o apertava desesperadamente contra si. Ouviu, então, ruido de passos que
saíam do apartamento que ficava sobre o seu. Sentiu passos na escada que trazia ao seu
andar. Iriam vê-los, forçosamente. Com o pé, conseguiu empurrar a porta; esta, porém,
fechou-se ruidosamente.
Alison assustou-se; ergueu a cabeça e lançou-lhe um olhar todo interrogação.
— Não foi nada — explicou ele em voz baixa. — Tive de fechar a porta. Alguns
inquilinos do prédio vinham lá de cima; não podiam deixar de ver-te.
— Oh, Kay, acho que não me importaria si me vissem aqui! — exclamou ela chorosa
— Sinto-me tão horrivelmente infeliz... Não imaginas como as coisas têm sido cruéis para
mim, ultimamente.
— Que coisas? — indagou Kay, sentindo-se um tanto ridículo, de pé ali, com Alison
agarrada a seu pescoço.
— Oh, tudo... nada... não sei... tenho a impressão de que vou enlouquecer esta
noite, Kay — balbuciou. — Papai parece que não... não me compreende e eu não tenho
mais ninguém, ninguém, no mundo. Sinto-me num abandono desesperador...
O que havia de sinceridade e fingimento em suas palavras, nem a própria Alison
poderia dizer.
— Tudo parece errado, ás vezes — prosseguiu ela. — Rio e canto; meu coração,
porém, não cessa de chorar. Nunca se dá isso contigo, Kay? Mas não; está claro que
não; és um homem. Os homens não podem sentir, como nós sentimos.
— Como não? — interrompeu Hallam com voz um tanto rouca, pois Alison fizera
uma pergunta á qual lhe era fácil responder, naquele momento.
— Também tu te sentes solitário e infeliz, querido? — volveu Alison ternamente.
— Oh, não é bem isso. É um sentimento que não compreendo bem — replicou
Hallam, rindo, quase envergonhado. — Coisas que eram alegres tornaram-se tristes;
sinto-me mal e não conheço, nem descubro o “porque” dessa sensação de mal-estar.
— Tenho pena de ti, Kay — murmurou a jovem com voz macia e acariciante.
Era chegada, enfim, a sua oportunidade, pensou. Compreendia claramente. Tirara
um acorde de si própria e conseguira arrancar do coração de Kay o eco desejado. Só, em
um recinto vagamente iluminado pelo luar, com uma pequena bonita a soluçar em seus
braços, um homem não se detêm para saber si a nota que ouviu foi tão sincera como o
eco que partiu de seu intimo. Todas essas reflexões cruzaram o espirito de Alison. Aquela
era a sua oportunidade. Talvez a ultima; era, pois, necessário aproveitá-la. Levantou um
pouco mais os braços até rodear o pescoço de Hallam; juntou o rosto com o dele. Se Kay
resistiu, sua resistência foi fraca.
— Kay — sussurrou ela quase num suspiro — não será possivel... nos consolarmos
mutuamente? Conhecemo-nos, compreendemo-nos perfeitamente e... uma grande
simpatia nos une.
— Sim, sim — replicou Hallam, procurando afastar de si aqueles braços que
pareciam tão cheios de carinho e prometendo a si próprio não perder a cabeça. — Tens
sido a doçura em pessoa — continuou ele. — A... a noite de hoje foi adorável, Alison
querida, mas é tão tarde... precisas ir, minha cara amiguinha, precisas...
A jovem recuou com uma exclamarão de sincera dor.
— Oh, Kay! — foi o grito que deixou escapar. Não lhe fora possivel ocultar o choque
que aquela frase lhe causara, retornando aos lábios de Kay, para ferir seu amor, sua
vaidade e fazê-la sentir que toda a emoção que manifestara fora inútil. Justamente no
momento em que suas esperanças eram maiores, ouvia-o repetir que ela não passava de
"uma cara amiguinha"; apenas isso e nada mais.
— Kay, jamais compreenderás! — acrescentou, a voz tremida de sincera emoção.
Livre dos braços que o comprimiam, dos olhos e dos lábios suplicantes da jovem,
qualquer emoção que acaso houvesse despertado em Kay, desapareceu.
— Só compreendendo, Alison, é que fui um louco ao permitir que entrasses aqui, a
uma hora destas — retorquiu ele calmamente. — Vamos, querida, deixa-me levar-te para
casa.
Contudo ela não o atendeu. Deixou escorregar dos ombros a pequenina capa
dourada, que foi formar um circulo de reflexos de ouro á volta de seus pés, e ajoelhou-se
sobre ela, ocultando o rosto com as mãos.
— Sinto-me só, infeliz... desgraçada mesmo... e não tens dó de mim... dizes
somente que preciso voltar para casa — soluçou ela.
O terror, provocado pela compreensão de que, na realidade, não lhe era possivel
comovê-lo, de que sua confiança com respeito a ele não passava de um produto de sua
imaginação, determinou-a a precipitar os acontecimentos, sem dar atenção á voz dos
próprios instintos de reserva e pudor. Ia perdê-lo — perdera-o talvez — sob o ponto de
vista emocional. Por isso se dispunha a tudo; o aviso de seu pai ficara gravado em letras
de fogo na sua lembrança e, assim, era-lhe impossivel abandonar aquela oportunidade.
Tudo isto acrescentado á sua fúria de mulher desprezada, levou-a ao desespero.
Chorou, reprovou-o, falou-lhe de sua infelicidade e, passada sua primeira confusão,
Kay ajoelhou-se ao lado dela tentando, com bastante falta de jeito, acalmá-la; ainda que
envergonhado e reprovando a própria insensibilidade, ante as acusações que Alison lhe
fazia, não pôde conter uma certa desconfiança de que aquela cena não era verdadeira.
Mais uma vez esteve prestes a proferir as palavras que Alison ansiava por ouvir de
seus lábios. Não por que as sentisse sinceramente, mas porque, no arrependimento
momentâneo, seria capaz de dizer qualquer coisa, para pôr um termo ao incidente. Não
sendo nem cego nem surdo, era-lhe impossível deixar de compreender que Alison estava
a lhe fazer uma frenética declaração de amor.
Subitamente em meio da confusão de suas vozes, ergueu-se um novo som. O som
de uma tosse alta e claramente distinta e de passos pesados sobre a escada de pedra.
Alison pôs-se de pé, uma expressão de terror no rosto livido.
— É papai! — exclamou a meia voz.
Hallam assustou-se ante o pavor que se estampava em seu olhar.
— Mas ele compreenderá. Não irá pensar... — começou com um sentimento quase
de alivio.
Ela, porém, interrompeu-o.
— Ele me amedronta, Kay. Por que viria aqui se não estivesse zangado? Kay, faze
qualquer coisa. Não deixes que ele me veja. Não o deixes encontrar-me aqui. Estou com
medo.
E de fato estava. Hallam reconheceu que a jovem se achava realmente aterrorizada.
— Esconde-me! Não deixes que ele me veja! — suplicava ela com voz enrouquecida
pelo pranto. Tomada de súbito pânico, cega pelo terror, apanhou a capa e correu para a
porta que ficava no fundo do atelier.
— No meu quarto de dormir, não! — exclamou Kay, seguindo-a. — Alison! Espera,
aqui — é melhor. Não há mal nenhum na tua presença aqui. Ele acreditará. — Mas a
jovem desaparecera no interior do quarto e fechara-lhe á porta na cara. Só lhe restava,
pois, arriscar a representação de uma comedia. Acendeu apressadamente a luz e
apanhou um livro. Mal fizera isto, alguém bateu á porta.
Ele abriu-a, com o livro na mão e Mayhew Tearle entrou agitadamente, examinando
com os olhos todos os cantos do atelier.
— Boa-noite — disse Kay. — Em que poderei...?
— Onde está minha filha? — indagou Tearle violentamente, cortando-lhe a palavra.
— Alison? Porque julgou que ela estivesse aqui?
— Sei que ela está aqui. Que significa trazê-la aqui a estas horas da noite?
— Como vê, sir, ela não se encontra no atelier, — protestou Kay.
— Então onde está?
— Não a encontrou em casa? — perguntou o rapaz, tornando-se levemente rubro.
— Não — replicou Tearle. — E tu bem sabes disso. Ela está aqui. Se não a vejo no
atelier é porque se acha em qualquer outro compartimento.
— Mas eu lhe garanto, sir...
— Não me garantes coisa alguma, Kay. Foste um desgraçado, um canalha, atraindo
ao teu apartamento uma moça inocente como Alison, a estas horas da noite.
Hallam mordeu os lábios para conter as palavras que ardia por dizer.
— E já que estamos falando de homem para homem, é bom que saibas que estou
farto de aturar este teu “chove-e-não-molha” com minha filha — continuou Tearle. —
Estás destruindo a sua reputação. Isso vem comprometê-la seriamente e não posso
permitir semelhante coisa. Compreendes?
— Destruir sua reputação? — repetiu Kay. — Não, sir, não compreendo.
— Estás sempre junto de Alison; ela é vista em toda parte contigo. Toda gente diz
que vocês dois se vão casar e já começam a perguntar por que nunca se realiza esse
casamento. Não vejo o fim disto e minha paciência esgotou-se. Nem um sopro de
escândalo lhe manchara o nome antes de te conhecer.
— Pode dizer o que quiser, sir, mas sempre andei com Alison na sua frente e certo
de que isso não lhe desagradava. Nada fiz ás ocultas. Até aqui o senhor nunca se
lembrou de expressar seu desagrado. Se acha que sou indigno da confiança de uma
moça direita, é um triste juizo que faz de sua própria filha, pois julga que sua noção de
decência não é suficiente para protegê-la. E fique sabendo que Alison jamais necessitou
de proteção, em minha companhia — explodiu ele.
— E que me dizes do que fizeste esta noite? — perguntou Mayhew Tearle —
representando admiravelmente a indignação paternal. — Sabes que já é quase uma hora
da madrugada? Isto lá é hora de uma moça visitar o apartamento de um homem, sem que
alguém a acompanhe? Acaso pretenderás dizer-me que uma menina meiga e correta
como Alison seria capaz de fazer isso, sem que alguém a tivesse persuadido? Conheço
muito bem minha filha. Conheço-a e nada me fará crer que ela tenha feito uma coisa
destas por sua vontade.
Sua voz tremia de comoção. Subitamente cruzou o espirito de Kay o pensamento de
que aquilo não correspondia ao terror que Alison manifestara á aproximação do pai. Havia
algo muito estranho naquilo. Esta idéia, porém, não teve tempo de tomar, no espirito de
Kay, uma forma definida. A atitude de Tearle tornou-se de novo violenta.
— Insisto em dar uma busca nos teus aposentos.
— Escute-me, sir, nada fiz que justifique sua atitude. Juro-o.
— Então não te importas que eu examine teus aposentos?
— Mas isso é um insulto! Mais á sua filha que a mim — exclamou Kay desesperado.
Ceus! Se aquele homem enfurecido encontrasse Alison em seu quarto de dormir!
— É inútil continuares a mentir — volveu Tearle energicamente. — Quando eu ia do
club para casa, há pouco, encontrei um amigo que me disse ter visto entrares aqui com
Alison.
— Que! — exclamou Kay, recuando um passo.
Tearle compreendeu que a flecha atirada conseguira o efeito desejado.
— Essa pessoa estava no fim da rua, quando vocês entraram.
— A essa distancia como lhe seria possivel identificar a moça que me
acompanhava? — contestou Hallam, agarrando-se aquele miserável argumento.
— Admites, então, que havia uma moça contigo?
— Não vendo motivos para submeter-me a um julgamento, não admito coisa alguma
— retorquiu Hallam.
— Teu tom provou-o suficientemente. Estás mas é disfarçando, fugindo ás minhas
perguntas. Não ousas dar-me uma resposta direta. O amigo a que me referi sabia que se
tratava de Alison, portanto era seu dever avisar-me. E, por Deus, Hallam, espero por uma
reparação.
— Reparação? — repetiu Kay, alarmado.
— O nome de minha filha anda de boca em boca. A sombra da duvida paira sobre
sua reputação de moça direita. A voz do escândalo ameaça-a. E tu és a causa disso.
Como homem de honra, qual é a reparação que te resta propor?
Durante algum tempo seus olhos se encontraram em silencio.
— Eu o compreendo, sir —- disse por fim Kay com toda a calma.
Fez uma pequena pausa.
— Permite que eu pergunte a Alison se ela quer casar comigo?
O ódio de Tearle evaporou-se como por encanto.
— Meu rapaz, eu sabia que eras um homem de honra! Eu sabia que podia confiar
em ti! Sabia que compreenderias qual a única reparação que te restava.
— Essa palavra não me agrada — advertiu Kay lentamente. — Nada fiz para dever
uma reparação, nem sequer forneci motivos para um escândalo, mas si Alison quiser dar-
me essa honra, isso o satisfará?
— Preciso levar minha filha para casa, minha pobre e assustada filhinha. Mas nem
uma palavra saírá de meus lábios, Kay, com respeito ao que chamaremos esta inocente
indiscrição; nada mais será dito. Amanhã conversaremos sobre a questão de teu... de teu
casamento com minha filha, estabelecendo então as bases do contrato.
— Em primeiro lugar eu terei que pedir a permissão de Alison -— insistiu Kay um
tanto impaciente.
Teve a impressão de que Tearle precipitava singularmente os acontecimentos.
— E tens receio que ela recuse tua oferta? — perguntou Tearle com um sorriso
estúpido. — Se é assim, pergunta-lhe já; dize-lhe que ela não será repreendida e
deixaremos resolvido isto sem mais demora — continuou.
— Mas já lhe disse que ela não está aqui, sir! — repetiu Kay novamente alarmado.
Mas o intuito de Tearle era encontrar Alison ali e confrontá-la com Kay de maneira
que não restasse ao rapaz uma única saída. Pouco lhe importava que Alison tivesse
sabido com Hallam, mas quando, por acaso, veio a saber que sua filha entrara com
Hallam no atelier, decidiu-se imediatamente a tirar partido disso. Até aqui seus intentos
haviam logrado completo êxito — forçara Kay a prometer-lhe uma reparação. Kay
cumpriria sua palavra. Sabia-o. Mas desejava que o assunto ficasse definitivamente
decidido. E foi essa extrema astucia que lhe veio dar com os planos por terra.
— Kay — disse ele com energia — devo insistir contigo para que me digas toda a
verdade. Se não o fizeres terei que verificá-la por mim mesmo.
Com um movimento brusco empurrou Kay e correu para a porta que ficava ao fundo
da sala.
Kay seguiu-o consternado. Mas não conseguiu evitar que Tearle abrisse a porta.
Este ultimo escancarou-a com um gesto dramático, tateou a parede em busca do
botão eletrico e, encontrando-o, inundou o quarto de luz.
Kay soltou uma espécie de grunhido, controlou seus impetos e estacou com os olhos
arregalados pelo espanto. Além, no centro do quarto, as mãos comprimindo o peito,
estava Robin.
Esta ergueu lentamente a cabeça e encarou Mayhew Tearle.
Tearle recuou um passo, boquiaberto. Tivesse ele virado a cabeça e olhado para
tras e perceberia que o espanto de Hallam não era menor que o seu. Mas, por cima de
Tearle, os olhos de Robin pareciam irradiar um aviso silencioso e diante disso Hallam
reprimiu a exclamação que por pouco lhe escaparia dos lábios.
A voz de Tearle foi a primeira a quebrar o silencio.
— Com que então era Robin, hein?
Um rápido “não” subiu aos lábios de Kay, mas este conseguiu conter-se. Não
poderia negar que ela estava ali; e negar que Robin estivera todo o tempo no quarto seria
trazer de novo á baila a questão de Alison. Senhor! Que situação! Se abrisse a boca para
defender uma das moças faria caírem as suspeitas sobre a outra.
— Seja como for — balbuciou ele por fim — o senhor está vendo que não podia ter
sido Alison.
Tearle voltou-se, compondo as feições grossas e pouco atrativas sob a mascara da
sua habitual suavidade.
— Vejo realmente que não podia ter sido Alison — disse ele com cortesia quase
exagerada.
No intimo sentia-se furioso e encolerizado contra Kay; mais ainda contra si próprio
por ter insistido em abrir aquela porta. Esperando assim forçar Kay a casar-se com Alison,
não fizera mais que perder definitivamente a primeira cartada no jogo que tentara. Mas
escondeu esses sentimentos e, com um ar de grande dignidade, caminhou para a porta;
desejou a Kay uma boa-noite e saíu.
Kay bateu a porta com incontida irritação.
— Agora, que demônio quererá ele insinuar com essa atitude? — pensou consigo
mesmo, voltando ao atelier com a sensação de fraqueza que nos provoca um brusca
reação.
Robin passou para o atelier e Kay a encontrou já no meio da sala.
Pararam, fitando-se um ao outro em silencio.
— Robin! — exclamou ele.
— Então, Kay? — replicou Robin.
— Que aconteceu? Estou completamente estupefato.
— Vi quando subiste com Alison. Ouvi quando lhe suplicavas que te deixasse levá-la
para casa e a maneira pela qual ela se recusou a teu pedido. Não sei por que, isso me
preocupou. Não podia dormir. E, quando escutei a tosse de Tearle, tive um certo
pressentimento de que algo ia acontecer.
— Sim?
— Vim cá em cima e ouvi-o acusar-te de estares escondendo Alison em teu quarto.
Entrei então ali, pela porta do corredor. Alison estava escondida atras do guarda-roupa,
batendo o queixo de pavor. Disse-lhe que saísse do quarto e não fosse idiota.
— E por que não saíste também?
Ela o fitou com uma expressão grave nos olhos negros.
— Ouvi quando ele te fez prometer que... te casarias com Alison — explicou Robin
lentamente. — E eu não acreditei que houvesse algum motivo que te obrigasse a isso...
— Está claro que acertaste — aparteou ele rapidamente. — Bom Deus, Robin, que
espécie de canalha julga Tearle que sou?
Robin não respondeu a isso e continuou:
— E como eu não estivesse absolutamente certa de que havia uma razão para te
casares com Alison, pensei em dar-te uma chance de não o fazeres... Uma chance de te
livrares disso, se quiseres...
Só então Kay compreendeu a extensão do alivio que lhe causava saber que não
mais teria de pedir Alison em casamento para cumprir sua palavra.
— Foi o único meio que encontrei — acrescentou Robin.
Kay aproximou-se mais dela.
— Robin, tu me salvaste, decididamente tu me salvaste — disse ele, sinceramente
agradecido. — E tambem a Alison — acrescentou rapidamente. — Bem sabes que ela
não deseja casar-se comigo.
Robin, porém, não se interessava por Alison como por Kay.
— Pensei somente em ti, pois achei que, naturalmente, não desejarias casar com
ela.
— E não quero mesmo — confessou Kay. — Não pensei ainda em casar-me. Mas,
Robin, tu te arriscaste a que Tearle pense, de ti, o mesmo que parecia julgar de Alison.
— Parecia? Pretendia, é o que queres dizer — corrigiu ela, arqueando ligeiramente
os lábios.
— Também tu não achaste qualquer coisa esquisita na atitude dele?
— Se achei? Tive plena certeza. E mais certa fiquei quando meus olhos puderam
vê-lo.
Havia um intenso desdém na expressão e no tom de Robin.
— É? Mas por que, Robin? Ele sempre pareceu um homem tão bom.
— Não a mim.
— Que achas, então?
— Queres perguntar com isso o que penso dele?
— Sim.
— Um scroc5 é o que ele é.
Mas os Tearle eram amigos de Kay havia muito tempo, para que ele admitisse
prontamente essa hipotese. Contudo, suas suspeitas estavam despertadas. A atitude de
Tearle estivera longe de ser satisfatoria.
— Eu... não estou bem certo — balbuciou ele vacilante.
5 Sujeito que se apropria dos bens de outrem por manobras fraudulentas
E, tomando nas suas uma das mãos de Robin, continuou:
— Não sei que te hei de dizer, querida; como agradecer-te. Mas te sou grato de todo
o coração.
Robin fitou-o com um sorriso muito leve.
— Não precisas agradecer-me, Kay — disse-lhe delicadamente. — Boa-noite.
E, com estas palavras, dirigiu-se á porta, abriu-a e retirou-se.
CAPITULO VII
Mayhew Tearle entrou como um raio, pelo quarto de Alison a dentro, depois de uma
quase imperceptível batida na porta. A jovem estava deitada e, alarmada, sentou-se na
cama, acendendo rapidamente a lâmpada da cabeceira, os olhos muito abertos e
medrosos, mas com seu plano já traçado.
— Que é? — perguntou ela prontamente.
— Onde estiveste? — indagou Tearle.
— Dormindo, há uma hora mais ou menos — replicou ela com toda a calma. — Não
sabes por acaso que horas são? — acrescentou.
Tearle, porém, se esquivou a essa pergunta.
— Quando deixaste Hallam?
— Oh, faz quase um século.
— Onde te separaste dele, quero dizer.
— Ele me pôs num taxi próximo de King's Road. Dei umas voltas e vim para casa. —
Mentia com facilidade e não despregava os olhos do rosto de seu pai, para ver se este
acreditava em suas palavras — Por que, papai?
— Estragaste com todo o negocio, isso é que é — disse-lhe ele furioso. — Não o
apanharás agora. Deixaste-o escorregar de tuas mãos, tola.
Pai e filha olharam-se por um momento.
— Deixei-o escorregar? Que queres dizer? — perguntou Alison, por fim.
— É o que te disse. Fui ao atelier de Hallam...
— Á minha procura?
— Sim. E já estava tudo arranjado.
— Pelo amor de Deus, explica-te. Estava tudo arranjado? — repetiu ela com uma
irritação nervosa.
— Para ele se casar contigo. Nome comprometido, reparação, homem de honra, e
tudo o mais.
— Oh! — murmurou Alison com voz apagada, mergulhando novamente em seus
travesseiros. — Então tu querias encontra-me lá... no atelier? Era... esse o teu plano?
Só então ela compreendeu que o medo que seu pai lhe inspirara só servira para
desviá-la da realização do seu maior desejo. Se tivesse ficado e deixado que ele a
encontrasse no quarto de Kay! Enrubesceu ante os próprios pensamentos, consciente de
que estes eram indignos. Mas, obsecada por seu amor a Hallam, seu coração encheu-se
de amargo remorso ao ver que estragara os planos de seu pai. Pelo menos eles teriam
conquistado Kay para si.
Em meio destes pensamentos, chegou-lhe novamente aos ouvidos a voz de seu pai.
— E tudo que encontrei foi aquela miserável Robin — prosseguiu ele. — Deste-me
um tombo; fizeste-me fracassar de um modo ridículo. Mas ainda hei de encontrar-me com
ele.
— Papai! — exclamou ela. — Que vais fazer?
Não obteve, contudo, a menor resposta, pois Tearle se retirou do quarto sem mais
uma palavra.
Ali ficou Alison, com o coração a bater furiosamente. Apagou a luz e, na escuridão
do quarto, ficou a pensar com os olhos muito abertos. E havia muita amargura em todos
os seus pensamentos.
Si Mayhew Tearle perdera o seu primeiro round, não se segue daí que se desse por
vencido. Sua situação financeira tornara-se tão critica que, de momento em momento,
esperava pela falencia. Por essa razão achava-se desesperado e disposto a fazer tudo
para adiar a hora em que o mundo o assinalaria como um homem arruinado.
Não havia tempo a perder. O que quer que fizesse precisava ser feito
imediatamente.
Portanto, no dia seguinte, bateu á porta do atelier de Kay, mais amável e macio que
nunca.
Kay recebeu-o com um olhar desconfiado, dando tratos á bola para descobrir a
causa daquela visita.
Não levou muito tempo para ver satisfeita sua curiosidade.
Tearle começou por mil rodeios, nos quais cada palavra se aproximava mais do
ponto visado. Chegou finalmente ao “porque” da visita. Em resumo era isto: que seu
silencio, com respeito ao incidente da véspera, estava á venda.
Kay arregalou os olhos, francamente surpreendido.
— Mas, Alison não estava aqui — balbuciou ele por fim.
— Sim — replicou Tearle suavemente. — Mas Robin estava. Pobre menina leviana e
ingênua!
Suspirou. A surpresa de Hallam como que desapareceu.
— Extorsão? — indagou Kay, bruscamente.
— Meu caro rapaz — protestou Tearle — não empreguei essa palavra. Expliquei
somente que um cheque razoável é a única solução restante entre a boa reputação da
pobre menina e...
Deixou que o silencio terminasse a frase.
Encarando a situação fria e imparcialmente, parece sempre que ninguém precisa
submeter-se a uma extorsão. Mas quando nos vemos entre as malhas ardilosas do scroc,
quando nos chega o momento em que, como Kay, estamos longe de nos sentir frios e
imparciais — o caminho simples e razoável nem sempre se nos apresenta. E não se
apresentou igualmente a Kay. Tudo que viu diante de si, caso se recusasse á absurda
ultimação de Tearle, foi uma historia perfidamente tecida á volta do nome de Robin,
espalhando-se, aos quatro ventos, pela cidade. Uma só palavra de Tearle chegaria para
realizar isso. Não era possivel arriscar. Robin não devia sofrer um golpe desses,
especialmente naquele momento, estando ela no principio de sua carreira artística.
Portanto...
— Quanto? — perguntou ele.
Tearle expôs as condições. Hallam pagou.
— Com que então é a essa espécie de biltre que pertences? —- observou Kay.
— É — replicou Tearle, embolsando o cheque de Kay com suprema satisfação. — É
precisamente essa a espécie de biltre a que pertenço.
Quinze dias mais tarde, Tearle tornou a requisitar um outro cheque “razoável” nos
mesmos termos, e, como é natural, obteve-o.
Kay achava-se terrivelmente contrariado. Compreendeu que Tearle tomara conta de
si. E, embora percebesse que estava dominado por um scroc — Robin acertara — não
encontrava um meio de livrar-se disso. Tearle permaneceria calado, está claro, enquanto
com isso pudesse ganhar qualquer coisa, mas quanto tempo duraria essa situação?
Hallam sabia que lhe era impossível continuar a pagar seu silencio indefinidamente. E
quando seus recursos falhassem não era mais que provável que Tearle revelasse tudo
que sabia, instigado pela perversidade? Kay compreendeu que não é possivel depositar
uma gota de confiança num homem cuja moral caíu ao ponto de tornar-se scroc.
Por outro lado sentiu que cada dia que se passava tornava a historia menos
perigosa. As verdadeiras “comadres” apreciam as novidades frescas, ainda “quentes”. Um
caso velho, sobre quem quer que seja, raramente produz sensação. Kay considerou que,
se conseguisse manter Tearle em silencio até que o fato perdesse o interesse á força de
velhice, até que Robin se achasse firmemente estabelecida em sua carreira
cinematografica, ser-lhe-ia possivel tratar Tearle como um homem da sua espécie merece
ser tratado.
Pagou ainda uma outra quantia — três, com essa, em igual numero de semanas.
Mayhew Tearle regosijava-se.
Vai ser fácil, dizia com seus botões. Dinheiro "em conserva" é a melhor qualidade de
dinheiro que conheço.
Mas, então, não contara com Alison. A mulher desprezada torna-se uma criatura
implacável e cruel. Perdera Hallam. Sabia perfeitamente disto e essa certeza lhe era
terrivelmente amarga. Seu único desejo agora era ferir como fora ferida.
Portanto, deixou escapar a historia da descoberta de Robin no quarto de Hallam,
num momento demasiadamente inesperado.
E o fato em nada ficou prejudicado por sua narrativa. Para lhe dar maior realce, ela
acrescentou-lhe a informação de que o pai de Robin se achava preso por crime de roubo.
O despeito a cegava.
A historia espalhou-se, andou de boca em boca mas, como sempre acontece, as
ultimas pessoas a ouvi-la foram as vitimas — Hallam e Robin.
O jovem Carstairs foi dos primeiros a saber do caso e, não havendo esquecido ainda
o episódio do beijo, viu nisto um meio de vingança. Repetia-o por onde passava e a todos
que encontrava, não perdendo a menor oportunidade de retribuir, por esse meio indireto,
a vergonha por que Robin o fizera passar.
Robin, em pouco tempo, começou a notar algo estranho na maneira por que a
tratavam as pessoas do estúdio. Não podia saber bem o que era. Algo indefinivel mas
claramente perceptível parecia transformar, aos poucos, a atmosfera que a cercava.
Só compreendeu do que se tratava quando Mersey Shale mandou chamá-la ao seu
escritorio para mostrar-lhe o comentario de um jornaleco semanal intitulado "A Voz da
Cidade", referindo-se ao incidente ocorrido entre ela e Kay. Dizia assim:
"PERGUNTAS INTERESSANTES" "Que tanto teriam a conversar uma estrela de
novela cinematografica e um popular pintor de Chelsea, para que este a retivesse em seu
apartamento até altas horas da madrugada?"
Robin ergueu os olhos para Shale, devolvendo-lhe o ignóbil semanário.
— Acaso isto quer referir-se a mim?
— Dizem que sim — respondeu-lhe o diretor gravemente.
Shale notou que os olhos da jovem haviam adquirido um brilho estranho.
— Dizem? — repetiu ela, após uma breve pausa. — A quem exatamente o senhor
se refere?
— Pois bem; foi Carstairs que me chamou a atenção.
— Calculo como ele não estaria radiante de fazê-lo.
— De fato estava satisfeito. Carstairs anda bastante despeitado. Mas isso não altera
esta questão — volveu Shale, indicando o jornal. — Ele apenas mostrou-me este
comentario; não o escreveu.
— Sim — concordou Robin lentamente. — Nada pôde alterar isto... Está o senhor
bem certo de que quiseram referir-se a mim?
Shale olhou-a fixamente.
— Poderiam referir-se a ti, Robin?
— O senhor pergunta se aparentemente havia alguma razão?
— Exatamente.
Os olhos de Robin encontraram os do diretor.
— Sim. Não houve absolutamente o que insinuam, mas uma simples...
— Tu e o jovem Hallam?
— É isso que dizem?
— Sim.
Ela fez menção de retirar-se mas voltou.
— Há quanto tempo estão comentando essa historia?
— Oh, ha algumas semanas... A principio não dei a menor importância ao "diz-que-
diz-que" e este foi crescendo. Mas agora, se a imprensa começa a fazer comentarios, a
coisa torna-se mais seria. Eu não queria que se tivesse algo a dizer de ti, Robin.
— Nem eu o queria — replicou a jovem.
Shale notou-lhe os lábios levemente trêmulos.
— Particularmente depois daquele incidente com Carstairs. Agora ele não se cansa
de repeti-lo, dizendo que tudo que fizeste não passou de uma farsa e que isto — bateu
com a mão no jornal — veio prová-lo...
Ela sacudiu a cabeça e olhou-o bruscamente.
— Não é verdade, o senhor sabe — disse ela calmamente. — Há uma prova que me
é impossível revelar, mas o que este jornal diz é mentira. Acredita no que lhe digo?
Shale até ali não estivera bem certo, mas, fixando o rosto da jovem, sentiu
desfazerem-se todas as suas duvidas. Robin não sabia mentir.
— Sim, eu acredito em tuas palavras — retorquiu ele com um fervor que foi como
balsamo para a alma de Robin.
— Muito obrigada — disse a jovem com os lábios trêmulos outra vez. — Mas,
naturalmente, os outros não acreditarão — acrescentou.
— Sim; isto é que é o diabo — concordou Shale. — E não é só isto que andam
dizendo a teu respeito — continuou depois de um pequeno silencio.
— Que mais? — perguntou, ansiosa, a moça.
— Algo que se relaciona com teu... com tua familia... — explicou o diretor
relutantemente. — Desde que já entramos no assunto é melhor pormos tudo em pratos
limpos.
Robin concordou em silencio.
— Refere-se a meu pai? —- murmurou ela.
— Sim.
— Soube que ele...?
Shale sacudiu a cabeça.
— Está preso — terminou, falando com uma dificuldade que surpreendia a si próprio.
Seguiu-se novo silencio.
— Isso é verdade — confessou Robin. — Ele... roubou.
— Compreendo.
— Vai... me despedir? — perguntou ela, — Por que o senhor pôde fazê-lo, não é?
Shale riu-se.
— Lamento muito isso... lamento-o de todo o coração — disse ele — mas está claro
que não irei despedir-te...
— Não é muito bom negocio ter-se uma... uma estrela, cujo pai está na prisão, não
é?
— Isto não saírá nos jornais. Jornal algum o publicará... Nem sequer se fará um
comentario como este.
— Mas toda gente discutirá...
— Sim. Está claro que irão comentar. Mas, se não deres importância, eles em breve
se cansarão.
— É espantosamente bondoso de sua parte ser tão... tão bondoso — balbuciou ela
depois de um momento.
— Oh, Robin, como te lamento. Deve ser horrível — disse o diretor.
— Sim, é horrível; principalmente para papai. Perguntei a Fable si deveria contar-lhe
tudo desde o começo, mas ele me disse que não havia necessidade.
— Não havia de fato a menor necessidade. Não desejaria ter sabido disso agora, a
não ser para dizer-te que, se há alguma coisa que eu possa fazer...
Deixou o resto á compreensão da jovem, pois experimentava uma curiosa timidez ao
oferecer-lhe seu auxilio.
— Oh, Mr. Shale, nunca esperei encontrar amigos tão bons como os que tenho
encontrado! — exclamou Robin com sincero entusiasmo. — Em certos pontos sou a moça
mais feliz do mundo!
E ao fitarem o diretor, seus grandes olhos, umidos de comoção, brilharam como dois
diamantes negros.
— Mas quem teria ousado tecer á volta de teu nome todas estas infâmias? Não
suspeitas de ninguém? — inquiriu Shale após um momento.
— Sim; sei perfeitamente quem foi — replicou a moça.
— Carstairs? — arriscou o diretor.
— Oh, não! Pessoa muito diversa. Não posso dizer quem, portanto não me
pergunte, sim?
— Está bem — prometeu Shale. — Mas daria alguns anos de vida para torcer o
pescoço desse canalha.
Ao se despedirem, uma sincera amizade ficara definitivamente assentada entre
ambos.
Robin estava convencida de que fora Tearle o primeiro a espalhar a perversa
calunia, pois não lhe passava pela cabeça que Alison pudesse fazer semelhante coisa
contra si. Mas não contou a ninguém suas suspeitas, em parte por Kay, em parte por
Alison.
Ultimamente estava mais amiude com Kay, mas nada lhe contou a respeito do que
andavam dizendo.
Foi Fable o primeiro a ir ao atelier, com o fim de pôr Hallam ao par do que se
passava. Este ficou aterrorizado. Teve impetos de saír e estrangular Mayhew Tearle na
mesma hora.
— O repugnante traidor! — exclamou no auge da fúria, passeando de um lado para
o outro. — Mas, era de se esperar; idiota fui eu de confiar num scroc sujo e indecente...
— Scroc? — atalhou Fable, rapidamente.
Hallam confessou, então, que Tearle lhe vinha extorquindo dinheiro em troca de sua
discrição.
— Mas por que necessitavas tu da discrição desse homem? — indagou Fable. —
Queres dizer...
Sem terminar a frase agarrou Hallam pelos ombros e encarou-o, os olhos, sempre
tão serenos, faiscando agora de indignação.
— Kay! — exclamou com voz surda. — Se tiveres faltado com o respeito a Robin,
acho que serei capaz de... matar-te!
Kay livrou-se dos braços que o prendiam.
— Oh, meu Deus — gritou fora de si. — Será possivel que, até mesmo tu, me tenhas
em conta de um canalha?
Fable deixou tombar os braços.
— Peço-te perdão — balbuciou vacilante.
— Nunca pensei que me julgasses desse modo! — tornou Kay exaltado, passeando
nervosamente pela sala.
Logo, porém, se acalmou e não tocaram mais na altercação que tiveram. Hallam
contou ao amigo toda a verdade.
— Oh, — exclamou Fable, quando viu terminada a narrativa de Kay. — Nesse caso
não foi Tearle quem andou espalhando isso. É muito pouco provável que ele matasse a
galinha, quando os ovos de ouro vinham sendo postos com tão promissora regularidade.
— Então quem? — inquiriu Hallam surpreendido. Mas a idéia que lhe cruzou o
cérebro fê-lo calar-se bruscamente.
Só havia uma outra pessoa a par do incidente — Alison.
Seus olhares se encontraram e nem uma só palavra foi necessária para que ambos
se compreendessem.
Um dia em que Robin voltou mais cedo do estúdio, Hallam a encontrou no hall do
prédio em que moravam e fê-la parar.
— Robin — murmurou, gaguejando um pouco. — Sinto imensamente o que
aconteceu. Queria conversar contigo sobre isso. Poderás subir comigo?
— Mas, Kay, haverá alguma coisa a dizer? — indagou ela, olhando-o com olhos
muito abertos, onde se estampava a franqueza de sua alma.
— Oh, não sei. Acho detestável este estado de coisas. Ando aborrecidissimo, pois
penso dia e noite e não sei que fazer, nem mesmo se há alguma coisa a fazer.
— A culpa não é tua, bem sabes.
— Oh, mas é! Eu nunca devia ter permitido que Alison subisse ao atelier aquela
noite e, si tivesse podido prever um terço do que aconteceu, teriam que cortar a minha
cabeça antes que eu a deixasse entrar aqui.
— Ninguém pôde prever coisas como essas, Kay, Ninguém, meu caro, Não deves te
aborrecer.
— É impossível. Nada posso fazer para evitar isso. Foi tão nobre o que fizeste!... E
ainda teres este desgosto!
Robin notou que ele estava realmente nervoso.
— Muito bem — disse-lhe. — Se achas que isso te pôde fazer um pouquinho de
bem que seja, subirei contigo para conversarmos.
— Agora?
— Sim. Já.
Juntos dirigiram-se ao atelier.
— Uma xicara de chá antes de tudo, hein? — sugeriu Kay.
Robin concordou e fizeram um pequeno lunch. Findo este, Hallam levantou-se e
pôs-se a vagar pela sala, mãos enfiadas nos bolsos da calça, fisionomia inquieta. O que
Robin pensava, enquanto o seguia com os olhos, por cima do braço da enorme poltrona
em que se achava, ninguém na terra poderia adivinhar. Contemplava-o com terno
embevecimento.
— Robin — indagou Kay, voltando-se bruscamente — que devo fazer? Preciso fazer
alguma coisa, a culpa foi minha, embora eu tenha agido, mais impensada que
criminosamente.
— Eu não te censurei, Kay — observou ela com voz meiga.
— Não; és demasiadamente delicada para fazê-lo. Além do mais, bem sabes que eu
teria feito tudo no mundo, para evitar que isto se desse, se semelhante coisa houvesse
passado por meu pensamento. Mas não refleti. Por uma única razão: confiei em Mayhew
Tearle.
— Não posso compreender por que fizeste isso — argumentou ela.
— Pois bem; quando uma pessoa foi nossa amiga durante muitos anos, não nos é
fácil, de uma hora para outra, transformarmos o conceito em que a tínhamos. Julguei que
Tearle só tivesse feito aquilo por Alison.
— E te enganaste?
— Parece que sim — replicou.
Robin entreabriu os lábios como se quisesse falar, uma interrogação brilhou em seus
olhos, mas, fosse qual fosse a pergunta que quisesse fazer, não a fez e contentou-se em
dizer:
— Achei simplesmente absurdo o pavor de Alison. Reparaste nisso?
— Sim, e no momento esse repentino pavor surpreendeu-me. Só agora o
compreendo melhor. Tearle é um bruto — um bruto de espirito vulgar e sentimentos vis.
Pôde perfeitamente inspirar terror a qualquer mulher. Assim mesmo...
Interrompeu-se nesse ponto. Era evidente que Robin continuava convencida de que
o autor da indiscrição fora Tearle. Ele próprio ainda não adquirira absoluta certeza do
contrario. Tearle não dera mais um só passo em direção alguma, desde que Fable
estivera no seu atelier, havia um dia ou dois. Por isso reprimira ele suas palavras.
— Estou profundamente aborrecido, Robin — continuou. — Vieste em meu auxilio
de um modo tão generoso aquela noite, tiraste-me de uma situação critica e
desesperadora e agora acontece isto. Não podes calcular o meu sofrimento nestes
últimos dois dias.
Robin, em seu intimo, considerou que, dadas as circunstancias, Kay exagerava um
pouco, quando falava do "seu sofrimento". Sem deixar de compreender a situação da
jovem, ele não perdia vasa6 de colocar-se igualmente na posição de vitima.
— Justamente no inicio de tua carreira cinematografica, quando tudo te faz esperar
um futuro cheio de glorias, isto é uma verdadeira falta de sorte, Robin. Eu faria tudo para
tirar-te desta situação. Juro-o. Não calculas o quanto isso me tornou infeliz. Asseguro-te
que não preguei os olhos um minuto, a noite passada.
Eis que novamente tornava a falar de si próprio. Robin lançou um olhar pelo atelier,
em cujas paredes as telas por terminar atestavam a inconstância com que Hallam
aproveitava seu talento.
Com maior nitidez que nunca, compreendeu a leviandade do espirito de Kay. De
indole meiga e alegre, mimado pela sorte e pela fortuna, errava ele pela vida, sem destino
nem ideais, de um modo que enchia Robin de temor pelo seu futuro. Se ainda fosse um
rapazote, muito bem; mas um homem de vinte e cinco anos? Muitos, ao atingir essa
idade, já fizeram alguma coisa na vida; e Kay? Seus trabalhos não passavam de esboços
inacabados, alguns encerrando uma certa promessa — promessa que geralmente ficava
na primeira e ultima pincelada. Não chegaria ele um dia a fazer algo aproveitável? Em
arte, não. Estava certa disso. Embora leiga nesse ponto, Robin não deixava de
reconhecer a inutilidade dos esforços de Kay. Mas um homem não tem necessidade de
fazer somente coisas dificeis e elevadas, para ser digno de mérito. Se Kay fosse
simplesmente um homem, um homem de verdade, na extensão comum da palavra... Era
sua existência inútil e superficial que preocupava e irritava Robin. Seu desejo era abrir-lhe
os olhos, dizer-lhe que deixasse aquela idiota profissão de "troca-tintas" e procurasse
6 Degradação moral
fazer alguma outra coisa mais aproveitável, ainda que fosse um insignificante trabalho
manual.
Mas ele é bom, pensou com seus botões. No fundo, todos os seus sentimentos são
nobres. Não há o menor vestígio de indignidade em sua alma. Seu único defeito é ser
estroina; esta é a causa de tudo — egoísmo, leviandade, fraqueza. Subitamente
perguntou em voz alta:
— Tens trabalhado, Kay?
— Não, não tenho andado disposto. Também, pudera, com todas essas
preocupações — replicou ele.
Robin contemplou-o sorrindo, e havia algo deveras estranho, nesse sorriso.
— Seria impossível mesmo — concordou ela calmamente.
Se havia uma pequena ponta de ironia em suas palavras, nem a própria Robin o
percebera. Kay naturalmente nada notou, também.
— Ando com idéias de começar um grande quadro — continuou ele. — Já o tenho
pronto na imaginação. Estou só á espera da inspiração.
Ainda que inconscientemente, ele tomara um ar de importância ao dizer isso. Logo,
porém, acrescentou, passando nervosamente as mãos pelos cabelos:
— Mas a inspiração só nos vem num estado de espirito tranquilo. E como pode um
mortal sentir-se tranquilo debaixo de mil e uma contrariedades? É impossível. Não
encontro uma solução. Já fiz tudo que estava ao meu alcance. Refiro-me áquele maldito
caso, tu sabes. Fiz o que pude para evitar que acontecesse o que aconteceu. Não podes
imaginar a extensão dos esforços que tenho empregado.
Com isto virou-se e deu alguns passos pela sala. Robin viu-o afastar-se e uma onda
de exasperação inundou-lhe o peito, acelerando o ritmo de seu coração.
— Pelo que vejo não fiz mais que criar dificuldades para ti, Kay, — disse ela com voz
pouco firme.
— Dificuldades? De que maneira, Robin? — indagou o rapaz, voltando-se
novamente.
— Quando tentei fazer-te um beneficio, livrando-te do compromisso que havias
tomado com Tearle — explicou ela com certa rispidez.
— Mas, pelo amor de Deus, Robin, não fales nesse tom! Fizeste o mais que te era
possivel fazer, minha querida. E salvaste-me, positivamente me salvaste. Se não fosse
tua intervenção, eu seria obrigado a sustentar minha palavra e desposar Alison. Não tens
culpa de que as coisas repentinamente se tenham complicado. A situação está dificil para
nós dois e o pior é que não vejo uma única solução — replicou Kay.
— Talvez não haja mesmo solução — volveu Robin em tom mais áspero. — Talvez
nunca houvesse. Talvez tivesse sido melhor que eu te deixasse seguir teu destino.
— Robin! — exclamou ele, atonito ante a mudança por que passara a jovem. — Que
queres dizer com isso?
— Que talvez tivesse sido melhor si eu não procurasse impedir teu casamento com
Alison. Foi isso que quis dizer.
Kay fixou os olhos nela.
— Mas... mas isso seria uma infelicidade — balbuciou ele.
— Não sei; talvez fosse uma sorte para ti, se alguma coisa, um dia, conseguisse
fazer-te profundamente infeliz — retorquiu Robin.
— Pois é como me sinto neste momento.
— Kay, falavas sinceramente quando afirmaste que serias capaz de fazer tudo para
tirar-me desta situação? — indagou Robin com forçada calma.
— Está claro que sim. Por quem me tomas? Julgas que me agrada a idéia de ter-te
prejudicado?
— Não — volveu lentamente a jovem. — Sei que isso não te agrada. Não há
maldade em ti. És honrado e bondoso; julgo apenas que não vês... muito longe, á tua
volta.
Hallam ia protestar com certa violência, mas Robin prosseguiu, não lhe dando tempo
para falar.
— Não vês de que modo os outros são atingidos por... pelas coisas. Pensas tanto
em ti próprio, que te esqueces de pensar nos outros.
— Sou... sou egoísta, então? — explodiu ele.
— Sim, Kay, acho que és egoísta. Aquela noite em que me trouxeste cá em cima,
para divertir teus convidados...
— Por Deus! Não poderás passar sem falar nisso? — aparteou Kay.
— Neste momento, não. Essa noite só pensaste que seria bonito exibir-me. Não te
passou sequer pela cabeça que eu pudesse não concordar.
— Já te pedi desculpas por isso.
— Oh, sim; e te mostraste sinceramente arrependido. Bem sei. Mas será direito
insistirmos na pratica de ações que, pouco tempo depois, nos enchem de remorsos?
— Talvez não, mas toda gente o faz. A vida é assim.
— Pelo que vejo fazes uma idéia muito errada da vida, Kay — volveu ela e como o
rapaz não fizesse comentario algum prosseguiu: — Depois, foi o incidente daquela tarde
no pinheiral. Mais uma vez me pediste desculpas. Agora, esta historia que se espalhou
por aí, com respeito á minha presença nos teus aposentos, e de novo estás a me pedir
desculpas.
— Pois bem; estou me desculpando com a máxima sinceridade. Que mais posso
fazer? Fá-lo-ia de bom grado se me dissesses — retorquiu o rapaz.
— Fá-lo-ias? — indagou Robin avidamente.
— Deves saber que sim — volveu Kay insultado.
— Sabes que não foi somente a noticia da minha estada em teu quarto, que se
espalhou pela cidade. A verdade sobre papai anda igualmente de boca em boca.
— Sei, sei! — exclamou ele, como que abstrato. — Mas se pudesses saber o que
tenho passado, o quanto tenho sofrido por causa disso! Mas que posso eu fazer, além do
que tenho feito?
Dominada finalmente pela irritação, Robin perdeu a cabeça. Com o coração a bater
furiosamente, ergueu-se da poltrona.
— Que podes fazer? — repetiu com voz tremula. — Digo-te já. Podes oferecer-me a
reparação que estavas disposto a oferecer a Alison.
Hallam recuou um passo.
— Que? — exclamou, estupefato.
— Podes... podes casar comigo — explicou ela, lábios convulsos, levantando para o
rapaz o olhar cheio de cólera.
Kay sustentou esse olhar com uma expressão incrédula e ali ficaram, um diante do
outro, deixando que o silencio os envolvesse.
De fato, Hallam desejara sinceramente fazer o possivel para tirar Robin da situação
critica em que se achava; pensara em mil providencias — cartas de protesto contra a
imprensa, reunião de todos os seus amigos e um expressivo apelo a estes, com respeito
á monstruosidade do que se estava passando. Chegara mesmo a lembrar-se de que
talvez pudesse oferecer a Robin uma quantia em dinheiro, que a tornasse independente
para o resto da vida, mas nem uma vez, nem mesmo nos seus momentos de maior
revolta e arrependimento, lhe ocorrera a possibilidade de desposá-la.
Só, como ficara ultimamente, com a sensação de abandono que sentira ao ver-se
privado da companhia de Robin, talvez tivesse chegado á conclusão de que no
casamento com ela repousava a sua maior chance de felicidade. Mas, naquele momento,
dominado pelo espirito de contradição próprio de todo homem, parecia-lhe que a jovem
lhe armara um laço e rebelou-se contra essa idéia.
Não queria casar-se com Robin. Não queria casar-se com ninguém. Não
experimentava a mesma sensação de morna desesperança que dele se apoderara ante a
probabilidade de um casamento com Alison. O que sentiu então fora um profundo
desconsolo, a impressão de que uma sombra escura baixara sobre toda sua existência.
Presentemente era uma emoção mais viva: odio, ressentimento e uma ardente revolta
contra a idéia de ver-se forçado a desposar Robin; mas não sabia ele que há mais
esperança nas emoções quentes e cheias de vida, do que naquelas que nos provocam
simplesmente mal-estar e indiferença.
— Pedir-te em casamento? — balbuciou ele.
— Estavas disposto a oferecer essa reparação a Alison, sob a simples suspeita de
que ela se achava em teu quarto. Eu estava e fui encontrada lá — replicou Robin. — Acho
que sou tão respeitável quanto Alison.
— Mas, com os diabos! Não é uma questão de respeito, é...
— Tanto quanto Alison, tenho direito a essa reparação, Kay — interrompeu-o ela.
Um intenso rubor tingiu as faces de Hallam e seus olhos se encheram de nuvens.
— Então agiste deliberadamente, para alcançar isto? — perguntou-lhe furioso.
— É o que indicam todas as aparencias — admitiu Robin.
Mas se ele pudesse ter adivinhado os sentimentos de Robin, não teria concordado
com suas palavras.
— Um laço! E armado por ti, de quem nunca esperei semelhante coisa! — continuou
Kay. — Mas por que? Por que, Robin? Porque tenho dinheiro?
— Talvez por isso — replicou a jovem. — Ou talvez simplesmente porque dou tanta
importância á minha reputação quanto Alison á dela, embora não seja essa a tua opinião.
O rubor de Kay tornou-se mais acentuado. Compreendeu que ela tinha razão ao
dizer aquilo. Estivera disposto a fazer tudo pela reputação de Alison e nem sequer se
lembrara de que também Robin possuía uma reputação. Passou a mão pela cabeça num
gesto de desespero, sem coragem para encarar, nem Robin, nem a questão.
CAPITULO VIII
Subitamente voltou-se, respirou profundamente e disse com certa firmeza:
— Perfeitamente. Queres te casar comigo, Robin?
Robin fitou-o com uma singular mistura de expressões no olhar.
— Obrigada. Aceito, Kay.
Houve um momento de silencio.
— Então está certo! — volveu ele. — Que devemos fazer agora?
— Nunca estive noiva antes, portanto não sei — replicou Robin friamente.
— Pois bem, creio que teremos, em primeiro lugar, de fazer uma publicação nos
jornais com o maior numero de retratos possivel; depois eu compro um anel para ti, levo-
te a diversos divertimentos, apresento-te a todo o mundo como a futura Mrs. Kay, e —
lembras-te de alguma coisa mais?
Sua atitude era simplesmente abominável. Dizia tudo isto do pior jeito que lhe era
possivel. Mas homem algum gosta de sentir que caíu numa armadilha.
— Estás me odiando, não estás? — perguntou ela com um vago sorriso.
Kay parecia-lhe de tal forma uma grande criança zangada!...
— Não compliques as coisas, fazendo perguntas que um homem não pôde
responder — retrucou Kay.
— Mas um homem já as respondeu — disse Robin. — Um homem não revela o que
pensa, somente por meio de palavras, bem sabes. Ha muitos outros meios de fazê-lo.
— Robin! — explodiu ele. — Custa-me acreditar que pudesses fazer isto! Não
acredito mesmo. Deve haver algum engano. Estás te rebaixando ao nivel de Mayhew
Tearle!
— De fato, é o que parece, não? — replicou Robin.
— Tu, que fizeste tanto barulho por um beijo, fazeres uma coisa destas! Oh! maldito
seja meu dinheiro! Quisera ter nascido sem um penny!
— Também eu o quisera, Kay — respondeu ela prontamente. — Só assim terias
feito alguma coisa.
— Feito alguma coisa? Que queres dizer?
— Nem mais nem menos que isto. Terias feito alguma coisa. Alguma coisa
aproveitável. Alguma coisa útil. Serias obrigado a fazê-lo, em lugar de desperdiçares teu
tempo com uma quantidade de borrões, que nunca se acabam.
Parou, quase sem fôlego.
Hallam olhava-a estupefato, excessivamente zangado, sua vaidade por demais
ferida, para lhe permitir uma replica imediata.
— Isto é o cumulo! — exclamou por fim, olhando á volta da sala como que clamando
ás paredes por justiça. — O cumulo! Se tens tão pouco respeito e reverencia pela arte a
esse ponto — céus! Que vida iremos levar! Naturalmente desejarias que eu fosse
negociante e só pensas em transformar minha pequena fortuna em milhões. Mas, graças
a Deus, minha alma não é tão material! E permite-me lembrar-te que se eu tivesse
nascido pobre a trama que fizeste contra mim teria muito pouca razão de ser.
Estava furioso e não ocultava esse fato. Sentia-se profundamente ferido, como todos
nós nos sentimos quando vemos que alguém tenta destruir uma de nossas mais caras
ilusões. E uma das mais caras ilusões de Kay era a de que um dia seria um grande pintor.
E Robin se referira aos seus quadros como "borrões"! E frisara bem que ele não
terminava coisa alguma!
Robin não estava exatamente zangada e replicou friamente:
— Pois isso seria uma grande sorte para ti. Estou vendo que o noivado é algo
deveras excitante — acrescentou, após uma pequena pausa.
— Oh, Robin, é uma coisa horrível! E foste tu que o tornaste assim. É claro que até
aqui sempre vivi casado á minha arte.
Robin não pôde reprimir a consideração de que Hallam não dera um marido muito
fiel. Nada disse, porém.
— Mas também está claro que sempre sonhei encontrar uma pequena, um dia... E
agora — isto! Tão odiosamente premeditado! E tu! Ser-me-ia mais fácil esperar
semelhante coisa de qualquer outra pessoa no mundo, mas não de ti! É o mesmo que
destruir todas as minhas ilusões, todos os meus ideais.
— Kay, porque não tentas ser meu noivo durante um ou dois dias, antes de tirares
conclusão de que sou... tão irremediavelmente odiosa? Talvez te acostumes comigo e
aches o compromisso suportavel.
— Tua intenção é prender-me a ele, não é — rugiu Hallam.
— Não — replicou ela inesperadamente. — Se continuares a pensar o mesmo que
pensas neste momento, estarás... livre.
Kay teve a impressão de que um vácuo escuro se abrira subitamente diante de si;
sua vista turvou-se; o soalho do atelier parecia fugir-lhe dos pés. Não sabia dizer se o que
sentia era alivio por aquela abençoada suspensão de sentença ou receio de... só Deus
sabe o que.
Passou-se um momento e ele ouviu a própria voz como se pertencesse a um outro
homem, dizendo:
— Não, por Júpiter! Foste tu que começaste o jogo, agora tens que continuá-lo. Não
estou para servir de peteca, desta maneira.
— Muito bem — respondeu ela calmamente.
— Tenho a certeza de que não terias feito isso si eu não fosse rico.
— Está claro que não — replicou Robin. — Não... não haveria motivo.
— Exatamente. Muito bem; podes ficar sossegada agora. Estamos noivos.
Entendes?
Robin sacudiu a cabeça em silencio.
— Portanto, é melhor usares isto como anel de compromisso — continuou ele —
tirando do dedo minimo um anel de ouro maciço.
Robin estendeu-lhe a mão esquerda e ele tentou colocar o anel em um dos dedos.
Não o conseguiu, pois este ultimo era largo demais.
— Meu Deus, como é pequenina tua mão! — exclamou ele involuntariamente. —
Comprarei o anel que esperavas ganhar — um enorme solitário que valha uma fortuna.
— Está bem. Mas este servirá enquanto não comprares o outro. Eu... enrolarei um
fio á volta do aro, até ficar do tamanho de meu dedo.
Kay deixou caír o anel na palma da pequenina mão, que ela lhe estendera, e, feito
isto, afastou-se para um lado da sala.
Robin ficou de pé onde estava, contemplando o anel de compromisso. Subitamente
sua vista escureceu. Correu para a porta, olhou uma vez para traz, mas, como Kay não se
mexesse, saíu.
No dia seguinte o trabalho de Robin no estúdio foi muito apertado e era tarde
quando voltou para casa. Fable, como de costume, foi buscá-la com seu carro, mas essa
tarde disse-lhe ao deixarem o estúdio:
— Antes de tudo, vou levar-te comigo para comeres alguma coisa.
— Sim, isso me agradaria, Andy. Vamos? Mas onde?
Cinco minutos depois, desciam diante de um pequenino hotel das redondezas. Mais
vinte minutos e estavam sentados, cada qual de um lado, a uma pequena mesa na "sala
de visitas" — por gentileza do hoteleiro — saboreando um jantar excelente, com não
menos excelente apetite.
Não trocaram uma só palavra até o meio da refeição. Só então Robin, percebendo
que os olhos de Fable estavam fitos em si, indagou:
— Por que estás olhando tanto para mim, Andy?
Este ultimo, meio encabulado, desviou o olhar.
— Estava pensando... — replicou.
— Em que?
— Em ti.
— Em mim, mas por que?
— Terei que contar-te?
— Não serias muito camarada si não o fizesses.
— Eu estava considerando uma coisa.
— Sim; mas que?
— Se não te zangarias comigo, caso eu te fizesse um pedido.
— Está claro que não! Algum dia já me zanguei contigo?
— Não. Mas agora és uma personagem tão importante...
— Eu? — exclamou ela, rindo-se. — É o maior absurdo que poderias dizer de mim.
— Posso fazer o pedido, então?
— Certamente que podes. Que é? — perguntou, sem sequer suspeitar do que se
tratava.
— Não creio que queiras casar comigo — disse ele com absoluta tranquilidade. —
Queres, Robin?
Robin, que ia levar o garfo á boca, estacou atonita.
— Não — acrescentou Fable com a mesma impassibilidade. — Vejo que não é esse
teu desejo. Pois bem, podes esbofetear-me, se te sentires insultada.
O garfo da jovem caíu ruidosamente sobre o prato.
— Andy! — murmurou ela. — Que... por que me pediste isso?
— Eu precisava arriscar a ser feliz, Robin — replicou ele com um sorriso quase
amargo.
— Mas é impossível que... que tu queiras mesmo casar comigo.
— Impossível? Bem sabes que eu não iria mentir.
— Mas por que?
— Por que fiz uma coisa que até aqui jamais sonhei fazer. Enamorei-me loucamente
de ti.
— Queres dizer que me amas? — continuou Robin, como se lhe fosse impossível
crer no que ouvia.
— Sim. Mas, se quiseres, poderás esquecer o que te disse — replicou Fable.
Os lábios da jovem tremeram. Estendeu a mão para Fable com os olhos rasos de
agua.
— Ser-me-ia impossível esquecê-lo. Este é um dos momentos mais felizes de minha
vida. Só que...
Fable tomou entre as suas a mão delicada que ela lhe estendera.
— Sei o resto, querida. Não podes. Sempre esperei por isso. Mas não nos é possivel
perder as esperanças enquanto não temos certeza absoluta de que estas são inúteis.
— Mas, Andy, não te importas que eu não saiba falar direito e... tudo? Como podes
gostar de mim se não sei gramatica?
— Falas da maneira mais adorável possivel — disse ele ternamente.
Duas lagrimas brotaram-lhe finalmente dos olhos e ela sacudiu a cabeça para fazê-
las tombar.
— Não, Robin! Não quis fazer-te sofrer. Não fiques triste. Não tornarei mais a falar
nisso — suplicou ele.
— Andy — murmurou Robin. — Não te amo... desse modo e jamais o poderia,
porque...
— Há mais alguém?
Ela sacudiu a cabeça afirmativamente. Fable imitou-a.
— Sim, sempre tive essa impressão, Robin — continuou ele.
— Mas, Andy, eu queria saber uma coisa. Queria saber por que motivo... tu me
amas. Não desejo brincar contigo... mas me seria um grande consolo sabê-lo.
— As razões são tão claras, meu bem. Toda a tua meiguice, sinceridade e beleza —
explicou ternamente.
— Oh, a beleza, não, Andy! — exclamou ela confusa: — Certamente não foi porque
sou bonita que te enamoraste de mim.
Fable inclinou a cabeça.
— Sou... sou um homem, Robin — volveu ele — a beleza é uma coisa louvável e
encantadora, querida. Não deves julgá-la tão mal só porque ela te armou alguns laços e
porque os homens se prendem em suas teias. Não sejas tão cruel para com tua beleza,
Robin; ela não se resume nos teus encantos fisicos.
— Então não foi só por minha beleza que ficaste gostando de mim, Andy? —
perguntou ela ansiosa.
— Está claro que não. Julgas então que esperei todos estes anos (já sou um
verdadeiro Mathusalem, bem sabes) para tornar-me escravo de uma cara bonita? Pensas
então que nunca encontrei na vida outros rostos tentadores?
Robin riu-se leve e nervosamente.
— É natural. Minha beleza tem-me causado tantos aborrecimentos que começo a
pensar que sou eu a única pequena bonita do mundo. Agrada-me ser bonita. Só que ás
vezes isso nos provoca tantos desgostos...
— Calculo — replicou o rapaz — mas és infinitamente mais que uma simples
"pequena bonita". Não posso dizer bem o que és porque me faltam palavras. Para mim,
entretanto, és a soma total de todas as virtudes. És a encarnação do sonho e do ideal. O
mundo tornou-se um lugar melhor porque vives nele. Tua companhia e a doçura de tua
amizade são a maior ventura que pôde ser concedida a um ser humano.
Com estas palavras sorriu, apertou por um momento a mão de Robin e depois
soltou-a.
— Sou tudo isso na tua opinião? — perguntou ela com um fio de voz.
— Tudo isso e muitas outras coisas.
— Apesar do meu jeito de conversar e... e... de papai?
— Oh, minha querida, essas coisas não têm importância! Nada podem contra ti. Não
te deixes ferir tão profundamente por elas.
Talvez Robin tivesse motivos para considerar que, pudessem ou não contra si, isso
bem que tinha importância quando se tratava de sua felicidade.
— Andy — disse ela bruscamente. — Eu e Kay ficamos noivos... ontem. Eu já devia
ter-te contado.
Fable deu um suspiro e ficou mudo por um instante.
— Não faz mal — replicou. — Eu sabia que estava fora de concorrência. Sinto-me
profundamente alegre.
Mas o pequenino rosto fatigado de Robin não refletiu a alegria de Fable. Este olhou-
a admirado; ao falar, havia uma nota de tremor em sua voz.
— Não te sentes feliz, Robin? — perguntou.
Subitamente a jovem rompeu em pranto, ocultando o rosto nas mãos. Fable rodeou
a mesa e foi ajoelhar-se ao seu lado. Carinhosamente passou-lhe um braço pelos
ombros, procurando acalmá-la.
— Por favor não chores, querida — implorou ele. — Não calculas como sinto ter-te
entristecido.
— Sinto-me feliz por saber que me amas — balbuciou Robin entre soluços. — E... é
um consolo tão grande ser... ser amada por um homem como tu...
Fablé sorriu levemente.
— Pois se meu amor pode trazer-te algum consolo, lembra-te sempre dele — disse
este ultimo delicadamente. — Talvez Kay não se importe.
— O amor de Kay não... seria melhor que o teu... talvez — murmurou Robin.
Se o tom de suas palavras era infantil, nem por isso deixava de ser compreensivel.
Havia uma revelação naquele "seria" tão condicional e naquele "talvez" vacilante e
pronunciado quase em surdina.
Fable, de joelhos, meditava. Kay não a amava então? E ela? Sim, suas palavras
demonstravam-no bem. E estavam noivos! Que acontecera? Acaso Kay se sentira nessa
obrigação diante da historia que estava sendo comentada? Com esses pensamentos,
pôs-se de pé, uma expressão profundamente desgostosa no olhar.
— Robin, sabes o que estás fazendo? — perguntou ele de súbito.
A jovem levantou a cabeça e fitou nele os grandes olhos umidos.
— Sim — replicou calmamente. — Mas... mas ele não sabe.
Quando chegaram á porta do prédio de apartamentos, Hallam, do atelier, ouviu o
rumor do auto que parava. Desceu as escadas com uma inexplicável irritação e encontrou
Robin no momento em que esta se despedia de Fable, na porta.
— Chegaste muito tarde — observou ele.
Robin explicou. O rosto de Hallam tornou-se sombrio.
— Parabéns, meu velho! — disse Fable. — Robin contou-me a novidade.
— Obrigado! Muito bem. Boa-noite — respondeu Kay apressadamente.
Fable voltou ao seu auto.
— Acho que te esqueceste de que estás comprometida, não? — perguntou ele a
Robin.
— Não — replicou ela sacudindo a cabeça.
— Uma moça comprometida não anda em companhia de outros homens; é só. Boa-
noite.
Deixou-a bruscamente no hall e subiu a escada. Robin voltou-se e desceu.
No dia seguinte á tarde, ele foi buscar Robin no estúdio e vieram para casa na sua
pequena baratinha7, quase mudos durante todo o trajeto.
— De hoje em diante, todos os dias, vou levar-te e trazer-te do estúdio — anunciou
ele no hall, ao se despedirem.
— Obrigada, Kay — replicou ela um tanto intrigada.
Robin não podia compreender bem, mas Hallam cumpriu sua promessa e levava-a
todas as manhãs para o estúdio, indo buscá-la, igualmente, todas as tardes. Ás vezes ele
parecia o antigo Kay que conhecera, alegre e bem humorado; quase feliz em sua
companhia; estes, porém, eram raros momentos e em geral ele se mostrava enfadado e
mudo. O que mais intrigava a Robin eram os ares de "amo e senhor", que ele adotava
para consigo. Como seu noivo, tinha um certo privilegio para entrar e saír do estúdio e,
assim, não a perdia de vista. Interrogava-a de minuto em minuto sobre os homens da
companhia.
— Shale por exemplo — dizia ele ao voltarem para casa, uma tarde. — De que
maneira te trata ele?
— Muito bem — replicou Robin. — Mr. Shale é muito agradável. Gosto muito dele.
— Ah, sim? E que há de agradável nele? — indagou Kay com uma certa
exasperação.
— Sua própria pessoa. Seu carater e tudo mais.
— É esse tipo de homem que te agrada? Tenho a impressão de que ele deve ser
toleravelmente vulgar.
— Não creio que estejas certo, qualificando-o de vulgar — argumentou a jovem. —
Um ente vulgar não é capaz de fazer filmes como os dele.
— Portanto, ele é o teu tipo!
— Disse apenas que gosto dele.
7 Nome antigo de certo tipo de automóvel
— E o admiras — acrescentou Kay, mais exasperado que nunca.
— Só acho dignas de admiração as pessoas capazes de fazer algo que a maioria
não pode fazer.
Hallam ficou calado por um momento. Depois exclamou com uma certa
impetuosidade:
— Esta mania das mulheres de quererem seguir carreiras é abominável!
E o resto do trajeto foi feito em silencio. Uma outra noite, ele interrogou-a sobre o
herói. Depois sobre Cartairs.
— Suponho que aquele tipo almofadinha é o que consideras um homem bonito,
não?
— Todo mundo acha Mr. Carstairs bonito, menos eu — respondeu Robin. — Não
acho que ele seja nem bonito nem simpatico; não me simpatizo nem um pouquinho com
ele.
Espirito de contradição ou o que quer que fosse, o caso é que Hallam incontinenti
tomou a si a defesa de Carstairs. Provavelmente nem o próprio Kay sabia o motivo disso,
mas, nem bem Robin declarou sua antipatia pelo rapaz, Hallam começou a descobrir as
qualidades do jovem ator.
— Não creio que ele seja ruim — disse. — Qual é o defeito que achas nele?
— É, como disseste, um presumido almofadinha — replicou Robin.
— És excessivamente severa em teus julgamentos — resmungou Hallam.
Robin olhou-o, novamente intrigada. Não lhe era possivel compreender o que se
passava com Kay. Havia, incontestavelmente, uma certa irritação em suas palavras.
Acaso seria o seu compromisso consigo que o tornava assim irritavel? Mas, nesse caso,
por que insistia ele em estar sempre ao seu lado? Não lhe pedira que desse atenção
alguma a ela. Nada lhe pedira. Propusera mesmo devolver-lhe a palavra empenhada e
desmanchar o noivado, mas ele recusara sua proposta.
— Enviei hoje, aos jornais, a noticia do nosso noivado — disse ele de súbito,
quebrando um longo silencio. — Agora talvez estejas satisfeita — acrescentou com tímida
ironia.
Ultimamente, porém, Kay empregava com freqüência esse tom maldoso e
desagradável. Robin respondeu-lhe com um movimento de cabeça, pois sentiu que não
podia confiar em sua voz. Kay sabia ferir inexprimivelmente sua sensibilidade.
No dia imediato, tendo Robin terminado seu trabalho muito mais cedo que de
costume, era apenas hora do lunch ao separar-se de Kay no hall do prédio de Chelsea.
Desceu ao apartamento de Mrs. Quest e Hallam subiu ao seu. Ao entrar no atelier, Kay foi
surpreendido com a presença de seu pai que ali o esperava. O rapaz levou um choque
considerável, pois ainda não comunicara a Mr. Hallam os importantes e recentes
acontecimentos de sua vida; sentiu-se culpado, porque até ali não ocultara ao pai um só
de seus atos. Sempre foram bons amigos e embora Mr. Hallam deixasse a firma Hallam &
Hallam nas mãos de um gerente para iniciar uma vida pacata e agradável nos campos
verdes de Hertfordshire, Kay continuava a ser o mesmo filho solicito e afetuoso.
O velho Hallam muito se contrariara com os boatos que chegaram até sua tranquila
casa de campo e que ligavam o nome de Kay ao de uma jovem artista cinematografica.
Achou, todavia, que não devia dar credito a tais rumores. Pouco tempo depois, porém, já
não mais foram simples boatos que lhe vieram perturbar o sossego, mas sim
desagradáveis e maldosos comentarios feitos por um jornal. Foi então que, vendo
abalada sua relutante convicção, resolveu investigar pessoalmente os acontecimentos.
Fora esse o motivo que o levara a Chelsea.
Entre pai e filho o encontro foi afetuoso, mas um tanto constrangente devido ás
circunstancias.
Kay ocupou-se na preparação do lunch e, em quanto o tomavam, o assunto versou
sobre coisas triviais.
Ao deixarem a mesa formou-se entre eles um acentuado silencio que novamente os
deixou constrangidos.
Mr. Hallam, porém, foi direito ao que o trouxera ali.
— Não me contes nada contra tua vontade, meu filho, mas dá-me simplesmente a
certeza de que tudo te corre bem e... Até hoje nunca mentiste a teu pai, Kay.
Mas Kay quase nada respondeu. Seu pai mostrou-lhe então o paragrafo de jornal
que o trouxera á cidade.
Kay franziu o sobrolho. Procurou os jornais da manhã e, igualmente, chamou a
atenção de Mr. Hallam para um trecho — a participação de seu noivado com Robin. Mr.
Hallam sentiu-se terrivelmente emocionado mas não deu mostras disso.
— A mesma moça? — perguntou.
Kay sacudiu a cabeça afirmativamente.
— E estás comprometido com ela?
Novamente Kay respondeu com um movimento de cabeça.
— Segundo o que me disseram ela é quase uma "estrela"?
— Todo o mundo afirma que será uma grande artista, mais tarde — replicou o rapaz.
— E te sentes feliz?
Kay hesitou.
— Oh, não te preocupes comigo, papai.
Kay, porém, desviava os olhos do rosto do pai ao falar. Mr. Hallam interrogou-o de
todos os jeitos possíveis, mas nenhuma informação satisfatoria conseguiu arrancar dos
lábios de Kay. Compreendeu que as coisas estavam longe de correr bem. Levantou-se
por fim e disse:
— Agradar-me-ia... conhecê-la.
— Perfeitamente — replicou o jovem. — Pedir-lhe-ei que venha cá em cima. Ela
mora lá em baixo com a minha zeladora.
— Deixa-me descer para vê-la — pediu o velho rapidamente.
De novo Kay hesitou.
— Muito bem. Mostrar-te-ei o caminho.
Um ao lado do outro, desceram as escadas. Em frente a porta ao apartamento de
Mrs. Quest, Mr. Hallam voltou-se para o filho e lhe disse:
— Deixa-me aqui. Prefiro entrar só...
Kay obedeceu.
Mr. Haliam bateu á porta. A própria Robin veio abri-la. Estacou diante do velho, os
grandes olhos arregalados de espanto.
— É... é o pai de Kay? — perguntou ela vacilante, com um certo tremor na voz.
Mr. Hallam replicou que sim.
— Entre, por favor — volveu Robin delicadamente.
Levou o visitante á sala de Mrs. Quest. O mobiliário ali consistia num antiquadio
terno de madeira e palhinha, relógios suiços, toalhas de crochet e lustres enfeitados de
papel de seda recortado. Depois de fazer com que Mr. Hallam entrasse, Robin fechou a
porta e ambos se olharam por um momento.
— Com que, então, estou falando com Miss Robinetta Golden? — indagou ele,
quebrando o silencio.
A jovem sacudiu a cabeça afirmativamente.
— E, naturalmente, eu soube quem o senhor era assim que o vi. Kay se parece tanto
consigo... Veio procurar-me por causa dele?
— Sim.
— Por estarmos noivos?
— Sim, exatamente.
— E o senhor está... está zangado?
No tom de Robin havia algo desafiante; aos olhos de Mr. Hallam a jovem parecia tão
pequena e leve em seu simples vestido de linho azul, tão seria e tão encantadora que era
impossível descobrir nela o menor traço de aventureira. Que esperava eu encontrar?
perguntou Mr. Hallam aos seus botões; na verdade não o sabia. Estava certo, porém, de
que Robin fora para si a maior das surpresas.
— Sim — disse ele por fim. — Creio que estou zangado.
— Sinto-o de todo o coração. Não quer sentar-se para conversarmos?
Mr. Hallam acommodou-se na grande cadeira que Robin lhe indicara.
— Então? — disse ela, sentando-se diante do velho.
Este ultimo inclinou-se um pouco para a moça, os olhos bondosos, cercados por
uma complicada moldura de pequeninas rugas, examinando-a curiosamente.
— É melhor ser franco, não acha? — propôs ele.
— Está claro que sim.
— Perfeitamente. Ouvi ultimamente alguns... alguns boatos, Miss Golden.
— O senhor já esteve com Kay? — perguntou ela.
— Sim. Mas ele não quis dizer-me mais nada, além do fato de estar... comprometido
consigo. Ele não me pareceu muito feliz, Miss Golden.
Robin corou sensivelmente.
— O senhor acreditou em tudo que o jornal disse? — inquiriu.
Mr. Hallam hesitou.
— Não sei em que devo acreditar. Kay é jovem e os jovens hão de ser malucos até a
consumação dos séculos.
— Ouviu dizer alguma coisa de meu pai? — tornou Robin.
— Sim.
— Pois bem, isso é verdade.
O velho teve que reconhecer a honestidade dessa confissão, mas esse ponto ainda
lhe era mais difficil de encarar.
— Kay pediu-a em casamento por livre e espontânea vontade? — indagou
abruptamente.
Robin meneou a cabeça.
— Não.
— Foi a senhorita quem fez a proposta então? Ou quem sabe fê-lo ver que esse era
seu dever?
— Sim.
Mr. Hallam pôs-se de pé, indignado e absurdamente parecido com Kay em sua
indignação.
— Em outros termos: a senhorita armou-lhe um laço, não foi?
Parecia-lhe que só então começava a compreender.
— Pois bem. O senhor acertou. Eu armei um laço para prender seu filho.
— Eu já devia ter compreendido antes! É um dos velhos truques do mundo —
exclamou tirando do bolso um livro de cheques e uma caneta-tinteiro. — Qual é o seu
preço? — indagou com bastante brutalidade.
— Não... não o compreendo bem — retorquiu Robin com o coração palpitante.
— Acha que obterá maiores vantagens, casando-se com meu filho?
— Oh! — exclamou Robin, levantando-se também, olhar aceso, rosto escarlate. —
Oh, o senhor julgou que poderia... comprar-me! Pois bem, fique sabendo que não há
necessidade de se aborrecer. Não pensei que um casamento comigo pudesse prejudicar
tanto a Kay. Já agora, porém, não me casaria com ele nem que fosse o ultimo homem na
terra e ganhasse um milhão por minuto!
Mr. Hallam tinha idade e experiência suficientes para saber que nos devemos
surpreender ante alguma coisa sabida dos lábios de um homem ou de uma mulher,
contudo as palavras de Robin o encheram de indescritivel surpresa.
Julgara ter compreendido a situação. A própria Robin, praticamente, confessara ter
armado um laço a Kay, obrigando-o a pedi-la em casamento e agora lhe afirmava que não
se casaria com ele nem que fosse o único homem na terra e ganhasse um milhão por
minuto. E ia continuar a falar. De pé diante dele, insultada e altiva, os olhos escuros
faiscantes de indignação, despejava ela uma verdadeira torrente de palavras.
— O senhor parece pensar que não há nada acima do dinheiro — dizia. — Parece
julgar que ele é o máximo bem da vida. Parece julgar que esses vis cheques podem fazer
tudo, conseguir tudo, comprar tudo e está redondamente enganado. Julga que seu único
dever para com seu filho é dar-lhe dinheiro a rodo, transformando-o num perdulário.
Acredita cumprir seu dever de pai, mas permita-me dizer-lhe que não faz mais que
concorrer para a desgraça de Kay. Ele é um rapaz insinuante, bom, direito e inteligente;
tem um cérebro e faria uso dele se o senhor lhe tivesse dado uma chance. Mas o senhor
não lhe deu. Só lhe soube dar dinheiro, dinheiro á farta e em quantidade suficiente para
pôr a perder qualquer homem, quanto mais um moço inexperiente como Kay.
Nesse ponto fez uma pausa, suspirou longamente e fixou o velho com um olhar
hostil.
Mr. Hallam continuava com o livro de cheques aberto nas mãos, francamente atonito
com a explosão da jovem e, embora não o confessasse, como que idiotizado ante tanta
eloqüência.
— E agora o senhor me procura, julgando poder comprar-me com o seu dinheiro —
volveu Robin. — Chega a ser engraçado! Verdadeiramente engraçado que um velho
como o senhor ainda acredite na onipotencia do dinheiro. Vendo-o, qualquer um julgaria
que o tempo e a experiência lhe houvessem ensinado coisa melhor...
Fez uma nova pausa para tomar fôlego.
— Miss Golden — atalhou Mr. Hallam. — Francamente a senhorita... não está sendo
gentil...
— Gentil? — repetiu ela com profundo desdém. — Sei onde nos pode levar o
dinheiro. Foi somente a sua falta que levou papai á prisão. Falta dessa coisa sórdida. E
por isso está ele preso. Foi para conseguir dinheiro que o velho Tearle armou uma cilada
a Kay, colocando-o em terriveis embaraços. E é somente o dinheiro que está fazendo de
Kay um estroina, um perdulário, um egoísta. Dinheiro? É uma coisa muito boa, quando
em seu devido lugar, mas não no bolso de um rapazote que não sabe sequer o que
significa trabalho...
Parou com a respiração ofegante. Mr. Hallam contemplava-a, tendo no olhar uma
expressão de novo interesse. Lentamente guardou o livro de cheques.
— Creio que eu não havia compreendido bem — disse ele por fim, em tom
completamente diverso.
Robin afrouxou sua fúria e ao falar não mais havia exaltação em sua voz.
— Creio que sim -— retorquiu ela. — Kay também nunca pôde compreender.
— Acha que não lhe seria muito dificil dar-me uma explicação? — indagou o velho.
Robin voltou-se mais uma vez para ele com uma interrogação no olhar.
— Suponhamos — proseguiu Mr. Hallam — que eu lhe prometesse varrer de meu
cérebro tudo que porventura tenha pensado quando aqui entrei. Suponhamos que eu
confessasse agora diante de si, sem a mínima reserva, que a julguei erroneamente. Por
sua vez faria uma tentativa de esclarecer-me?
— Isto chega a parecer um acordo — replicou a jovem. — Mas não acredito que dê
resultado.
— E se, para começar, eu lhe pedisse perdão por ter-lhe oferecido dinheiro da
maneira que o fiz, há pouco?
A franqueza das palavras do velho conquistou-a, como aliás era de esperar.
— Para mim já seria uma grande coisa — retorquiu ela.
— E aceitaria minhas desculpas?
— Sim.
— Nesse caso proponho selar o tratado de paz com um aperto de mão.
E estendeu-lhe a mão sorrindo. O sorriso de Kay! Apenas revelando um pouco mais
de experiência.
— Agora, Miss Golden, queria que me dissesse o que se passa em Kay? Qual o seu
mal?
— Simplesmente o que já lhe expliquei: dinheiro em demasia.
— E isso faz dele um... perdulário, um egoista?
— Pelo menos é o que me parece.
Os olhos de Robin fitavam-no destemidos e cheios de sinceridade. Mr. Hallam fez
uma pausa antes de tornar a falar.
— Ele sempre me escreve entusiasmado com seus esboços; os quadros e todos os
trabalhos que tenciona fazer...
— ...e nunca faz — terminou Robin.
— Eu ignorava isso.
— Oh, ele pensa que trabalha. Está certo de que é um pintor admirável e ainda virá
a ser o idolo do mundo, mas é pura fantasia. E não sou só eu que sei disso; toda gente o
sabe, mas Kay proporciona aos amigos que o rodeiam tantos divertimentos, que estes
ainda mais alimentam suas ilusões. Fico revoltada quando vejo a maneira por que o
lisonjeiam e o animam a continuar essa vida de boemio, só porque ele é rico e pôde lhes
dar festas e levá-los a passeio em automóveis e iates...
— E é essa a vida que ele leva?
— Quase sempre. Oh, Kay em si não tem nenhum defeito. De todos os homens que
conheço é o melhor, o mais digno... o mais querido... — (Abaixou a voz) — A única coisa
que falta é mudar de vida. E eu pensei que, se ficasse noiva dele, por uns tempos,
talvez... pudesse conseguir isso.
— E conseguindo-o?...
— Oh, não sei. Provavelmente foi uma idéia absurda.
Havia uma nota de nervosismo em suas palavras.
— Quer explicar-me que situação provocou este compromisso? Que há de verdade
no que andam dizendo de si e de Kay?
— Ele não quis contar-lhe?
— Para um homem é sempre dificil dizer certas coisas.
— O senhor e Kay não são bons amigos?
— Está claro que sim. Sempre o fomos.
— Então arriscarei a dar-lhe a explicação.
Com toda a simplicidade, Robin contou a Mr. Hallam toda a historia de sua amizade
com Kay, desde o momento em que seus olhos se encontraram, pela primeira vez, em
meio de seu bailado, na feira; desde esse instante até o presente. Nada ocultou. Expôs-
lhe o caso com todos os pormenores. Sua historia, inevitavelmente, incluía Alison e
Mahyew Tearle, pois estes, de certo modo, estavam ligados a ela. Mas o homem a quem
falava era o pai de Kay. E, assim, contou-lhe tudo, certa de que Mr. Hallam tomaria
aquela modesta saleta por um confessionário.
— Quando fiz com que Tearle me encontrasse no quarto de Kay em lugar de Alison,
meu intuito foi, unicamente, livrar Kay do compromisso que tomara com o velho Tearle.
Kay talvez ignore isto, mas eu sei que Alison se agarraria com unhas e dentes a essa
oportunidade. Foi somente isso que me levou a fazer o que fiz. É indiferente que o senhor
acredite, ou não, no que lhe digo — acrescentou ela quase sem fôlego.
— Acredito — disse o velho — E depois? Que a levou-a...?
— Forçar seu filho a comprometer-se comigo? Fiquei revoltada com ele, perdi a
cabeça. Ele estava disposto a se casar com Alison e a situação dela não era tão grave
quanto a minha. Alison não tem necessidade de trabalhar para viver. Não tem uma
carreira por zelar. Não tem um pai na prisão. Mas Kay estava mais que disposto a casar-
se com ela. E sabe o senhor por que? Porque Alison pertence á mesma classe social que
ele e eu não. Ela sabe conversar segundo as regras da gramatica e eu não sei nada
disso. Kay acha que não deve a mim o mesmo respeito que a ela, porque Alison é sua
igual e eu não o sou. Isso me deixou revoltada. E revoltou-me também a maneira pela
qual ele se preocupou consigo mesmo, pelo que acontecera. Como sofria e passava
noites em claro, pensando. Por isso obriguei-o a pedir-me em casamento. Nunca, porém,
tive intenção de desposá-lo. E não me casarei com ele. Desejo um homem, para marido.
A nota de desdém das palavras de Robin fez subir o sangue ao rosto de Mr. Hallam.
A jovem estendeu a mão e tocou a dele.
— Oh, não tive intenção... de... ofendê-lo... ou ser... indelicada. Receio ter sido
terrivelmente indelicada consigo...
— Não; apenas franca. Se a verdade me insultasse eu não deveria concordar que
ela fosse verdade, não acha? — (Sorriu para Robin, mas seus olhos tinham uma
expressão sisuda). — E se suas palavras me ofenderam não foi sua a culpa —
acrescentou lentamente.
Fez-se um pequeno silencio.
— Nunca tencionei levar avante este compromisso com Kay. Julguei que me fosse
possivel dar-lhe uma lição. Agora, porém, reconheço que foi um capricho louco. Deixá-lo-
ei... quebrar... o compromisso... e...
— E se eu lhe pedisse para não fazer semelhante coisa? — perguntou Mr. Hallam,
de chofre. — Pelo menos até que eu tenha tido tempo de refletir novamente sobre o caso.
Deixaria que as coisas continuassem como estão?
Robin arregalou os olhos.
— Mas o senhor... não pode desejar que eu continue... comprometida com Kay,
disse ela admirada.
— Não estou bem certo — replicou ele.
Robin ficou um momento em silencio.
— O senhor já considerou que meu pai está preso? Cumprindo pena por crime de
roubo? Que ele não passa de um ladrão vulgar? — perguntou a jovem bruscamente.
— Só o que penso é que a filha de seu pai é impecavelmente digna, corajosa, possui
a sabedoria que ás vezes se encontra nos lábios das crianças e que deu, hoje, a um
homem muito velho, uma dificilima lição — respondeu Mr. Hallam.
A fisionomia de Robin enterneceu-se.
— E o senhor quer que as coisas continuem como estão? — indagou com voz pouco
firme.
— Por algum tempo, pelo menos. Oh, bem sei que não é muito digno fazer uso de si
para esse fim. Mas é o amor que dedico a meu filho que me torna assim egoista.
— Compreendo bem isso — replicou Robin, quase em surdina.
Mr. Hallam segurou-a levemente pelo queixo, ergueu-lhe o rosto e fitou-a nos olhos.
— Conte-me o resto; também ama a Kay?
Os grandes olhos de Robin encheram-se de lagrimas.
— Ah, essa é a minha maior desgraça — responderam os lábios trêmulos da jovem.
— Amo-o tão intensamente que me seria impossível amá-lo mais.
— Nem menos?
Robin sacudiu a cabeça e duas grossas lagrimas tombaram.
— Então fará o que lhe peço? — continuou o velho.
— Farei com isso algum bem?
— Acredito que sim. Julgo-a capaz de fazê-lo mudar de vida.
— O senhor bem sabe que ele... não me ama — disse Robin com certa amargura.
Mr. Hallam não pôde disfarçar a comoção que dele se apoderara.
— Pois bem — acrescentou ela, rapidamente — eu o farei.
No mesmo instante teve uma curiosa sensação de que havia uma certa fatalidade
em suas palavras.
Do apartamento de Mrs. Quest, Mr. Hallam voltou ao de Kay. Este ultimo não pôde
ocultar uma certa surpresa ante o entusiasmo que Robin provocara em seu pai; Mr.
Hallam queria que Robin fosse a Hertfordshire e insistiu com Kay para que prometesse
levá-la. Kay prometeu e a conversa se desviou para o trabalho do rapaz. Juntos,
contemplaram os esboços inacabados que decoravam as paredes do atelier.
Enquanto isto, o velho Hallam dizia consigo mesmo:
— Ela tem razão. Aquela criança tem toda a razão. O rapaz jamais conseguirá coisa
alguma neste ramo.
E quando pediu ao filho que lhe mostrasse alguns trabalhos menos crus, Kay deu
mostras de impaciência e disse em tom quase agressivo:
— Tu sabes, papai, não se pode pintar um quadro como um decorador pinta uma
casa. Temos que aguardar a inspiração.
As palavras de Robin sobre seu trabalho ainda estavam vivas em sua lembrança.
Quando seu pai se despediu algum tempo mais tarde, ele disse, hesitante:
— Estou muito satisfeito por ver que aprovaste meu noivado com Robin... E sinto-me
feliz, bem sabes. Não deves pensar que não... Ser-nos-á muito agradável ir ver-te em
Hertfordshire. Assim poderás conhecê-la melhor...
Mr. Hallam concordou, mas seus olhos não se encontraram ao se despedirem.
Mr. Hallam sentia-se consideravelmente perturbado. O dia fora cheio de choques
para ele.
Robin tinha razão. Comprehedeu isto com grande tristeza. O atual modo de vida de
Kay era inútil e prejudicial. E ele já estava com vinte e cinco anos. Mr. Hallam lembrou-se
disso com admiração. Era-lhe dificil acreditar que seu filho não mais era uma criança. Aos
vinte e cinco anos, ele próprio já trabalhava para tornar-se sócio da grande empresa
metalurgica. Alimentara sempre uma esperança de que Kay também entrasse no negocio.
Este ultimo, porém, manifestara-se contra essa idéia. E agora? Robin tinha razão; o que
dissera era terrivelmente exato. Essa verdade revelou-se amargamente ao velho Hallam.
Mas Robin tivera razão num outro ponto, igualmente. Kay era “o melhor e o mais
digno”. A lembrança dessa frase da jovem trouxe consigo um estranho conforto á alma
amargurada de Mr. Hallam. Kay lambem mostrava os primeiros sintomas de inquietação e
descontentamento com o estado de coisas — não inteiramente devido, pensou o velho
Hallam, ao compromisso que se vira forçado a tomar com Robin. Isto era um bom sinal.
Que deveria fazer? Ou seria melhor que deixasse o caso nas mãos daquele pedacinho de
mulher de olhos e cabelos negros, que parecia ter uma visão tão clara das coisas?
Como, porém, não se aborrecer? Como sentir-se feliz, vendo Kay em vias de se
casar com a filha de um gatuno?
— Não posso estar contente — dizia ele com seus botões. — Ela possui uma alma
angelical mas eu não posso sentir-me feliz.
Consolou-se a si próprio com a reflexão de que eles ainda não estavam casados e
que muita coisa poderia dar-se entre o momento presente e o dia do casamento...
Dentro de quinze dias, Robin ia obter uma semana de folga no estúdio, durante a
filmagem das cenas em que não figurava; portanto, combinou com Kay irem passar esses
dias de descanso com seu pai.
Entrementes, Kay raramente conversava com ela. Continuava a conduzi-la e
reconduzi-la diariamente do estúdio; rodeava-a durante as horas de trabalho, esperando
que a jovem lhe desse um momento de atenção. Mas Robin estava muito ocupada, muito
absorvida com seu papel, e o curioso “make-up” amarelo palido que os artistas
cinematograficos usam era algo a que Hallam não se podia habituar; Robin sempre lhe
parecera uma estranha sob aquela mascara de pomadas e pinturas. Descobriu também
que estava se tornando conhecido como “o noivo de Miss Golden”, alcunha que lhe dava
a sensação de ser um individuo sem personalidade, nem valor, um inútil, um
insignificante, um simples zero, na ordem das coisas.
Começou a odiar o cinema que tomava todo o tempo e a atenção de sua noiva e
descobriu que esperava, com considerável prazer, pela semana que iriam passar no
campo com seu pai, a sós e em paz; chegava quase a ansiar pela aproximação desse
dia. Mas, no estado de espirito incerto e extravagante que ás vezes nos domina, levando-
nos á contradição, Kay nada contou a Robin com respeito aos seus sentimentos e tentou
manter sua atitude de fria indiferença. A verdade é que sua sensação de
descontentamento era contra si próprio. Começava a sentir uma vaga impressão de que o
que Robin dissera dele era verdade; estava, porém, tão desabituado a tais sentimentos
que os atribuia a tudo, a todos, e a Robin desde que fora ela quem mais os provocara.
Esta ultima procurava, unicamente, cumprir o pacto que fizera com Mr. Hallam. Não
era bastante que “continuasse noiva de Kay”; precisava, aos poucos, fazê-lo mudar de
vida. Portanto, mostrava-se menos fria, menos critica, sentindo que talvez tivesse sido
demasiadamente áspera com ele, que metodos mais delicados fossem talvez mais
eficazes. Deu menos importância ás suas impertinencias e descortesias quase infantis —-
pois ele continuava a alimentar o ressentimento de ter sido forçado a assumir aquele
compromisso — e, quando lhe dava alguma resposta, fazia-o em tom menos cortante,
começando, talvez, a compreender que ele atravessava um pedaço bem dificil.
Robin deliberou transformar a visita ao pai de Kay num verdadeiro sucesso.
Encarando a situação de frente com seus corajosos olhos de criança, procurou os meios
com os quais poderia obter esse resultado e chegou á seguinte conclusão:
— Aborreço-o e repreendo-o por suas faltas sempre que posso, mas que direi das
minhas? Não terei alguma que seja necessário combater? Certamente que sim. Faltas
que, provavelmente, provocam o desdém de Kay e de seu pai. E uma delas é o meu
modo de falar. Mr. Hallam não há de gostar da minha linguagem defeituosa... Tenho que
providenciar sobre isso com a máxima urgência...
Considerou, por um minuto, o que deveria fazer e, finalmente, decidiu recorrer a
Fable.
Está claro que ele é o único capaz de auxiliar-me; palavras, gramatica e todas essas
coisas fazem parte de sua profissão, pensou.
E, assim, foi procurar Fable, expondo-lhe todas as suas dificuldades. Este ultimo
ouviu-a com simpatia; compreendeu-a e sentiu-se comovido por ver que a jovem se dirigia
a ele nos momentos de necessidade. Com toda a seriedade e numa atitude animadora,
deu-lhe informações com respeito aos livros que lhe seriam úteis; deu-lhe também
algumas instruções preliminares e delicadamente corrigia sua linguagem todas as vezes
que se tornava necessário. Robin estudava entusiasmada e foi tal sua força de vontade
que fez os mais surpreendentes progressos dentro do curto período de quinze dias.
— E meus modos, Andy? — perguntou ela. — São muito inconvenientes, ou achas
que podem servir?
Era tão adorável a seriedade com que falava, que Fable teve impetos de dar-lhe um
abraço.
— Dar-te-ei um valioso conselho si me prometeres segui-lo á risca — disse ele.
E sorriu aquele sorriso amigo e irresistível que enchera sempre de ardor o coração
de Robin. Sorriso de tão perfeita e sincera amizade que ás vezes a fazia esquecer que
Fable a amava. Robin costumava pensar, freqüentemente, que uma das coisas mais
admiráveis em Fable, era a maneira com que jamais permitia que seu amor viesse alterar
qualquer coisa entre eles.
— Prometo — respondeu ela. — Qual é o conselho?
— Apenas isto: sê unicamente aquilo que és; sempre.
— Oh! — exclamou surpreendida. — Mas será suficiente?
— Se isso não for suficiente para alguém, então quererá dizer que... alguém... não é
suficiente para ti. Prometeste; lembra-te.
Riram-se ambos.
— Não me esquecerei — garantiu Robin.
Sua visita ao pai de Kay foi, de fato, um sucesso; Robin estava mais adoravel e
meiga que nunca e logo de principio conseguiu conquistar o coração de Mr. Hallam,
instalando-se definitivamente ali, no ninho que seus encantos e sua naturalidade
construíram para si. Alcançou uma vitoria muito maior do que lhe parecia, pois fez com
que os lamentáveis fatos de sua origem não mais surgissem sob um aspecto tão
apavorante, aos olhos do velho.
O próprio Mr. Hallam nunca pôde imaginar que isso fosse possivel; pois, humano
como era, perturbava-o horrivelmente a idéia de que seu filho estivesse amarrado á filha
de um gatuno vulgar. Desejava dizer a Kay que este era um aspecto do noivado que não
mais o preocupava, mas não sabia qual a maneira mais hábil para fazei-o. Por fim, ao
terceiro dia da estada de Kay em sua casa, conseguiu falar-lhe:
— Bem sabes, meu filho, quando eu soube que Robin era uma artista, senti os
tradicionais escrúpulos — disse Mr. Hallam. — Ela, porém, me fez esquecer. Tua noiva é
encantadora, Kay. Sua alma é tão pura e adorável como as linhas do seu corpo e podes
te considerar felizardo por a teres conquistado. Suas maneiras são tão modestas e
naturais que, vendo-a, ninguém é capaz de dizer que está diante de uma “estrela” quase
celebre.
Uma leve onda de orgulho perfeitamente idiota apoderou-se de Kay, fazendo-o
responder:
— De fato ela é uma “estrela”. Está claro que ainda não atingiu a uma absoluta
celebridade, mas com seu talento e beleza... Dizem não haver limites para as glorias que
o futuro lhe promete.
Mas, compreendendo o próprio entusiasmo, seu espirito obstinado fê-lo acrescentar
consigo mesmo, como que para desculpar-se:
— Não vale a pena contar a papai que as coisas não vão tão bem como ele pensa.
Kay, pois, ignorava até que ponto seu pai estava ao par das circunstancias de seu
noivado com Robin. E o velho Hallam não encontrou motivos para revelar ao filho o que
soubera. Um conhecimento mais intimo de Robin fê-lo entrever na jovem a maior
esperança de transformar Kay num verdadeiro homem, digno e trabalhador. Quanto mais
a estudava mais se convencia de que sua coragem, sinceridade e desinteresse seriam a
salvação de seu filho. A situação talvez não fosse muito agradável para Robin, mas o
velho Hallam adorava Kay e em seu peito, ultimamente, crescia cada vez mais o terror
pelo futuro do filho. A despeito de Robin ter declarado que jamais tencionara se casar
com Kay, Mr. Hallam começava a pensar que nesse casamento repousavam as maiores
chances de felicidade para o rapaz; portanto dispôs-se a procurar um meio de apressar o
mais possivel a data da cerimonia.
— Meu filho, que impede a realização de teu casamento? Não te parece ridículo
continuar a esperar? — indagou ele de súbito.
Kay deu um pequeno suspiro mas não respondeu imediatamente. A pergunta de seu
pai parecia o eco daquela que estivera fazendo a si próprio embora inconscientemente.
— Oh, isso depende de Robin — replicou ao acaso. — Está claro que quando ela
quiser...
— E ela não quer, então? — perguntou o velho lentamente, admirando a própria
hipocrisia.
— Ela tem o seu trabalho... — começou Kay.
— Permitirá ela que isso seja uma barreira entre ambos? — aparteou o pai.
Um outro sentimento idiota ergueu-se no intimo de Kay; um desejo de impressionar
seu pai com a idéia de que Robin se submetia docemente a todas as suas vontades.
— Certamente que não. Para Robin eu estou em primeiro lugar — volveu ele
rapidamente, desculpando-se de novo, consigo mesmo, com o pretexto de precisar
assumir uma aparencia de felicidade.
Mas a idéia da aproximação da data de seu casamento parece que se instalara
definitivamente na atmosfera. Mr. Hallam, encontrando Robin a passeio pelo roseiral,
disse-lhe abruptamente:
— Não achas que ambos poderiam ser muito felizes?
O susto fez com que Robin gaguejasse ao replicar:
— Oh, o senhor sabe que... que essa nunca foi minha intenção... Sabe que era só
temporariamente...
Em sua confusão, deixou caír a tesoura no meio de uma roseira. Procurá-la entre os
galhos cheios de espinhos foi tarefa dificil, e, ao levantar-se, seu rosto risonho tornara-se
mais rubro e perturbado.
— Diabinho de pequena adorável, não é a toa que Kay diz o que diz de ti.
Estas palavras fizeram com que o coração de Robin batesse mais furiosamente.
Que estivera Kay a dizer de si? Era este o estribilho que não lhe saía dos ouvidos. Era um
pensamento que, provocando-lhe um mundo de emoções diversas, lhe roubava grande
parte de seu costumeiro sangue frio.
A frase — “quando vocês dois estiverem casados” — surgia, freqüentemente, em
meio da conversação geral. Velhos amigos da família, que haviam sido apresentados a
Robin, faziam uso dela com perturbadora assiduidade
Uma tia de Kay ofereceu, para a lua de mel, o seu pequenino e adorável “cottage” de
Cotswolds, e presentes de todas as formas e tamanhos eram o tópico de todas as
discussões.
Tudo isto dava a Robin uma sensação de vingança. Estivera noiva! Começou a
sentir que o impulso sob o qual insistira com Kay para que este a pedisse em casamento
fora maior, mais profundo do que a principio julgara.
Até mesmo a exaltada afirmação, que fizera a Mr. Hallam, de que não queria
desposar Kay, nunca tencionara nem tencionaria semelhante coisa, começou a perder,
em seu espirito, a antiga segurança. Só uma coisa a mantinha iria e impassível; Kay
jamais lhe dissera coisa alguma sobre o casamento. E, naturalmente, Robin estava certa
de que a atitude do rapaz era inalterável. Ele não queria desposá-la. Sabia perfeitamente
disso. Entretanto, com todos a dar o casamento por assentado, ela muitas vezes esquecia
essa desagradável circunstancia.
No ultimo dia da estada dos jovens em casa de Mr. Hallam, a situação chegou ao
ponto culminante.
Kay saíra com Robin em sua baratinha e pelo caminho mostrava-lhe os recantos que
conhecia desde menino, onde em cada arvore ficara uma recordação. Ambos estavam
adorando o passeio. Naqueles instantes, todos os rancores passados pareciam
esquecidos, entre eles. Robin estava em seus dias de maior alegria, meiguice e
camaradagem e pareciam duas crianças a rir e a tagarelar.
Ao fazerem uma curva do caminho estreito e sombrio, escaparam de atropelar um
homem alto e esbelto que parecia sonhar, embevecido com a contemplação do
maravilhoso panorama que, ao longe, se descortinava. .
Kay desviou o carro, brecando-o com um estridente ranger. O homem deu um salto
para o lado e voltou-se.
— É Andy! — exclamou Robin. — Andy, grande maluco, por pouco te
esmagávamos! Oh, mas é simplesmente adorável rever-te.
Fable, chapéu na mão, dirigiu-se a eles. Robin estendeu-lhe ambas as mãos e
comprimiu, com afectuoso prazer, a do amigo.
— Como vais, Robin? Meu Deus, como estás bem disposta — disse Fable, como
que a devorar, com os olhos, o rosto radiante da jovem.
Kay, no primeiro momento perfeitamente disposto a fazer ao amigo uma recepção
de igual modo carinhosa, descobriu que sua cordialidade para com Fable se transformara
em qualquer coisa que acelerava horrivelmente o ritmo de suas pulsações — qualquer
coisa que ardia como fogo e parecia de súbito incendiar todo seu corpo. Custou-lhe um
esforço supremo dizer:
— Oh, meu velho, isto é uma excelente surpresa. Mas que vieste fazer aqui?
— Vim procurar bons cenarios para os teus “exteriores” da próxima semana, Robin,
— replicou Fable. — Bem sabes que ainda temos uma porção de cenas ao ar livre para
filmar.
— Como vão as coisas por lá? — perguntou Robin.
Por alguns minutos, para grande desgosto de Kay, ela e Fable conversaram sobre
os trabalhos do estúdio. Kay percebia o sangue ferver-lhe nas veias.
Não sabia por que, mas lhe era quase impossível controlar-se.
Um impulso de formal cortesia fê-lo convidar Fable a subir para o carro e ir tomar
chá com eles. Fable aceitou o convite.
Durante o chá conversaram sobre o filme. Mr. Hallam mostrava-se curioso e
interessado pelo assunto: Kay tinha impressão de que Robin jamais estivera tão feliz e
adorável como naquele momento, rindo e conversando com Fable. Não podia explicar a si
próprio o que sentia; o nosso primeiro acesso de verdadeiro ciúme é sempre dificil de
diagnosticar; mas Kay sabia que era um sentimento negro e desagradável que, por
pouco, o fazia odiar seu melhor amigo.
Robin parecia alegre com a presença de Fable; e Fable? Pois bem; seria algo além
do poder humano esconder o prazer que causava a Andrew ver-se de novo em
companhia de Robin.
Mais tarde, Kay levou Fable aos seus aposentos com o fim de dar uma prosa. Foi
esta pelo menos a desculpa que apresentou. Na realidade, porém, fizera isso por sentir
que seria capaz de morrer si não levasse Fable para longe de Robin.
No confortável aposento de Kay, ambos fumaram e conversaram por algum tempo,
mas entre eles se erguera um estranho constrangimento. Fable estava consciente disto,
mas perfeitamente ignorante dos sentimentos indefinidos que torturavam o coração do
amigo. Quando, não podendo resistir á tentação, Fable tornou a falar de Robin, a situação
começou a complicar-se. Falava ele do aspecto saudável que viera torná-la ainda mais
sedutora que de costume; de como o filme progredia maravilhosamente, — como era
admirável o trabalho de Robin em todas as cenas.
Kay não suportava mais. Sentia necessidade de fazer ver a Fable que, "estrela" ou
não, Robin, em primeiro lugar, era sua — e de mais ninguém.
— Sabes que nos vamos casar dentro de poucos dias? — indagou ele bruscamente.
Fable sentiu uma estranha e dolorosa perturbação em seu peito. Sabia que isto teria
de acontecer algum dia. Mas assim tão depressa! Ceus! como o feria essa idéia!
— Não — replicou por fim — não sabia.
Os ouvidos de Kay, alerta pelo ciúme, perceberam o esforço com que o amigo
pronunciara aquelas palavras.
— Sim — tornou ele, exagerando o tom de despreocupação, para disfarçar o que
sentia. — É esse o desejo de papai. Não há impedimento algum para isso, portanto, no
momento, é uma idéia otima.
Algo em seu tom deixou Fable como que fora de si. Não notara o esforço que frisara
as palavras do amigo, prestara atenção unicamente á frieza da afirmação. Levantou-se e
pôs-se de pé diante de Kay.
— Estás certo de fazê-la feliz? — inquiriu ele com voz tremula.
Isto foi o mesmo que lançar fogo ao estopim da bomba. Kay encarou-o com olhos
faiscantes.
— E que tens tu a ver com isso?
— Simplesmente o seguinte: que para mim seria quase um prazer matar o homem
que maltratasse Robin. Falas em casar com ela nesse tom indiferente e casual como se
lhe estivesses concedendo alguma honra. Grande tolo, quem julgas que és para adotares
semelhante tom? Se tu não és capaz de apreciá-la devidamente... há homens que o são.
— Sendo tu um deles... — aparteou Kay, enfurecido.
— Eu — confesso-o.
— Tu a amas, então?
— Daria a vida para estar em teu lugar — replicou Fable e, virando-se, saíu do
quarto.
Kay viu-o saír, mãos crispadas, olhar em chamas, com Ímpetos (embora
momentâneos) de cortar a cabeça ao seu melhor amigo, por causa da pequena de olhos
e cabelos negros com a qual se ia casar. For que? Por que? Onde poderia descobrir a
razão daquele tumulto de sentimentos enigmáticos que o cegavam?
A resposta veio-lhe subitamente, clara e nítida. Amava Robin. Amava-a com uma
febril loucura de amor que não podia suportar o mais leve olhar de admiração por ela,
vindo dos olhos de um outro homem. Robin era sua; tinha que ser sua, se é que a vida
precisava ser vivida... Kay estava habituado a ver todos os seus desejos realizados. Tudo
que pedia á vida, exigia que lhe fosse dado gratuita e imediatamente...
E, naquele momento, pedia-lhe Robin. Pedia-a a cada batida de seu coração, a cada
gota ardente do seu sangue moço... Pedia-a cegamente, loucamente, egoistamente...
Um momento mais tarde desceu e soube que Fable se retirara e que Robin e seu pai
haviam ido até ao portão, para acompanhá-lo.
Com o coração aos pulos saíu atras deles, encontrando-os já de volta. A presença
de seu pai esfriou-o um pouco, mas não pôde evitar de dizer o que tencionara — todavia
suas palavras foram ditas de maneira bem diversa da que pretendera.
Agarrou Robin pelo braço e sacudiu-a.
— Olha aqui, papai, conta-lhe que nos vamos casar o mais depressa possível —
disse ele.
Conseguiu dar ás suas palavras o ar despreocupado que pretendera.
— Kay! — exclamou Robin com voz apagada.
Mas sentia-se tolhida. Que poderia dizer com Mr. Hallam ali?
Seu coração batia desesperadamente. Tinha a sensação de que tudo girava á sua
volta. Voltou-se para Mr. Hallam, uma interrogação no olhar.
— O senhor quer que nos casemos? — perguntou ela.
— Quero tudo que for para a felicidade de meu filho e... da minha nova filhinha —
replicou o velho.
Robin voltou-se e olhou para Kay, o coração a cantar uma louca canção de
felicidade. Kay lhe pedira para se casar com ele.
— Perfeitamente — disse ela, rindo-se num riso tremulo e nervoso. — Se... se...
Subitamente, porém, desviou-se de Kay e correu para o velho Hallam. Agarrou-o
pela manga do paletó e puxou-o para um lado. Ele procurava fitar seus olhos nos da
jovem. Que fora feito dos protestos que ela fizera de que não se casaria com Kay? Seria
igual ás outras? Pronta a esquecer a própria palavra em face de uma verdadeira chance
de casamento rico?
— O senhor quer mesmo? — perguntou Robin num cochicho. — Sabendo de tudo, o
senhor desejaria que eu me casasse com seu filho?
— Parece que agora é ele quem quer — respondeu Mr. Hallam atrapalhado. — Eu
desejo apenas a sua felicidade.
— Então eu o farei. Casar-me-ei com ele se...
— Se?
— Se o senhor não continuar a dar-lhe tanto dinheiro — gaguejou ela.
Mr. Hallam inclinou-se subitamente e beijou-lhe a fronte com infinita ternura.
CAPITULO IX
Um momento mais tarde, Robin viu-se ali sózinha. Kay não levou muito tempo para
aproximar-se delia. Rapidamente, Robin ergueu os olhos para ele, volvendo-os em
seguida para tras. Mr. Hallam acabava de desaparecer em direção da casa.
Voltou-se então lentamente para Kay, o coração batendo furiosamente. Seus
grandes olhos o fitaram interrogativamente, quase tímidos e confusos. Havia qualquer
coisa no rosto de Kay, que lhe era dificil compreender; uma tempestade de ternura e algo
muito mais violento ali estavam em conflito. Subitamente, ele estendeu a mão, segurou a
de Robin e disse-lhe com agitação:
— Vem comigo a um lugar onde possamos conversar.
Arrastou-a por um estreito gramado, quase correndo, tal a sua ansiedade. À sombra
de um grupo de pinheiros estacou, tornando a encarar sua noiva.
— É verdade o que disseste, não? Vais te casar comigo? — interrogou ele, com
singular precipitação.
— Kay — explodiu ela de chofre. — Que te leva a fazer isso? Por que vais fazê-lo?
Havia um infinito de duvida e angustia em seus olhos.
— Porque te amo — replicou ele. — Estou louco por ti. Completamente louco, penso
eu. Mas amo-te terrivelmente.
Seus olhos quase não a fitavam ao fazer-lhe a confissão. As palavras brotavam-lhe
dos lábios como se de súbito se estivesse rendendo a uma certa força infinitamente mais
forte do que ele próprio, — como se tivesse entrado em luta contra o seu amor por Robin,
mas se sentisse de repente vencido.
— Kay — murmurou ela com voz débil — eu não sabia... eu não sabia...
— Tu... tu... como que me enfeitiçaste — continuou ele, com voz tremula. — Vejo-te
o dia todo... penso em ti constantemente. Habituei-me á idéia de que és minha, Robin. O
“chove-e-não-molha” deste noivado não me satisfaz, não posso suportá-lo.
E, dizendo isto, tomou, entre as suas, a outra mão de Robin.
— Não posso suportá-lo — repetiu. — Enlouquece-me ver-te tão... satisfeita e
propositalmente arredia, não dando mais atenção a mim do que... a qualquer outro
homem. É mais do que me é possivel suportar. É preciso que sejas minha, inteiramente,
exclusivamente. Minha, acima de tudo. Até hoje nunca me importara com nenhuma
jovem, mas tu me deslumbraste, fizeste de mim um escravo.
Robin ergueu os olhos, assombrada ante os sentimentos que seu noivo lhe
confessava. Nunca o julgara tão emocionavel — jamais pudera conceber Kay, o rapaz
alegre, despreocupado e leviano, com aquela flama a arder-lhe nos olhos cendrados,
aquele rictus quase de tortura nos lábios tensos. E, atraves daquela espécie de
fascinação, chegava-lhe aos ouvidos o estribilho da canção eterna — ele amava-a —
amava-a!
E, entretanto, havia em tudo aquilo qualquer coisa que Robin não podia
compreender. Qualquer coisa que se erguia do meio da louca felicidade daquela
revelação e como que a amedrontava. Tinha mesmo a impressão de que despertara no
intimo de Kay algo que talvez fosse melhor tivesse ficado adormecido.
— Mas, não me amaste sempre, Kay? — balbuciou ela por fim. — Quando... te
forcei a me pedires em casamento, não me amavas, então?
— Quando me forçaste a te pedir em casamento, revoltei-me ao sentir-me como
presa de uma armadilha. Revolto-me ainda. Mas deixei isso de parte. Nada me interessa
agora, senão tu. Na tua opinião não sei pintar. Achas que meu trabalho não vale coisa
alguma. Cheguei quase a te odiar quando me disseste isso, tal a fúria que provocou em
minh'alma o veneno de tuas palavras. Agora, porém, nada mais posso fazer além de
amar-te com loucura. Pouco me importa o que penses de meus quadros, nem me
interessa voltar a pintar, contanto que sejas só minha.
Com estas palavras deu um longo suspiro e puxou-a mais para si. Robin, porém,
resistiu e manteve-se onde estava,
Aquilo não era amor, na expressão mais alta da palavra; atraves do vertiginoso
palpitar do sangue em suas veias, esta reflexão apoderou-se de seu espirito; mas era
tarde, pois também ela fora arrastada pelo tumulto de emoções que á volta de ambos se
criara. Não mais lhe era possivel raciocinar com clareza; seria algo além de suas forças
fazer uma pausa para refletir; um único pensamento enchia-lhe o cérebro: ali, em
resposta a seu amor estava o milagre do amor de Kay.
Hallam curvou-se para ela. Seus olhos fitaram os da jovem num súbito relampejar de
cólera.
— Não há mais ninguém, há? Não me vais dizer que... que amas algum outro?
Robin meneou a cabeça, pois seus lábios recusavam-se a falar.
— Juro-te, Robin, si eu suspeitasse que davas um pouco de importância a... ele,
seria capaz de esmagá-lo! — acrescentou.
— Ele? — balbuciou Robin. — Dar importância a ele? A quem? Não... não te
compreendo, Kay.
— A... qualquer outro que não seja eu. Oh, Robin. — (A cólera desaparecera como
que por encanto, deixando em sua fisionomia uma expressão infantil e suplicante). —
Amo-te tanto! Dize que te casarás comigo. Fico doente de pavor só de pensar que podes
gostar de outro.
Isto não se assemelhava mais ao Kay que conhecia. Ao erguer os olhos para o rosto
enternecido do rapaz a tensão que lhe prendia o espirito como se partiu.
— Não gosto de nenhum outro, Kay. Não soubeste sempre disto? — replicou ela
com voz tremula.
Kay apertou-a contra si.
— Mas gostas... de mim? — sussurrou.
— Sempre gostei — confessou-lhe ela.
Com um grito ele tomou-a nos braços.
— És minha, então! Só minha! — exclamou triunfante, apertando-a cada vez mais.
— Kay! Kay! — balbuciou Robin, sem ar.
Hallam afrouxou levemente os braços e num gesto possessivo derrubou para tras a
pequenina cabeça de sua noiva.
— E, olha aqui, isto também é meu.
E com uma gargalhada beijou-a nos lábios.
Robin manteve-se em atitude passiva dentro do circulo dos braços de Hallam, olhos
cerrados, dando-lhe seus lábios sem a menor resistência.
Por fim ele levantou a cabeça. As palpebras de Robin tremularam.
— Querida! Agora vais beijar-me para que eu acredite em teu amor — disse ele,
sorrindo.
Ela sacudiu a cabeça, agitando graciosamente os negros ancis de sua cabeleira.
Soltou-a subitamente e recuou um passo.
— Dá-me a certeza do teu amor — prosseguiu ele, rindo-se como uma criança feliz.
— Dá-me completa certeza de que me amas. Prova-me teu amor de maneira que não
mais me reste uma só duvida.
A pequena distancia que os separava estava ligada apenas por um olhar. Então,
Robin deu um passo á frente, colocou o rosto de Kay no mesmo nivel que o seu e pousou
nos dele seus lábios trêmulos.
— Eu te amo, querido — murmurou, em surdina.
Mas, ao afastar-se para contemplá-lo, com um adorável sorriso de timidez a brincar-
lhe nos lábios, a expressão de felicidade desaparecera da fisionomia de Hallam. Esta
tornara-se de novo nublada por qualquer coisa que ela não podia compreender.
— É a primeira vez que dizes isso? — perguntou ele de chofre.
Robin recuou como que ferida, mas ele, agarrando-a pelo braço, puxou-a de novo
para junto de si.
— Nunca disseste a um homem que o amavas? — repetiu.
— Não! — foi a resposta firme que recebeu.
— Nunca beijaste um outro homem antes de mim?
— Nunca, Kay!
Seu pequenino grito reprovava-o, cheio de ofendida dignidade. Ele tomou-a
novamente em seus braços.
— Oh, Robin, tu me enlouqueceste! Não sei que faria si tivesse que... perder-te,
agora! — exclamou, sua voz como que a implorar perdão.
— Amo-te, Kay, e continuarei a amar-te. É sempre assim, bem sabes, quando
amamos sinceramente alguém — disse-lhe ela delicadamente.
— E és minha, não és? Inteiramente, absolutamente minha? Oh, ceus, se soubesse
o contrario!...
— Se não sou tua, não sou de mais ninguém — replicou Robin.
E viu-se, mais uma vez, dominada pela paixão intoxicante daqueles braços viris.
Terminou, prometendo-lhe que se casariam assim que seu filme estivesse pronto.
Isso o satisfez, mas, se Robin tivesse refletido melhor, teria compreendido que
aquele ciúme louco não passava de um outro aspecto do egoísmo em que se baseara
sempre sua existência. Este deixara sua marca em tudo que compunha a vida de Kay —
suas alegrias, suas tristezas, seus desaectos, e agora — seu amor. Tudo fora atingido
pelo estigma desfigurante do amor-próprio excessivo e vicioso. Antes de compreender
que amava a Robin, servira-se de sua beleza, do seu raro talento, apenas para divertir-se.
E, agora que se sentia inflamado por seu recem-despertado amor, pela ânsia de posse
que dele se apoderara, Robin tinha que ser sua — inteiramente, absolutamente, e
imediatamente. Por tal forma se deixara arrebatar por seus desejos que, naquele instante,
parecia ter esquecido inteiramente a maneira pela qual ela se tornara sua noiva. A revolta
que lhe causava a lembrança do compromisso que fora forçado a tomar e de tudo que
Robin dissera para criticar e zombar de seu trabalho — nada se sobrepunha aquela nova
emoção que rebentara ante uma súbita e violenta crise de ciúmes, ante a compreensão
de que um outro poderia roubá-la de si.
Mas ele a amava. Se não era ainda a emoção grandiosa, desinteressada, ideal, que
caracteriza o verdadeiro amor, é porque não esquecera ainda o egoismo e ociosidade de
uma existência desfrutavel. E vinte e cinco anos de vida não podem ser esquecidos num
momento, ainda mesmo num momento iluminado e vivificado pelo amor.
E Robin?
Sentindo intensa necessidade de estar a sós para voltar um pouco á realidade e
refletir sobre os acontecimentos, fugiu, a correr, para o quarto elegante e batido de sol
que lhe fora reservado.
Sentando-se á beira do leito, cobriu, com ambas as mãos, o rosto esfogueado,
tentando pensar, compreender e quase incapaz de acreditar.
Que se teria passado desde o dia em que declarara a Mr. Hallam que nada a faria
desposar Kay?
Então, não sabia que ele a amava. Mas como teria podido o amor de Kay alterar o
que fora, para si, um principio? Seria ele mais forte ou mais digno porque a amava? Seria
menos egoísta, menos perdulário?
Não. E bem o sabia. Seria seu trabalho menos inferior? Sua vida menos futil?
Não. Mas ele a amava. Tudo que dissera, pensara e sentira, parecia ter-se
evaporado diante deste mágico acontecimento. Ele a amava! e como a amava! Sua
respiração tornou-se opressa só de lembrar a violência das expressões amorosas de Kay.
E como Mr. Hallam a recebera bem! Como era delicioso ser querida e amada
daquele modo! Era o balsamo mais suave, a consolação mais doce que lhe fora dado
conhecer. Sentia-se como que a desabrochar, radiosamente, sob o mais benigno dos
sois; como se, fora do circulo generoso e quente de sua luz, tudo mais fosse frio e
solidão. Ela que jamais conhecera a doçura de um verdadeiro lar — que a experimentava
agora pela primeira vez — sentiu que lhe era impossível abrir mão de um bem tão grande,
tão suave, tão tentador.
Poucos minutos antes, naquele dia maravilhoso, entrara em acordo com Mr. Hallam,
comprometendo-se a desposar Kay desde que era esse o desejo de todos, mas com a
condição dele cortar um pouco a mesada do filho. E então ficara conhecendo o ardor da
paixão que inspirara a Kay. Dera-lhe amor por amor, beijo por beijo. A vida, antes desse
mágico instante, parecia-lhe irreal e confusa.
Queria ir para onde a amavam. Queria aceitar a grande dádiva de amor e felicidade
que lhe fora ofertada, sem pensar, interrogar ou temer. Se Kay desejava simplesmente
viver, rir e amar, sem levar coisa alguma a serio, seu desejo também seria viver, amar e
rir com ele. E si dinheiro, conforto e luxo lhe eram necessários...
Um assobio vindo de fora interrompeu suas meditações, fazendo-a correr á janela.
Olhou para baixo e deu com a cara descontente de Kay.
— Vem cá embaixo, meu anjo — disse ele. — Como pode um mortal suportar a vida
si te escondes dele todo o tempo?
Robin, olhos brilhantes de ternura, riu-se, um riso cristalino.
— Não é preciso fazer uma carinha tão triste — prometeu ela. — Estarei ao teu lado
dentro de um segundo.
Uma vez rendido ao amor de Robin, Hallam continuou a amar com toda a força de
seu egoísmo. Só se sentia feliz quando podia estar com ela; queria que a jovem
dedicasse todos os minutos de seu tempo exclusivamente á sua companhia.
Mas, findas as ferias de Robin, ela teve que voltar aos trabalhos do seu filme. Pelos
seus cálculos, com mais duas semanas este ficaria pronto.
— E agora, Kay... — disse ela, deixando o olhar que trocavam terminar a frase em
seu lugar.
Em companhia de Mrs. Quest, voltou aos seus aposentos; Kay ao seu atelier.
A atitude deste ultimo para com o trabalho de Robin era curiosamente confusa.
Sentia-se assustadoramente orgulhoso dos seus triunfos. Gostava de ouvir os elogios que
faziam ao seu talento, mas ressentia-se do tempo que ele lhe tomava e enfurecia-se ante
a idéia de que ela pudesse ter um interesse tão grande por uma coisa que, em nada, se
relacionava com sua pessoa. Alem do mais, a volta de Robin ao estúdio significava estar
ela diariamente com Fable. Mas sabia como iria suportar isto.
Seu primeiro encontro com Fable, depois da pequena altercação que tiveram, foi
bastante frio. Esbarraram-se diante das grandes portas giratorias do estúdio
cinematografico.
— Meu velho, como vais? — exclamou Hallam, com afetada naturalidade.
Ia seguir seu caminho, mas Fable o agarrou pelo braço.
— Kay, isto não basta — disse ele.
Hallam hesitou.
— Não sei que mais podes desejar — replicou este ultimo com fingido ar de
inocencia.
— Apenas que me permitas pedir-te desculpas — continuou Fable calmamente. —
Eu não tinha o direito de dizer-te tudo que te disse o outro dia.
— Nenhum homem gosta de saber que os outros amam a sua namorada —
começou Kay.
— Terás que te habituar a isso — replicou Fable. — O amor dos homens é a única
coisa que Robin jamais conseguirá evitar. Não te peço desculpas por amá-la. De que
serve pedirmos desculpas daquilo contra o que nada podemos? Nesse caso deveríamos
pedir desculpas por termos olhos azuis, pés grandes ou qualquer outro predicado ou
defeito com que nascemos. Além do mais, não se pede perdão pelas coisas das quais
não nos envergonhamos. Mas eu duvidei que fosses capaz de fazer a felicidade de Robin.
Duvidei mesmo da tua sinceridade. Por isso quero que me perdoes, Kay. Ela é,
atualmente, a criaturinha mais radiosamente feliz da terra. E foste tu que o conseguiste.
Diante disto, Kay, impulsivamente, estendeu-lhe a mão.
— Andy, meu velho, meu querido amigo, fui um estúpido por ter brigado contigo.
Mas eu me sentia infeliz e exaltado naquele dia. Provavelmente disse uma porção de
coisas... provocantes. Até então eu não sabia que eras capaz de amar desta maneira e
tive a impressão de que me haviam esbofeteado no rosto. As coisas entre mim e Robin
ainda não estavam acertadas e firmes como estão agora.
Apertaram-se as mãos.
— Obrigado — disse Fable.
— Ela sabe? — perguntou Hallam.
Uma onda rubra inundou as faces de Fable.
— Oh, sim — replicou ele. — Ela repudiou-me, pois foste sempre o eleito de seu
coração.
Nesse ponto Hallam, repentinamente, descobriu que os ciúmes que Fable lhe
inspirara não mais existiam. Ninguém poderia ter ciúmes de um amor sentido com tanta
nobreza, tão francamente confessado e desinteressadamente concebido. A única coisa
que sentia agora, era uma enorme piedade por Fable.
— Não calculas até que ponto te lamento, meu caro — disse ele por fim, levemente
gago. — É... realmente duro.
Fable, porém, sorriu.
— Duro? Vê-la feliz como está agora? Não, meu velho, estás muito enganado.
E com isso separaram-se — Fable para a rua, Hallam para o longo corredor que
dava acesso ao estúdio. Não sei de onde, como que de distancias remotas e
desconhecidas, chegou, adejante, ao espirito de Hallam, a impressão de que acabava de
provar a mais bela e maior emoção de sua vida. E, embora não a compreendesse bem,
essa impressão foi uma espécie de sedativo para sua alma.
A caminho de casa, havia algo novo em sua voz ao dizer a Robin:
— Meu amor, não me contaste que o pobre Andy estava tão seriamente enamorado
de ti.
A jovem voltou-se para ele, levemente enrubescida.
— Achei... preferivel calar-me — replicou ela — mas fico contente por ver que ele
próprio te fez conhecedor disso. Quero que saibas de tudo, querido.
— Fiquei com muita pena dele. Coitado, é uma grande alma.
Robin concordou com um movimento de cabeça. Continuaram em silencio até que
Hallam parou o pequeno carro diante do prédio de apartamentos.
— Senti terríveis ciúmes de Andy — disse ele então, abruptamente.
Havia uma rara nota de confissão no tom de suas palavras.
— Kay! — exclamou Robin, olhos arregalados de espanto.
Kay enrubesceu.
— Sim, eu sei — volveu ele calmamente. — Mas que podia fazer si os sentia?
Desceu do carro e ajudou-a a fazer o mesmo.
— Não era preciso — replicou ela.
— Mas isso passou.
— Não precisas ter ciúmes de ninguém, Kay. Não sabes disso?
— Acho que sei — admitiu ele com certo azedume na voz.
— Kay! — exclamou ela ferida pelo seu tom. — Não tens ciúmes de ninguém, tens?
— Oh, Robin, tenho ciúmes de tudo que te afasta de mim...
— Kay, Kay, que devo fazer para convencer-te? — perguntou ela, uma expressão de
desespero na voz e no olhar.
Ele inclinou a cabeça até que seus lábios ficassem colados aos ouvidos de Robin.
— Casar comigo, apenas — murmurou ele. — Ser toda minha...
— Bem sabes que o farei; já tens minha promessa. Assim que o filme...
Mas Kay afastou-se dela, carrancudo, e o que disse do filme não foi muito lisonjeiro.
Depois mudou de assunto e manteve-se mal humorado e implicante pelo resto da noite.
Quando Hallam viu que os quinze dias combinados se haviam passado sem que o
filme ficasse pronto, começou a inquietar-se. Viu seu casamento com Robin adiado
indefinidamente.
Um dia, pela manhã, mandou-a para o estúdio num taxi, em lugar de levá-la em seu
carro, dizendo-lhe que iria buscá-la á tarde, como de costume. Sua atitude era quase
misteriosa e Robin sentia-se bastante intrigada; nada perguntou porém e ele veio buscá-la
durante o dia justamente no momento em que ela tirava o seu “make-up”.
— Eu disse a Shale que tu não virias ao estúdio amanhã — anunciou Kay a caminho
de casa.
— Kay... mas por que? Tenho tanto que fazer. Minha tarefa é apertadíssima —
replicou.
— E a minha também — respondeu Kay, rindo-se excitadamente.
Voltou-se então para a jovem, fisionomia radiante.
— Anjinho adorado, vais te casar comigo amanhã, em vez de ires ao estúdio. Já tirei
a licença. Está tudo arranjado, sabes?
O espanto como que paralisou a voz de Robin.
— Kay! — foi tudo o que pôde dizer. Ao mesmo tempo seu rosto nublou-se.
— Não estás contente? — perguntou ele. — Não queres casar comigo?
— Bem sabes que sim. Apenas estou surpreendida. E Shale planejou tanta coisa
para amanhã...
— Oh, deixe Shale, o filme e tudo mais! Não sou eu mais importante que esse film?
Não significo mais para ti? — explodiu ele.
Robin pousou a mão num de seus ombros.
— Bem sabes que vales mais que tudo, para mim. Mas amanhã! Tão... depressa,
tão de repente!
O pequeno tremor de sua voz deixou Hallam comovido.
— Robin, não achas que vai ser divino? Ficarás sendo minha, de verdade. Mrs. Kay
Hallam! Querida, até as alianças eu já comprei!
À meia luz do hall, junto á escada que dava para o apartamento de Mrs. Quest,
subitamente, Robin abraçou-se a Hallam, fazendo-o abaixar a cabeça até o nivel de seus
lábios.
— Estou contente, contente, contente — murmurou ela rapidamente, fugindo logo
após pela escada.
Casaram-se na manhã seguinte ás onze horas e a primeira coisa que fizeram foi
mandar um telegrama ao velho Hallam, comunicando-lhe a nova.
Depois disto, voltaram ao atelier para almoçar. Encontraram, ali, tudo preparado
para recebê-los, pois Mrs. Quest se encarregara dessa parte.
E ambos ficaram de pé a contemplar a mesa do almoço.
— Nosso almoço de núpcias — disse Kay com uma nota de vibrante excitação na
voz.
Robin ergueu os olhos tímidos e plenos de ternura e pousou-os nos dele. No mesmo
instante viu-se entre seus braços.
Por fim Kay soltou-a novamente para ajudá-la a despir o casaco; tirou depois o
pequenino chapéu, arrumou-lhe os cabelos negros e encaracolados, sorriu-lhe e
conduziu-a ao lugar que lhe fora reservado na mesa.
Sentou-se depois diante delia e inclinou-se para a frente.
— Dá-me um beijo, querida?
Por cima da pequena mesa seus lábios se encontraram.
— Oh, como eu te amo! — exclamou ele. Separaram-se, sem tirar os olhos um do
outro e ele derrubou um pequeno maço de cartas que estava junto ao seu prato.
Abaixou-se para apanhá-las.
— Se me amares sempre assim... Oh, uma carta de papai — exclamou,
interrompendo-se.
Contemplou o envelope por um momento, depois rasgou-o, abriu-o e retirou a carta
que ele continha. Leu-a a principio com uma expressão intrigada, depois alarmada e por
fim de franca contrariedade.
— Que aconteceu? — perguntou Robin rapidamente.
— Que aconteceu? Papai ficou maluco! Deve ter ficado, por força. É absurdo! —
exclamou.
— Kay, mas que foi? Que queres dizer com isso?
— Deixou-me sem um shilling! Cortou minha mesada! Diz-me que trabalhe e ganhe
para manter-me! Bom Deus! Ele está louco!
Levantou-se e começou a passear agitadamente pela sala.
— Jamais vi uma coisa semelhante. É desproposital! Ridiculo! — continuou Kay,
andando para baixo e para cima. — Nunca o supus capaz de cometer uma mesquinhesa,
na vida. E agora prega-me uma peça destas. Não pode ser verdade. — (Voltou
novamente á carta). — E, contudo, é mais que verdade! Não há mais duvida. Mas por
que? Para que? Que fiz eu para merecer tal coisa? Deixou-me a nenhum. Não me resta
um centavo, além do pequeno saldo que ainda tenho no banco. Por Deus, vou escrever-
lhe um carta e ele se arrependerá quando recebê-la!
Nesse momento Robin pôs-se de pé, com expressão resoluta, uma das mãos sobre
o espaldar da cadeira, a outra sobre a mesa, e encarou-o.
— Kay — disse ela quase num fio de voz — a culpa não é dele. Não deves escrever-
lhe.
— A culpa não é dele? — repetiu o rapaz. — Então de quem é?
Robin ergueu a cabeça e respondeu, já agora com voz perfeitamente segura:
— Minha!
— Tua? Mas que tens a ver com isto? — indagou sem compreender.
— Pedi a teu pai para fazê-lo — explicou ela.
Fez-se um súbito silencio na sala.
— Tu lhe pediste para fazê-lo? — ecoou a voz de Hallam, por fim.
Robin confirmou com um movimento de cabeça.
— Pediste-lhe para abandonar-me deste jeito? Pediste-lhe para dar-me este golpe e
deixar-me sem um único centavo? Pediste-lhe tudo isto?
Mais uma vez ela sacudiu a cabeça afirmativamente.
— Sim, Kay. Eu lhe pedi.
Hallam passou a mão pelo cabelo e esfregou a nuca.
— Robin, que loucura me estás dizendo aí? — explodiu.
— Não é loucura alguma. Apenas a verdade — replicou a jovem, com menor
firmeza.
Tanto quanto Kay, chocara-se ante o assombroso exagero com que Mr. Hallam
cumprira a promessa que lhe fizera. Assustava-se agora diante do resultado devastador,
do que fizera, visando unicamente a felicidade de Kay. Não fora aquilo o que pedira.
— Não compreendendo coisa alguma do que estás dizendo — continuou Hallam. —
É um absurdo tão grande! Tão excessivamente fantastico!
— É a verdade — interrompeu a jovem. — Será melhor que acredites nela.
— Pediste a papai para cortar minha pensão? Para abandonar-me deste modo? —
insistiu Kay.
Robin hesitou um momento.
— Não foi bem isso. Pedi-lhe que não te desse uma mesada tão... tão horrivelmente
grande, eis tudo.
Compreendeu, á medida que as pronunciava, que suas duas ultimas palavras
haviam sido quase inadequadas.
— Eis tudo — repetiu Kay, de um modo singular. — E é mesmo verdade?
— Sim, é verdade — assegurou ela.
Subitamente Hallam deixou-se caír na cadeira em que estivera sentado, como se as
forças lhe faltassem.
— Pois bem, estou... vencido — balbuciou ele lentamente, cravando os olhos em
Robin.
Havia uma espécie de terror na expressão do olhar de Kay; como se,
repentinamente, ele tivesse descoberto que, em vez da jovem que conhecia e amava,
Robin não passava de uma estranha para si.
E, então, tendo na voz uma incrível nota de dor que Robin jamais pôde esquecer, ele
exclamou:
— Eu... julguei que me amavas. Oh, Robin... eu julguei que me amavas...
Isto foi dito de uma maneira tão infantil e amarga que Robin, com a rapidez de uma
flecha, deu volta á mesa e foi ajoelhar-se ao seu lado.
— Kay, não digas isso. Não digas isso, querido. Eu te amo. Sabes que te amo.
E passou os braços á volta dele.
— Como podes amar-me... se fizeste uma coisa destas? — replicou ele. — Não é só
o dinheiro... mas tu voltaste papai contra mim. Fomos sempre bons amigos e agora tu... o
voltaste contra mim. Como podes dizer que me amas?
Robin achava-se admirada ante a maneira calma pela qual ele estava encarando o
acontecimento, pois esperava por uma verdadeira tempestade. Era como se sua dor
fosse grande demais para dar lugar á cólera.
— Não o voltei contra ti. Ele continua a ser tão teu amigo como d'antes. Mais ainda,
Kay — mais ainda, contestou ela.
— Jamais me lembro de tê-lo visto cometer um ato mesquinho e pouco generoso
como este. Jamais! Que fizeste a papai? Como conseguiste influenciá-lo a ponto de
transformá-lo deste jeito? É como se tivesses enfeitiçado a nós todos. Conseguiste fazer
com que eu te amasse. Forçaste-me a brigar com meu maior amigo e agora voltas meu
pai contra mim. Que fizeste conosco? E por que? Qual o teu intuito?
Os braços de Robin afrouxaram-se, afastando-se de Hallam. Ergueu-se, fitando nele
os olhos, com uma expressão de horror.
— Kay! Estás farto de saber que isso não é verdade! Sabes que não mereço
semelhante acusação. Como poderia eu forçar-te a me amar? Alguma vez tentei seduzir-
te? Vamos, responde-me!
— Quem pode lá saber o que tentaste? — tornou Hallam.
— Fui eu que te fiz brigar com Andy? Se assim foi, podes estar certo de que agi
inconscientemente. Nem sequer sabia o que se passava. Não tenho culpa que ele me
ame. A não ser que me queiras culpar de ser... eu. E, quanto ao teu pai, é bom que
saibas que, embora te pareça cruel, mostrou-se mais teu amigo agora, que nunca. Antes,
nunca se lembrara de te dar uma oportunidade, e foi simplesmente isso o que lhe pedi
que fizesse: dar-te uma oportunidade.
Conteve a respiração no tremor de um soluço. Hallam ergueu-se subitamente, tendo
na voz o reflexo da tempestade que em seu intimo se formava.
— Que direito tinhas tu? Que direito tinhas tu de intervir? — inquiriu com violência.
Robin firmou-se onde estava e continuou a enfrentá-lo.
— O simples direito de que... te amava loucamente e se me tornara impossível ver
por mais tempo dissipares a vida da maneira que o fazias. Tudo por teres dinheiro em
demasia, por veres tudo tão fácil diante de ti a ponto de jamais teres tido a menor
necessidade de fazer um esforço, de qualquer espécie que fosse — continuou ela,
respiração opressa.
— Com que então foste tu que o induziste a fazer semelhante coisa? Convenceste-o
de que sou o dissoluto que me tens em conta e conseguiste que ele fizesse isto?
— Eu não lhe pedi para fazer exatamente isso. Estou tão surpreendida como tu.
— Pretendes negar tua responsabilidade?
Robin levantou a cabeça, uma resposta inflamada aflorou-lhe aos lábios, mas
tornou-se fria antes que fosse traduzida em palavras, pois ela reconheceu a justiça da
acusadora pergunta de Kay.
— Não. Não pretendo negar que sou a responsável pelo ato de teu pai. Sou. Apenas
não tentei fazer com que teu pai te julgasse um dissoluto. E eu própria não acho que
sejas tal. Kay, bem sabes o que penso de ti!
— Não sei coisa alguma. Minha cabeça é um caos. Não sei qual a verdade, nem o
que devo pensar. Além disso... fui suficientemente idiota para amar-te. E desiludiste-me
como jamais ninguém o fez em minha vida. Em quem mais poderei acreditar si não posso
crer em ti? Quem será meu amigo se papai não o é?
Em meio de tudo que a angustiava naquela cena, uma circunstancia vinha alegrar-
lhe a alma. A perda de sua fortuna, até aquele instante, pouco impressionara a Kay. As
coisas que em primeiro lugar ele sentira perder foram a amizade de seu pai e a confiança
que depositara em sua noiva. Isto era como uma punhalada para o pequenino coração de
Robin, mas, ao mesmo tempo, alegrava-o.
Tentou convencê-lo do contrario, tentou fazer voltar a fé e o amor perdidos, mas foi
tudo em vão, Kay não podia acreditar que seu pai, sendo ainda seu amigo, tivesse feito o
que fizera. Não podia crer que Robin, amando-o sinceramente, tivesse desejado
semelhante coisa. Parecia impossível afastar de seu espirito a convicção de que Robin
influenciara seu pai a que o tivesse em conta de dissoluto e indigno; que, por algum
motivo inteiramente inexplicável, conseguira prendê-lo nessa armadilha, fingindo que o
amava.
Nesse momento, Robin aproximou-se e, segurando-lhe os ombros com suas
mãozinhas nervosas, obrigou-o a fita-la de frente, erguendo para ele o rosto tremulo.
— Não podes pensar tudo isso de mim, Kay. É simplesmente impossível. Acaso não
vês como nos temos, amado? Teriam estas ultimas semanas sido apenas uma ilusão?
Kay, volta os olhos para esses dias adoráveis, lembra-te de tudo que se passou. Nada
mais te peço, querido. Podíamos ter sido... profundamente felizes como fomos... se um de
nós dois estivesse fingindo? Tu compreendes... tu deves compreender que seria
impossível!
Pelo semblante de Hallam passou a sombra leve de uma duvida e Robin continuou
com verdadeira avidez.
— Parecia eu fingir, quando deixei que me tomasses nos braços e me beijasses?
Poderiam ser falsos os beijos que te dei? Oh, meu amor, se eu fosse capaz de
representar com tal perfeição não teria tentado alcançar o posto de “estrela”
cinematográfica — (sorriu-lhe com lábios trêmulos) — desde o primeiro instante meu
nome rebrilharia sob a luz ofuscante da gloria e da celebridade... Mas tu sabes que eu
não estava fingindo, Kay. Sabes o quanto fui sincera contigo, com teu amor, não é, Kay?
E com isto alçou-se nas pontas dos pés até que sua cabeça atingisse o nivel do
rosto de Hallam. Por um instante o rapaz vacilou, mas, súbito, desvencilhou-se das
pequeninas mãos que o prendiam.
— Por que fizeste aquilo, então? — indagou ele.
Robin recuou um passo e seus olhos inundaram-se de pranto.
— Por te amar com... loucura — replicou desanimada. — Oh, não é preciso
acreditares em mim. Bem sei que não o farias. Contudo é verdade. Jamais existirá
verdade maior. Talvez pareça um absurdo, Kay, mas eu te amo. Sempre te amei. Desde
aquela tarde em que dancei na feira, acho eu. Parece mesmo que não me recordo de
tempo algum, em que não te amasse. Por isso sentia-me enlouquecer de desgosto diante
da vida ociosa que levavas. Confessei-o a teu pai. A única coisa que ele fizera até então,
fora dar-te dinheiro e mais dinheiro, como se fosses um aleijado, incapaz de cuidar de si
próprio, como se não possuisses um cérebro para pensar e mãos para trabalhar. Disse-
lhe eu que jamais conseguirias coisa alguma com tuas pinturas e que... para cada dia de
trabalho, passavas pelo menos dez, entregue a diversões e passatempos. Eu
testemunhara isso, Kay, e lhe estava contando unicamente a verdade. E tu sabes que é
verdade. És capaz de contemplar todos estes pequenos, confusos e inacabados esboços
que nos rodeiam e afirmar que pintá-los é profissão digna de um homem?
— Deixa meus trabalhos em paz. Já sei o que pensas deles; já me disseste! —
berrou ele. — Mas deixa-me dizer-te que as pessoas entendidas em arte não estão de
acordo contigo. Isso nada tem a ver com o caso. E o caso é que me puseste neste
desgraçado embrulho e que tuas explicações parecem perfeitamente incoerentes.
Confessares que me arruinaste, que persuadiste meu pai a fazer de mim um mendigo,
pela única razão de me amares é... é ridículo, Robin. Pelo menos é um meio muito
esquisito de dar provas de afeto.
E, com isto, deu uma volta pela sala, fisionomia carrancuda. Súbito, parando diante
de Robin, acrescentou violentamente:
— Seja lá como for, não é essa espécie de amor que ambiciono.
— Muito bem — replicou a jovem, calmamente. — É o único que te posso dar.
Houve um instante de silencio.
— Que irei fazer agora, subitamente deserdado desta forma? — explodiu ele.
— Poderias... trabalhar — sugeriu Robin.
— Em que?
Robin voltou para ele seus grandes olhos.
— Pois bem, Kay, se faço um juízo tão errado sobre tua arte, porque não fazes dela
um meio de vida? — indagou lentamente.
— Eu... eu... — começou ele, gaguejando, pois no intimo de sua alma reconheceu
que aquilo era impossível, que, de sua arte, jamais faria um meio de vida. — Que estás
pensando? — acrescentou com voz áspera, para disfarçar o próprio desapontamento. —
Julgas que um artista pode ser julgado apenas pelo que ganha? Que seu valor pode ser
calculado pelo numero de libras que ele consegue obter em troca de seu trabalho? Meu
Deus, tu não sabes o que é arte...
— Kay — exclamou Robin, olhos subitamente acesos. — Se eu tivesse visto uma só
pincelada tua capaz de despertar a admiração de alguém, capaz de arrancar de uns
lábios esta frase "Ele nunca fez outra coisa na vida, mas foi um verdadeiro artista", então
eu te diria: "Continua, sê rico ou pobre, mas continua", porque valeria a pena. E se fosses
rico eu viria e seria rica contigo, assim como se fosses pobre compartilharia de tua
pobreza. Mas nunca conseguiste dar essa pincelada. E nunca o conseguirás. Não
nasceste para isso. E a culpa é dos amigos interesseiros que te rodeiam, enchendo teu
espirito de ilusões e alimentando tua vaidade a troco de passeios, festas e diversões.
Acho que fui a primeira pessoa que te disse a verdade. Julgas que senti prazer nisso?
Enganas-te. Foi o maior dos sacrifícios para mim. Oh, no fundo do meu coração, eu sabia
que não devia me casar contigo! — terminou ela, contendo-se a custo.
— Então, por que o fizeste?
Esta pergunta saltou-lhe dos lábios em tom ríspido e cruel.
— A razão é a mesma de sempre — replicou a jovem com voz pouco firme. — Eu te
amava demais para não o fazer. Julguei que não quisesses e quando descobri que esse
também era teu desejo... fiquei, simplesmente, cega de felicidade. E então a tentação foi
grande demais para minhas forças. Pensei que pudéssemos esquecer tudo... para nos
amarmos e sermos felizes. Contudo, no fundo, eu sabia que era impossível.
Ao findar estas palavras apanhou o capote e o chapéu e dirigiu-se á porta.
— Para onde vais? — perguntou Hallam, rapidamente.
— Lá para baixo... outra vez — respondeu ela.
Só então a tempestade estalou; esgotou-se a paciência de Kay. Acaso ela pensava
que podia metê-lo no lodo de suas tramas e depois abandoná-lo calmamente? Se assim
era, estava muito enganada. Deixara-o pobre, mas, por Deus, obrigá-la-ia a ficar e ser
pobre consigo.
Disse então uma porção de coisas cuja única lembrança, mais tarde, o faria corar e
terminou, abrindo a porta do seu quarto e empurrando Robin para dentro.
— Olha — ordenou-lhe com voz rouca.
Robin obedeceu e, em surdina, murmurou uma exclamação. O quarto de rapaz no
qual, certa noite, ela permitira que Mayhew Tearle a surpreendesse, transformara-se,
agora, num elegante apartamento feminino, com brancas e vaporosas cortinas, ás
janelas, um lindo acolchoado de cetim rosa sobre o leito e todos os seus objetos —
pentes, caixas de "rouge" e pó de arroz — arrumados sobre o gracioso psyché.
Ela ficou em muda contemplação, durante alguns minutos.
— Quem foi que arranjou tudo isto? — perguntou.
— Eu e Mrs. Quest — respondeu Hallam com brutalidade.
— Todas as minhas coisas! — balbuciou Robin. Entrando subitamente no quarto,
correu para o grande guarda-roupa e abriu-o. Todos os seus vestidos ali estavam,
enfileirados na mais admirável ordem.
— Não iremos fazer papel de loucos perante os outros, não é? — rosnou Hallam.
Robin colocou o casaco e o chapéu em uma cadeira e o encarou.
— Está claro — concordou lentamente, os lábios muito trêmulos. — Mas... que
vamos... fazer?
Atraves do pequeno espaço que os separava seus olhos se encontraram.
É uma linha muito fina que separa uma emoção forte de outra. O riso, muitas vezes,
se confunde com o pranto; muitas vezes deixamos escapar uma lagrima atraves do riso e,
assim, a fúria de Hallam desapareceu, repentinamente, sob uma emoção mais forte.
Aproximou-se rapidamente da jovem... e puxou-a para junto de si.
— Casaste comigo... não é? — perguntou-lhe com voz vacilante.
Robin sacudiu a cabeça em silencio.
— Portanto, és minha.
Seus braços enlaçaram-na. Robin agarrou-se avidamente a ele.
— Podes perdoar-me, então, Kay? Tudo volverá... a ser como antes, entre nós? —
sussurrou.
— Posso perdoar tudo, tendo-te em meus braços — respondeu ele com ardor,
pousando os lábios nos delia.
Mas Robin desvencilhou-se dele e afastou-se.
— Oh — exclamou quase num sopro. — Não... não posso... ser amada deste modo!
E fitou-o com uma espécie de pavor nos grandes olhos umidos.
Por um momento os olhos de Kay, inflamados de paixão, refletiram-se nos da jovem.
Depois, deixando escapar um longo suspiro:
— Muito bem... compreendo. Desculpe-me. — (E deu-lhe subitamente as costas). —
Oh, deixa-me saír um pouco e... pensar — balbuciou.
Sem mais uma palavra dirigiu-se á porta e saíu, batendo-a violentamente. Robin ali
ficou, respirando rapidamente, as mãos crispadas sobre o peito, a ouvir o som dos passos
de Hallam que morriam pela escada abaixo.
CAPITULO X
Era tarde — quase seis horas — quando Hallam voltou. Robin passou por todos os
terrores que sua viva imaginação pôde criar com respeito a ele, desde a possibilidade de
um atrito com Mr. Hallam, até o suicídio. Lá pelas cinco horas preparou um lunch e deixou
tudo pronto para quando ele voltasse. Sentando-se ao lado da pequena mesa posta, pôs-
se á escuta, o coração batendo violentamente a cada ruido que percebia na escada.
Súbito ouviu passos de alguém que subia e parava diante da porta. Como que parou de
respirar, á espera do barulho da chave na fechadura. Em vez disso, porém, ouviu uma
pancada na porta.
Levantou-se e abriu-a. Fora, estava o homem que ocupava o apartamento do andar
inferior.
— Vim apresentar-lhe minhas congratulações, Mrs. Kay — disse ele, sorrindo e
estendendo-lhe a mão.
— Oh — exclamou ela com voz apagada. — Muito agradecida mas... Kay saíu... por
um momento... — (Por seu espirito passara a lembrança da recomendação de Kay; não
deviam fazer papel de loucos perante os outros. E não o faria, pensou esforçando-se por
sorrir). — Como foi que o senhor veio a saber? — perguntou.
— Soube-o pela velha Mrs. Quest. A senhora e Hallam são os seus encantos. Ela
está espalhando a novidade pela vizinhança.
— Oh, pobre Mrs. Quest! — exclamou Robin com indisfarçavel amargor. — De
qualquer modo, porém, agradeço-lhe muito. Comunicarei sua visita a Kay assim que ele
voltar.
Despediram-se, sorrindo, e Robin fechou a porta. Seu sorriso, porém, morreu-lhe
nos lábios ao sentar-se novamente em sua cadeira. Todo mundo iria saber, agora.
Horrível, o que acontecera! Como poderia ela continuar a fingir, quando sentia o coração
partido em mil pedaços? Continuou sentada, á espera.
Hallam voltou, por fim, mas ao sentir que se aproximava da porta, percebeu que não
vinha só. Passos de mais alguém misturavam-se aos de Kay e minutos depois ele abria a
porta, dizendo secamente:
— Vamos entrar.
Robin levantou-se nervosamente e ficou em expectativa.
Hallam entrou seguido por Fable. O coração de Robin parecia arrebentar de tanto
bater. Que significaria tudo aquilo? Por que teria Kay trazido Fable ali? Percebeu que
estendera a mão a Fable e que sorria um sorriso radiante, mas nunca pôde saber como
conseguiu isto.
— Mil felicidades, Robin — disse Fable, curvando-se sobre sua mão. — Os meus
mais ardentes votos de felicidade.
— Obrigada — replicou ela com voz tremula, perguntando a si própria até que ponto
estaria Andy ao par da verdade.
— Senta-te e fuma, Andy — aparteou Hallam.
Fable obedeceu; com a permissão de Robin começou a fumar seu cachimbo. Os
últimos raios de sol ainda brilhavam e Hallam recuou as cortinas para que penetrassem
na sala.
Apanhou então um de seus quadros que estava no chão com a frente voltada para a
parede e, olhando para Fable, virou a tela para que este ultimo pudesse vê-la.
— Vamos. Dize-me a verdade, já que até aqui ainda não o fizeste. Que achas disto?
— indagou ele.
Por um instante, francamente surpreso, Fable contemplou o quadro sem saber o que
fazer.
— A verdade, por favor — insistiu Hallam.
Diante disso Fable tirou o cachimbo da boca e pronunciou a verdade com uma única
palavra.
— Péssimo.
O silencio que se seguiu parecia queimar os ouvidos de Robin. Vendo, atraves de
um véu de lagrimas, a expressão de profundo desconsolo que se estampara no rosto de
Kay, seu primeiro impulso foi protestar contra o veredictum de Fable, reprovar sua
brutalidade, magoá-lo mesmo. Ansiava por apagar a dolorosa expressão que nublara o
olhar de Kay, ainda que, para isso, fosse necessário mentir, proferir um falso elogio.
Mas este tumulto de pensamentos e sensações findou-se antes que houvesse dito
qualquer coisa. E agora murmurava consigo mesma:
— É verdade... é verdade. Ele precisa saber. É preciso que alguém lhe diga. Mas,
oh, meu Deus, eu não queria mais ver em seu rosto essa expressão horrível!
Hallam atirou a tela ao chão, deu alguns passos e voltou com outra.
— Péssimo — repetiu Fable.
Esta tela seguiu a primeira. Uma terceira teve igual destino e assim a quarta. A
quinta mereceu um comentario mais animador.
— Melhor, mas fraco.
Sexta, sétima, oitava e nona, foram todas condenadas com o mesmo "péssimo". A
décima era um esboço de Robin.
— Este é o melhor de todos — disse Fable.
— Valeu a pena fazê-lo? — indagou Hallam.
— Sob que ponto de vista? — contraveio Fable.
— Sob o único importante, o ponto de vista artístico.
Fable hesitou.
— Não — retorquiu afinal, com voz firme.
O pequeno esboço de Robin seguiu os outros.
— E é esse o melhor? — repetiu Hallam.
— Sim.
— E, mesmo assim, não valeu a pena fazê-lo?
— Não.
Hallam respirou profundamente, enchendo os pulmões de ar.
— Muito bem; então é verdade. Eu não presto para nada. Sou um estroina, um
pretencioso, um idiota. Muito obrigado, Andy; era tudo que eu desejava de ti.
Fable ergueu-se e retirou-se quase em silencio, o que foi admirável de sua parte,
pois Robin estava longe de poder falar; só lhe era possivel continuar sentada, olhos
boiando em pranto e fixos num ponto.
Assim que a porta se fechou por tras de Fable, Hallam dirigiu-se ao monte de
quadros que jazia no chão. Tirou do bolso um canivete e principiou a separar as telas da
armação de madeira a que estavam presas. Feito isto, enrolou-as juntas e enfiou-as num
grande cesto de papeis inúteis.
— E este é o fim dos meus pobres ideais — considerou ele.
Robin continuava sem encontrar o que dizer.
— Com que então venceste, hein, Robin? — acrescentou.
Seu tom era agressivo. Parecia desafiá-la a triunfar com sua derrota; estava mesmo
certo de que ela o faria.
Robin, porém, ergueu um rosto contraído e tremulo que, segundo depois, procurava
ocultar com as mãos.
— Oh... se soubesses o quanto eu preferia ter sido vencida! — exclamou ela, em
pranto.
Hallam olhou-a, sobrolho cerrado. O desespero da jovem era perturbador. Mas o fato
de que ela o repelira pouco antes dominava ainda amargamente sua lembrança.
— Vamos — disse-lhe secamente. — Temos um balanço a fazer.
Robin ergueu o rosto umido de lagrimas, enxugou os olhos e tentou conter o ritmo
alterado de sua respiração.
— Sim, Kay, estou pronta...
Hallam acercou-se da secretaria, de onde retirou um livro de cheques e uma
caderneta. Após atirar esses objetos para cima da mesa, puxou uma cadeira, sentou-se e
pôs-se a investigar sua situação financeira.
— Parece que ainda tenho a meu credito a magnífica soma de dezessete libras,
onze shillings e dois pence — concluiu ele. — E, isso mesmo, por generosidade tua e de
meu ilustre pai.
O sarcasmo das palavras de Kay foi como uma chibatada que só serviu para
enrijecer o coração brioso de Robin.
Hallam tirou do bolso a carteira e um punhado de moedas. Contou tudo.
— Nove soberanos em notas — disse ele. — Doze shillings, sete pence e meio em
miúdos. Acrescentemos a isto o saldo que me resta no banco, e meu capital total soma...
— (Escreveu os algarismos nas costas de um envelope). — Vinte e sete libras, tres
shillings, nove pence e meio. Podes ficar com o meio penny para mascote —
acrescentou, atirando a moedinha a Robin que, do outro lado da mesa, enfrentava a
insolencia do seu olhar.
Ela estendeu a mão e apanhou a moeda.
— Muito obrigada — retorquiu calmamente.
Hallam curvou-se.
— E agora, tendo-me reduzido a isto — continuou ele, indicando com um gesto o
dinheiro que jazia sobre a mesa — espero que tenhas a infinita bondade de explicar-me o
que devo fazer.
— Creio... que ninguém poderá fazê-lo — replicou a jovem.
Kay riu-se.
— Isso é muito peculiar aos grandes reformadores como vocês. Destroem com a
maior facilidade, mas, quando chega o momento de reconstruir, confessam a própria
incapacidade. Sabem muito bem atirar os outros ao chão mas não são capazes de os
auxiliar a se levantarem novamente.
— Pois bem, terás que fazer algo que te dê dinheiro — volveu ela, sentindo-se
quase esmagada pelo comentario de Kay.
— Isso é evidente. Mas que? E é preciso ser algo que um homem, um verdadeiro
homem, possa honestamente chamar trabalhar, não é? E, agora, eu queria saber quais
são os homens que, em tua valiosa opinião, podem proclamar a honestidade de seu
trabalho? Pedreiros? Funileiros? Deverei seguir uma dessas duas profissões?
Mas a ironia de Hallam passara os limites da paciência de Robin; suas próximas
palavras queimaram como fogo.
— Mas ambos esses oficios, de pedreiro ou funileiro, necessitam uma certa tecnica,
uma certa pratica, certas qualidades. Receio, Kay... — interrompeu-se, deixando que um
pequeno e marcado silencio terminasse sua frase.
Hallam mordeu os lábios e suas faces tornaram-se rubras.
— Então terá que ser qualquer coisa menos... ambiciosa — volveu ele, mas seu
sarcasmo muito perdera da antiga firmeza. — Qualquer coisa suficientemente simples,
que esteja de acordo com a minha incapacidade.
— Kay — atalhou Robin, observando-o agudamente — não há absoluta necessidade
de trabalhares. O que ganho é suficiente para vivermos, e meus salários serão
aumentados no próximo filme.
Parou de falar, pois Kay se pusera de pé.
— Com que então terei que viver a tuas expensas, não é? — perguntou ele com
uma expressão que Robin desconhecia.
— Muitos e muitos homens... não se importam que suas esposas... os ajudem, —
retorquiu ela.
— Pois bem, não estou no meio deles. Lembra-te disso, sim? — replicou Hallam
com voz rouca.
— Perfeitamente... pensei apenas... — balbuciou ela, a agudeza de seu olhar um
pouco mais acentuada. — Kay, por que não escreves a teu pai, pedindo-lhe um... um
auxilio?
Por um momento seus olhos se encontraram em silencio. Súbito Kay deu um murro
tão forte na mesa que todos os objetos que ali se achavam, oscilaram.
— Preferia ir antes para o inferno — exclamou ele rudemente.
E embora fixasse os olhos em Robin com verdadeiro ressentimento, o coração desta
ultima palpitou de subita esperança. É que sob esse ressentimento havia uma sincera e
inabalável determinação, provocada por um odio violento, mas nem por isso deixando de
ser uma determinação. Robin teve ímpetos de correr para ele, abraçá-lo e dizer-lhe que
continuasse assim; que se realmente seu intuito fosse ir para o inferno, iria com ele —
não o abandonaria em hipotese alguma. Nada fez, porém; continuou sentada onde
estava, sem dar a menor demonstração do que lhe ia n'alma. Estava resolvida a não fazer
o menor apelo ao amor de Kay.
— Estou arruinado; completamente arruinado, por culpa tua, e não tens uma idéia,
uma única sugestão que me auxilie a erguer-me de novo. Não que eu me importe com
isso. Não preciso do teu auxilio. Caí e talvez nunca mais me levante, mas si um dia o
fizer, fá-lo-ei sozinho...
Fez uma pausa para fixar os olhos em Robin.
— Sim, compreendo — redarguiu ela.
— Terei que enfrentar mil dificuldades, mas não pedirei auxilio a quem quer que
seja. Depois disto não existe ninguém em quem eu possa confiar. Vocês todos me
desiludiram — todos. Se havia, no mundo, um homem em quem eu julgava poder confiar,
esse homem era Andy — e, contudo, ele vinha a me fazer de idiota durante anos e anos.
Sobre pape, nada direi, mas ele deixou-se influenciar contra mim. E quanto a ti — pois
bem, creio que essa parte já ficou bem clara e não mais temos necessidade de discuti-la.
Mas agora que vocês já obtiveram o que queriam, podem retirar-se e deixar-me em paz.
Compreendes?
— Sim, compreendo. Mas, Kay, nós... — começou ela.
Hallam interrompeu-a.
— Sobre nós... sobre nosso casamento? Pois bem, estamos casados. Para isso não
há mais remédio, agora. O que está feito, está feito. Nada mais se pode fazer. Mas, em
tudo que diz respeito a mim, és livre de agir como bem entenderes, contanto que não
intervenhas na minha vida.
— Não intervirei. Dize-me apenas o que queres que eu faça.
— Não quero que faças coisa alguma. Podes seguir teu caminho, com a condição de
te conservares nele e não cruzares o meu. Felizmente ganhas bastante e não precisas
que eu te sustente.
— Sim. Nesse ponto não há razão para te preocupares — retorquiu Robin.
— Não me preocuparei — retorquiu ele, com brutalidade. — Se conseguir alguma
coisa, sustentar-te-ei. Mas se, ao contrario, falhar, terás que continuar trabalhando para
viver. Aliás, na minha opinião, nada te devo.
— Exceto odio e amargura — acrescentou Robin em voz baixa, os lábios
perfeitamente firmes, então.
Por um momento Hallam calou-se; depois, carrancudo, voltou-se para ela.
— Deves agradecer isso unicamente a ti própria.
— Tens razão, Kay — replicou ela.
Hallam apanhou a carteira, e os niqueis espalhados sobre a mesa, recolocou-os no
bolso. O livro de cheques e o caderno de contas foram guardados na secretaria.
— Terei que ficar aqui até que as coisas se decidam — tornou ele. — Não sei, ao
certo, o total de minhas dividas, mas provavelmente, vendendo todos os meus bens,
poderei pagar a maior parte delas. O atelier está pago até o fim do trimestre; se estiveres
bem certa de que não ha nenhuma espécie de objeção á hipotese de viver eu em relativo
conforto enquanto posso, farei aqui meu quartel general, até encontrar um emprego.
Depois então...
— Depois? — perguntou Robin, o coração a bater-lhe mais rapidamente, tal a
ansiedade com que aguardava a resposta do jovem.
— Depois, cortarei tudo, e todos, todos vocês, para sózinho lutar, vencer ou ser
vencido — replicou ele com cortante amargor.
— Vencerás, Kay. Estou certa, certa de que vencerás! — exclamou Robin.
— Isso é da minha conta e não da tua — volveu ele secamente. — A guerra não
conseguiu matar-me; não creio que isto o consiga.
Voltou-se de novo para Robin e fixou-a com um olhar de franca irritação.
— Também eu não o creio — repetiu ela, pois Kay parecia á espera de uma replica.
Na realidade, porém, sentira não haver coisa alguma a dizer. Ela mesma criara
aquela situação. Se o pai de Kay fora muito além daquilo que lhe pedira, isso não alterava
o fato de ser sua a responsabilidade do que se dera. Seria fraco, idiota e, talvez, muito
pouco convincente fazer agora qualquer sorte de protestos de arrependimento. Além do
mais, aquilo não passava da lição que, a seu ver, Kay necessitava, levada ao extremo. De
que se arrepender pois? Não fora aquela oportunidade de submetê-lo a uma prova o seu
maior sonho? Não era aquele o "test" que sempre planejara para revelar o valor de Kay?
E, contudo, ele a desprezava. Isso pelo menos era o que lhe dizia a expressão dura e fria
do seu olhar. Expulsava-a de sua vida sem uma palavra de consolo, dizendo-lhe apenas
que era ela a culpada. E tinha razão. Mas era dificil suportar — conceber com calma a
idéia de que ia perdê-lo, talvez para sempre, e que era ela, ela própria, a causadora disso.
Um amontoado de desejos ergueu-se em seu intimo, aflorando-lhe aos lábios num
tumulto de palavras que, estava certa, não diria, não devia dizer.
— Poderemos ficar aqui, juntos, até que eu arranje para onde ir — foram as palavras
de Kay. — Uma mudança parecerá natural agora que... estamos casados. Depois
poderás ir para onde quiseres e eu... para onde puder. Não precisamos anunciar a toda
gente da vizinhança a estupidez que cometemos.
Robin, com um simples movimento de cabeça, concordou, e ambos mergulharam
em silencio. Pouco depois, Hallam tornou a falar no mesmo tom, se bem que mais
calmamente, e a jovem ouviu e mostrou-se de acordo com tudo. Novamente fez-se
silencio. Robin suportou-o o mais que lhe foi possivel, mas chegou um momento em que
não se conteve.
— Kay, não queres... jantar? — balbuciou, por fim.
— Arranjar-me-ei sozinho; obrigado — replicou ele secamente.
Robin emudeceu e súbito levantou-se.
— Vou dormir. Boa-noite, Kay.
— Boa-noite — rosnou ele.
Robin entrou no quarto que fora arrumado com tanto carinho para recebe-la. Despiu-
se e seu corpo desapareceu sob as cobertas.
Mas afinal era o que eu merecia por tê-lo amado demais para resistir á tentadora
felicidade que me ofereceu, e não amá-lo o suficiente para deixar que ele, antes de tudo o
mais, comprehendesse e corrigisse os erros de sua vida, disse consigo mesma, cravando
os olhos muito abertos na escuridão do quarto. Essa espécie de felicidade nos sai sempre
mais cara do que julgamos. E eu tinha quase certeza disso. Mas quem pode lá vencer a
força indomável do amor?...
Enterrou o rosto no travesseiro para não deixar correr as lagrimas que lhe
queimavam as palpebras.
A manhã lhe trouxe a sensação de que os acontecimentos da véspera não haviam
passado de um sonho mal. Ao despertar, levou algum tempo para reunir todas as vagas
recordações que lhe povoavam a memória e compreender que eram fatos. Levantou-se,
tomou banho e vestiu-se. Do seu quarto ouvia o leve ruído de qualquer liquido em
ebulição. Provavelmente Kay estava preparando o café.
Que efeito teriam produzido nele o repouso e o silencio da noite? Que estaria
pensando, sentindo? Por um instante de profunda fraqueza, desejou encontrá-lo disposto
a recorrer novamente a Mr. Hallam, ansioso por voltar aos velhos costumes, á vida fácil e
despreocupada que o tornava feliz. Contudo foi só por um instante que Robin desejou
semelhantes coisas, pois, na realidade, lhe seria ínsuportavel a certeza de que a
resolução de Kay falhara: de que toda a energia e altivez demonstradas na véspera
haviam sido impulsos tão frágeis e passageiros.
Foi, portanto, sob um verdadeiro tumulto de sentimentos que se encontrou com
Hallam no atelier. Estava sentado á mesa, tomando o café que Mrs. Quest lhes preparara,
e no rosto que ergueu para Robin havia dois olhos muito frios e uma expressão duríssima.
Só então Robin compreendeu, pela sensação de alivio que a invadiu, como fora insensato
o momentâneo desejo que tivera de encontrá-lo com a resolução da véspera
abandonada.
— Bom dia — disse ela ao entrar na sala.
— Esta será a resposta de papai — volveu Kay, sem corresponder á saudação de
Robin.
Em seguida estendeu-lhe um pedaço de papel. A jovem inclinou-se para ler o que
nele estava escrito. Era o seguinte:
"Papai:
Podes levar avante a tua resolução.
Kay".
Os lábios de Robin crisparam-se num sorriso cheio de naturalidade.
— É uma bela resposta, Kay.
— Oh, eu não estava pedindo a tua opinião — retrucou ele meio sem jeito. —
Julguei apenas que tivesses algum interesse em vê-la.
— Acertaste — concordou ela. — Devo ir ao estúdio hoje? — acrescentou.
— Como hei de saber? — volveu Kay.
— Combinaste com Shale... ontem...
— O dia do nosso casamento — acrescentou Kay, arqueando levemente os lábios.
— Por acaso combinaste algo para hoje?
— Sim. Para hoje... havia uma lua de mel.
— E de que maneira iremos passá-la, Kay?
— Passáala-ei olhando para as pessoas que tiverem a bondade de comprar nossas
coisas. Tu poderás fazer o que quiseres — terminou secamente.
Aquele "nossas coisas" que lhe escapara dos lábios veio dar vida e calor ao coração
de Robin, apesar de tudo; que importava a dureza do tom si eram tão doces as palavras?
Sentou-se e tomou uma parte do lunch com o maior apetite que lhe foi possivel aparentar.
Robin não precisava ter receado que Hallam evitasse qualquer um dos aspectos de
sua repentina pobreza. Ele não o fez. Arranjou perfeitamente todos os seus negócios.
Suas dividas eram bem maiores do que calculara. Mas o produto da venda de alguns
objetos do apartamento, do seu grande carro de excursões, da baratinha, do pequeno e
elegante iate Adriana e de um par de valiosas abotoaduras, foi o suficiente para saldá-las.
Isto, porém, reduziu seus bens a uma insignificancia: uma pequena soma em dinheiro, o
contendo de seu guarda-roupa, o resto do contrato que fizera com o apartamento e um
belo relógio de bolso.
E foi assim que Hallam se dispôs a procurar emprego.
Robin nunca soube que resolução tomara ele nesse sentido, nem que espécie de
trabalho procurava. Sabia apenas que começara a responder dúzias de anuncios, recebia
grande numero de respostas e fazia infinitos apontamentos. Saía de casa cheio de
esperança, mas voltava meio desanimado e esse desanimo aumentava visivelmente com
o decorrer do tempo.
Kay conhecia muita gente, velhos amigos de seu pai, que teriam o máximo prazer
em dar-lhe uma colocação ainda que de simples secretario, mas ele não estava disposto
a pedir auxilio nem favores a ninguém. Naturalmente não lhe agradava recordar quão
precária era sua situação financeira. Esqueceu-se pois de que não mais estava em
condições de freqüentar os restaurantes de West-End e almoçar lautamente no intervalo
de uma entrevista fracassada e outra em perspectiva. E por isso seu dinheiro acabou-se
rapidamente. Robin só compreendeu isto ao notar que ele não mais usava seu relógio.
Kay, porém, nada disse. Não contava á jovem coisa alguma do que fazia e também nada
lhe perguntava sobre o seu trabalho. Robin continuava no estúdio; terminara o filme de
Fable e assinara contrato para um outro com salário mais elevado. Estando o dia todo
fora, não sabia em que consistiam as refeições de Hallam e este também não procurava
informá-la. Quando voltava a casa e preparava o seu jantar, convidava-o sempre a fazer-
lhe companhia, Kay, porém, nunca aceitara semelhantes convites e, obstinadamente,
recusava-se a provar sequer das refeições da esposa, pretextando sempre já ter jantado.
Robin quase adoeceu de tanto preocupar-se com ele.
Um dia, que ficou em casa, se dirigiu ao guarda-roupa de Hallam com o intuito de
passar uma revista em seus ternos e ver si precisavam de algum concerto. Abriu-o e o
encontrou vazio. A principio não pôde compreender, mas, minutos depois, a verdade
surgiu nitida em seu espirito. Seus ternos tinham tido o mesmo destino que o relógio.
Fechou lentamente a porta do guarda-roupa e abismou-se em pensamentos.
Nada, porém, conseguiu saber quando ele chegou, á tarde, além do fato de que não
arranjara ainda coisa alguma e que iria falar com uma outra pessoa no dia seguinte.
Ante a quantidade de homens competentes que se achavam desempregados,
Hallam começou a compreender que suas chances eram pequenas. Pela primeira vez
Robin notou no olhar do marido uma expressão quase de fadiga.
Na manhã seguinte, percebendo que Hallam estava no banho, foi ao seu quarto e
passou uma revista em seus bolsos. Encontrou dezoito pence em prata e alguns em
cobre. Sua carteira estava praticamente vazia, pois não continha mais que algumas
cautelas de penhor e, mesmo estas, em numero insignificante.
Colocou, então, tres shillings entre as moedas, esperando que uma quantia tão
pequena passasse despercebida aos olhos de Kay. E, aparentemente, foi o que se deu,
pois este ultimo nada lhe disse ao encontrar-se com ela.
Depois disto, diariamente, Robin colocava dinheiro no bolso do marido, cada vez
menos cautelosa com relação á quantia, desde que ele parecia de nada desconfiar. E,
assim, sua situação a preocupava um pouco menos, dando-lhe aso a trabalhar com mais
sossego. Pelo menos, fornecia a Kay o suficiente para alimentá-lo. Muitas e muitas vezes
teve impetos de pedir-lhe para pôr um fim aquilo e escrever a Mr. Hallam; ou, se não
quisesse fazer isso, permitir-lhe auxiliá-lo — deixá-la ficar ao seu lado, amparando-o até
encontrar alguma colocação. Mas a atitude de Kay proibia-lhe de todo qualquer
aproximação; já então parecia ter-se afastado tanto do ponto em que seus sentimentos
para com Robin não passavam de simples raiva e ressentimento, que ela começou a
julgar-se realmente odiada. Se acontecia chegar do estúdio e encontrá-lo no atelier, ele
erguia-se abruptamente e retirava-se para seu quarto. Era como se fosse insuportavel a
simples presença de Robin.
Seis semanas causaram uma enorme mudança em Kay. Seu único terno, com o uso
contínuo, adquiriu rapidamente um aspecto surrado, e seu chapéu perdeu a elegância
perfeita de suas linhas. Ele próprio começava a ter menos escrúpulos com relação á
espécie de trabalho que desejava obter e já o procurava entre as mais baixas classes de
emprego. Em pouco tempo, porém, compreendeu que Robin tivera razão ao dizer-lhe que
os funileiros precisavam ter capacidade para soldar, os pedreiros para colocar os tijolos
uns sobre os outros. Ele parecia não ter capacidade para coisa alguma, salvo para vestir-
se bem e divertir-se. O aspecto da vida transformou-se inteiramente para ele e isso o
irritava; sentia um odio violento, estúpido, impotente, contra aquela situação, mas sabia,
contudo, que qualquer coisa em seu carater, antes jamais revelada, lhe impedia de
afastar-se um passo sequer da resolução que tomara de lutar sozinho. Amaldiçoava a si
próprio por essa idiotice de orgulho, teima, ou, o que quer que fosse, — como ele dizia —
mas sabia tratar-se de algo por demais inerente para que o pudesse trair.
Dois meses mais e seu contrato com o atelier findou-se. Por amor das aparencias,
em vista de serem tão conhecidos ali, concordaram em mudar-se juntos. Robin alugara
um pequenino apartamento. Hallam recusou-se terminantemente a morar com ela; tão
pouco a informaria de seus planos. (Robin sentia uma desagradável desconfiança de que
ele não os possuía). Acompanhou-a ao seu apartamento, com grande surpresa da jovem;
ajudou-a a arrumá-lo. Feito isto, voltou-se para saír. Robin fitou nele os olhos muito
abertos e teve que engolir em seco, antes de falar. Então explodiu com voz tremula:
— Kay, fica! Fica!
Ele retribuiu friamente seu olhar. Robin notou que havia um circulo arroxeado á volta
de seus olhos, um leve rictus de amargura ao canto dos lábios e uma acentuada palidez
nas faces; mas não havia nele o menor vestígio de desanimo. Como não respondesse,
segurou-lhe um braço.
— Kay, queres ficar?
— Não.
— Eu... Querido, eu te imploro. Estás muito... abatido. Não me é possivel ver-te
assim.
Se a resolução de Hallam continuava firme, a da jovem — naquele momento, pelo
menos — fizera-se em pedaços.
— Sinto-me perfeitamente bem.
— Estás magro e com um aspecto horrível. Kay, não estás te alimentando direito.
Acho... acho que estás... com fome.
Uma onda de sangue afluiu ás faces do rapaz.
— Tenho tudo que desejo — replicou ele, tentando desnvencilhar o braço da mão de
Robin.
Esta ultima, porém, segurou-o ainda com mais força.
— Mas não tens tudo que precisas — insistiu ela. — Vejo perfeitamente bem. Kay...
ando assustada. Tudo isto nunca me passou pela cabeça. Tira-me a vida aos poucos ver-
te assim e... saber que sou eu a culpada.
— Devias ter pensado nisso mais cedo — replicou Hallam, frio como uma pedra.
— Se eu confessar isso — volveu Robin avidamente — se eu confessá-lo e suplicar
teu perdão — oh! com todas as minhas torças — farias minha vontade, Kay? Se eu te
confessasse que me enganei?
— Não sabes ainda se te enganaste. Afirmaste que eu era um perdulário. Resta-me
ainda provar que não o sou. Estás dizendo tudo isto porque julgas ser a responsável por...
qualquer coisa que eu possa estar sofrendo. Queres evitar as conseqüências do que
fizeste. Creio mesmo que te preocupas menos com o meu... desconforto, que com o
próprio receio de ser acusada.
A mão de Robin largou do braço do rapaz e seus olhos pousaram-se nele com uma
expressão de franco desconsolo. Hallam tocara num ponto tão próximo da verdade, que
se sentira envergonhada.
— Ao menos — suplicou então — dize-me para onde vais, que tencionas fazer.
Hallam meneou a cabeça em silencio. De novo surgiu no espirito da jovem a
desagradável convicção de que o motivo principal do silencio de Kay era a própria
ignorância do que iria fazer, a própria falta de projetos.
— Se... algum dia precisares de mim — murmurou Robin em surdina — estarei aqui.
Encontrar-me-ás sempre aqui... se... se tiveres necessidade de meu auxilio.
— Não precisarei de ti. Não tenho necessidade de... traidores — retorquiu Hallam
com fria crueldade.
Robin recuou, comprimindo a boca com as costas da mão.
— Kay! — exclamou com voz apagada, mas cortante de desespero. — Nada mais
sentes por mim?
Hallam, após uma pausa, replicou lentamente, sem olhar para ela:
— Pelo contrario, acho que te desprezo. Traires-me, como o fizeste, e não teres
agora coragem de suportar as conseqüências. Que pensaste? Julgaste que eu iria
engordar com a realização do teu plano? — (Atirou-lhe esta pergunta e continuou, sem
esperar pela resposta) — Não és capaz nem sequer de sustentar as condições da
combinação que fizemos.
— Em que deixei de cumpri-las até agora? — balbuciou Robin.
— Não prometeste que não intervirias na minha vida?
— Sim.
— Então que me dizes disto?
E atirou sobre a mesa um embrulho, que tilintou ao chocar-se com a madeira.
Robin olhou de Hallam para o embrulho e de novo para Hallam. Este ultimo pôs o
chapéu na cabeça, abriu a porta e saíu.
A jovem abafou um grito com a mão e quedou-se, olhos cravados na porta que se
fechara. Depois, lentamente, apanhou o embrulho, rasgou o papel e despejou o seu
conteúdo sobre a mesa.
Diante de seus olhos, rolou então um monte de moedas de prata — shillings, florins,
meias-coroas.
Era todo o dinheiro que, ás escondidas, colocara nos bolsos de Kay. Ele percebera,
juntara-o e o guardara. E continuara sem se alimentar, sabendo que o dinheiro ali estava
para ser gasto, sabendo que lhe davam com alegria, espontaneamente, sabendo que era
dele.
— Ah, Kay! Tu vencerás, tu vencerás! — murmurou Robin, enquanto duas grossas
lagrimas tombavam, indo juntar seu brilho ao reflexo das moedas.
CAPITULO XI
Quando Kay partiu, aquele dia, Robin teve a impressão de que ele a abandonara
para sempre. Continuou a trabalhar com tenacidade e a viver calmamente; mas a vida
tornara-se-lhe solitária, vazia. Nem todos os louros e triunfos que conquistava em sua
carreira conseguiam apagar de sua lembrança a expressão da fisionomia de Kay, quando
o vira pela ultima vez. Onde estaria ele? Que estaria fazendo? Estas perguntas
torturavam-na sem tréguas. Todos os dias despertava dizendo: "Talvez ele volte hoje", e
todas as noites tentava dormir com um pouco de esperança: "Talvez amanhã; quem
sabe?" Mas ele não vinha.
Chegou o inverno, em seguida o Ano Novo e ela não sabia noticias de Hallam. Sabia
apenas que estava vivo, pois de quinze em quinze dias Mr. Hallam recebia um postal seu;
contudo, ninguém descobria seu endereço e eram tão regulares seus protestos de que
tudo ia bem, que Robin percebeu não passar aquilo de uma simples fórmula.
Não podia crer que tudo lhe corresse bem; si assim fosse estava certa de que ele
escreveria ao pai mais explicitamente.
O velho Hallam veio procurá-la para perguntar-lhe se não sabia algo mais definido,
mais promissor, sobre Kay. Mas, Robin, olhar sombrio, não fez mais que sacudir a
cabeleira negra e murmurar por entre lábios convulsos:
— Nada, nada.
— Não tens tido noticias dele? — indagou Mr. Hallam.
— Nem uma linha! Nenhuma palavra! — respondeu Robin quase num soluço. —
Mas ele vencerá — acrescentou, erguendo levemente a cabeça. — Ele vencerá. Vi a
expressão do triunfo em seus olhos...
Só ela, porém, sabia a dor que lhe despedaçava o coração. Não havia uma única
pessoa que lhe pudesse dar noticias de Kay. Até mesmo Fable nada lhe podia dizer.
Aquele postal que Mr. Hallam recebia quinzenalmente era a soma total de tudo que se
sabia sobre ele.
Mas um dia, quase no inicio do novo ano, Robin avistou-o. Deu com os olhos em
cheio no rosto de Kay, mas, por um enlouquecedor ardil do destino, não pôde detê-lo.
Encontrou-o para perdê-lo no mesmo instante.
Estivera fazendo algumas cenas de rua para o seu filme; era uma cena de miséria e
fora filmada nas estreitas e imundas ruelas que ficavam a poucas centenas de metros, por
traz da arte e do conforto do distrito de Chelsea.
Foi por um dia friorento de fins de fevereiro e as primeiras sombras da noite desciam
sobre a terra. Robin estava morta de cansaço. Detestava cenas de rua; os passantes
atravessavam-se no caminho e Shale zangava-se; outros paravam para assistir á
filmagem e deixavam-na nervosa. Sempre se sentira exausta ao fim dessa espécie de
trabalho. E naquele dia não era menor a sua fadiga. Recostada a um canto da grande
limousine em que Shale a mandara para casa, semi-cerrava os olhos, deprimida ante a
miséria das ruas atraves das quais era conduzida pelo elegante e perito chofer de Shale.
Havia momentos em que a tortura de seu coração se tornava intolerável.
Numa hora em que o carro diminuiu a marcha para dobrar uma esquina, sua
atenção voltou-se para um homem que caminhava na calçada, em direção contraria á do
automóvel. Não trazia sobretudo, a gola do paletó surradissimo estava erguida, tinha as
mãos enterradas nos bolsos e vinha curvado para a frente, tentando esconder o rosto do
vento cortante que soprava.
Como, ao virar a esquina, o chofer tocasse a buzina, o homem levantou a cabeça;
sob a luz fosca do anoitecer suas faces eram de uma palidez mortal.
Robin debruçou-se rapidamente á janelinha, pondo a cabeça para fora.
O passante voltou na sua direção o rosto magro e livido e, por um instante, seus
olhos se encontraram.
— Kay! — gritou ela.
Mas o carro já dobrara a esquina, desusando rapidamente por uma outra rua e
Hallam perdera-se de vista.
No mesmo instante Robin pôs-se a bater freneticamente no cristal que a separava
do chofer, ordenando a este que parasse. Obedecida sua ordem, saltou, disse-lhe que
esperasse e correu para a esquina. Não podia enxergar muito longe; a luz tornava-se
cada vez mais embaçada; mas, até onde chegava sua vista, não havia o menor vestígio
de Hallam. Dobrou a esquina e correu pela rua em que o encontrara, examinando todos
os lados. Mas Kay desaparecera. Foi até á próxima esquina e aí parou, volvendo olhos
ansiosos para todas as direções; nada viu, porém. Mas, certamente, em tão curto espaço
de tempo Kay não poderia ter ganho tamanha distancia. Ou teria demorado mais do que
supunha para descer do auto? De qualquer modo, de nada adiantava correr sem rumo
por aquelas ruas imundas. Se Kay tivesse atingido aquela esquina poderia ter tomado tres
direções diferentes — direita, esquerda e fronteira. Que chance, pois, lhe restava de
alcançá-lo, se tomasse a direita? Voltou desanimada. Então lhe veio ao cérebro a
lembrança de que ele poderia morar em uma daquelas ruas miseráveis; talvez tivesse
desaparecido tão rapidamente por ter entrado em algum daqueles pobres casebres. Mas
em qual deles? Duas longas filas dessas sórdidas habitações alinhavam-se diante de
seus olhos. Tentaria descobri-lo de qualquer maneira.
Bateu á porta da primeira casa. Veio abri-la um homenzinho de faces encovadas e
cabelos cor de areia, enfiado num par de calças de um cinza duvidoso e numa camisa
encardida. Sua surpresa ao vê-la arrancou-lhe uma exclamação; essa exclamação
provocou um acesso da mais terrível tosse que jamais chegara aos ouvidos de Robin. A
tosse, por sua vez, provocou a presença de uma mulher gorda e horrenda, que surgiu dos
fundos da casa, em meio de uma verdadeira tempestade de insultos e palavrões. Quem
era ela? Que desejava? Com que direito vinha bater á porta de uma casa respeitável para
obrigar uma pobre alma doente do peito a ir de encontro á morte? Em resumo foi isso que
a mulher disse; a expressão era consideravelmente menos agradável e mais decorativa.
Robin afastou-se da porta, apavorada ante o que, sem querer, provocara. E, da calçada,
balbuciou que batera apenas para indagar si Mr. Hallam morava ali.
— Não, não mora aqui. Nunca ouvi falar nele e nem quero ouvir — foi a violenta
resposta.
Em seguida a porta foi batida em pleno rosto da jovem. Mais uma vez Robin viu-se
em meio das sombras da rua. Deu alguns passos antes de arriscar-se a maiores
investigações. Mais duas ou tres tentativas falharam como a primeira, embora fosse
recebida com menos violência. Mas uma faisca de esperança nasceu em seu coração,
quando uma senhora de fisionomia bondosa lhe disse que devia procurar Mrs. Hopkins,
no numero 63.
O numero 63 ficava do outro lado da rua, próximo á esquina em que encontrara Kay.
A luz dos pequenos farois traseiros do grande carro de Shale lembrou-lhe que
dissera ao chofer para esperar. Correu até á limosine e retirou a ordem dada, dizendo-lhe
que podia ir embora. Encontrara um conhecido, explicou ela, e iria para casa só, com toda
a facilidade. O chofer tocou no boné, pôs o carro em movimento e este começou a
deslizar pela rua. Assim que Robin o perdeu de vista, atravessou a rua para tentar a sorte
no numero 63.
Uma porta roída pelo tempo foi aberta diante de si por uma mulher magra,
esquelética e quase esfarrapada. Atraves da penumbra ela parecia anormalmente alta e
seus olhos fixaram-se em Robin com uma expressão dura e pouco acolhedora.
— Disseram-me que talvez a senhora pudesse... — começou Robin, interrompendo-
se para terminar mais simplesmente: — Por acaso Mr. Hallam mora aqui?
A mulher magra lançou-lhe um olhar de suspeita.
— Que deseja com Mr. Hallam? — perguntou ela.
— Então ele mora aqui? A senhora o conhece? Oh, poderei vê-lo? Por um minuto
apenas. Sou... sou... uma grande amiga sua — balbuciou Robin, ansiosa.
O olhar de suspeita continuava a pairar sobre ela. Robin não estava certa se a
suspeita daqueles olhos fora provocada por sua presença, ou se era uma expressão
natural e permanente.
Súbito a mulher voltou-se e da casa, gritou para o interior:
— Emy, sobe lá em cima e vê se Mr. Hallam está! Ele ocupa o sotão dos fundos; é
um verdadeiro gentleman — acrescentou, voltando-se para Robin.
Emy, uma pequena de olhos enormes e cabelos em desalinho, apareceu, olhou para
Robin e disse com rústica cordialidade:
— Oh, ele tem um retrato da senhorita. Seria capaz de conhecê-la em qualquer
lugar.
Robin foi conduzida ao pequenino hall.
— Sim, sou uma velha amiga dele. Poderei subir contigo? A senhora dá licença que
eu suba com Emy? — suplicou, voltando-se para a mulher que a recebera.
Evidentemente Mrs. Hopkins possuía um coração, encaixado em algum canto do
seu arcabouço de pele e ossos, pois consentiu que Robin seguisse Emy pela estreita
escada.
Com o sangue a vibrar-lhe nas veias, Robin acompanhou a pequena de cabelos em
desalinho, até ao sotão. Suas pernas tremiam ao pararem em frente á porta, á qual a
menina bateu.
A expectativa de uma resposta foi simplesmente intolerável. Ninguém respondia.
Emy tornou a bater, esperou e ao cabo de um instante empurrou a porta e enfiou a
cabeça pelo quarto.
— Ele não está — disse ela, recuando.
— Deixa-me espiar um pouquinho lá para dentro? — implorou Robin em voz baixa.
— Deixa-me ver como é o quarto dele? Por favor, Emy! Se consentires isso terás a minha
gratidão pelo resto da vida.
— Meus Deus, para que tanta coisa? Pode entrar. Que mal há em olhar?
E Robin viu-se no quarto de Kay. Emy ao seu lado. Parou na porta e lançou um olhar
á volta, sentindo o coração gelar-se.
Era um quarto pequenino, cuja janela estreita deixava entrar as derradeiras
claridades do dia. Fora, como único panorama, via-se uma enfiada de fundos de quintais
repugnantes de imundicíe e, contra o céu pardacento, desenhava-se, em cinza escuro, a
silhueta desigual de telhados e chaminés. O teto do quarto era baixo e parecia ainda mais
baixo por ser quase preto. O papel rasgado e sujo que cobria a parede despregava-se
desta em um dos cantos, onde a umidade era visivel. Não havia fogão de inverno e era
com dificuldade que um leito estreito e duro, uma mesinha, um lavatorio e duas cadeiras
de pau conseguiam vencer a escassez de espaço. Um farrapo de tapete estendia-se sob
os pés de Robin; cobria o leito uma velha colcha de retalhos; um pedaço de filó rasgado
esvoaçava á janela como um trapo ao vento; sobre a mesinha, um pano vermelho
desbotado deixava ver uma infinidade de manchas de espermacete. Isto fez com que a
jovem tornasse a examinar as paredes; não havia no quarto uma única lâmpada eletrica.
Parecia-lhe que seus olhos não faziam mais que absorver um detalhe miserável após
outro. Era aquele o quarto de Kay! Ele vivia, respirava e repousava seu corpo naquele
quarto umido e apertado! Kay! O rapaz que sempre vivera rodeado de toda sorte de
conforto! Vieram-lhe á lembrança os detalhes do atelier de Chelsea, a pouca distancia
daquele miserável lugar... O rico mobiliário, as luxuosas comodidades... E o contraste
parecia incrível...
E, súbito, á cabeceira do leito, semi-oculto pela penumbra da hora, Robin descobriu
sua própria imagem.
Atravessou o quarto, debruçou-se por cima da cama e examinou o retrato que fora
tirado, havia meses, no estúdio cinematografico; os olhos muito abertos pareciam
embebidos em melancolia e o mais leve de todos os sorrisos entreabria-lhe os lábios.
Que significava a presença daquela fotografia no trágico exilio de Kal? Seria um
aguilhão para manter sempre aceso seu ressentimento contra si, para incitar sua
resolução quando esta ameaçasse fraquejar? Ou quem sabe ainda lhe tinha uns restos
de amor e era para diminuir sua solidão que guardava junto a si aquele retrato? Por
ventura, ao pousar os olhos em sua imagem, lembrar-se-ia ele de que se haviam amado?
Que espécie de sentimento o teria levado a colocar sua fotografia junto á cabeceira de
sua cama, para onde, de manhã e á noite, seu olhar fatalmente teria de voltar-se?
— É o seu retrato, não é? — indagou a rapariga de olhos enormes e cabelos em
desalinho.
Robin afastou-se apressadamente, voltando-se para a pequena.
— É, sim. Emy, que faz ele? Em que trabalha? — perguntou com acentuado tremor
na voz.
Emy, porém, meneou a cabeça. Ignorava. Robin nada pôde saber com ela. Todas as
perguntas que lhe vieram á lembrança, fê-las em vão. Emy nada sabia e nem sequer se
mostrava interessada.
Robin teve ímpetos de chorar. Ter chegado tão perto de Kay e nada conseguir
saber!
Pediu licença para esperar por ele e obteve-a. Emy saíu em busca de uma vela,
mas, como não a encontrasse, Robin sentou-se em meio da escuridão do quarto, disposta
a esperar.
Hallam, porém, não vinha. Ás dez horas Mrs. Hopkins expôs-lhe conscienciosas
objeções e Robin compreendeu que precisava retirar-se.
Saíu, presa agora dos maiores tormentos, levando no espirito uma verdadeira
confusão de sons e visões — a tosse horrível do homenzínho de rosto encovado, os
desaforos e a voz estridula da mulher gorda, a rua imunda, o olhar desconfiado e a
magreza de Mrs. Hopkins, os cabelos despenteados de Emy. Todos esses miseráveis
detalhes pareciam gravados no cérebro de Robin. Era preciso que Hallam estivesse na
mais negra miséria para morar ali. Chegou ao seu apartamento inteiramente vencida pela
tortura de seus pensamentos.
Dizem que uma desgraça nunca vem só. Ao abrir a porta do apartamento, Robin
voltou-se maquinalmente para a caixa de cartas. Encontrou apenas uma, para si. Retirou-
a da caixa e, rasgando o envelope, dirigiu-se ao seu quarto.
Sentada á beira do leito, a carta diante dos olhos, ficou por algum tempo como que
inconsciente até que aquelas breves palavras se fizeram nítidas em seu espirito. Ainda
assim levou a mão á fronte, sem compreender bem.
A carta informava-a laconicamente, com a fria crueldade das comunicações oficiais,
que seu pai falecera na véspera.
A infeliz continuou sentada por muito tempo, rígida, olhos cravados na missiva
terrível, incapaz de compreender a verdade. Quando a compreensão chegou, ela não
mais estava em condições de chorar. Tombou para traz e seu corpo ali ficou, atravessado
no leito, inerte, como que petrificado.
Tres dias lentos e dolorosos se passaram, durante os quais Robin teve a sensação
de que tudo era irreal, incrível. Esperara tanto tempo pelos dias futuros em que seu pai
tornaria á liberdade. Trabalhara para que, então, a vida lhe fosse suave e fácil;
economizara seu dinheiro para que seu sonho de fazê-lo feliz se realizasse. Tudo em vão.
Ele morrera miseravelmente só, isolado de todos, da maneira mais amarga e cruel.
Tres dias lançaram-na, das profundezas da ansiedade e da tristeza, para as areias
desertas da solidão.
Seu pai estava morto e enterrado; Kay sofria sabe Deus que espécie de misérias e
privações. Fora-lhe impossível, no desespero daqueles três dias horríveis, tentar
novamente encontrá-lo, mas, ao caír da quarta tarde, preparou-se para fazê-lo. Acabara
sua pequena “toilette” e ia saír, quando a campainha da porta tilintou.
Abrindo-a, viu-se frente a frente com Alison Tearle. Alison, com as faces lividas e
uma expressão de desespero no olhar.
— Oh, Robin, posso entrar? Por favor! Preciso falar contigo. Não me mandes
embora! — exclamou ela, rapidamente, sem esboçar sequer uma saudação.
Robin ficou muda por um momento, surpreendida com o inesperado do
acontecimento. Alison era a ultima pessoa no mundo que desejava ou esperava ver, mas
o desespero da jovem era por demais intenso para não recebê-la.
— Pois não, entra — replicou, após uma pequena pausa. Conduziu Alison á
pequenina saleta de estar e convidou-a a sentar-se.
Alison aceitou o oferecimento com os olhos rasos d'agua, torcendo e retorcendo
nervosamente o lenço.
— Que é que há, Alison? — perguntou Robin. — Para que me procuraste?
Alison, porém, não podia responder. Cobriu o rosto com as mãos e começou a
soluçar ruidosamente, com uma espécie de gemidos roucos que poderiam inspirar
piedade numa criança, mas que irritavam, numa mulher.
— Acalma-te — continuou Robin com uma certa impaciência. — Por favor, Alison.
Tenho que saír.
Subitamente, Alison ergueu para a outra o rosto umido de lagrimas.
— Oh, Robin, não me trates com aspereza. Ser-me-ia impossível suportá-lo. Creio
que enlouqueceria. Robin, papai foi-se.
— Foi-se? Quer dizer que ele morreu? — indagou Robin.
Alison meneou a cabeça.
— Não, foi-se embora. Abandonou-me. Abandonou tudo. Tomou todo o dinheiro que
possuiamos e... desapareceu, deixando-me sozinha. Robin, não tenho um centavo
sequer. E... estou horrorizada!
Estendeu as mãos e segurou os braços de Robin.
— Oh, não te desesperes desse modo — exclamou Robin. — Não há que recear.
— Mas estou inteiramente só e não tenho dinheiro! Que devo fazer? Não é horrível,
Robin? Oh, Robin, não achas que é horrível?
Robin desvencilhou-se das mãos que a prendiam.
— Sim, acho... acho que é, de fato, horrível. Quando se deu isso, Alison?
— Só descobri hoje pela manhã. Ele partira, deixando-me um bilhete em que dizia
não voltar mais. Assim como eu soubera estragar tudo estupidamente, tambem saberia
arranjar-me sozinha. Foi isso que ele disse. Corri imediatamente ao banco e verifiquei que
retirara todo o dinheiro que havíamos depositado nas ultimas semanas. Como vês, ele
planejou tudo com antecedência — planejou deixar-me nesta situação. Agora estou eu
sem um penny na bolsa. E não posso ser pobre, Robin. Não posso! Não nasci para isso.
Seria a minha morte. Oh, seria a minha morte, bem sei.
E de novo ocultou o rosto com as mãos para continuar seu irritante soluçar.
Robin afastou-se um pouco, reprovando a própria falta de caridade e, contudo,
francamente incapaz de sentir qualquer espécie de simpatia para com Alison, a não ser
uma leve piedade que muito se aproximava do desdém. Mas que fazer? Havia em Alison
algo que a repugnava.
— Robin, deves lembrar-te, ainda, das jóias maravilhosas que eu possuía. Pois ele
as levou também. Carregou tudo, menos a pulseira que estava comigo... Oh. Robin, sou a
moça mais infeliz do mundo!
Mais uma vez explodiu em soluços; soluços fortes e angustiados que lhe
convulsionavam as frágeis espaduas.
Se ao menos, pensou Robin, tentando ser mais agradável do que até ali vinha
sendo, si ao menos Alison chorasse de um modo mais sincero, mais comovente...
— Oh, para que chorar? Dar-te-ei dinheiro. Possuo-o em quantidade e agora não
tem a menor utilidade para mim — disse ela um tanto abruptamente. — Senta-te direito e
enxuga teus olhos até ficarem bem secos. E... tenta sorrir.
Alison obedeceu.
— Robin, estava falando a serio quando disseste que me darias dinheiro? Podes
fazer isso? Estás assim tão bem? Podes dar-me bastante? Bastante mesmo?
Robin riu-se — não lhe foi possível conter-se -— mas o som de seu riso era quase
mordaz.
— Poderei dar-te o suficiente pois, como sabes, continuarei a ganhar — replicou
com certa dureza.
— Oh, sinto-me tão aliviada, tão fantasticamente aliviada! É natural que não tenhas
muita coisa a fazer do teu dinheiro, não? Quero dizer que não estás habituada a uma vida
de muito luxo, como eu, que sempre fui rica e...
— Alison — explodiu Robin, interrompendo-a — és verdadeiramente cômica. Uma
cômica realmente admirável, mas... peço-te, não estiques demais o meu senso de
"humor": poderás arrebentá-lo — acrescentou com um pequeno e singular tremor na voz.
— Bem sei que estás economizando para o teu pobre pai. Mas ele se contentará
com qualquer coisa, depois...
Robin voltou-se brusco e encarou-a, olhar inflamado de exaltação.
— Meu pai morreu — exclamou com voz tensa e surda. — Se eu ainda o tivesse
para reservar-lhe minhas economias, creio que seria capaz de te ver morrendo á fome e
não te oferecer um único penny. Mas ele morreu e todo o meu dinheiro me é... inútil.
Podes ficar com ele. Só te digo uma coisa: não permito que alguém, seja lá quem for, se
refira a papai nesse tom. Não permito, ouviste? E quando se tratar de pais, é bom que te
cales, pois o meu, pelo menos, roubou para mim e não de mim. Compreende bem tudo
isto, porque é... é muito importante.
Sua voz cessou e fez-se silencio.
Alison quedou imovel onde estava, ocupada em assimilar bem o conselho de Robin;
acabou compreendendo que tal aviso era igualmente importante para si.
— Desculpa-me, Robin — volveu ela, o mais sinceramente que lhe foi possível.
Robin sacudiu a cabeça.
— Estar direito — replicou secamente. — Que queria, dizer teu pai quando te
acusou de ter estragado tudo?
— Queria referir-se a Kay, bem sabes — retorquíu Alison em tom diferente.
— Sim, mas de que maneira?
— Papai queria que eu... me casasse com ele... pela sua fortuna. Aquela noite que
eu estive... no atelier, lembras-te? Pois bem, papai tencionava encontrar-me lá. Eu
estraguei todo o plano dele, voltando para casa. Ele queria obrigar Kay a desposar-me,
porque perdera quase tudo que possuíamos.
— Compreendi tudo isso. Nunca me enganei a respeito de teu pai.
— Robin, tu e Kay estão casados, agora, não estão?
— Sim, estamos.
— E não vivem juntos? Que aconteceu? Dizem tanta coisa... esquisita... e
desencontrada. Realmente não se sabe em que acreditar.
— A mim pouco se me dá que acredites ou deixes de acreditar no que dizem, —
retrucou Robin.
— Oh, está claro, se pretendes levar a conversa para esse lado... Mas é que sei
uma coisa.
— Que?
— Não estou bem certa si devo contar-te — começou Alison.
— Tens que me contar! — replicou Robin, voltando-se para receber a informação.
Alison lembrou-se de que não era conveniente contrariar Robin e contou-lhe o que
sabia.
— Meu pai extorquiu muito dinheiro de Kay — disse ela.
Os olhos de Robin arregalaram-se cheios de interrogações.
— Extorquiu dinheiro de Kay? Como? Para que?
— Para guardar segredo sobre a tua presença no quarto de Kay áquela... hora da
noite.
Robin caíu das nuvens. Alison confirmou com a cabeça.
— Ele obrigou Kay a pagar por isso? — perguntou.
— Sim; diversas vezes.
— Quanto?
— Não sei. Milhares de libras, acho eu.
— E Kay deu todo esse dinheiro ao teu infame pai, unicamente para salvar meu
nome? Estás bem certa disso? Absolutamente segura?
— Absolutamente! Papai mesmo me contou.
— E que o levou a fazer-te semelhante confissão?
— Ele ficou furioso comigo por... por... — Alison começou a gaguejar e uma súbita
expressão de medo refletiu-se em seus olhos.
— Por que? — insistiu Robin, dando um passo na direção da jovem.
— Porque dei com a língua nos dentes e... estraguei o seu jogo. Oh, Robin, perdoa-
me. Lamento sinceramente o que fiz. Perdoa-me por favor!
— Com que então foste tu que andaste espalhando tudo aquilo a meu respeito,
hein? — murmurou Robin lentamente.
— Oh, bem sei que meu procedimento não foi correto, principalmente levando em
conta a maneira generosa pela qual me livraste de papai, aquela noite.
— Estás muito enganada! — protestou Robin desdenhosamente. — Não fiz o que fiz
para livrar-te de teu pai. Fi-lo para livrar Kay de ti.
O desapontamento que se estampou na fisionomia de Alison tinha qualquer coisa de
cômico.
— Oh, pensei que o tivesse feito... por mim — balbuciou ela com voz débil.
— Foi por essa razão que, depois, me difamaste? — retorquiu Robin.
— Robin, não vais dar importância a isso, não é? Quero dizer que não vais voltar
atras com tua palavra e deixar-me desamparada, agora. Não faças isso, Robin, eu te
imploro. Do fundo do coração eu te peço que me perdões. Reconheço que foi uma
baixeza de minha parte ter feito o que fiz. Só te peço uma coisa. Não me abandones, nem
me mandes embora. Não tenho para onde ir nem a quem recorrer. Oh, Robin, perdoa-me
e cumpre tua promessa.
— Oh, pelo amor de Deus, cala-te, Alison! Tuas queixas me irritam. Perdoar-te?
Tolinha, sou-te muito grata. Pelo menos com teu despeito impediste teu pai de continuar a
extorquir dinheiro de Kay.
E, então, acrescentou como que para si própria:
— Agora compreendo por que restava tão pouco dinheiro a Kay. Ele deu-o todo por
mim. Kay, Kay, como poderei alcançar teu perdão?
Cobriu o rosto com as mãos e quedou imovel. Um certo instinto de simpatia
apoderou-se de Alison, por um momento, fazendo-a guardar silencio. Súbito, murmurou
com timidez:
— Robin, que é que te aflige? Não poderias contar-me? É por causa de Kay?
A nova expressão da voz de Alison foi como gota d'agua para a aridez do coração
de Robin. Ao responder, pois, sua voz, tremula, também se transformara:
— Ele está numa miséria horrorosa, Alison, extremamente pobre e sozinho. Fui eu a
única culpada disso e agora contas-me que ele pagou uma fortuna a teu pai, por mim,
para salvar-me!
— Nesse caso, Robin, em lugar de dares teu dinheiro a mim, ajuda Kay com ele, —
sugeriu Alison sob um impulso raro e momentâneo, que logo em seguida lhe causou certo
temor.
— Ele não me permitiria. Já fiz uma tentativa. Kay não aceitará coisa alguma de
mim. Nem mesmo alguns shillings!
Isto provocou, no mais intimo de Alison, um instintivo sentimento de alivio. Percebeu-
o e sentiu uma leve vergonha.
Robin levantou-se.
— Preciso saír, Alison. Já resolveste onde vais ficar?
— Não sei. A casa está vazia. Todos os empregados arrumaram suas malas e
partiram, ao saber do acontecido.
— Podes ficar dormindo aqui esta noite, se quíseres. Tenho um pequeno quarto
desocupado. Vai á tua casa e traz o que te for necessário. Se eu não estiver de volta
antes de ti, aperta a campainha e chama pelo zelador. Amanhã poderemos fazer planos
melhores.
Dirigiu-se á porta. Alison pôs-se de pé e seguiu-a. Antes de saírem, Robin parou
novamente.
— Creio que nunca poderemos ser... verdadeiramente amigas — disse, lentamente,
á outra. — Sempre vivemos mais ou menos de ponta, não é? Mas, todavia, sinto uma
espécie de gratidão estranha e esquisita, pelo que me revelaste hoje. Não te abandonarei,
Alison, portanto não precisas preocupar-te.
Deixaram o apartamento juntas e desceram a mesma rua.
— Tens algum dinheiro? — perguntou Robin.
— Sim, papai não chegou propriamente até minha bolsa — replicou Alison, em tom
submisso.
Um momento antes de se separarem tornou a falar:
— Robin, por que não havemos de ser amigas? Desejo-o sinceramente. Nunca te
conheci bem. Robin, bem sabes que nunca amei Kay; tudo aquilo era obra de papai. Por
que, pois, não podemos ser amigas?
Havia uma espécie de afetada vaidade naquela descarada asserção.
Robin ergueu os olhos para a companheira e deu uma risada curta.
— Talvez por seres a mais engraçada de todas as mentirosas, Alison — retorquiu
ela.
Assim dizendo, fez sinal a um taxi e deixou Alison de pé na calçada, olhando-a,
espantada e enrubescida.
CAPITULO XII
Tarde da noite, quando Robin voltou ao apartamento, encontrou Alison na sua sala
de estar. Esta ultima pusera-se perfeitamente á vontade. Fora até sua residência, reunira
todos os seus objetos de uso e, então, se achava refestelada na mais confortável
poltrona, envolta rum colante "peignoir" de veludo de seda, folheando
despreocupadamente uma revista.
Parecia muito satisfeita mas, assim que deu pela presença de Robin, armou uma
cômica expressão de sofrimento. Estava tão habituada a fingir que o fazia instintivamente.
Mas não havia fingimento nas faces lividas e nos lábios contraídos de Robin. Seus
olhos fixos e muito abertos pareciam envoltos em sombras. Caminhou lentamente para a
mesa, deixou caír sobre ela a bolsa e começou a descalçar as luvas.
— Ele não estava lá — disse de chofre. — Mudou-se e não sabem para onde foi
nem o que está fazendo. E, também disso, sou eu a culpada.
Seus lábios tremiam convulsamente.
— Estás te referindo a Kay? És a culpada? Por que? — perguntou Alison.
— Contaram-lhe que eu o procurava outro dia e ele mudou-se. Receberam-me com
uma torrente de pragas porque fiz com que perdessem um pensionista — explodiu ela. —
Alison, ele deve odiar-me, para me evitar desse modo, não achas?
Alison não pôde conter a pequena onda de triunfo que se ergueu em seu coração.
Robin a recebera na hora de maior e mais desesperadora necessidade; prometera-lhe
casa, dinheiro e comida; mas isto não alterava o fato de ser Robin a mulher que lhe
roubara Kay. Sua consciência dizia-lhe que devia sentir vergonha por regosijar-se com a
desgraça de sua protetora e a pequena parte nobre de sua alma envergonhou-se. Mas
seu egoísmo era mais forte e, por um momento, a chama do triunfo ergueu-se tão alta em
seu intimo que se lhe refletiu nos olhos. Robin viu-a; não podia deixar de ver e disse com
um sorriso impregnado de amargura:
— Oh, bem sei que todos zombam de mim, Alison, mas eu o amo de corpo e alma e
não me envergonho disso.
Alison sentiu-se devorada por um sentimento de remorso que jamais experimentara.
— Robin, perdoa-me — murmurou rapidamente. — Lamento sinceramente tua sorte
e faria tudo para melhorá-la. Mas que se vai fazer? Quando um homem não gosta de uma
mulher ninguém pode obrigá-lo a lhe ter amor, não achas?
Robin, com a paciência esgotada, proferiu uma frase cuja lembrança, mais tarde,
não a deixaria muito orgulhosa.
— Sem duvida aprendeste isso á própria custa.
Alison tornou-se escarlate e Robin, imediatamente arrependida, acrescentou:
— Oh, não tive intenção de ofender-te, Alison. Deixemos de ironias e procuremos
ser mutuamente sinceras.
Alison, quase comovida, reuniu toda a coragem que lhe era preciso para aceitar a
proposta de Robin.
— Para ser franca contigo, Robin, Kay nunca me deu uma gota de confiança. Talvez
te seja algum consolo sabê-lo — confessou ela afinal.
— Obrigada, Alison — respondeu Robin calmamente. Fez-se um pequeno silencio;
Alison continuava a folhear lentamente a revista; Robin abotoava e desabotoava os
colchetes de sua luva.
— Mas, Robin, como podes saber ao certo se ele te odeia? — perguntou Alison, de
súbito. — Talvez ele se mudasse, receoso de que o encontrasses na miséria.
— Ele sabe que isso não teria importância para mim — replicou Robin. — Sabe que,
rico ou pobre, eu o amaria do mesmo modo. Mas não quis que eu o encontrasse e por
esse motivo mudou-se. Se me amasse não faria isso; pelo contrario, ser-lhe-ia um prazer
tornar a ver-me.
— Mas estás bem certa de que ele se mudou por tua causa? Uma infinidade de
outros motivos poderiam tê-lo obrigado a isso. Talvez o quarto não fosse confortável. Foi
o que se deu com papai e comigo o ano passado, em Cowes. Não havia um hotel que
prestasse em toda a cidade e éramos obrigados a pernoitar lá. Nunca vi tamanha falta de
conforto, minha cara. Nem sequer um banho podia-se tomar! E quanto á comida — ora,
bem sabes como papai era exigente nessa matéria. Queria que visses os pratos que
punham na mesa! Papai pagou as despesas e fomos embora. Não é possivel viver desse
modo, não achas? Talvez se tenha dado o mesmo com Kay. Ele estava habituado a tanto
conforto...
Robin ouvia, quase sorrindo, as palavras de Alison que revelavam o quanto esta
ultima estava longe de imaginar a situação de Kay.
Kay mudar-se daquela casa horrível por achar o quarto sem conforto! Como se ele
ainda pudesse influenciar-se por tais escrúpulos e exigências! Mas Robin compreendeu
que Alison, com a pobreza e a futilidade de seu espirito, procurava bondosamente
encorajá-la, por isso limitou-se a sacudir a cabeça dizendo:
— Não creio que seja uma dessas a verdadeira razão.
— Mas, Robin, ele já te amou, não é? Por que iria ele casar-se contigo se não te
amasse?
Robin, porém, não podia conversar com Alison sobre isso.
— Oh, não sei! Para mim tudo isto não passa de um enigma, o mais horrível e
trágico de todos os enigmas. Vamos comer qualquer coisa? — indagou, procurando pôr
ponto final ao assunto.
A proposta foi aceita e a conversa terminou. Alison tratou de se pôr á vontade no
pequeno apartamento de Robin. Servia-se dele exatamente como se fosse um hotel,
saíndo e entrando á hora que entendia, trazendo suas amigas para almoçar e jantar
consigo e comendo todas á custa de Robin. Trouxe tudo que restava de seu em sua
antiga casa e instalou-se com Robin como que para o resto da vida. Seu pai não voltara.
Parecia ter sumido de uma vez, o que fornecia a Alison largas oportunidades de tornar
ainda mais patetico o papel de heroina-martir que em certas ocasiões representava.
Robin, por sua vez, estava demasiadamente ocupada com os trabalhos do estúdio e por
completo absorvida pela angustia de seu coração, para importar-se com os atos de
Alison.
Uma tarde, porém, esta ultima chegou ao apartamento num estado de grande
excitação. Robin chegara do estúdio havia pouco tempo e estava em seu quarto, quando
Alison, surgindo á porta do aposento, exclamou:
— Robin! Encontrei Kay!
Robin que, diante do espelho, penteava sua negra cabeleira, ficou imovel por um
momento. Depois voltou-se lentamente, as faces inundadas por súbito rubor, um tumulto
de perguntas a saltar-lhe dos lábios.
— Kay? Onde? Como estava ele? Que é que te disse? Chegaste a falar-lhe?
Alison entrou e sentou-se no leito, visivelmente cheia de novidades e ansiosa por
contá-las.
— Foi numa ruazinha próxima á Estação Victoria e seu aspecto era horrível, minha
querida!
O coração de Robin tornou-se frio como gelo.
— Horrível, Alison? Que... que queres dizer com isso? — balbuciou.
— Tão mal vestido! Quase não o reconheci. Ele costumava andar sempre tão
elegante.
Atras de todas as emoções do momento, Robin acabou de convencer-se de que
Alison era uma idiota. Só uma pessoa incuravelmente imbecil poderia ter feito semelhante
comentario.
— Ele está pobre — explicou-lhe por fim.
— Foi a impressão que tive. Nunca pude conceber Kay com umas roupas tão
surradas, quase maltrapilho, Robin. Ele trazia uma espécie de lenço á volta do pescoço e
— (involuntariamente abaixou a voz) — eu acho que ele estava sem colarinho. É incrível!
Francamente, tive receio que alguém me visse conversando com ele. É um escrúpulo
natural.
— Alison!
O grito de Robin traduzia menos indignação que angustiada simpatia por Kay.
— Se o fiz foi unicamente por ti. Sei o quanto desejas ter noticias suas. Além disso,
já era quase noite e não havia muita gente na rua.
— Conta-me apenas o que ele te disse — interrompeu Robin, sentindo os lábios
secos e tensos.
Alison tomou uma pequena respiração e deu inicio á sua narrativa.
— Contei-lhe o que papai fez, a maneira cruel por que fui tratada, e de como vim
morar contigo sem me importar com a falta de espaço do teu apartamento, o que é de
admirar, dado o conforto em que sempre vivi.
— Oh, conta-me o que ele disse! — exclamou Robin.
— Disse-me que estava com muita pena de mim, pois calculava o quanto eu não
teria sofrido. Como é natural, também eu lamentei que ele tivesse perdido tudo que tinha,
embora a minha situação seja pior do que a dele, visto eu ser mulher.
— Mas não descobriste o que está ele fazendo? Como está sua saúde? Onde
mora? Não procuraste indagar alguma coisa importante? — perguntou Robin, ardendo de
impaciência ante o egoísmo de Alison.
— Não era preciso perguntar se ele ia mal. Isso entrava pelos olhos da gente. Seus
punhos estavam poidos. Imagine-se Kay com punhos poidos! Suponhamos que ele
encontrasse alguns dos velhos amigos; que iriam pensar?
— Oh, pelo amor de Deus, não me fales mais nas suas roupas! Dize-me como
achaste a sua pessoa — insistiu Robin, crispando nervosamente as mãos.
— Um tanto magro. Nem sombras do rapaz bonito que era. Foi uma terrível
decepção para mim.
Nesse ponto, Robin sorriu amarga e desconsoladamente.
— Alison, tu és... oh, não sei bem o que és! Se apenas... se apenas eu o tivesse
encontrado, em teu lugar!...
— Ele não teria falado contigo — replicou Alison, com um movimento de cabeça.
— Kay te disse isso? — perguntou a outra avidamente.
— Mais ou menos.
— Por favor, repete-me todas as suas palavras.
— Contei-lhe que tinhas tentado vê-lo e ele disse-me que sabia disso.
— Sim? — exclamou Robin, inclinando-se para a companheira.
— E eu falei-lhe de como vives a imaginar o quanto ele te odeia para fugir de ti da
maneira que foge. A isto ele virou-se, fez menção de seguir seu caminho, mas súbito
voltou e disse: "Dize-lhe..." Mas não terminou a frase, murmurando apenas quase em
surdina: "Não lhe digas nada".
— Estás bem certa de que ele não pronunciou mais nem uma palavra?
— Absolutamente certa. Nem sequer um adeus.
— E foi-se embora?
— Sim.
Robin deu um passo á frente e agarrou Alison pelos ombros.
— Não estás mentindo? — indagou, enérgica.
— Não sejas tola. Está claro que não.
— Mas disseste que ele não teria falado comigo. Ele te declarou isso?
— Pois eu já não te disse? Isso era suficientemente compreensivel. Nem sequer te
mandaria um recado.
Robin deu-lhe bruscamente as costas, cobrindo o rosto com as mãos; não obtivera
resposta a nenhuma das perguntas que lhe torturavam o cérebro; mais que nunca se
sentia devorada pela duvida. Se ao menos pudesse saber qualquer coisa de positivo! Se
ao menos pudesse vê-lo! E contudo, se ele nada lhe tinha a dizer, se queria apenas evitá-
la, esconder-se dela, como podia desejar vê-lo?
De tudo aquilo apenas uma coisa emergia, nitida e decisiva; era o fato de que, a um
simples olhar sobre a pobreza de Kay, Alison o riscara de suas cogitações. Como era
possível a uma jovem gostar de um homem que não tinha dinheiro nem para comprar um
colarinho era algo que sua filosofia não conseguia responder. Naquela ocasião ela
alimentava um flerte promissor com um rapaz muito rico e talvez por isso tivesse
suportado com tanta indiferença o infortúnio de Kay.
Aquele estado de perpetua ansiedade começou a manifestar-se no fisico de Robin.
Seus lindos olhos perderam a expressão despreocupada e infantil que outrora os enchia
de encanto; sua boca adquiriu o habito de pender levemente nos cantos. A mudança em
toda ela tornou-se tão acentuada que, ao termino do filme que estavam fazendo, Shale se
lhe aproximou e disse:
— Olha aqui, Robin, tens trabalhado demais. Estás esgotada e tristonha. Tens que
tirar umas ferias para encontrar de novo a alegria de viver.
Robin teve impetos de dizer que um simples descanso não conseguiria isso.
— Teu contrato comigo terminou agora, mas tenho um outro que tomará os teus
próximos tres anos.
— Oh, esplendido! — exclamou ela, procurando imprimir entusiasmo á voz, mas
com o pensamento voltado para uma amarga reflexão.
Consigo mesma dizia: “Enquanto ganho dinheiro a rodo, Kay não pode comprar
sequer um colarinho! Oh, é horrível!"
Todavia aceitou o conselho de Shale e partiu para uma pequena aldeia da costa, em
Devonshire. Ofereceu-se para levar Alison, mas esta ultima achou que pequenas aldeias
da costa, principalmente naquela epoca do ano, não lhe agradariam. Além do mais tinha
que atender a seus interesses particulares e estes reclamavam medidas urgentes.
Por dez dias, Robin suportou aquela vida rústica mas, ao cabo desse tempo, sentiu-
se demasiadamente inquieta para continuá-la. Kay estava em Londres e, ainda que
ignorasse seu paradeiro exato, era para lá que se sentia atraída.
Assim, pois, o décimo primeiro dia encontrou-a de volta. Uma pequena surpresa se
lhe deparou ao chegar.
Em lugar de Alison, encontrou ela apenas uma carta á sua espera. Essa carta
informava-a de que Alison contratara casamento com Teddy Despart — o tal rapaz muito
rico — com cuja família ela fora ficar. Dizia também que, não tendo ela um trapo decente
para usar, fora forçada a comprar alguns vestidos novos. A historia, segundo as próprias
palavras de Alison, era assim: "Eu sabia, Robin querida, que jamais me perdoadas se eu
fosse para a casa de Sir Edward e Dady Despart sem um guarda-roupa decente.
Pareceria tão mal, não achas? Por isso fui ao Dale & Kenion, comprei as coisas mais
indispensáveis e mandei debitar em tua conta. Teddy é fabulosamente rico e está
perdidamente apaixonado, portanto creio que eu não poderia ter arranjado coisa melhor
para mim, não é?
Robin concordou. Fez uma pausa para refletir nesse final de carta onde se revelava
todo o carater de Alison e continuou: "P. S. — Junto incluo a conta de Dale & Kenion.
Estou certa de que irás achá-la muito razoável".
Robin, nesse ponto, foi obrigada a rir; Alison chegava a fazer de sua conduta leviana
e arrogante uma virtude. A conta, ao ser examinada, proporcionou-lhe uma nova
surpresa: As "coisas mais indispensáveis" que Alison comprara em sua conta incluíam
grande numero de futilidades caríssimas. Havia mesmo na conta toda a evidencia de que
Alison visitara a seção de jóias de Dale & Kenion, de onde não saíra com as mãos vazias.
Em resumo, a conta era absurda.
Robin refletiu diante daquele total aterrador e tirou a conclusão de que, para saldá-
lo, precisaria dispor de todas as suas economias.
A principio ficou muito zangada. O procedimento de Alison fora tão leviano, tão
desonesto! Por muito menos, Robert Golden fora preso. "Mas há pessoas capazes de
praticar as maiores infâmias e continuarem impunes", refletiu ela. Tornou a olhar para a
conta. Foi buscar sua caderneta de banco e fez alguns cálculos...
Súbito, empurrou tudo para dentro da sua pequena secretaria e disse em voz alta:
— Oh, para que todo esse dinheiro, afinal? Tenho diante de mim o contrato de Shale
e ninguém que precise de dinheiro.
Além do mais, é um alivio ficar novamente só, no apartamento. Há uma única
pessoa no mundo capaz de curar minha solidão e está claro que essa pessoa não é
Alison.
Telefonou para o estúdio e contou a Shale que estava de volta, pronta para estudar
o contrato, se ele lhe quisesse enviar.
O contrato veio pelo correio, chegando-lhe ás mãos na tarde daquele mesmo dia.
Era um bom contrato, melhor do que Robin esperara e ela começou uma carta a Shale,
agradecendo e aceitando sua nova proposta.
Não traçara mais que estas palavras:
“Caro Mr. Shale. Muito agradecida pelo contrato. Eu...", quando uma batida á porta
do apartamento veio interrompê-la.
Dirigiu-se ao pequeno hall, abriu a porta e estacou como que petrificada. Atraves da
meia penumbra da hora, os olhos de Kay fixaram-se nos delia e sua voz disse num
singular tom de interrogação:
— Robin?
Ele estendeu rapidamente a mão e conteve um soluço.
— Kay! — sussurrou, tentando mostrar-se fria e calma. — Entra.
Enquanto o rapaz entrava, Robin acendeu a luz e fechou a porta. Voltaram-se então
um para o outro, seus olhos inteiramente incapazes de se encontrarem.
Ao conduzi-lo á saleta de estar, Robin notou que ele tremia da cabeça aos pés e que
seus joelhos ameaçavam dobrar-se.
Por fim tornaram a fitar-se, desta vez, porém, olhos nos olhos. Os de Robin
abaixaram-se em primeiro lugar, passeando ao longo da alta figura de Kay e notando os
detalhes de sua vestimenta, até chegarem aos sapatos rotos que ele usava.
A descrição que Alison fizera dele não fora absolutamente exagerada. Kay estava
quase maltrapilho, porém trazia ao pescoço um colarinho perfeitamente novo. Os olhos de
Robin ergueram-se de novo e, um segundo depois, mergulharam nos dele.
E, se seu coração se despedaçou ante o aspecto miserável do homem que amava,
uma felicidade infinita invadiu-lhe a alma ao notar-lhe no rosto uma nova força, uma nova
coragem, uma nova e máscula dignidade. Que importava, pois, que suas roupas fossem
velhas e surradas se a expressão de seus olhos adquirira uma nova beleza?
Robin estendeu a mão e tocou de leve o braço de Hallam.
— És tu... mesmo? — balbuciou ela com voz vacilante. — Custa-me acreditar. Oh,
Kay, tenho esperado, esperado... desejava tanto ver-te!
Voltou-se bruscamente, lutando por dominar-se. Após um breve silencio tornou a
falar:
— Senta-te, Kay, e... e conta-me... tudo que te aflige.
Kay sentou-se mas nada lhe contou; limitou-se a fazer-lhe uma pergunta:
— Como vais de trabalho? Sempre bem?
— Sim — replicou a jovem, mostrando-lhe o novo contrato de Shale.
No intimo, porém, não compreendia como lhe era possível gastar momentos tão
preciosos com um assunto tão sem importância. Hallam passou os olhos pelo contrato,
colocou-o sobre a mesa e disse:
— Otimo.
Fez-se um novo silencio longo e insuportavel. Robin tinha a impressão de que cada
segundo que se passava afastava-a mais de Kay; era como si a distancia, entre eles,
estivesse crescendo, crescendo e tornando-os cada vez mais estranhos um ao outro.
Começava a sentir que mais um só minuto daquele detestável silencio bastaria para
separá-los irremediavelmente, mas a voz de Kay veio trazer vida a seu coração, que aos
poucos se ia gelando de desespero:
— Robin, Alison não te falou do encontro que teve comigo?
— Sim.
— Repetiu ela algo da nossa conversa?
— Sim, todas as tuas palavras — replicou Robin.
— É verdade que andavas pensando que eu te odiava?
Robin tornou-se sensivelmente enrubescida.
— Era a única explicação que eu podia dar aos fatos — volveu ela.
— Que fatos?
— A maneira pela qual me evitavas. Penso que ainda guardas um odio amargo
contra mim.
— Eu não te odeio, Robin. Foi para dizer-te isso que vim cá. Era preciso. Eu não
podia consentir que continuasses a pensar tal coisa...
Nesse ponto calou-se e, mais uma vez, ambos emudeceram. Agora, porém, Robin
não mais se sentia longe dele: suas palavras, a expressão de seu rosto trouxeram-na
para perto. Mas, apesar de tudo, não lhe era possível encontrar uma resposta. Com os
sentimentos todos perdidos num caos de alegria, as palavras fugiam-lhe dos lábios.
— Como vês, estavas com a razão — continuou Kay, após um momento. — Sou um
perdulário. Minha pintura não prestava e eu continuo a não prestar para coisa alguma;
não há uma única coisa util que eu saiba fazer. Mas pelo menos, reconheço o que sou.
Pelo menos abri os olhos e não mais me deixo iludir pelo meu próprio egoísmo, pela
minha própria vaidade. Agora que estou só, sem o dinheiro de meu pai, compreendi que
sou um inútil.
— E mesmo sendo eu a única culpada... tu não me odeias? — perguntou Robin,
incapaz de abandonar o ponto que mais intensamente a interessava.
— Não.
— Por que, Kay?
O rapaz hesitou.
— Tentei odiar-te, Robin, empreguei para isso os maiores esforços e... houve um
momento em que acreditei consegui-lo. Como sabes, eu era um homem que freqüentava
a mais alta sociedade, trajava-me com a máxima elegância e envaidecia-me ao notar que
todos os olhares se fixavam em mim. Ora, se alguém vem dizer a um homem assim que a
razão de todo o mundo se voltar á sua passagem é ter um engraçado escrito com letras
vermelhas, ás costas do seu paletó impecavelmente talhado, a palavra "imbecil", o seu
primeiro impulso é matar aquele que, apontando-lhe a verdade, fez tombar sua vaidade
como um balão incendiado. Mais tarde, porém, se ele for sincero consigo mesmo, há de
alegrar-se por conhecer a verdade. E eu estou alegre, Robin.
— E é por isso que não me odeias, Kay? Porque me és grato? É... é um motivo
muito... forte — disse ela com voz tremula.
Mas não era o motivo que seu coração de mulher ansiava por ouvir.
— Eu tinha certeza de que acabarias por vencer — volveu ela, tentando afastar de
sua voz os reflexos da labareda de amor que lhe devorava o coração.
— Vencer, Robin? — repetiu Hallam com um riso curto. — Olha para mim! — (E
espalmou as mãos, olhando para suas roupas surradas). — E sabes por que não te
procurei antes? Imediatamente após meu encontro com Alison?
Robin meneou a cabeça.
— Porque, em primeiro lugar, tinha que ganhar dinheiro para comprar um colarinho e
cortar o cabelo. Arranjei o colarinho, mas... ele teve que ficar embrulhado durante uma
semana á espera que eu pudesse cortar o cabelo.
Tudo isto ele o dissera sem o menor tom de queixa e até com bastante bom humor,
mas o pequenino riso tremulo de Robin dificilmente não se transformou em pranto.
— Não... precisavas ter... ter feito isso por minha causa — replicou ela, fazendo um
esforço enorme para arrancar de seus lábios essas palavras, pois seu desejo não era
falar e sim correr para ele e abraçá-lo.
— Justamente por ti é que eu precisava fazê-lo — retorquiu Hallam.
Novamente fez-se silencio. Desta vez, porém, foi Robin quem o rompeu.
— Kay... como conseguiste ganhar o suficiente? Ás vezes... é preciso trabalhar
muito para comprar um colarinho e pagar um corte de cabelo — balbuciou, sorrindo.
— Consegui-o, fazendo o que tenho feito durante estes últimos seis meses,
aceitando todo e qualquer trabalho que aparece.
— Em que tens trabalhado, Kay? Poderias... não te importarias de dizer-me? Oh,
querido, tenho andado doente de aflição por ti!
Esse grito partiu a barreira de seus lábios e ela não o pôde conter.
Hallam inclinou-se para a frente, cotovelos fincados nos joelhos, a crispar
incessantemente as mãos; seus olhos abaixaram-se tanto que Robin não lhes pôde ver a
expressão.
— Tenho feito, céus, que tenho eu feito? — exclamou ele após um momento de
silencio. — Vejamos. Fui chofer de um dos mais cômicos tipos de novo-rico. Ele possuía
oito carros, distribuídos entre si, sua mulher e duas filhas. Estas ele trazia cobertas de
brilhantes, ao ponto de andarem resplandecentes como estrelas. Fui despedido depois de
uma semana de trabalho, por ter furtado um espanador ou coisa semelhante — não
consegui saber ao certo o que foi. Robin, foi esse o primeiro choque que realmente me
abalou, pois eu não tinha dinheiro para defender-me contra a acusação que me haviam
feito. Jamais me senti tão desgraçado como então. Despedido sem um atestado de
conduta! Não é brincadeira, posso assegurar-te. Consegui, porém, empregar-me como
criado de quarto de um aristocrata a cujo serviço ninguém aturava ficar por mais que
cinco minutos e que por esse motivo não era muito exigente em matéria de referencias.
Tive o prazer de colocar as abotoaduras em sua camisa quando ele estava em condições
de usá-la e enfiá-lo no banho quando a bebedeira era grande demais. A família dele
mandou-o para uma casa de saúde e novamente fiquei na rua, sem um penny, pois meu
nobre amo se esquecera de pagar-me. Foi então que tentei ingressar na tua profissão,
Robin, e passei dois dias rondando um estúdio cinematografico. Nada conseguindo,
arranjei serviço como mecânico em uma oficina. Dei-me muito bem com essa espécie de
trabalho mas o negocio faliu. E o pior de tudo é que fiquei com as roupas estragadas.
Depois... Mas, Robin, isso é suficiente, não achas?
— Não. Quero saber tudo — insistiu ela em voz baixa.
— Pois bem; depois minha sorte não foi das melhores. Fui trabalhar como
carregador de moveis em uma empresa de mudanças. Servi como garçom em um
restaurante e num café. Carreguei bagagens, chamei taxis, trabalhei nas docas, levando
carga para bordo. Enfim, tenho andado de emprego em emprego e experimentei os mais
estranhos serviços.
— E... durante os intervalos do trabalho, Kay? — perguntou Robin, com o coração
suspenso á espera da resposta.
— Oh... arranjo-me como posso.
— Como tens te... alimentado?
— Bem, pois do contrario não estaria vivo diante de ti.
— E dormes?
-— Sim, é lógico.
— Mas explica-me tudo — insistiu ela.
— Queres mesmo saber?
— Não vês que não desejo outra coisa? Quero que me contes os menores detalhes
de tua vida.
— Tenho comido onde posso e... como posso.
— E... quando... não podes?
— Paro de alimentar-me... automaticamente — replicou ele, rindo com certa
amargura.
— Por quanto tempo? — indagou a jovem quase em surdina.
— Uma ocasião passei quatro dias em jejum, sem conseguir obter sequer uma fatia
de pão duro — respondeu Hallam vagarosamente. — Esse foi o pior pedaço que passei.
— Onde moras?
— Onde posso.
— E onde dormes?
— No mesmo lugar.
— Kay! — murmurou ela.
— É o castigo da inutilidade, Robin.
— E tudo isso por minha culpa! Alison falou-me sobre o dinheiro que pagaste ao pai
dela.
— Oh, isso não fez a menor diferença.
— E a despeito de tudo... de tudo que tens sofrido... não me odeias, Kay?
Hallam ergueu rapidamente os olhos, tornando a baixá-los em seguida.
— Não — retorquiu ele.
E mais uma vez Robin indagou:
— Por que?
O rapaz esboçou um singular sorriso e pôs-se de pé.
— A razão é simples. Eu te amo, Robin. Sempre te amei... sempre tive necessidade
de amar-te. Eis tudo.
Robin também se levantou e fitava-o com um olhar radiante.
— Tu me amas? Oh, Kay... estás... bem certo? — balbuciou ela.
— É a única coisa que sei ao certo — replicou Hallam calmamente, pousando, nos
da jovem, seus olhos ternos e serenos. — Oh, não, não é mais o desejo ardente e
material que me impelia a tornar-te minha a todo custo, sem me preocupar com coisa
nenhuma. Disseste-me que não te era possível ser amada dessa forma. É verdade. Que
grande desajuizado era eu! Pois, apesar de tudo, sempre te amei. Ainda que não fosse...
um amor digno como é agora. Mas talvez eu te ofenda com essas confissões?
— Ofender-me? — balbuciou Robin. — Ofender-me por que?
Com estas palavras voltou-se e seus olhos fixaram-se no contrato de Shale, que
jazia, dobrado, sobre a mesa, ao lado da carta que começara.
— Oh — exclamou ela com voz débil. — Preciso terminar isto.
Hallam observou-a enquanto ela, inclinada sobre a mesa, traçava, com mão tremula,
o final da carta. E, embora não tivesse vindo ali com a menor intenção de exigir alguma
coisa da jovem, sentia-se mal por ver que num momento daqueles ela colocava em
primeiro lugar seus negócios.
Por fim Robin dobrou a carta, colocou-a com o contrato em um envelope, selou-o e
ergueu para o rapaz um olhar singularmente excitado.
— Vou levar isto ao correio — disse ela. — Espera por mim. Saíu apressadamente
sem chapéu nem casaco, deixando Hallam perplexo ante a sua súbita mudança de
atitude. Minutos depois voltava, rosto em fogo, respiração opressa, olhos vivos e
brilhantes.
— Ofender-me? — repetiu ela como si não houvesse decorrido um só minuto do
momento em que lhe fizera essa pequenina pergunta.
— Não — replicou Hallam, lentamente. — Não creio que minhas palavras te tenham
ofendido, ainda que... Pois bem, devemos ter coragem para enfrentar todas as verdades,
quaisquer que sejam, não achas?
— Sim, Kay. E queres que eu te ponha frente a frente com uma verdade, com uma
grande verdade? — perguntou ela, entreabrindo os lábios num sorriso cheio de ternura.
Hallam leu a verdade nesse sorriso e nos dois olhos negros que fitavam os seus.
— Não, não faças isso — replicou, voltando-se rapidamente para um lado.
— Disseste que devíamos ter coragem para enfrentar a verdade, não foi, Kay? Não
foi isso que disseste?
Kay voltou-se de novo para ela.
— Pois bem, enfrentá-la-ei. Podes falar.
E Robin falou.
— Eu também te amo, Kay. Sempre te amei, sempre tive necessidade de amar-te.
Eis tudo.
No silencio que se seguiu, a confissão de Robin parecia vibrar. Hallam suspirou.
— Obrigado, Robin. Deste-me coragem. Estava-se-me tornando um pouco dificil
deixar-te.
— Kay, não me deixes — suplicou ela bruscamente. — Nunca mais tornes a
abandonar-me. Aconteça o que acontecer estejamos sempre juntos.
— Robin, não posso viver á tua custa — explodiu ele. — Julguei que já o tivesses
compreendido. Nunca esperei que tornasses a fazer-me essa sugestão.
— Mas não estou sugerindo coisa alguma. Não quero que vivas á minha custa. Pelo
contrario. Quero voltar contigo para... o nosso lar, Kay.
— Para o nosso lar? Mas, querida... onde é o nosso lar? — perguntou Hallam cuja
voz, pela primeira vez, perdera a firmeza.
— Onde quer que estejas haverá um lar para mim. Leva-me contigo, Kay.
— Mas teu trabalho?
— Não tenho trabalho algum.
— Aquele novo contrato?
— Recusei-o, Kay.
— Robin!
— A carta já foi posta na caixa, querido, portanto não há mais remédio.
— Com que então era isso! Não devias ter feito uma coisa dessas, Robin! —
exclamou ele.
Robin acercou-se mais e fitou-o com uma expressão muito seria.
— Kay, uma vez assumimos o compromisso sagrado de caminharmos juntos pela
vida, tanto nos dias de alegria, como nos de adversidade, tanto na riqueza como na
pobreza. Acaso irás quebrar tua palavra, ou eu a minha, porque o destino te fez pobre?
— Mas estou praticamente na miséria.
Robin sacudiu a cabeça.
— Pois irei compartilhar da tua miséria.
— É tão pouco o que espero...
— Não importa, juntos enfrentaremos um futuro vazio.
— Mas lembra-te de teu pai.
— Sim, posso apenas lembrá-lo, Kay. Papai morreu.
— Morreu? Meu amor, e tiveste que sofrer tudo sozinha?
— Mas de hoje em diante não mais precisaremos sofrer sozinhos, Kay! — exclamou
ela.
— Tens o dinheiro que estavas economizando?
— Não. Dei-o a Alison.
— Oh, Robin, por que recusaste a proposta de Shale?
— Porque desejo ficar ao teu lado nas mesmas condições em que estás, Kay.
— E, para isso, desceste até o meu nivel?
— Não. Subi para alcançar-te.
— Deixa-me, antes, vencer esta prova por que estou passando...
— Já a venceste. Triunfaste na mais alta extensão dessa palavra. No fundo estás
bem certo disso, Kay.
— Mas como posso pedir que abandones todas as promessas do teu futuro por
minha causa?
— Mas, que eu saiba, não me fizeste semelhante pedido, Kay — replicou ela,
sorrindo. — E, além do mais, quais são essas promessas? Que futuro poderia esperar-
me? Gosto de varrer, limpar, remendar, serzir e ter alguém para cuidar. Não fui feita para
outra coisa. É um mal para maridos e mulheres que se amam, viverem separados.
Kay riu-se ante o seu adorável arzinho de sabedoria.
— É a nossa oportunidade, Kay. Oh, não estou te propondo isto por medo á solidão
ou por te amar loucamente, mas sim porque é justo. Se fosse melhor para nós
continuarmos a viver cada qual do seu lado eu te deixaria ir embora sem uma palavra.
Amo-te o suficiente para fazer qualquer espécie de sacrifício.
— Também eu te amo assim. Seria até capaz de pedir-te para escrever de novo a
Shale.
— Então ainda tens muita coisa a aprender em matéria de amor, Kay — volveu ela
com voz tremula. — Nem sempre a renuncia á felicidade é o maior sacrifício; algumas
vezes é mais corajoso aceitá-la; lutar por ela, sofrer por ela. Faze o que ditarem os teus
sentimentos, Kay. Segue teu instinto e eu suportarei com paciência as conseqüências.
Ia dar-lhe as costas, mas a mão de Hallam em seu ombro a deteve.
— Sentimentos... instintos... pode-se lá confiar nisso? — perguntou ele.
— Não és mais o desajuizado que eras — replicou Robin em tom resoluto.
— Nem tão pouco o rapaz rico que fui.
— Não é só o dinheiro que torna uma pessoa rica.
— Devo ir-me embora?
— Kay, não podes fazer-me calar — volveu ela com um pequeno riso. — Não
porque eu deseje aborrecer-te ou importunar-te, mas sim porque o direito é que vivamos
unidos. E creio que, nem mesmo havendo entre nós a distancia de dois pólos,
conseguiriamos fugir um do outro por muito tempo. De algum modo, em alguma parte,
algum dia, encontrar-nos-iamos de novo frente a frente, com todas estas questões
irrespondidas.
— E que resposta dar a elas, Robin?
— Simplesmente a de que devemos nos unir, aconteça o que acontecer. Para o bem
ou para o mal. Essa é a minha resposta, Kay. Resta encontrares a tua.
Após um pequeno silencio Kay respondeu:
— Todos os meus sentimentos dizem que estás com a razão. Cada batida de meu
pulso clama contra o erro da nossa separação. A própria vida parece falsa longe de ti. O
mundo se assemelha a uma grande mentira. Será esta a resposta, Robin? Poderá ela ser
justificada por alguma das cautelosas leis do homem?
A voz de Robin ergueu-se clara, meiga, tranquila.
— Talvez não. Mas as leis de Deus, que são mais sabias, justificam-na de sobra.
Kay abriu os braços.
— Pois então, anjo de minh'alma, vamos para o nosso lar!
CAPITULO XIII
Robin atirou-se aos braços do esposo e ambos, estreitamente unidos,
permaneceram algum tempo no mais eloqüente de todos os silêncios. E os braços que
agora a enlaçavam não mais eram os braços impetuosos do rapaz apaixonado, leviano e
egoísta, mas os braços fortes e protetores do homem que a reclamava, menos pelo
desejo egoista de possuí-la, que pela mutua necessidade de se pertencerem um ao outro.
Quando Robin se afastou um pouco para fitá-lo, seus olhos tinham uma expressão feliz,
pensativa e infinitamente terna. Hallam curvou a cabeça para ler as profundezas desse
olhar, para sorvê-lo até que seus olhos se perdessem nos dela.
Robin ofereceu-lhe, então, os lábios trêmulos, dos quais se erguia o vago perfume
de um sorriso e, uma vez mais, Kay a tomou em seus braços.
Depois sentaram-se no sofá um ao lado do outro, mãos e braços dados. Hallam
voltou a cabeça e encostou o rosto á cabeleira negra e macia de Robin.
— Não compreendo por que me queres tanto — disse Kay após um longo silencio.
— Eu é que não compreendo por que não havia de querer-te — retorquiu Robin,
sorrindo e tendo ainda na voz a quietude do silencio que há pouco se partira.
Kay também sorriu.
— A resposta é robinesca, mas não há nada mais delicioso que te ouvir novamente
a voz. Um retrato nunca foi companhia satisfatoria, embora, para mim, tenha sido melhor
que a solidão.
— Meu retrato, Kay? Aquele que vi á cabeceira de tua cama?
— Sim.
— Fiquei na duvida se o guardavas para que ele não deixasse esfriar o teu possível
odio contra mim, ou por me amares um pouquinho. Mas quando soube que te havias
mudado de pensão unicamente porque eu te fora procurar, a primeira hipotese venceu e
fiquei certa de que me odiavas.
— Como te enganaste! Guardava comigo tua fotografia porque te amava, mas não
tive coragem de encontrar-me contigo por não estar ainda seguro de mim mesmo.
Primeiramente, era necessário passar por um exame de consciência para saber se já me
tornara digno de apresentar-me diante de ti. Creio que agora já sei reconhecer o meu
lugar na ordem das coisas e era isso o que mais eu precisava aprender.
— É preciso que saibas também que o teu lugar é o meu e que estarei sempre onde
quer que estejas — murmurou ela, recostando a cabeça ao ombro do rapaz.
— Onde quer que eu esteja — repetiu ele. — É bom que fiques bem certa disso,
querida, porque, atualmente, não estou em parte alguma. Dois quartinhos, Robin, dois
quartinhos abafados em um bairro muito pouco elegante. Estás disposta a suportar isso?
— São dois agora, Kay? — perguntou ela. — Era apenas um, quando fui procurar-te.
Dois! Mas, meu amor, deve ser um palácio! Como conseguiste alugar dois quartos?
— Estou trabalhando, bem sabes.
— Não, eu não sabia. Nada me disseste.
— Se não o fiz foi por achar divino ouvir-te dizer que me amavas, apesar de toda a
minha miséria. E, realmente, o que ganho é o mesmo que nada, comparado aos teus
elevados salários de "estrela".
— Oh, por favor não toques mais nisso, Kay... Falas como se eu tivesse feito um
grande sacrifício.
— E não foi isso que fizeste? Nunca poderei esquecer a nobreza de tua atitude.
— Como conheces pouco o amor, Kay. Acaso não sabes que não é sacrifício
renunciarmos áquilo que nos vem matando aos poucos? Mas deixemos isso de lado para
me pores a par do teu novo emprego.
— É numa empresa siderúrgica, o nome da firma é Hallam & Hallam, Robin, —
acrescentou vagarosamente, após uma breve pausa.
— Hallam & Hallam? Mas... mas essa é a firma de teu pai — replicou a jovem.
Hallam confirmou com a cabeça.
— Kay!
— Oh, não se trata de um comodo emprego arranjado atraves de alguma influencia.
Estou trabalhando como simples operário e ninguém sabe quem sou. Para todos, lá
dentro chamo-me John Allen. John é realmente um dos meus primeiros nomes e como o
rapaz que me atendeu tivesse compreendido que meu sobrenome era Allen, deixei que
continuasse a chamar-me assim. Não te importas de ser Mrs. John Allen durante algum
tempo?
— Enquanto eu for realmente Mrs. Kay, tudo o mais pouca importância terá —
respondeu ela, rindo. — Mas, Kay, que dirá teu pai?
— Talvez algum dia eu vá procurá-lo para ouvi-lo — replicou Hallam. — Robin, não o
tens visto? Como vai ele?
— Não, querido, não o vejo há muito tempo, mas sei que ele vai muito bem. Hallam
& Hallam! Que situação estranha e irônica, Kay. Quando começaste a trabalhar?
— Sexta-feira passada recebi o meu primeiro salário — duas libras, Robin — e daí
tive que tirar o aluguel dos quartos, as refeições de uma semana e um corte de cabelo.
Robin desmanchou-lhe o penteado com mãos acariciantes, mas como ele
protestasse, tratou de reparar cuidadosamente a desordem que fizera.
— Conta-me tudo que fizeste, Kay — pediu ela e ali sentados de mãos dadas, as
sombras da noite tornando-se mais densas ao redor, Hallam principiou a falar.
Era simplesmente a historia de um homem que, tendo compreendido a
impossibilidade de obter uma colocação elevada, decidira principiar pelo posto mais
baixo. Se conseguisse subir teria sido á custa do próprio esforço. Terminou com um
ultimo aviso:
— Queres arriscar, Robin? Sou atualmente um operário e um operário pobre,
ganhando apenas aquilo que sua incapacidade pode exigir. Pensa no que isto significa,
meu anjo, pensa-o com calma.
— Já pensei — respondeu ela.
— Refletiste no futuro que te espera ao meu lado? Um pequenino lar de pobres...
pouca comida... roupas surradas.
— E o teu amor — atalhou ela com ternura.
— Nada de taxis, teatros, restaurantes — continuou Kay.
— Mas juntinho de ti — acrescentou novamente a jovem.
— Um lugar de seis pence num cinema barato, talvez (oh, amarga ironia!) para
assistir a um dos teus próprios filmes e lembrar-te o que poderias ser se não tivesses sido
tão tolinha.
— E tu, sentado ao meu lado, para lembrar-me o que poderia deixar de ser se eu
não tivesse sido tão esperta.
— Será uma vida de trabalho e dificuldades, Robin. Para comprares um alfinete
terás que esperar, fazer cálculos e por, fim ainda perder algumas horas para conseguir
uma pequenina redução no preço. E tudo isso debaixo de perene ameaça de me
despedirem e nos vermos com os bolsos vazios, passando fome e sem ter para onde ir...
— Em tua companhia os maiores sofrimentos serão suaves para mim.
— Oh, Robin, nada te amedronta? — exclamou ele por fim.
— Nada, contanto que estejamos juntos. Se sou tua esposa minha obrigação é
compartilhar de todas as tuas dificuldades, revezes e infortúnios, para merecer teu amor e
ter direito a uma parte das tuas alegrias e das tuas glorias. Kay, sou e serei sempre tua
esposa, tua companheira e tua amiga.
Fez uma pequena pausa e acrescentou em tom espirituoso:
— E pode chamar-se esposa á mulher que não sabe remendar, varrer, limpar e fazer
compras com pouco dinheiro? Compreende-se lá uma companheira incapaz de
transformar dois quartos num lar, uma amiga que não sabe fazer, de um lugar de seis
pence num cinema barato, um camarote de opera, de um copo de refresco, uma taça de
champagne, de um bond, uma Rolls-Royce, enfim, da terra, um paraíso?
Ambos puseram-se a rir.
— És adorável, Robin — murmurou ele, fitando-a ternamente.
Esperaram uma semana para dar a Robin tempo de tomar as necessárias
providencias e desalugar o apartamento, assim como para arrepender-se, se acaso
perdesse a coragem de sustentar a resolução que tomara. Kay insistia nesse ponto. Era
muito serio o passo que ela ia dar. Assim, pois, passou-se a semana de espera, durante a
qual Kay preparou o espirito de sua locatária para o aparecimento de “Mrs. John Allen” e
fez todo o possível para dar algum conforto aos quartos. Entretanto era bem pouco o que
podia fazer; faltavam-lhe recursos e, além disso, dois quartos nunca deixam de ser
apenas dois quartos, por mais que se faça. Todavia fez o que pôde e a estreita saleta de
estar parecia em festa, quando, no fim da semana, Robin chegou.
— Já uma vez, antes desta, preparei um lar para te receber — disse Hallam
enquanto, da porta, contemplavam, abraçados, o seu novo ninho.
— Mas nem se podia comparar a este — sussurrou Robin.
— Quero que me digas isso daqui a um mês — retorquiu o rapaz, rindo-se. —
Depois que tiveres conhecido a pobreza dos seus limites.
— Achas que um mes, um ano ou dez anos possam fazer alguma diferença?
— A qualquer outra faria, por certo, mas não a ti, Robin. Há poucas mulheres no
mundo capazes de colocar o amor acima de tudo e creio que és uma delas. Agora, só não
compreendo é o que terei eu feito para merecer uma esposa como tu.
Ela fitou-o com uma suave alegria no olhar.
— Oh, em breve estarás habituado, querido. Quando vires que eu fico, fico e fico, e
que não te podes livrar de mim, não terás outro remédio senão te conformares...
Hallam, porém, não a deixou terminar e seus braços comprimiram-na de encontro ao
coração.
Estavam num sabado e, assim sendo, Kay trabalhara apenas meio dia, ficando livre
até a noite. Sentaram-se, pois, á pequena mesa de almoço, posta com a máxima
simplicidade e, após a refeição, guardaram a louça e saíram.
— Vamos celebrar a data, indo a um cinema — anunciou Kay.
Ante a nota intencional de sua voz, Robin ergueu rapidamente os olhos para ele.
— Está bem — replicou.
Não se mostrou surpreendida nem mesmo ao entrar em um luxuoso cinema que
anunciava como principal atração um filme de “ROBINETTA GOLDEN”. Ao entrarem
sorriu para Kay, um sorriso cheio de significação e, tateando pela sala escura,
encontraram enfim seus lugares. Mal se haviam acomodado teve inicio a passagem do
grande filme. Assistiram quase em silencio mas, ao findar-se, quando a Robin da tela
passou por todas as alegrias e tristezas do enredo, para finalmente encontrar amor e
conforto, Kay voltou-se para ela e murmurou:
— Eis aí o que ainda está em tuas mãos obter, meu anjo. Eis o que renunciaste em
troca deste grande tolo que escolheste para marido.
Robin deslizou a mão pelo braço de Hallam e chegou-se mais junto a ele.
— Kay — sussurrou. — Sabes qual foi a ultima vez que me senti feliz?
— Não. Quando? — indagou ele.
— No dia em que nos casamos. E nem mesmo nesse dia fui feliz como sou neste
momento. Não nos amávamos então, como nos amamos agora. Mas, desde aquele dia
até hoje, nunca mais tive felicidade. Portanto, meu amor, não digas mais isso porque não
é verdade. Renunciei á minha carreira artística pelo único homem que amo no mundo; o
único capaz de fazer-me feliz; e ele nada tem de tolo; para mim...
Nesse ponto, porém, alguém clamou por silencio com um indignado "psiu" e Robin
lembrou-se de que estavam num cinema e que sua conversa, embora em voz baixa,
incomodava os outros. Os outros, no entanto, nunca poderiam avaliar o quanto era
importante para aquele casalzinho tudo que conversavam.
Findo o espetáculo, voltaram para casa e, ao abrirem a porta, Kay perguntou:
— Então não há mesmo o que te convença da tolice que estás fazendo?
Robin ergueu para ele dois olhos cheios de ternura.
— Não — respondeu-lhe com voz firme.
— Nesse caso só me resta dar graça a Deus por tanta felicidade — volveu Kay
preso de intensa emoção.
— E ás tuas preces de gratidão juntarei as minhas — murmurou a jovem.
Robin dissera que uma esposa devia ser esposa, companheira e amiga e foi com
verdadeira arte que desempenhou esses tres papeis. Destituído do luxo que outrora,
considerava indispensável, Kay viu-se dono de uma felicidade jamais sonhada.
Como dissera, a firma Hallam & Hallam não lhe concedia regalia alguma pelo fato de
ser ele quem era. Saía muito cedo para o serviço, mas Robin o acompanhava até á porta;
trabalhava sem descanso o dia inteiro, mas á tarde, ao voltar, encontrava á sua espera
uma esposa feliz e carinhosa. E assim, gradualmente, começou a interessar-se pelo seu
trabalho.
Uma tarde em conversa com Robin, disse-lhe:
— Uma vez julguei que o aço tivesse penetrado em minh'alma, mas enganei-me; ele
está apenas no sangue que herdei de tres gerações. Mas, seja lá como for, amo o aço;
agrada-me seu poder e a sua força. Acho uma beleza infinita na sua maleabilidade. A
maneira por que ele se deixa derreter, moldar e curvar, transformando-se em maquinas
maravilhosas.
Passados alguns meses, porém, uma nuvem surgiu no horizonte do casal.
Hallam foi promovido do seu antigo posto para um outro melhor, com aumento de
salário; até aí só havia motivos de regosijo. Mas Kay, desde o momento em que assumiu
o novo lugar, indispôs-se com seu capataz — e, já então, ele tinha experiência suficiente
para saber o que isso significava. Kelly, o capataz, era um sujeito alto, irritadiço, olhar
duro, cabelos e um pequenino bigode cor de areia, índole má e turbulenta. Cada palavra
sua era como uma chibatada para seus subalternos. Era um bom operário, considerado
por seus superiores, mas a autoridade de seu posto como que lhe transtornara a cabeça.
Seus subordinados tinham-lhe um odio ardente que uma só faísca seria o bastante
para fazer explodir. Essa faísca quis o destino que fosse Hallam e a primeira labareda
ergueu-se, um dia, no patio da fundição. O admirável nessas seções é que haja tão
poucos acidentes como há, pois os homens ali trabalham em meio de constantes
fagulhas; suas roupas ficam queimadas, rotas e manchadas, mas eles saem sempre
ilesos. Como muitas vezes acontece quando o perigo está sempre presente, os operários
habituam-se tanto a ele que não mais o receiam.
Kelly parecia sentir um prazer diabólico em conduzir seus homens a esse
departamento, em colocá-los frente a frente com o perigo. Para um capataz desse tipo
não há freio possível, pois ele pode sempre explicar qualquer acidente, pretextando a falta
de cuidado de um operário, ou desobediência ás suas ordens. Assim, pois, Kelly reinava
ali com todas as garantias, odiado pelos homens que dirigia e aparentemente alegre com
isso. Antipatizou-se com Kay desde o primeiro momento em que o viu. Havia nos olhos
cinzentos do jovem Hallam um certo destemor que o irritava; um certo aspecto de
fortaleza na sua compleição moça e vigorosa, que levou Kelly á decisão de que John
Allen precisava ser posto á margem.
Em pouco tempo Kay compreendeu a decisão de Kelly, pois este lhe demonstrava o
seu odio por todos os modos imagináveis.
A bomba estourou no dia em que um dos homens, inesperadamente acometido de
um desmaio, não pôde desviar-se de uma enorme fôrma oscilante de esfriar aço. Seus
camaradas gritaram, advertindo-o do perigo e o homem das maquinas ergueu a alavanca
com o fim de imobilizar a gigantesca fôrma, mas Kelly, dentes cerrados e olhar furioso,
saltou sobre ele, berrando:
— Continua! Por que paraste? Hei de ensinar este canalha a saír do caminho!
Com estas palavras estendeu a mão para baixar novamente a alavanca; por um
segundo aqueles homens mantiveram-se dominados por uma tétrica expectativa. Antes,
porém, que a forma fosse posta de novo em movimento, Kelly sentiu um golpe fortíssimo
no queixo que o atirou, cambaleante, ao outro lado do patio, enquanto o operário
desfalecido era carregado e posto fora de perigo.
Ao voltar a si e abrir os olhos a primeira visão que se deparou ante Kelly foi o rosto
enfurecido de Kay.
Com uma espécie de ronco surdo que nada tinha de humano, o capataz saltou sobre
Hallam e, durante muito tempo, os trabalhadores que ali estavam não conseguiram
distinguir qual daqueles dois corpos atracados era o de Kelly ou o de Hallam.
Por fim Kelly tombou sem sentidos. Fora derrotado.
Mas se Kay saíra vencedor naquele encontro de homem contra homem, isso, como
era de esperar, forneceu a Kelly o pretexto que há tanto procurava. Aquela tarde Kay
deixou o trabalho de Hallam & Hallam, mais uma vez despedido mas levando, nos pulsos
e ombros doloridos, uma sensação de curioso alivio e satisfação.
Dera aquele infame Kelly a lição que, pelas leis da justiça, ele próprio vinha
recebendo havia tempo.
Mas que diria Robin? Oh! por certo ela compreenderia que seu procedimento fora
correto.
Galgou, de dois em dois, os degraus que conduziam ao seu apartam ente, sentindo-
se gloriosamente ágil e assobiando pelo caminho.
A despeito da sua ruidosa aproximação, Robin aparentemente não o ouvira; não
viera, como de costume, recebê-lo á porta da estreita saleta e, quando ele entrou, foi
encontrá-la sentada junto á mesa, debruçada sobre uma revista aberta, completamente
absorvida por qualquer coisa que lia. Ao notar, porém, a presença do marido, fechou
bruscamente a revista e voltou-se para ele.
O arzinho assustado de Robin era tão adorável e Kay amava-a tanto que, sem
mesmo lavar o rosto e as mãos enegrecidas pelo trabalho, tomou-a nos braços.
— Que foi, amorzinho? — indagou ele, notando na jovem companheira qualquer
coisa nova e subtil.
Inclinou a cabeça, e fitou profundamente o rosto de Robin que continuava presa em
seus braços. Súbito o vago pressentimento que se erguera em seu espirito tomou vulto,
acelerando o ritmo de seu coração. Estendeu rapidamente a mão e voltou as paginas da
revista que se achava sobre a mesa; seus olhos se pousaram justamente na pagina que
Robin devorava com tanta avidez, no momento da sua entrada.
Viu, então, meia dúzia de modelos de pequeninas peças misteriosas e a emoção
que sentia tornou-se mais forte. Ao alto da pagina, em grandes tipos, lia-se o seguinte: “O
Enxoval do Bebê". Ele parecia antes ouvir a frase que a soletrar. Riu-se nervosamente.
Voltou-se, lento, e tornou a fitar a esposa, que, levantando os olhos ternos, sacudiu
a cabeça afirmativamente.
— Esta é a melhor e mais bela de todas as responsabilidades, não é? — murmurou
ela com voz impregnada de suavidade. — Eu não queria te contar antes de estar bem
certa, Kay!
O nome de Hallam saíu de seus lábios quase num grito, pois uma expressão de
horror embaciara o olhar do rapaz ao tempo que.
— Não... Robin! — balbuciava — Não pode ser! Não pode.
— Mas, Kay... não estás contente? Não te sentes feliz? — indagou ela com voz
entrecortada de ansiedade.
Hallam afastou-se e, deixando-se caír numa cadeira, enterrou o rosto nas mãos.
Receber uma noticia daquelas justamente no dia em que perdera o emprego. E tudo por
sua própria culpa! Se ao menos não tivesse encostado as mãos naquele desgraçado
Kelly! E agora Robin teria que sofrer — no momento mais grandioso de sua vida —
justamente quando suas necessidades eram maiores. Como fora estúpido! Seus
pensamentos interromperam-se e ele voltou-se bruscamente.
— Feliz, Robin? Mas, querida, estou desempregado. Fui despedido... hoje... e por
minha própria culpa. Como posso estar contente?
Mas, então, com um pequenino grito de indizivel alivio, Robin correu e foi ajoelhar-se
ao lado do esposo.
— É só isso? — indagou com voz tremula. — Oh, Kay, como me assustaste. Julguei
que fosse coisa muito pior. Pensei que não quisesses o nosso filhinho.
Os braços de Hallam enlaçaram-lhe a cintura.
— Meu amor, receio por ti. Foi unicamente por minha culpa que perdi o emprego.
E narrou-lhe em poucas palavras os acontecimentos do dia.
— Mas, Kay, procedeste muito bem — replicou ela quando Hallam parou de falar. —
Não tinhas outra coisa a fazer senão esbofeteá-lo. Eu, eu mesma, em teu lugar, o
esbofetearia.
— Mas não temos dinheiro agora, querida — justamente quando mais necessitamos!
— Arranjar-nos-emos de qualquer modo, verás. A única coisa que desejo é ver-te
contente.
— Não fosse eu ter perdido o meu emprego, seria, agora, o homem mais feliz da
terra, Robin.
— Por favor alegra-te. É adorável, não achas?
Ergueu a cabeça e encostou o rosto no de Hallam.
— Adorável — repetiu ele num sussurro. — Meu anjo, poderá haver ventura mais
suave? Assim que tiver idade suficiente ele irá trabalhar na firma de papai. Nada de
perder tempo com artes de segunda ordem.
— Estás assim tão certo de que será "ele"? — perguntou a jovem, sorrindo.
Kay riu-se.
— Oh, foi uma distração minha. Robin, dize-me uma coisa: durante quanto tempo
poderemos viver sem ganho?
— Fiz algumas economias, bem sabes.
— Só Deus sabe como o conseguiste, mas foi uma sorte. Para quanto tempo darão
elas?
— Tres semanas, mais ou menos, se formos cautelosos.
— Não me conformo de acontecer isto logo agora que precisas de mil cuidados e
tratamentos!
— Nada mais necessito, além de alimentação suficiente e... felicidade completa.
Como ambas essas coisas serão facilimas de arranjar, não é preciso te preocupares.
— És a mulhersinha mais corajosa do mundo! — exclamou Hallam.
Mas, entre um beijo e um sorriso, Robin o contradisse:
— Oh, não, apenas uma das mais felizes.
O primeiro resultado do incidente foi que todos os operários que jamais haviam
entrado em contato com Kelly, fizeram greve. Hallam, ouvindo rumores sobre o fato,
dirigiu-se aos arredores das oficinas com o intuito de colher alguma informação mais
segura. Do lado externo das oficinas os homens, divididos em pequenos grupos,
discutiam a questão. Indagando sobre o motivo que os levara á paralisação dos trabalhos,
Kay veio a saber que a greve se baseava em duas causas: em primeiro lugar os
trabalhadores exigiam a immediata demissão de Kelly e, em segundo, a readmissão d'ele
próprio, Kay.
— Há aqui um ou dois diretores que nós gostariamos de ver pelas costas — disse-
lhe um velho operário. — Para mim não será de espantar si esta greve se alastrar e tomar
feições mais graves. Há muita gente aqui que não anda satisfeita e tem motivos de sobra
para isso.
Kay mostrou-se vivamente contrariado. O trabalhador referia-se á empresa de seu
pai e suas palavras vinham cheias de ameaça.
— De quanto tempo para cá surgiu esse descontentamento? — perguntou Hallam.
— Tudo andou muito direito até o dia em que o velho se afastou e entregou a chefia
ao gerente.
— O velho? Quer referir-se ao velho Hallam?
O operário confirmou.
— Calculo que ele tenha deixado a fabrica por desgosto. Todo homem deseja que
seu filho o substitua — e o filho do velho Hallam, pelo que dizem, não presta para nada.
Diante disso o pobre do velho aborreceu-se e desinteressou-se do negocio.
Nesse ponto o operário fez uma pausa para encher o cachimbo.
— Todo homem deseja que seu filho o substitua — repetiu ele. — É lei da natureza
e dos negócios também. Um bom filho tem o dever de substituir um bom pai.
Hallam deixou o velho trabalhador e partiu mergulhado em meditações. Quanto mais
se informava, mais nitidamente compreendia que ele não fizera mais que apressar a
explosão inevitável de um antigo ressentimento. E, estudando as causas desse
ressentimento, chegou á conclusão de que a maior parte delas era justificável, fosse qual
fosse a direcção de Hallam & Hallam no tempo em que esse nome era algo mais que um
simples titulo comercial. A actual direção nada tinha de satisfatoria.
Nunca imaginou que aquilo o ferisse tão profundamente. Torturava-lhe o amor-
proprio saber que seu pai permittira aquele estado de coisas; ainda mais, porém, o
magoava a reflexão de que, tivesse ele ingressado na firma ao tempo em que seu pai
esperara, poderia assim ter evitado todos os desagradáveis acontecimentos presentes.
Não lhe era possível compreender um sujeito da espécie de Kelly, permanecendo por
mais de cinco minutos, em qualquer negocio do qual ele fosse o chefe.
— Papai teria conservado seu entusiasmo pelo negocio se eu estivesse ao seu lado
para auxiliá-lo. Todo homem quer que seu filho o substituta. Um bom filho tem o dever de
substituir um bom pai — pensou ele.
Com o decorrer dos dias tornou-se evidente que os empregados das outras seções
abandonariam seus postos e seguiriam a atitude dos companheiros, alguns por simpatia
para com as vitimas de Kelly, outros por próprio descontentamento. Alastrada a greve,
calculou Kay que dentro de uma semana se fechariam as portas de Hallam & Hallam.
Sentia-se oprimido por uma assombrosa sensação de responsabilidade. Era ele o
culpado. É certo que mais cedo ou mais tarde a greve teria de sobrevir; se ele não a
tivesse provocado, alguma coisa, ou alguém, o faria em seu lugar. Ainda assim não lhe
saía da mente a idéia de que fora o seu causador. Não havia argumento que o fizesse
esquecer isso.
Tomou a si, pois, a tarefa de evitar que o movimento grevista adquirisse maior vulto.
Não sabia como dirigir-se aos operários, mas, no momento preciso, as palavras saltaram-
lhe dos lábios. Compreendeu que os homens estavam com a balança da justiça a pender
francamente para o seu lado, mas compreendeu, de igual modo, que a paralisação
completa do trabalho seria um desastre para todos.
De uma coisa, contudo, estava certo: é que Kelly e os da sua espécie precisavam ir
para a rua. Se não pudessem eliminar esses elementos perniciosos por meios corretos e
pacíficos, se os chefes se recusassem a ouvir as justas queixas dos operários, então
teriam que recorrer a outros metodos.
Sua influencia sobre os trabalhadores era grande, pois, afinal de contas, era ele o
martir da causa particular que defendiam. Hallam conseguiu, afinal, que adiassem a
greve. Tendo obtido isso, estava ele a resolver qual seriam seus próximos passos,
quando a direção destes foi bruscamente desviada para um caminho inesperado.
Encerrado o expediente, falava Kay a um grupo de operários, do lado externo do patio
central, quando uma voz familiar, vinda de muito perto, exclamou:
— Onde está esse tal John Allen que vem provocando tantos aborrecimentos? É ele
o homem que desejo encontrar.
Kay voltou-se e, com o coração aos pulos, viu-se face a face com seu pai.
— Sou eu John Allen, sir — disse ele com tanta firmeza quanto lhe foi possível.
O velho não se deixou perturbar. É claro que na presença de todos aqueles homens
não lhe era possível trair a situação. Por um momento encarou fixamente seu filho o
depois lhe disse:
— Gostaria de falar contigo no escritorío, Allen — dentro de dez minutos. Quero
ouvir o teu caso e o do resto de... meus homens...
— Sim, senhor — replicou Kay, seguindo o pai que se retirava.
Dez minutos mais tarde via-se de novo frente a frente com Mr. Hallam, já agora
sentado á grande secretaria do escritorio. Fechou-se a porta e ficaram a sós.
— Então, Kay? — disse o velho Hallam.
— Aqui estou, papai — volveu Kay.
Houve um silencio durante o qual seus olhos se encontraram.
— Que estás fazendo aqui? — indagou Mr. Hallam.
— Como disseste agora há pouco — provocando aborrecimentos.
— Estou achando tudo isto muito serio.
— E tens razão para tal.
— Que pretendes fazer?
— Endireitar a situação, é claro.
— Como?
— Não estou bem certo quanto a detalhes — replicou Kay. — Meus planos, porém,
estão perfeitamente esboçados.
— Por ti próprio?
— Sim.
— Tinhas intenção de consultar-me antes de os pôr em pratica?
O velho tinha o rosto inclinado e rabiscava lentamente a folha de mata-borrão que se
estendia sobre a mesa.
— Está claro que sim.
A sinceridade da afirmação fez com que o velho Hallam silenciasse por um instante.
— Pois bem; conta-me tudo.
Kay expôs a seu pai, com a máxima clareza, o caso dos operários; falava bem e
com extrema lucidez. Mr. Hallam sorriu.
— O negocio está precisando de ter um Hallam pela frente — disse ele.
— E por ventura não é um Hallam o seu diretor? — retorquiu Kay. — Nosso nome
figura duas vezes, á frente desta empresa e, contudo, não soubemos evitar esta situação.
Mr. Hallam enrubesceu ligeiramente.
— Estou velho, Kay, e perdi o interesse.
— E eu que sou jovem, só agora começo a senti-lo.
— Somos ambos culpados.
— É verdade.
Novamente seus olhos se encontraram. Súbito Kay como que explodiu:
— Papai, sinto-me coberto de vergonha por ver que homens da espécie de Kelly
vêm trabalhando aqui há tanto tempo. Não são homens... são verdadeiros animais!
— E te sentes envergonhado, Kay?
— Amargamente.
— Isso é novo, em ti, não?
— Sim; completamente novo, mas terrivelmente forte. Sou teu filho.
Entre ambos fez-se um curto silencio.
— Meu filho... nem sempre pensou assim — volveu Mr. Hallam vagarosamente.
— Teu filho, agora, é um operário e sabe o que isso significa.
— Quanto tempo estiveste trabalhando aqui, Kay?
— Tres meses... mais ou menos... trabalhei ombro a ombro com os operários;
confundi-me com eles, aprendi a viver com eles.
— E sempre como John Allen?
— Sempre. Nem um dos operários suspeitos que eu fosse um Hallam... Talvez não
se tivessem mostrado tão meus amigos, se soubessem que eu, com a minha indiferença,
contribui para esta deprimente situação.
Mais uma vez emudeceram.
— Kay, vai e dize-lhes que um Hallam assumiu de novo a direção da firma... —
ordenou Mr. Hallam.
Havia nos olhos do velho uma expressão significativa. Kay, porém, atalhou:
— Então, voltarás ao trabalho, papai?
— Não, serás tu o meu substituto.
Kay meneou a cabeça.
— Algum dia, talvez; não agora. Preciso merecer essa posição.
— Continua, pois, e faze por merecê-la!
— E enquanto isso...
— Voltarei á direção do negocio — replicou lentamente o ancião. — Hallam &
Hallam tornará a ser o que já foi. Promettes auxiliar-me, Kay?
A resposta do rapaz foi dada em silencio. Inclinando-se por sobre a larga secretaria,
estendeu a mão que o trabalho tornara rude e áspera. Duas mãos, brancas e enrugadas,
cerraram-se sobre ela.
— Meu filho... meu filho!
O instante que se seguiu foi de profunda comoção. Após um breve silencio Mr.
Hallam falou:
— Não me disseste uma só palavra sobre... o que te fiz.
Kay riu-se.
— Francamente, não me lembrei. Estás te referindo ao corte de meus rendimentos?
— Sim. Permittes que as coisas voltem a ser como eram antes?
— Não! — foi a resposta súbita e espontânea.
— Então deu resultado.
— Pleno e absoluto. Obrigado, papai.
— E agora, que vais fazer?
— Continuar a trabalhar. Uma coisa poderás fazer por mim — é ser eu readmitido no
posto que obtivera nas oficinas.
— Só isso?
— Só. Farei o resto por mim mesmo, se tem que ser feito.
O velho fitou nele os olhos pensativos.
— Estás casado, não é, Kay?
— Sim.
— E, já agora, tua mulher vive contigo?
— Raramente se encontra um casal tão unido — replicou Kay com um sorriso de
felicidade.
— E ela compartilha do pouco que tens; nada mais exige além d'aquillo que John
Allen lhe pode dar?
— Exatamente. Nada exige de mim, e dá-me, em troca, todo o tesouro de amor que
possui.
Havia na voz de Kay um mundo de expressões venturosas.
— E que pensa ela de ti?
— Vamos até em casa comigo e ela te dirá.
Mr. Hallam ergueu para o filho dois olhos risonhos.
— És assim tão feliz? — perguntou.
— Vem comigo e verás — volveu Kay, rindo.
CAPITULO XIV
— Robin, aqui está papai que veio jantar conosco! — anunciou Kay, introduzindo Mr.
Hallam na pequenina sala.
Robin, com seu vestido cuidadosamente coberto por um gracioso avental, mangas
arregaçadas até os cotovel-los, voltou as costas para o pequenino fogareiro a gas que
ficava oculto a um canto da saleta, e arregalou os olhos numa expressão de franca
incredulidade — tão perplexa por um momento que nada pôde dizer e quando a fala lhe
voltou pôde apenas balbuciar:
— Para jantar? Oh, que bom! Espero que o senhor goste de salmão. Gosta?
Esta ultima interrogação, feita com marcada ansiedade, provocou uma risada que
veio facilitar muito a situação; todos agradeceram-na intimamente, pois aquele súbito
encontro causara grande emoção.
— Robin... minha filhinha querida! — exclamou Mr. Hallam, estendendo ambas as
mãos.
A jovem tomou-as nas suas rapidamente, ergueu dois olhos quase tímidos e, então,
num movimento impulsivo, levantou o rosto até o nivel do de Mr. Hallam, e beijou-o
afectuosamente. Feito isto, quiz afastar-se do velho, mas este não a soltou
immediatamente.
— Como estás, querida? Tens uma aparencia esplendida. Continuas a ser a jovem
mais bonita da Inglaterra.
— Seria melhor dizer a mais feliz — contestou ela.
— Ou a mais corajosa, a melhor, a mais carinhosa, a mais adorável e a mais
querida! — acrescentou Kay com exuberância.
Mr. Hallam riu-se e soltou as mãos de Robin. E, então, como se não tivesse havido o
menor intervalo entre a pergunta desta ultima e a sua resposta, disse com toda a
seriedade:
— Sim. Não só gosto de salmão como é dos pratos que mais aprecio.
— Vou buscar um outro salmão, Robin, para celebrarmos este grande dia —
cochichou Kay. — Conversa com papai, querida, e faze tudo para evitar que ele perceba
a minha ida ao peixeiro.
Saíu rindo. Depois de fechar a porta, Robin voltou-se e mais uma vez ergueu os
olhos para pousá-los na fisionomia bondosa do velho Hallam.
— Sabe o senhor que foi para mim a maior das alegrias tornar a vê-lo? — disse-lhe
ela com um jeitinho todo seu.
— É serio? Kay está satisfeito, não achas? — retorquiu o velho com avidez e
ingenuidade quase infantis.
— Ele está como que no ar — volveu a jovem com sua habitual franqueza. — Sente-
se tão feliz que por um dedinho a mais de felicidade seria capaz de estourar.
— Vieram dizer-me que as coisas estavam tomando um aspecto muito serio na
oficina e desci para ver o que podia ser feito. Fui um desleixado, Robin; um desleixado!
Perdi o amor ao negocio quando me pareceu ver que Kay jamais se interessaria por ele.
Assim sendo, achei que não valeria a pena levá-lo avante. O meu maior sonho foi sempre
fazer com que Kay assumisse a direcção da firma...
E sua voz cansada tornou-se quase apagada.
— E era natural. Todo homem deseja que os filhos o substituam. Foi para mim uma
decepção amarga quando Kay montou aquele atelier. Se ele fosse realmente um grande
artista... pois bem, isso seria coisa muito diversa.
— Sim, bem sei — aparteou Robin. — Seria muito bonito ter um grande artista na
família, não é?
O velho Hallam riu-se.
— Está claro — concordou. — Um verdadeiro artista é, sempre, algo digno de
admiração.
— Quero dizer que o senhor se orgulharia dele, nesse caso, mas nunca poderia
orgulhar-se de um... pintorzinho a toa como o que Kay se estava tornando. Ele não ignora
que é essa a minha opinião — acrescentou Robin. — Nada lhe estou dizendo que não
seja capaz de repeti-lo a Kay. Tudo isto ele já ouviu de meus lábios.
— Bem sei — replicou Mr. Hallam. — Tu sempre o amaste da melhor maneira.
— Não — protestou Robin. — Isso não é exato. Quando nos casamos eu não o
amava assim. No fundo eu sabia que estava aceitando a felicidade, sem refletir se se
tratava da melhor, da mais nobre espécie de felicidade. E essa não é a melhor maneira de
amar uma pessoa.
— Quanta sabedoria nuns lábios de criança! — considerou Mr. Hallam com um
sorriso.
Estava sentindo um curioso prazer em conversar daquele modo franco e expansivo
com a mulher de Kay. Longe de perder um filho como acontece a tantos pais, quando
seus filhos se casam, Mr. Hallam sentiu que ganhara uma nova filha, da qual intimamente
se orgulhava. Era admirável a intrepidez com que Robin sabia encarar os problemas da
vida. Jamais recuara diante de uma dificuldade, por maior que esta lhe parecesse. E era á
custa de muita coragem e fidelidade, que lograva manter tão alta a sua pequenina flamula
de dignidade. Não passava de um átomo humano entre milhões, mas cumpria altivamente
sua pequena missão, deixando pela vida o rasto luminoso de sua passagem.
Por um momento o velho Hallam deixou-se levar por estes pensamentos, mas,
súbito, lembrando-se de que Robin lhe pedira para narrar seu encontro com Kay,
apressou-se em satisfaze-la.
— Não há excusa possível para mim, Robin — continuou ele. — A despeito da
grande decepção que meu filho me causara, eu não devia permitir que meu interesse pelo
negocio oscilasse. Era um encargo de confiança que meu pai me entregara. Eu não devia
ter faltado a esse compromisso; Hallam & Hallam custou a meu pai uma vida de trabalhos
e esforços. Não; não há perdão para mim. E eu não procurarei desculpar-me. Farei
apenas tudo que estiver dentro de minhas forças para reparar os prejuízos.
— Isso é o que há de melhor a fazer — concordou Robin. — E a que proporções
atingiram esses prejuízos?
Mr. Hallam contou-lhe, então, tudo que Kay lhe informara, e de que maneira se
haviam encontrado. Robin ouviu-o atentamente, com uma expressão de profundo
interesse, sacudindo, de quando em vez, a cabeleira negra e dando um ou outro aparte.
— Eu não tinha a menor idéa de que o rapaz estivesse lá. É verdade que o nome
era desconhecido. Ele prestou um grande serviço á firma, impedindo que a greve se
alastrasse.
E assim terminou Mr. Hallam a sua narrativa.
— O único mal de Kay era excesso de dinheiro e esse agora está reparado — disse
Robin, sorrindo para o velho.
Este ultimo, ao erguer o rosto, não pôde ocultar uma expressão de profundo
sofrimento.
— Sim, de fato, esse mal agora está reparado — volveu ele.
E lançou um olhar pela pequena sala.
— Robin — explodiu de súbito, preso de grande comoção. — Não me é possível ver
vocês dois nesta miséria. Quero ter Kay ao meu lado, na firma, como meu sócio. Hallam,
Hallam & Hallam — não achas que fica excelente? Mas ele não quer aceitar, por nada.
Queres fazer-me um grande favor, Robin?
Esta ultima, de pé ao lado da cadeira de Mr, Hallam, fitou-o com olhos de duvida.
— Tudo depende... — começou ela vagarosamente.
Mr. Hallam, porém, interrompeu-a.
— Faze-o mudar de resolução. Ele o fará si lhe pedires. Acederás ao meu pedido?
Robin meneou a cabeça.
— É-me odioso recusar-lhe qualquer coisa. Mas eu não poderia fazer isso. E, ainda
que o fizesse, não creio que ele cedesse. Além do mais já é demasiado tarde para que o
senhor se preocupe com a nossa pobreza. Quero dizer... — acrescentou Robin
delicadamente, sendo interrompida por Mr. Hallam.
— Sim, bem sei o que queres dizer. O culpado disso sou eu. Mas nunca me passou
pela cabeça que as coisas pudessem chegar a este ponto. Nunca imaginei que o rapaz
fosse tão altivo e sempre alimentei uma esperançazinha de que, a qualquer momento, ele
voltasse para pedir-me dinheiro. E eu lhe daria. Dar-lhe-ia tudo, para ter novamente a sua
amizade!
— É esquisito como ás vezes fazemos certas coisas, sem nos passar, sequer, pela
mente a importância do que estamos fazendo — disse Robin pensativa. — Ao lhe pedir
para cortar uma parte da mesada de Kay, eu nem sonhava com isto; e quando o senhor a
cortou definitivamente, não poderia calcular que estava dando inicio a algo tão importante
que não mais seria possível recuar. Não posso fazer o que me pediu, Mr. Hallam. Não
posso.
— Mas, minha filha, corta-me o coração ver vocês dois obrigados a contar penny por
penny. Percebi muito bem as proporções de caso gravíssimo que tomou a simples
compra de um miserável salmão.
— E é verdade — confessou a jovem. — Cada penny que gastamos representa
muito para nós. Mas Kay está, desempregado, o senhor bem sabe.
— Já não está mais.
— Vai readmiti-lo?
— É lógico. Só o que me aborrece é que ele insiste em voltar para o mesmo posto
em que estava.
— Faça-lhe a vontade. Ele tem toda a razão.
— Ele que podia pedir tudo que quisesse! — exclamou o velho, preso de visivel
comoção.
Robin abaixou-se, pousou uma das mãos no joelho de Mr. Hallam e fitou em seu
rosto os olhos ternos.
— O senhor diz isso mais pelo grande amor que lhe dedica e pela intensa alegria de
tornar a vê-lo do que... por achar que ele deva ocupar um posto muito mais alto.
Os olhos de Mr. Hallam evitaram os de sua nora.
— Talvez em parte tenhas razão — confessou. — A verdade, porém, é que ele tem
a arte de saber lidar com os operários. Eles são seus amigos e ouvem-no.
— Pois então o senhor deve dar-lhe uma chance de acrescentar, a isso, um perfeito
conhecimento pratico do negocio. Depois disso duvido que o senhor encontre um gerente
melhor do que ele.
— Oh, minha querida, mas ver-te neste... neste... — (e lançou um olhar pelo
compartimento). — Não. Nem com um grande trabalho de imaginação eu poderia... —
continuou ele.
— Alargar esta sala, não é? — terminou Robin, rindo-se. — Isso seria, de fato,
impossível; mais vale, porém, uma salinha estreita como esta, repleta de felicidade até ao
teto, do que um vasto salão cheio de tédio e amarguras. O senhor não pode imaginar o
que significa, para nós, este pequenino lar.
Ao lado de Mr. Hallam, a cabeça graciosamente inclinada, o olhar perdido numa
expressão pensativa, contou-lhe ela tudo que se passara desde o dia em que Kay se vira
privado do auxilio paterno. Descreveu-lhe o ressentimento e o odio que o dominaram no
primeiro momento. Narrou-lhe de como tentara ajudá-lo secretamente com algum dinheiro
e o modo pelo qual Kay lhe restituira tudo. Depois os seus sofrimentos, a fome, o
desabrigo; tudo, enfim, por que ele passara. E o dia que fora procurá-la, não para pedir-
lhe que fosse compartilhar de sua miséria, mas unicamente para confessar que era ela
que estava com a razão; apenas para dizer-lhe que á custa de odio e amargura, recebera
uma grande lição de amor que antes jamais pudera compreender. Robin terminou,
falando lentamente:
— Portanto este pequenino lar em que vivemos é, para nós, algo mais que dois
quartos velhos e pouco confortáveis. É... é... Oh, não encontro palavras capazes de dizê-
lo! Mas o senhor me compreende; há neles qualquer coisa sagrada. Não podíamos seguir
outro rumo, voltar atras, ou fugir, agora. Seria grande demais a nossa perda. Nunca mais
teríamos coragem de fitar um ao outro, nos olhos. O senhor não pode desejar que Kay
abandone, assim por nada, o resultado de tanto esforço e de tanto sofrimento.
O velho Hallam quedou-se silencioso durante algum tempo. Kay, sem pão, sem teto!
Gelado, faminto e sem ter onde repousar! Esta simples idéia torturava-o. Finalmente, ao
erguer o rosto, Robin notou-lhe nas faces o brilho de duas lagrimas.
— Mas ele venceu e tornou-se um homem — disse ele com voz pouco firme. —
Nada mais direi, nada mais quero. Deixemo-lo subir sosinho e a seu modo. Ele o fará,
pois a trilha que escolheu é a trilha da dignidade.
Mais uma vez calou-se.
— E ninguém soube escolher também melhor companheira — continuou, de súbito.
— Robin, querida, se jamais um homem se descobriu diante de uma mulher, eu o faço
diante de ti.
Robin esboçou um sorriso de franca alegria.
— Vejo que o senhor está ficando tão tolo como Kay — redarguiu. — Ele parece
achar sempre algo assombroso, em que eu tenha vindo para junto de si compartilhar da
sua pobreza. Meu Deus, se o senhor soubesse que agonia era para mim a vida longe de
Kay!... Se soubesse o que padeci em saber onde ele estava e imaginando que pudesse
estar passando fome e frio, não se admiraria tanto de me ver aqui. E se visse como Kay
está bom agora, como vive alegre com o nosso amor...
Um pequeno tremor veio pôr fim á historia, já que palavra alguma pudera fazê-lo.
Um instante mais tarde, porém, acrescentou:
— Mas não faz mal. Continue a admirar-me, isso me agrada. É mesmo das coisas
mais adoráveis da vida.
E, curvando-se, beijou de leve a cabeça de Mr. Hallam. Este sorriu, erguendo os
olhos para ela.
— E tu, querida? — indagou. — Nunca mais pensaste na tua carreira?
— Não. Encontrei outra melhor e mais bela.
— Desististe completamente da idéa de te tomares celebre como estrela?
— Sou uma estrela muito maior dentro do meu lar — volveu Robin, rindo-se.
— E tua voz? Pretenderás abandonar uma voz adorável como a que possuis?
Robin silenciou por um momento. Súbito, ajoelhou-se ao lado de Mr. Hallam.
— Hallam, Hallam & Hallam — murmurou ela, e nada se assemelhava a uma
resposta antes de soarem suas próximas palavras. — Sim, vou fazer com a minha voz a
coisa mais importante do mundo. Vou cantar para adormecer o pequeno Hallam numero
quatro. Não acha que é o meio mais lindo de empregar minha voz?
Suas palavras não encontraram resposta, mas dois braços velhos e cheios de
paternal ternura enlaçaram-na demoradamente...
Quando Kay voltou, trazendo dois suculentos salmões, um potinho de mel e tres
pães, o jantar foi servido. Robin desconfiou que ele se retardara propositalmente, mais do
que fora necessário, para dar-lhe oportunidade de conversar algum tempo com seu pai. O
jantar decorreu na maior alegria.
Kay e seu pai voltaram a discutir seus planos sobre a firma e chegaram a diversas
conclusões úteis; concordaram facilmente em muitos pontos, onde o argumento era
desnecessário e quando suas opiniões não coincidiam resolviam o caso com o melhor
humor. Kay era jovem, irrefletido; o velho Hallam falava com mais vagar, aplicando a
experiência que a vida lhe ensinara; cada qual cedeu um pouco e, mais tarde, ao se
separarem, o afeto que sempre os ligara tornara-se mais profundo. Já agora ambos se
respeitavam, e isso era algo que tanto tinha de novo quanto de belo. Antes de saír, Mr.
Hallam fez com que o casal promettesse ir passar um domingo comsigo em Hertfordshire.
A principio Kay mostrou-se indeciso, mas o velho estava tão firme na resolução que ele
não teve outro remédio senão ceder e prometer. Mal, porém, seu pai se retirara, voltou-se
para Robin e perguntou-lhe:
— Se formos passar um domingo com papai, em meio de todo aquele conforto e
com um exercito de criados para nos servir, como poderás, na volta, habituar-te de novo á
nossa pobreza?
— E tu? — contestou Robin.
— Oh, é muito differente. Sou um homem.
— Pois bem, e eu sou uma mulher. Sou até alguma coisa mais que isso. Lembras-te
qual foi sempre o meu nome?
— Robin.
— Não. Robin, a Maltrapilha. Essa é a verdadeira Robin. Essa, a Robin que sempre
hei de ser, Kay. Há uma parte de mim que se sente tão á vontade aqui como num palácio;
há outra parte que se sente tão á vontade em um palácio como aqui. E, finalmente, existo
eu inteirinha, que apenas desejo estar onde estiveres. Seja lá onde for.
— Meu anjo, procura suportar agora a pobreza do nosso lar e, mais tarde, terás o
teu palácio. As coisas estão endireitando. Já entrevejo diante de mim um futuro.
Beijou-a e ambos se puzeram a tirar a mesa do jantar.
— Mais que nunca temos que trabalhar agora — continuou Kay. — Robin, contaste
a papai que ele em breve será avô?
Robin confirmou com um silencioso movimento de cabeça.
— E ele mostrou-se satisfeito?
— Muito mais do que imaginas.
— Que foi que ele disse?
— Nada.
— Então como podes saber?
— As verdadeiras emoções não precisam de palavras para as revelar...
— Querida...
— Meu sogro é um homem simplesmente adorável — continuou ela.
E, então, como se suas próprias palavras houvessem trazido á sua lembrança um
outro homem, voltou-se para Kay, que reunia os pratos e lhe disse com um certo temor:
— Kay, eu gostaria de tornar a ver Andy, e tu?
Kay ergueu rapidamente o olhar e avermelhou.
— Eu devia dizer o mesmo, pobre Andy! Oh, Robin, como eu era idiota!
Inclinaram-se um para o outro, cada qual se apoiando com as mãos sobre a mesa
que os separava. E, com uma graça infinita, Robin beijou-lhe a ponta do nariz.
— Robin, a Maltrapilha! Robin, a Maltrapilha! — exclamou ele, erguendo tanto a
cabeça que o próximo beijo foi caír no lugar certo.
Separaram-se, então, rindo-se.
— Meu Deus! — exclamou ele, apanhando os pratos sujos e despejando seu
conteúdo na lata de lixo. — Devemos ser um caso perdido para podermos nos amar por
cima dos restos de um banquete de salmões, como este!
— Está claro que somos um caso perdido. Francamente perdido. Oh, Kay, custa-me
a crer em tanta coisa boa! Acho que sou a mulher mais feliz da terra...
— Pois eu tenho a certeza de que sou o homem mais feliz — retorquiu Kay.
— Não tens nem um pouco de saudades da vida fácil e alegre que abandonaste,
Kay?
— Alegre? Inútil e vergonhosa, Robin. Podes estar certa, querida; eu não tornaria a
viver daquele modo estúpido, nem que me pagassem. Não compreendo como podia eu
desperdiçar todas as horas do dia, louca e inutilmente, e não morrer de tédio! A simples
lembrança disso dá-me a impressão de um pesadelo.
— Mas, Kay, como será, então, quando tivermos o palácio que me prometeste?
— Continuarei a trabalhar, Robin.
— E deixarás que eu faça o mesmo?
— Trabalhar? — perguntou ele sem compreender bem.
Robin sacudiu a cabeça afirmativamente.
— Deixar-me-ás trazer o palácio em ordem? Cuidar do palácio, de ti e... e do
pequeno Hallam numero quatro? Não me forçarás a entregar todos esses adoráveis
deveres a arrumadeiras, criados e amas, não é?
E lançou-lhe um olhar de sincera aflicção. A resposta de Kay, praticamente, não foi
resposta. Limitou-se a murmurar suavemente:
— Robin, minha Robin Maltrapilha, haverá no mundo uma criatura mais doce?
E após um momento, acrescentou:
— Agora, mulherzinha do coração, vamos acabar de lavar estes pratos!
FIM