A marquesa dos anjos 22 - angélica e o perdão do rei

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Título: Angélica e o perdão do Rei

Autor: Anne e Serge Golon

Título original:

Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989

Publicação original:

Gênero: Romance Histórico

Digitalização e correção: Nina

Estado da Obra: Corrigida

O inverno canadense, um dos mais longos e rigorosos do mundo, foi durante muito tempo comparado ao da

Sibéria. Com temperatura média de - 12°C, mas que pode chegar a até - 37°C, dura até nove meses nos anos em

que é mais rigoroso, com sucessivas tempestades de neve de três a cinco dias.

Na época da colonização, o clima implacável foi responsável por terríveis dramas entre os desbravadores

franceses e ingleses. Mesmo os índios, mais acostumados à região nativa, eram também suas vítimas. As baixas

temperaturas, que provocavam o congelamento dos rios e a escassez de alimentos, dizimaram expedições

inteiras, como a de Jaime Cartier (1535), e produziam o que ficou conhecido como o "mal da terra", o escorbuto.

Nas cidades isoladas pelo gelo, a chegada da primavera, com a explosão das cores e o degelo que permitia a

navegação e o reatamento dos laços com a Europa, era recebida com euforia pelo retorno à vida.

Em Quebec, a capital da Nova França, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, aguardam os navios da

França, com os despachos de Luís XIV que irão decidir sobre seus destinos no território francês.

“Para você, minha bela amiga”, confessa o Rei-Sol enciumado, “criei maravilhas!”

Era o grande momento de toda uma vida.

Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, cercados de toda a sua guarda: os espanhóis, o negro Kuassi-

Ba, os oficiais de sua frota, um pelotão de marujos em uniforme branco, entraram na sala do Grão-Conselho, no

Castelo Saint-Louis, em Quebec. Lá, diante das maiores autoridades, aguardava-os o governador-geral da Nova

França, o Sr. de Frontenac, para a leitura das ordens de Luís XIV.

Em meio ao calor sufocante, Angélica, ansiosa, reconheceu sobre a mesa, nas cartas e documentos oficiais, o

sinete grosso do Rei-Sol: os anjos da Glória e da Fortuna, sustentando o escudo com três flores-de-lis, encimados

por uma coroa e uma cruz. Então, como num sonho, toda a sua vida passou-lhe de uma vez diante dos olhos: a

infância nos bosques de Poitou, o casamento em Toulouse, os infortúnios de Paris, o segundo casamento com

Filipe du Plessis, o exílio no Oriente, as perseguições religiosas, até, enfim, as incríveis aventuras no Novo

Mundo.

Naqueles papéis, sua sorte estava lançada. Caso o rei se pronunciasse contra eles, teriam de abandonar para

sempre o território francês.

Sim, o rei da França ainda podia fazer-lhes muito mal...

Angélica e o perdão do Rei Anne e Serge Golon

Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, mais os filhos, Florimond, Cantor e Honorina, haviam

passado o longo inverno canadense em Quebec, capital de Nova França, onde aguardavam, após o degelo de

primavera, a chegada dos navios da França, com o veredicto definitivo de Luís XIV sobre a situação do casal em

território francês. Enquanto esperavam, hospedados em casas vizinhas — Angélica na residência do governador

da Acádia, o Marquês, de Ville-d'Avray, e Peyrac no solar de Montigny, destinado originalmente à desaparecida

Duquesa de Maudribourg —, a irrequieta sociedade local, ilhada pelos gelos e acossada por ingleses e indígenas

hostis, não os poupava de aventuras galantes. Angélica vivia assediada por admiradores, como o próprio Ville-

d'Avray, além do Conde de Bardagne e do Cavaleiro de Malta Loménie-Chambord, entre outros. Peyrac não

podia evitar uma corte de pretendentes ardorosas, como a belíssima Berengária Amada, esposa do procurador

Natal Tardieu, e a voluntariosa Sabina de Castel-Morgeat, que arrastara o conde a um encontro mais íntimo do

que Angélica pudera suspeitar. Depois que a última tempestade de neve destruíra a choupana de Eustáquio

Banistère, o vizinho que revelara a trama de conspiradores envolvidos com magia negra, e enquanto se discutia a

sorte do procurador e seu escrivão, Nicolau Carbonnel, protagonistas de um incêndio na Cidade Baixa, a

preocupação mais premente de Angélica era deter o misterioso emissário com as cartas comprometedoras do

Padre d'Orgeval, como anunciado pelo bispo da colónia, Monsenhor de Lavai.

O MENSAGEIRO DO SAINT-LAURENT

CAPITULO I

O caso de Pacífico Jusserant

E os cidadãos de Quebec conheceram uma era de trégua nas amolações habituais com que a administração os

perseguia. Rabugento, o escrivão Carbonnel fazia-se transportar toda manhã ao cartório por seis latagões.

Estóico, só podia opor um silêncio mal-humorado aos gracejos que ninguém se privava de dirigir-lhe. Não que se

tivesse o mau gosto de rir de sua perna quebrada, mas de seu procurador, ah, sim! Valeu bem a pena ele se haver

torturado o inverno inteiro com seu medo de incêndio, importunando toda a gente para que desobstruísse

telhados e limpasse chaminés, para ele mesmo ir atear o fogo, com a própria mão! Pois Nicolau Carbonnel não

podia negar isso: vira com os próprios olhos seu procurador atirar a peruca em chamas sobre os telhados de ripas

do bairro Sous-le-Fort.

E se ele, o escrivão, preferia manter o bico fechado sobre esse . gesto criminoso, outros o tinham presenciado e

podiam dar testemunho. Tinham-no visto de baixo, tinham-no visto de cima. Tinham-no visto de toda parte.

Transpiraram os ecos de uma-briga terrível que estourou na casa do jovem casal Tardieu de La Vaudiere.

— Sou a galhofa da cidade inteira — gritava Berengária, fora si —, se não for a ovelha negra a quem de bom

grado responsabilizariam pelo incêndio. Viram-me as costas ou riem-me na cara. Tudo por sua culpa. Eu sabia

que você era um palerma, mas nao a esse ponto!... Que ideia foi essa de conduzir uma operação policial de toga e

peruca, a uma hora que necessitava de carregadores de tochas...

— Já cansei de repetir que não foram as tochas que atearam fogo — vociferava Natal Tardieu de La Vaudiere. —

Nessas taperas infectas nunca há luz suficiente. Minha peruca enganchou-se no bico de uma lâmpada a óleo.

— E por que você tinha que ir àquela tapera? E por que, repito, àquela hora, naquela noite?

Como ele se calasse, apalpando com um ar sombrio a bandagem em torno da queimadura, ela prosseguiu:

— Digo-lhe eu! Foi porque soube pelos seus espiões que a Sra. de Peyrac estava lá. E resolveu surpreendê-la — cale-

se! —, combinar a detenção do feiticeiro com a dela, a fim de reavivar a velha história de feitiçaria contra ela — não!

deixe-me falar! —, e tudo isso para atingir, através dela e de todo o mal que isso lhe causaria, o homem a quem

odeia mas a quem não ousa atacar de frente, o Sr. de Peyrac!

— O homem com quem você se pavoneia de modo desavergonhado, minha cara — bradou Natal Tardieu, branco

de raiva — e a quem eu devo os cornos que carrego!

— Ai de mim! Não! Para minha infelicidade! — retrucou Be-rengária Amada, levantando para o céu seus braços

suaves de mulher trágica. — Ai de mim! Não é verdade! Não! Você não é cornudo, meu caro, e creia que lamento

muito. Mas o assunto não está encerrado... Talvez eu chegue lá, ainda que seja apenas para me vingar de você.

Depois da grande tempestade e da confissão de Banistere, o Conde de Peyrac mandou construir no local da choupana

destruída um pequeno bastião de madeira, que guardava a casa de Ville-d'Avray. Dia e noite havia homens de

guarda ali. A vigilância deles, felizmente, respaldaria a do cão, encarregado de alertar sobre um começo de incêndio

por meio de seus pulos descontrolados.

No entanto, sentia-se que as chamas que haviam devastado o bairro Sous-le-Fort haviam exorcizado os maus

espíritos do fogo por aquele ano, e bastava olhar o cão dos Banistere a dormir sob o forno de pão para entender que

já não havia que temer esse perigo.

Angélica comunicara ao marido os avisos do bispo e os comentários do feiticeiro durante a visita que terminara

de modo tão dramático.

Agora que ele já não estava ali, seria difícil descobrir por adivinhação quem, no próximo mês, devia entregar

ao bispo a denúncia contra Peyrac.

— Devemos a monsenhor o obséquio de evitar-lhe novos problemas de consciência por nossa causa. Ele se

demonstrou um amigo perfeito e extremamente leal com você — disse ela a Joffrey, relatando-lhe o diálogo com

Monsenhor de Lavai.

A interpretação do feiticeiro — que, baseando-se naquela data, abril, falara de um mensageiro que receberia

uma correspondência da Europa no sul e seria arrojado o suficiente para trazê-la para as regiões quase

inacessíveis no inverno do baixo Saint-Laurent — era de se levar em conta. Tampouco se devia excluir a

possibilidade de que os papéis se encontrassem em Quebec mesmo, entre as mãos de um amigo do Padre

d'Orgeval, que os revelaria depois de respeitar os prazos exigidos pelo jesuíta.

— Seria o Padre de Guérande, que era coadjutor dele na Acádia? — sugeriu ela. — E tão hostil a nós!

— Conversarei com Maubeuge — disse o conde.

De modo inesperado, o velho Loubette lhes trouxe um primeiro indício.

O homem que não deixava nunca o catre, tinha a vantagem de estar a par de tudo, porque as pessoas iam a ele.

Coletava os fragmentos de informação bem arrumados na memória, que não tinha mais nada a fazer.

Suas melhores fontes de informações eram os ex-companheiros de comércio, mais jovens, que não deixavam

de visitá-lo quando passavam por Quebec, e as senhoras da Sagrada Família.

Ele desconfiava dos eclesiásticos, que só dizem o que querem dizer.

Desde sua primeira semana em Quebec, quando Ville-d'Avray o recomendara a ela, Angélica continuara a

visitar Pedro Loubette. Este, por muito tempo, continuou a suspeitar de que ela viesse para, a mando do marquês,

roubar-lhe o cachimbo de pedra vermelha e mesmo o guarda-louça de carvalho maciço.

Pouco a pouco deixara-se cativar, e passara a contar-lhe longas histórias do passado, pois acabara entendendo

que isso interessava a ela.

— Trouxe-lhe fumo — anunciou-lhe Angélica.

— Não quero mais fumar.

— Pode mascar e mesmo inalar. Alivia os humores.

Com os remédios dela, ele tossia menos. E de vez em quando, numa visita de Angélica, fumava um cachimbo

de tabaco da Virgínia, que ela lhe preparava.

— Gosto de você — declarou ele um dia. — Então, vou contar-lhe para onde foi Pacífico Jusserant.

— Quem é Pacífico Jusserant?

O ancião estava apoiado aos travesseiros e tirava algumas baforadas do cachimbo.

— O "dado" do Padre d'Orgeval.

Angélica aguçou os ouvidos e foi sentar-se à cabeceira do velho. Adivinhava que, por trás daquele

comunicado, ficaria sabendo de algo importante.

Os "dados" eram leigos que serviam os missionários jesuítas sem precisar proferir votos religiosos, mas com

espírito de sacrifício. Eram servidores devotados, assim chamados porque se "davam" por contrato durante vários

anos ou pela vida inteira, sem receber salário algum. A missão usufruía do trabalho deles e comprometia-se a

manter-lhes o sustento. Eles acolitavam os irmãos leigos ou coadjutores da Companhia de Jesus, com a vantagem

de ainda por cima saberem utilizar um mosquete ou um arcabuz.

O nome Pacífico Jusserant não era desconhecido de Angélica.

— Você o conhece — disse o velho —, tratou dele e o salvou da cegueira branca, no ano passado, em seu forte

de Wapassu.

Ela então se lembrou do indivíduo em questão. Em pleno inverno, calçado de raquetes e escoltado por um

índio, ele surgira no forte, trazendo uma carta do Padre d'Orgeval para o Conde de Loménie-Chambord. O

reflexo do sol na neve, durante a caminhada, queimara-lhe os olhos a ponto de deixá-lo cego. Ela o tratara com

uma decocção de brotos de agulhas de pinheiro.

Era um homem ainda jovem, mas arisco, e, totalmente devotado ao missionário a quem servia, abraçara a causa

dele contra a gente de Wapassu. Durante toda a estada no forte, não abandonara a atitude desconfiada.

— Ele foi para o sul, até as margens onde o mar continua livre no inverno e onde os navios continuam a atracar.

É possível até que seja para os lados de Pentagouet ou mais embaixo ainda, para o lado da Nova Inglaterra. Foi

buscar uma coisa para o Padre d'Orgeval que um correio deve trazer-lhe da França. Uma coisa ruim para você e

para seu esposo.

— Como sabe disso?

— Ele veio me ver antes de partir. Quando eu mesmo era um "dado", vivemos juntos um bocado de aventuras.

Ele nasceu na ilha de Orléans e tem uma concessão na encosta de Lauzon, do lado de Levis. Mas abandonou tudo

há muito tempo, para seguir o Padre d'Orgeval. Partiu no verão.

— Quando deve voltar?

— Acho difícil que ele possa chegar a Quebec, antes do degelo. Supondo-se, é claro que o navio esperado tenha

chegado à costa em janeiro. As travessias são raras no inverno, mas os holandeses e os ingleses se arriscam, pois

têm o mar livre. O padre tinha entendimentos com ele e por isso recebia todo tipo de correspondência, de modo

que, péla Acádia, ele frequentemente batia em velocidade os mensageiros que chegavam aqui.

— E o que ele traria que poderia prejudicar-nos?

— Não faço ideia. Mas Pacífico afirmava que se a coisa estourasse, vocês, os estranhos, inimigos do jesuíta,

seriam destruídos sem apelação. Eu lhe disse que ele estava louco de se meter nisso. Mas ele sempre foi um

pouco louco. Os abenakis o apelidaram de Alce Cabeçudo, e os que não gostavam dele chamavam-no de Alce

Louco. Basta que o jesuíta o olhe fixo nos olhos e ele fica pronto para andar sobre brasas.

Depois da revelação do velho Loubette, eles fizeram um conselho uma noite, na casa de Ville-d'Avray, com

Barssempuy e D'Urville, Piksarett, Elói Macollet e Nicásio Heurtebise, que conheciam todos o servidor do Padre

d'Orgeval.

O raciocínio do Velhaco Vermelho comprovavá-se correto.

Mas, vendo-se na posse dessa "coisa" que fora esperar na costa do mar livre, Pacífico Jusserant pudera encetar,

em pleno inverno, a subida para o norte? Mesmo para um homem treinado e fanático, atravessar em raquetes de

cem a duzentas léguas de território deserto era um feito que apresentava mais chances de fracasso do que de sucesso.

Pego pela tempestade, tinha que se meter num buraco. Podia perder-se, ou seja, perder a trilha, e então, esgotada sua

provisão de carne salgada, ele pereceria. Ou, surpreendido pelo frio, congelaria vivo. Seria difícil, naquela estação,

encontrar um índio para acompanhá-lo.

Joffrey de Peyrac também pensava que não seria fácil para um navio francês ou estrangeiro alcançar no inverno a

costa do Mai-ne ou um porto da Acádia peninsular: Port-Royal ou La Heve.

Mesmo livre, o mar se lançava em vagalhões sobre as praias cobertas de neve. Era sinistro, descontrolado,

arrastando frequentemente blocos de gelo.

Mas o homem podia conseguir chegar. E o conde ficaria alerta, tentaria prever a chegada dele e interceptá-lo.

Naquela noite Piksarett não pronunciou palavra. Mostrava-se distraído e diferente desde que regressara dos

arredores de Lore-to, onde consultara o tal "feiticeiro" que interpretava sonhos. Sentado no chão, de pernas

cruzadas, cachimbo na boca, fumara no mínimo dois nacos de pétun, cada um pesando uma libra, de sorte que os

mais empedernidos dos presentes tinham a garganta ardendo e as pálpebras avermelhadas por conversar em meio à

fumaceira cada vez mais densa. O conselho encerrara-se numa bruma espessa, de efeitos levemente alucinatórios,

visto que o pétun é um fumo grosseiro e, na realidade, uma planta diferente, do tipo a que chamavam "erva da rainha"

e com que se faziam pós calmantes. Joffrey de Peyrac, que fumava um charuto de tabaco da Virgínia, bem como o

Conde d'Urville, e os outros, que pitavam seus cachimbos, não pareceram incomodados. Angélica, porém, ao final

do conciliábulo, quase já não se encontrava em condições de ali permanecer. Sentia-se flutuar por entre aquelas nuvens

azuis, de onde só emergia Piksarett, fumando com uma constância inabalável, mas com um olhar impenetrável, que

às vezes cravava nela como se, através de Angélica, tivesse enxergado coisas espantosas.

O caso de Pacífico Jusserant o preocupava. Por trás do "dado" a que chamavam Alce Cabeçudo, era ainda a

silhueta do jesuíta que se erguia, o jesuíta que Piksarett acompanhara por tanto tempo em guerras. E o "Grande

Batizado" perturbava-se com o encarniçamento com que o jesuíta, mesmo ausente, prosseguia o combate. Tivera

que obedecer e partir para a terra dos iroque-ses, mas havia preparado o seu último brulote, que agora começava a

subir na direção deles através dos desertos brancos.

No momento em que dizia consigo que o contato entre ela e o índio estava cortado e que, por razões obscuras, eles

começavam a distanciar-se um do outro na sua cumplicidade, Angélica viu um clarão de alegria passar pelo rosto

dele.

De repente parecia muito contente, como se tivesse exclamado consigo: "Achei. Já sei o que devo fazer".

E deu a ela uma piscadela maliciosa.

Por que caminho Pacífico Jusserant chegaria?

Por que ponto tentaria entrar na cidade?

Elói Macollet sabia que o "dado" possuía uma pequena concessão em Levis, onde construíra uma casa. Podia-se

supor que, vindo do sul, ele começasse detendo-se ali. Com certeza ignorava que o Padre d'Orgeval já não vivia em

Quebec.

O velho explorador de florestas decidiu que visitaria o filho e a nora e lhes recomendaria que vigiassem a morada

de Pacífico Jusserant, na vizinhança deles;

A tentativa de reconciliação que o velho obstinado tivera com a família no Natal selara-se com um fracasso. O

filho, que já era um homem de quase quarenta anos, bom curtidor de peles, mas indolente, pouco falante, grande,

gordo e pesado, nunca tivera relações muito amistosas com aquele pai com quem se assemelhava tão pouco. A

mulher lhe fazia a vida dura. Era ela que conduzia a fazenda.

Para agradar à Srta. Bourgeoys, a santa madre que o ajudara no passado, Macollet fora a Leví-s para passar o Natal

com eles. Indo com o casal ouvir a missa de meia-noite numa capelinha da paróquia, na encosta de Lauzon,

encontrara uma viúva, antiga conhecida, que tinha duas filhas atraentes, e deixara-se convencer a ir cear na casa

delas. Irritada com isso, a nora, no dia seguinte, recusara-se a abrir-lhe a porta. A coisa, depois, piorara, pois uma das

moças, solteira, ficara grávida, e Sidónia Macollet espalhou o boato de que fora obra do sogro. Elói Macollet dava

de ombros: "É à mãe que estou cortejando". Macollet passou.por cima dessa má recordação.

— Se a Sidónia se puser a berrar, azar! Ela terá que ceder. Eu é que não posso ficar de tocaia lá, quando

Pacífico talvez chegue por outro lado.

Ele foi a Levis, discutiu com a nora, foi rondar à volta da casa de Pacífico Jusserant, de que só se avistava, por

trás do amontoado de neve, um filete de fumaça, traindo a presença dos vigias, e retornou, depois de fazer

recomendações draconianas ao filho e a Sidónia.

Estabeleceu-se uma rede de vigilância. Tanto quanto possível, era preciso impedir que o mensageiro atingisse

Quebec. Caso conseguisse chegar, um bom número de observadores de olhos sagazes» capazes de reconhecê-lo,

se encarregariam de impedir que ele alcançasse o episcopado.

— E os porões? — indagou alguém.

As casas cujos porões tinham comunicação com o do seminário foram postas sob vigilância.

Ele não conseguiria atravessar a rede.

Após alguns dias, a tensão diminuiu. Uma forte nevasca au-aientou a sensação de isolamento. O ferrolho do

deserto branco pareceu fechar-se com rigor ainda maior. Algumas pequenas tribos de algonquinos caçadores

levaram para a Santa Casa os seus velhos esgotados pelo frio, e instalaram-se nos arredores da vila. Já não

tinham forças para caçar. A neve, mole e caída em quantidade excessiva, tornava extenuantes as etapas quando a

aldeia levantava acampamento à procura de caça, que escasseara. Começou-se a falar de fome.

A Páscoa chegou. No Canadá, a Páscoa nunca era florida.

Na Sexta-Feira Santa, o intendente Carlon, representando o governador Frontenac e acompanhado de alguns

altos funcioná-•ios do governo, dirigiu-se à Santa Casa, para distribuir a sopa aos doentes e lavar os pés dos

pobres.

Uma cerimónia tocante, que remontava aos antigos reis e imperadores cristãos, desejosos de, pelo menos uma

vez ao ano, inclinarem-se diante do Rei dos Reis e daqueles que eram os pre-diletos dele: os pobres.

Durante aquele período de mau humor e mesquinharias que marcava o fim da Quaresma, a serenidade e a

estabilidade da Sra. de Castel-Morgeat foram tema de edificação para a cidade inteira. As senhoras da Sagrada

Família, aflitas de às vezes sentirem os golpes da fadiga alquebrar-lhes a resistência moral para a caridade e a

doçura, tiveram que inclinar-se diante daquela que, não sem razão, tanto haviam criticado.

— Sabina é um anjo — diziam. — De onde extrairá a força que demonstra?

Sabina sorria levemente, dissimulando uma inexprimível alegria. Às vezes, quando se via sozinha em seu

apartamento no Castelo Saint-Louis, segurava entre as mãos uma pequena taça de ouro maciço representando

uma concha e cujo pé era formado por uma tartaruga incrustada de escamas e um lagarto de jade verde,

maravilhosamente cinzelados.

Contemplava o objeto maravilhoso, acariciava-o e beijava-o, encostando o ouro à sua face, apertando:o nas

mãos, e disso extraindo a força que as amigas lhe invejavam e que agora lhe permitia enfrentar tudo, viver tudo.

Alguns dias depois do interlúdio secreto que ocorrera entre ela e o Sr. de Peyrac, o conde mandara entregar-lhe

aquele bibelô de origem italiana e de grande valor. No cofrinho de couro, forrado de veludo, ela encontrou um

cartão com uma tinta mais antiga: "Para a Sra. de Castel-Morgeat".

As lágrimas de Sabina tombaram sobre o ouro incorruptível que ela estreitava ao seio com fervor. Que

significado devia ler naquele gesto? O que conteria a pequena taça italiana? Um perdão? Um adeus? Na sua

humildade, não ousava dizer a si mesma: um agradecimento galante.

Também conservou a carta, relendo-a, pousando os lábios sobre as linhas, sobre a assinatura elegante,

enfeitiçante. Depois, entendendo que corria o risco de despertar e manter esperanças inúteis, e que magoava a si

mesma, queimou-a.

CAPÍTULO II

A chegada de Alexandre de Rosny — O começo do degelo — Sidónia traz notícias de Jusserant

Abril chegara, e já ia a meio. Não havia notícias do mensageiro e a espera não relaxava.

Na segunda vez em que o nome de Pacífico Jusserant foi pronunciado, confirmando os pressentimentos de que era

ele mesmo o mensageiro anunciado ao bispo por D'Orgeval, quem o pronunciou foi o mais imprevisto dos

retornados.

Um vento cortante batia à superfície da neve. Uma mulher da Cidade Baixa, seguindo um costume de sua província

natal, varria de noite e de manhã a soleira de sua porta para expulsar os espíritos. Uma manhã, jogou ali um grande

balde de água. O Marquês de Ville-d'Avray, passando pela porta, escorregou, caiu e não conseguiu levantar-se.

Chamada com urgência, Angélica encontrou-o no albergue Ao Navio de França, rodeado por todos os amigos, que

ele convocara. Considerando-se que não era fácil locomover-se por Quebec naqueles dias de ruas escorregadias de

gelo, e constatando-se a multidão que em tempo recorde invadiu o abergue de Janine Gonfarel, havia que reconhecer

que o marquês não se gabava quando afirmava ser muito amado e ter muitos amigos.

Estavam todos lá, inclusive o preferido dele, o rude e casmurro tenente de polícia civil e criminal, Garreau

d'Entremont.

Ville-d'Avray chamou-o à parte.

— Veja o que acontece com suas ordens que não pode fazer respeitar. Ruas onde a gente é atropelada pelas

carroças de moleques.

— Você foi atropelado?

— Não! Mas poderia ter sido.

Os acadianos, saídos dos seus círculos secretos, estavam todos ali rodeando o seu governador.

Abriram espaço para Angélica, com tanto respeito quanto fé, como se ela, com um toque de varinha mágica,

pudesse recolocá-lo em pé.

Da visita que fizera ao prebostado, onde vira o livro Malleus maleficarum, bíblia destinada a confundir as

feiticeiras, Angélica guardara a impressão de que o tenente de polícia mandara chamá-la para censurar-lhe as

atividades de curandeira. Assim, aborreceu-se ao ver Garreau d'Entremont à cabeceira de Ville-d'Avray.

— Autoriza-me a tratar dele, senhor tenente de polícia? — perguntou ela de chofre.

— Claro, por que não? Pelo contrário — gaguejou D'Entre-mont, surpreso diante do ataque.

No mesmo instante Angélica lembrou que o Malleus maleficarum só estava lá por acaso e que o motivo da

convocação fora completamente diferente.

No entanto, era tarde demais para reparar a inépcia. O pobre Garreau retirou-se muito contrafeito, sem entender

a hostilidade que a Sra. de Peyrac lhe dispensava. Havia poucas mulheres a quem estimava na cidade tanto

quanto a ela, e também não era insensível à sua grande beleza. Achava que a tinha feito compreender isso. Claro

que estava convencido de que ela mentia acerca do caso Varange, ass: m como aquela malta de gascòes aven-

tureiros e piratas, que se consideravam desobrigados do cumprimento das leis comuns. Ma; isso era outra

questão.

— Você o magoou — dis^e Ville-d'Avray. — Que bicho lhe mordeu? Oh! Minha mãe, ermo dói! Com certeza

quebrei o tornozelo.

Só estava luxado.

Depois de um exame durante i qual Ville-d'Avray gemeu, chorou e não teve mãos suficientes /ara se agarrar às

mãos de todos os amigos que queriam insuflar-' ne coragem e força naquele duro momento, Angélica pôde

assegurar-lhe que ele não tinha nada quebrado.

Em compensação, precisaria ter paciência e fazer no mínimo. de duas a três semanas de repouso, com o pé bem

enfaixado, repousando sobre uma almofada, como o de um doente de gota.

— Ficarei no albergue Ao Navio de França — decidiu ele. — Assim, terei companhia. Você me aceita, Janine?

O acidente, então, revelou-se sem gravidade, e Angélica confessou a si mesma que não ficava muito

insatisfeifa de ver Ville-d'Avray imobilizado na Cidade Baixa. O marquês tinha um coração insaciável.

Também gostava de namoricar as mulheres. E Angélica, agradável e inteligente, inspirava-lhe uma paixão que

chegava a ponto de desviá-lo de suas preferências pelos adolescentes, de que até então ele não se privara. Longe

dela, entediava-se. Assim como Nicolau de Bardagne, procurava-a por Quebec inteira, mas ainda por cima não

admitia que ela lhe ocultasse um único detalhe sobre o modo como passava o tempo. Pouco antes ela concluíra

que seria difícil chegar ao fim do inverno sem que a situação se deteriorasse, obrigando-a a mostrar-se severa e a

romper completamente com ele, o que a teria afligido muito.

Agora que ele era obrigado a se mostrar menos buliçoso, ela o veria quando lhe conviesse, e seria livre"para

retirar-se sempre que ele se tornasse importuno.

Ville-d'Avray não foi tolo. Acusou-a de crueldade, mas teve que resignar-se, pois, agora que já não podia

defender-se, ela seria bem capaz de abandoná-lo, recusando-se a tratar dele para entregá-lo às mãos daquele

verdugo de cirurgião de navio, Ra-gueneau, que se dizia médico e que certamente o deixaria coxo.

— Ah, como gosto de sua mão sobre minha pele! Seus dedos são tão acariciantes!

A fim de conservar pelo menos o prazer de sentir aqueles dedos leves sobre seu tornozelo dolorido, ele se

confessou disposto a comportar-se e a fazer todos os sacrifícios.

A inatividade pesava-lhe. Come já não podia segurar as rédeas de sua vida sentimental, sentia que o coração se

lhe esvaziava.

O sr. Dagenet, seu capelão, aa para ele. Mas Ville-d'Avray mandava-o passear. Quanto mais o via, mais se

lembrava de que o capelão, a quem nomeara havia anos para velar pela sua salvação espiritual, o abandonara bem

no momento em que tivera que lidar com um diaba e com oitenta legiões de demónios.

A força de evocar as peripécias do verão, bateu-lhe a nostalgia, quis rever o jovem Alexandre de Rosny, que o

acompanhara no início de sua viagem oficial pela Acádia, mas que, por capricho, se recusara a voltar com ele

para Quebec.

— Oh! Cara Angélica — suplicou —, dizem que você possui dons para chamar as pessoas à distância. Peço-

lhe, chame de volta o meu Alexandre...

Dois dias depois Alexandre de Rosny estava ali, no salão do albergue Ao Navio de França. De início não se

prestou atenção àquele viajante de nariz e maçãs do rosto queimados pelo gelo e pelo sol, mas quando ele tirou

os abrigos de pele e foi reconhecido como o belo efebo de lábios amuados a quem o marquês não cessava de

chamar, houve uma verdadeira explosão de alegria.

Era completamente absurda a ideia de que ele pudesse retornar da Acádia naquela estação; no entanto, estava

ali. Trazia notícias de toda a costas do Maine, da Acádia, da baía Francesa, e era como se o círculo do inverno já

se rompesse.

O marquês, ao vê-lo, agradeceu a Angélica pelos seus dons su-pranormais. Ela garantiu-lhe que não tinha nada

a ver com aquilo. Dada a prontidão com que o jovem Rosny chegara até eles, devia ter-se posto a caminho no

mínimo várias semanas, se não meses, mais cedo.

Fez que ele se sentasse num tamborete e ungiu-lhe com um bálsamo as queimaduras do rosto. Depois,

emaranhou-lhe os cabelos louros, com afeto. Aquele garoto corajoso era da mesma raça que os Fiiipe du Plessis-

Belliere, que desde os catorze anos guerreavam em gola de renda nos campos de batalha da Europa.

O rapaz, saltando as corredeiras loucas da Acádia e por se haver lançado naquela viagem, tornára-se mais

tagarela e mostrava menos arrogância.

Contou que em certas regiões que atravessara, atingindo esgotado, e acreditando-se salvo, pequenos

acampamentos indígenas, acontecera-ihe de, ao penetrar nas tipis ou nas wigwams, topar com os moradores

mortos, de frio, de fome, ou das duas coisas, alguns deles ainda sentados, imobilizados diante das últimas cinzas

do fogo, de cachimbo na mão, múmias encarquilhadas, salpicadas pela neve que se filtrava pelos interstícios dos

miseráveis abrigos de casca de árvore ou de peles.

— Que loucura! — suspirava o marquês. — Você jamais deveria ter tentado uma odisseia dessas, mesmo para

me rever.

Alexandre dava de ombros. Não fora o único. Havia outros que arriscavam a travessia do grande deserto

branco.

Foi então que pronunciou o nome de Pacífico Jusserant, o "dado" do Padre d'Orgeval, que encontrara na missão

de São Francisco, dos abenakis, e que também subia do Maine, dirigindo-se para Quebec.

Assim como ele, o "dado" parecia haver atravessado duras etapas. Parecia exausto, mas impelido pela febre de

prosseguir a jornada. Parara alguns dias na missão, para achar outro par de raquetes. Como não as encontrara do

jeito que queria, resolvera fabricá-las. Trazia consigo um alforje de que não se separava nunca, até dormia com

ele. O índio que o acompanhara até lá recusava-se a prosseguir. O "dado" observara Alexandre longamente na

sala comum do posto de trocas, contígua à missão, onde os abenakis vinham trocar suas peles e onde os viajantes

podiam encontrar um teto e a possibilidade de um descanso. Carregando a escudela de milho e o caneco de

cerveja para u sentar-se ao lado de Alexandre no banco, diante da mesa comprida, Pacífico Jusserant propusera

ao rapaz, a quem reconhecera, unirem-se para o fim da viagem. Sabia que o moço se dirigia a Quebec. Conhecia

as melhores trilhas, as mais curtas para se chegar ao objetivo com mais rapidez, e não era prudente viajar sozinho

naquela estação, disse-lhe.

Fingindo entusiasmo, Alexandre aceitara de bom grado. Depois, de manhã, enquanto o "dado", antes de

reencetar a marcha, acolitava na missa o jesuíta da missão, pois era de uma devoção exagerada, o rapaz deixara o

posto e partira. Viajava sempre sozinho. Preferia isso à traição de um companheiro.

— Pelo menos uma vez seu espírito do couu J. o salvou — disse Ville-d'Avray. — Fez bem em não

acompanhá-lo. Estou convencido de que ele queria assassiná-lo ou pior!

— Em todo caso, ele não está longe, não vai demorar muito mais — calculou Elói Macollet, quando a conversa

lhe foi relatada —, e presumo que agirá da seguinte maneira: chegará por Le-vis, conforme o previsto. Passará uma

noite em casa. Depois atravessará o Saint-Laurent, abaixo de Quebec, e irá direto ao episcopado. Talvez não

desconfie de nada... talvez desconfie, pois tem um instinto diabólico... Foi por isso que quis que o jovem Alexandre

o acompanhasse... para não haver o risco de Alexandre falar ou chegar antes dele... Talvez o tivesse matado, de fa-

to... Já matou por menos do que isso... E um animal desconfiado, astuto, e que só conhece um amo... que obedece a

esse amo à distância...

Pondo todo mundo alerta com essas advertências, a ponto de já se espreitarem as janelas, a ver se a cara

desconfiada do "dado" já não se colava aos vidros, Elói Macollet resolveu ir mais uma vez a Levis, para avisar ao

filho e à nora que redobrassem a vigilância.

Tantos acontecimentos e mais a atenção que uma parte dos habitantes de Quebec dispensavam à chegada de

Pacífico Jusserant desviaram os espíritos de uma conspiração mais invisível e perigosa que, sem que ninguém

soubesse, ganhara corpo e se desenvolvia surdamente. Elói Macollet por pouco não foi sua primeira vítima.

Estava retornando de Levis, após a segunda visita. A noite estava bonita e a lua brilhava. Macollet atravessava,

abaixo de Quebec, a trilha balizada do rio, quando um instinto súbito fê-lo avançar o bastão ferrado que carregava e

dar uma pancada no gelo.

Estacou, paralisado de susto. O olho da serpente o fitava. Redondo, luzidio e escondendo no fundo de sua pupila

negra o reflexo trémulo de uma estrela, esse olhar fascinava, atraía, aberto sobre os abismos... A água...

Elói já não ousava esboçar um único movimento. Correu os olhos à volta, sobre a infinita planície branca, e

percebeu a fragilidade recente daquela extensão, sobrevinda de mansinho. Os ouvidos encheram-se de um ruído

ténue, como rachaduras repercutindo cada vez mais perto. As noites frias haviam enganado quanto ao calor dos

dias. O degelo começava. O homem imobilizado no meio do rio, que rachava, alçou os olhos para o céu, que

formigava de estrelas.

— Boa Santa Ana, salve-me! — bradou.

Como foi que conseguiu alcançar a margem? Não se lembrava. Seu primeiro gesto foi correr para a Cidade

Alta e acordar o escultor Le Brasseur.

— Terminou o seu retábulo de Santa Ana para o santuário da costa de Beaupré? Dizem que você espera reunir

o dinheiro dos doadores para mandar dourá-lo nas ursulinas. Contribuo para dez libras de douradura. Não passo

de um descrente, mas essa boa mãe da Virgem Maria me salvou!

No dia seguinte, escoltados por um séquito de garotos e pela admiração dos basbaques, os diversos elementos

da obra-prima — custódia, relicário, zimbórios, estátuas, etc. —, sobre andores, e a mesa de base, a que

chamavam tumba, e os degraus, sobre uma carroça, foram levados às ursulinas para dourar, como se fossem pães

e bolos levados para assar no forno do padeiro.

Assim que as religiosas terminassem o trabalho e o rio estivesse livre, o retábulo seria levado para seu novo

santuário ao pé do cabo Tourmente.

Enquanto isso, o Saint-Laurent ingressava nas dores terríveis do degelo. A grande serpente fria ia despertar.

Perderia a pele de gelo, passaria pela transmutação líquida, deixando aparecer através da carapaça de gelo

quebrada a sua pele azul-escura, matizada de verde.

Em três dias e três noites tudo mudou.

De dia, sob o sol ardente, a planície começou a suar sua brancura marmórea, manchando-se de vastas zonas

sombreadas que revelavam uma fragilidade inquietante, antes de se rasgarem sobre a chaga negra da água.

De noite, ouviam-se estalar e entrechocar-se enormes blocos de gelo, geleiras revolvidas pelo vaivém penoso e

subterrâneo das marés que as aspiravam, dependendo da hora, rio acima e, depois, invertendo-se, rio abaixo, num

movimento extenuante de lava branca, que, nas semanas seguintes, faria rolar seus blocos volumosos uns contra

os outros, impelindo-os a se chocarem, enfrentarem, cavalgarem, erguerem-se como monstros fazendo amor,

para em seguida desabarem e partirem lentamente à deriva, num entrelaçamento fluido que os rodearia e

capturaria como as malhas de uma rede gigantesca.

Semanas de degelo, durante as quais o rio e os gelos engoliriam seu contingente de navegantes demasiado

atrevidos. No ínicio ninguém queria deixar de atravessar de uma margem a outra, conforme se haviam habituado.

Da ilha de Orléans, de Levis, de Beaupré, os incautos partiam de trenó, depois de espreitar a extensão traiçoeira,

gritando: "Seja o que Deus quiser!", para se verem, gritando por socorro, sobre uma jangada mais fria do que a

morte, enquanto os cavalos, depois de se debaterem na pasta gelada, desapareciam no fundo do Saint-Laurent e o

veículo, triturado, estalava como uma velha noz oca e terminava a carreira como destroço flutuante.

Barcos e canoas reapareceram e foram lançados nos primeiros canais abertos. Os tripulantes os levantavam e

arrastavam pelas extensões de gelo ainda sólido, ainda imensas, e ecoavam os gritos de encorajamento que se

dirigiam às chalupas como a uma parelha de cavalos puxando uma charrete atolada na areia.

— Eia! Levanta! Levanta! Força, gente!

Caleças ou barcos a remo? Ainda não dava para decidir. Era preciso arriscar.

O colono do Canadá, saturado de forças acumuladas durante o longo retiro de inverno, saltava sobre o seu rio

com berros de desafio, pois chegava a época de se engalfinhar com ele na luta mais selvagem, munido que estava

o rio dos dois elementos que lhe compunham o rosto de Jano maldito: água e gelo.

O inverno ia relaxando a pressão. A neve continuava a cobrir a terra, mas escorria dos galhos das árvores.

A ilha de Orléans recuperava a pelagem de florestas, a crista de um arruivado claro que vinha das matas de

bordos com os galhos despojados, mas em que logo subiria a seiva, no "tempo dos açúcares".

Certa manhã, uma mulher veio bater várias vezes com a aldraba de bronze que ornava a porta da rua da casa de

Ville-d' Avray. Em vão lhe gritaram das janelas do primeiro andar para que desse a volta e entrasse por trás: não

arredou pé e ficou ali esperando, entre os dois atlas e os globos, que pouco a pouco emergiam dos taludes

cobertos de neve.

Para recebê-la, foi preciso que desobstruíssem a porta, virassem chaves, puxassem taramelas e ferrolhos.

A mulher se identificou: era a irascível nora de Elói Macollet, Sidónia.

— Está aí aquele patife? — indagou com ar altivo.

Era uma mulher de pequena estatura, cara fechada, e que não exibia o lado jovial das mulheres de origem

canadense, embora tivesse nascido num belo feudo da Nova França, na região de Trois-Rivieres. O pai, padeiro dos

arredores de La Rochelle, emigrado em 1635 com a jovem esposa, recebera a concessão do feudo — cem acres de

frente por duas léguas de fundo — por seus méritos como intermediário, comerciante, agricultor e depois síndico

competente na nomeação dos primeiros síndicos para gerir os novos povoados.

Angélica, que sabia disso tudo e que lembrava dos suspiros de Margarida Bourgeoysa propósito daquela pequena

Sidónia, examinou-a com curiosidade.

Era bréhaigne, ou seja, estéril, o que devia irritá-la num país onde, conforme salientara o ministro Colbert num

relatório sobre a colónia, "as mulheres engravidavam todo ano". De família numerosa e já renomada, ela devia ter

considerado como casamento desigual desposar o filho único de um modesto censi-taire e de uma Moça do Rei, tão

completamente abandonada pelo marido, vagabundo dos grandes lagos, que a acreditavam viúva. Mas por que casara,

se não o amava? "

— Seu furão, Pacífico Jusserant, foi visto — disse, dirigindo-se ao sogro, após uma breve saudação. — Conforme

você previu, ele veio rondar a casa uma noite, mas não entrou, estava desconfiado. Desapareceu de repente.

— Quem o viu?

— Eu.

Cumulada de perguntas, contou que montara guarda algumas noites numa tocaia de patos. De dia mandava um

garoto postar-se lá, recompensando-o com alguns soldos. Resumindo: uma noite, vira o "dado" do Padre d'Orgeval

saindo da mata. Surgira vindo do sul, avançando com dificuldade nas raquetes que afundavam na neve mole. Parara

como que farejando o vento, a alguma distância da casa, depois, reconsiderando, recuara e voltara a se pôr sob a

proteção das árvores.

— E desconfiado como uma raposa — resmungou Macollet, levantando-se e começando a pôr a capa e as

perneiras. — E por auê? O que é que traz consigo que tanto receia que lhe tomem? Será que já atravessou o rio,

abaixo de Quebec? Não poderia ter feito isso sem que o avistassem.

— Hoje mais do que nunca — disse a mulher. — As correntes arrastam e os gelos esmagam a gente.

— Como foi que você passou? — inquiriu o velho, cravando-lhe um olhar penetrante sob o matagal das bastas

sobrancelhas.

— Com a canoa de velho António, um louco da sua espécie —respondeu ela, para acrescentar, porém, que, se

tinham navegado ou brincado de saltar como pulga de bloco de gelo em bloco de gelo, era coisa que não

conseguia decidir.

— Você poderia ter deixado a pele por lá, minha nora — disse ele em tom acerbo.

— E bem que você teria gostado disso, meu sogro — replicou ela no mesmo tom.

Angélica quis retê-la, insistindo em que comesse algo. Mas Sidónia recusou e desceu rumo à porta, ajeitando os

xales à volta do corpo. A coifa branca, amarrada ao queixo, deixava entrever uma cabeleira castanho-clara, mas

já mesclada de fios brancos. No entanto, ela não devia ter muito mais de trinta e cinco anos. Angélica

acompanhou-a à porta.

— Estou contente de conhecê-la, Sidónia» e agradeço-lhe. Você não poderia ter confiado a mensagem ao velho

António, ao invés de se arriscar a atravessar o rio, que está ficando perigoso?

— O sogro me disse que não falasse no assunto com ninguém — disse ela, fazendo um gesto com o

polegar na direção de Elói Macollet, atrás dela —, e que tudo devia ficar entre nós.

Examinava Angélica e a avaliava com um olhar sem brandura.

— Então é você a Dama do Lago de Prata? Você que conseguiu segurar o velhinho em casa?

— Ele não é velho nem pequeno — replicou Angélica, que gostava de Elói. — E não vejo por que você

quereria fazê-lo levar uma existência de ancião. Ele conserva uma saúde e um vigor pouco comuns. Ainda no

outono matou à faca um desses grandes ursos cinzentos, tão perigosos. E poderia servir de lição a muitos

jovens...

— Ah, isso sim! Ao filho dele, por exemplo, meu marido. Isso sim, depois do escândalo do Natal, com a viúva

e as duas filhas, não se pode negar, ele poderia servir de lição a muitos jovens.

E acrescentou, amarga:

— Com ele, pelo menos, pode-se ter certeza de ganhar um filho. "

CAPITULO III

O cerco ao "dado" d'Orgeval

Sobre o muro do pomar da Srta. d'Houredanne erguia-se a sombra da grande estatura do chefe abenaki,

Piksarett. Olhava ao longe, para o norte.

O rio estalava, enchendo a noite com seus ruídos. A lua ainda não surgira, o céu estava de um azul escuro de

metal, tão azul, que as estrelas refletiam a cor e cintilavam azuis com um olhar puro.

Vestindo sua grande pele de urso, Piksarett assemelhava-se a uma garça, com suas pernas compridas e magras

de ave pernalta.

De sua lucarna, a criada o observava. Pensava vagamente nos próprios filhos desaparecidos, e foi presa de

saudade pelo bebe que um índio, quando de sua captura, um abenaki como aquele que ali estava, arrancara-lhe

das mãos e esmagara contra uma árvore.

Quis ler alguns versículos da Bíblia. Sentia-se assustada com as torpezas papistas em que se encontrava

mergulhada, e mais atemorizada ainda de notar que começava a gostar das histórias de amor cuja leitura ouvia

em francês.

Do andar de baixo, a Srta. d'Houredanne vigiava o narrangasett.

"O que está acontecendo? Do que é que ele está com medo? Cobriu o rosto com pintura de guerra. Mas ainda

não é época de os grupos iroqueses começarem a entrar em combate."

Escreveu algumas anotações, mas, quando tornou a erguer os olhos, a grande silhueta de garça havia levantado

voo.

Abrindo os olhos, Cantor topou com ele à sua cabeceira, as tranças de honra eriçadas de cada lado do rosto

anguloso e as três penas de águia espetadas na cabeleira a roçar as vigas do teto do aposento onde o rapaz

dormia.

— Aquele que traz a infelicidade está chegando — cochichou o índio. — Venha se"m ruído, vou procurar seu

irmão.

Desapareceu como um fantasma. Sentando na cama, Cantor procurou as botas às apalpadelas, enfiou-se

e.vestiu-se.

— Ei! — sussurrou-lhe Elói Macollet, surgindo de seu banco-leito no momento em que Cantor atravessava a

sala de mansinho. — Será que essa raposa vermelha, coberta de medalhas e rosários, imagina que vai eliminar a

mim como a um traste velho na hora em que a caça começa? Pois sim! Fui eu que abatia caça...

A Srta. d'Houredanne viu passar os três.

Piksarett descia a Rue de la Fabrique. A meio caminho, meteu-se por uma ruela adjacente, fazendo sinal aos

companheiros para que o esperassem.

— Esses índios matreiros, a se fazerem de misteriosos, às vezes dão vontade de que a gente acabe com eles —

cochichou Macollet, impaciente. — Mas é preciso acreditar neles, meu garoto, porque têm faro. É natural neles.

Prorjto, olhe onde está agora.

Piksarett surgia no alto de um telhado. Sem deslocar um único floco de neve nem desprender um pedaço de

gelo sequer da beirada das calhas, alcançou a lucarna na cumeeira e arranhou os quadrados de papel oleado.

Florimond, que dormia o sono dos justos, mas sem perder o instinto de vigília que a vida na mata ensina,

ergueu-se sobre o leito de palha de aveia onde repousava ao lado de afabilíssima filha do capelista. A moça

permaneceu com os belos olhos azuis fechados. Quando, no começo da noite, ele viera bater-lhe levemente à

janela, ela não relutara muito em abri-la. Talvez no dia seguinte fosse soluçar num confessionário, mas no

momento também dormia o sono profundo da juventude, com uma expressão de beatitude no rostinho viçoso.

Florimond levantou-se sem ruído. Seria outro pretendente da beldade, que diziam ser pouco arredia? O

encontro haveria de ser estimulante.

Descobriu a cara multicolorida de Piksarett, a interpor-se entre ele e a claridade opalina do firmamento. O índio

só fez um sinal: venha!

— Na encruzilhada, Ana-Francisco de Castel-Morgeat, que passeava a sua melancolia pelas ruas ou que, como o

amigo, retornava de um encontro galante, encontrou-os e pediu para acompanhá-los.

— Aonde é que vamos e o que é que você sabe, capitão? — perguntou Elói Macollet, olhando de soslaio para o

abenaki.

— Ele está chegando! É tudo o que sei — respondeu Piksarett, pensativo. — mas é muito astuto. Para começar,

teremos que descer até o porto.

O caso o atormentava.

Atingiram a praça, na enseada do fundo da baía, e encontraram Janine Gonfarel à janela, metida numa transação

com um índio.

— Dê-me um pouco de aguardente, minha mãe — suplicava o algonquino.

— Não sou sua mãe, Deus me livre — replicava Janine Gonfarel —, e você bem sabe que o bispo proíbe que se dê

álcool aos selvagens.

O índio, então, sacava de sob a manta com que se envolvia uma ou duas peles da pouca caça que conseguira apanhar.

E a Polaca, resmungando, ia buscar uma medida de álcool para ele — um tantinho e nada mais, um dedal. O homem

recolhia a bebida numa cabaça com capacidade para meio quartilho, que ele não perdia a esperança de conseguir

encher.

Desse modo a diligente albergueira obtivera uma meia dúzia de peles de pequenas martas em pelagem de inverno,

um vison, uma raposa... Pouca coisa.

Agora que ele já não tinha mais nada para trocar, ela se mostrava incorruptível.

— Não tenho vontade de ser excomungada.

Do andar acima, Alexandre de Rosny, que tomava a fresca à janela, divertia-se acompanhando a transação.

Quando avistou os jovens junto com o índio e o explorador de bosques, desceu para unir-se a eles.

— Se vão atravessar o rio, vou junto.

— A quem procuram? — indagou a Polaca.

Piksarett mirava com repugnância o rio degelando. Contra o molhe, ouvia-se a água correr sob um gelo ainda

espesso, mas, mais adiante, passavam furiosas as grandes correntes negras, transportando miríades cintilantes de

blocos de gelo quebrados, que se entrechocavam com um barulho de seixos.

Atravessar para Levis a pé estava fora de cogitação, e também para as embarcações a passagem se tornava

p"erigosa.

— Procuramos Pacífico Jusserant — respondeu Elói Macollet a meia voz.

— Ainda não foi visto por aqui. De dia ou de noite, logo seria reconhecido.

O algonquino aproximou-se.

— Dê-me um pouco de aguardente, minha mãe, e lhe direi onde está o homem que procura.

E, depois que lhe verteram outra medida:

— Está na ilha de Orléans.

Elói Macollet empurrou para trás o gorro de pele e esmurrou a própria testa escalpelada.

— Na ilha de Orléans! Como foi que não pensei nisso antes! Pacífico Jusserant nasceu lá. A mãe dele continua

morando na ilha, na costa norte, na fazenda que ela reconstruiu depois da passagem dos iroqueses, há quinze

anos. Ela e o filho Pacífico escaparam ao massacre porque naquele dia tinham vindo a Quebec para se confessar.

Lembrou que Pacífico vira no milagre o dedo de Deus sobre ele. A partir daquele dia, decidiu que se

consagraria ao serviço e à causa dos missionários. Fora assim que o Padre d'Orgeval o contratara.

Olhavam todos na direção da ilha, que se destacava, atarracada e sombria, uma rolha enorme a fechar a

garganta da embocadura.

— Vem vindo um barco — disse alguém.

Era uma grande chalupa a remo. Fazia muito tempo, horas talvez, que poderiam tê-la visto penar, com os

tripulantes a impeli-la como podiam pelos canais a descoberto e bancos de gelo.

— É ele?

Era de duvidar. Se a desconfiança levara o "dado" do Padre d'Orgeval a refugiar-se na ilha de Orléans para que

lhe perdessem a pista, a prudência o aconselharia a não atracar em Que-bec, no porto, nem mesmo à noite.

O Sr. Basílio, seguido de Paulo Le-Follet, uniu-se ao grupo. De sua casa na margem, vira o barco aproximar-se

e, depois de observá-lo com a luneta, vestira-se e calçara-se como se antevisse uma expedição pelo rio.

Quando a chalupa tocou o molhe, viram desembarcar Mau-pertuis e o filho, Pedro José.

Os tripulantes eram homens da ilha e o jovem amante de Guilhermina, a feiticeira.

Esta mandava dizer que Pacífico Jusserant se encontrava na casa da mãe, na costa norte. A casa estava sob

vigilância, mas Guilhermina achava que ele tentaria atravessar naquela noite o braço de mar que separava a ilha

da costa de Beaupré. O gelo ainda oferecia segurança para aqueles lados, e ele talvez tivesse êxito, pois conhecia

o rio e as melhores passagens.

Elói Macollet resolveu retornar à Cidade Alta a fim de avisar o Sr. de Peyrac e despachar homens para Ange-

Gardien e Château-Richier, que vigiavam o rio e recolheriam todo audacioso que se arriscasse a atravessar

naquela noite. Era grande a possibilidade de só verem um audacioso e de ser ele Jusserant.

Os outros reembarcariam e voltariam para a ilha, com chance de chegarem lá e o surpreenderem antes que ele

iniciasse a travessia.

— Venha, Follet — disse Basílio a seu amanuense —, pode-se precisar.de você.

O pobre parisiense do Pátio dos Milagres deu uma olhada de desespero naquele magma de gelos e correntes

furiosas que lhe roncava aos pés.

— Adaga, estilete, punhal, durindana, laço em torno de um pescoço, sei manejar tudo isso, mas eu preferiria

atravessar Paris inteira, com os beleguins no meu encalço, a ir galopar sobre o seu rio estalando, Basílio! Ah,

como o Sena me parece mansinho, quando penso! Perfeito para nos livrar de um cadáver estorvante, fácil de

vadear, um amigo...

No entanto, tomou lugar a bordo do esquife.

Outro que não embarcou alegre foi Piksarett.

— Devo isto àquele que me batizou — disse —; é preciso tentar poupar a vida do servidor Alce Cabeçudo, pois

Alce Cabeçudo e eu lutamos juntos, ao lado dele, contra o herege.

CAPÍTULO IV

Caçada ao Alce Cabeçudo

Na sua casa baixa de pedra, na costa norte da ilha de Orléans, a mãe do "dado" Pacífico Jusserant olhava para o

filho.

A velha largou a roca e foi até a porta. Do banco onde deixavam os baldes de borco, pegou uma lanterna de

ferro, com as paredes de chifre bem fino, que protegia a luz de uma vela sem se tornar escuro. Pelo alto, todo

perfurado, evaporava-se o calor. Ela quis acender, mas o filho se opôs.

— Está claro o suficiente. Não quero que me vejam sair.

— Quem pode vê-lo? Ninguém se preocupa conosco. Ninguém nem sabe que você está aqui. Desde que

chegou, você teve medo o tempo todo.

— Eles me espreitam... Sei que me espreitam. Querem me impedir de chegar até o bispo.

— Foi a longa viagem que o enlouqueceu. Você vê inimigos em toda parte.

— E você não sabe nada. Fia lã, guarda suas maçãs, fabrica seu queijo...

— Um queijo que você come com muito gosto.

Pacífico Jusserant deu de ombros. Sua existência ao lado do Padre d'Orgeval, que possuía o dom de enxergar à

distância e de ler pensamentos, aguçara-lhe o sentido de percepção do perigo. O estreito contato com os índios,

grandes provedores de sinais premonitórios e de interpretação de sinais, dotara-o de um faro animal que todo

explorador de bosques digno do nome possuía. Sabia que estava sendo espreitado.

— Um queijo que você come com muito gosto, quando retorna depois de atravessar léguas e léguas sem outra coisa

para pôr na boca senão seu cinto de couro — continuava a velha, aborrecida.

Ele deu-lhe uns-tapinhas no ombro, para acalmá"-la. Era melhor que ela não soubesse de nada. Sentado junto

daquela mulher tranquila e laboriosa, ele experimentara um repouso que não saboreava há muito tempo. As mulheres

são perigosas e causam o mal. Só perto das mães é que a gente pode sentir-se em paz.

Ela achava-o magro e doente. Sentia-se tentada a censurá-lo por isso, como se fosse uma falta. Era o único filho

que lhe restava e gostaria de que ele voltasse para o Canadá, fosse para ajudá-la na fazenda, fosse para explorar a

concessão que possuía em Le-; vis. Então se lembrava de que Deus os salvara a ambos de serem escalpelados e

queimados vivos pelos iroqueses e, beijando a cruz do rosário, resignava-se.

Ele lhe perguntara se ela sabia onde estava o Padre d'Orgeval. Encontrava-se em Quebec? Ela respondera que não

se preocupava com o que acontecia no "continente". Era uma mulher da ilha de Orléans.

Sobre a coifa branca de camponesa bretã, passou uma ampla manta, das que se vendiam aos índios, vermelha com a

borda preta, e envolveu-se à moda das índias no inverno. Perdera toda a roupa quando os iroqueses vieram, há

quinze anos, e fora preciso reconstruir tudo, tratar a terra de novo, comprar novo gado, pagar pelos empréstimos e

auxílios. Os vizinhos ajudavam. Mas no início já não havia vizinhos, exceto pela feiticeira e pelas crianças que foram

salvas porque colhiam tomilho nas colinas.

Preparava-se para acompanhar o filho, mas ele a impediu. Não queria que o reconhecessem à soleira iluminada.

Deixaria a casa pelo porão, um buraco que levava à granja. Dali, de barriga no chão, deslizaria pela trilha, e logo

poderia se dissimular no bosque de aceráceas que descia para a praia. Hesitou em pegar o mosquete, achou melhor não

fazê-lo.

Amarrou as raquetes sobre os ombros, verificou que o machado e o tacape estavam presos ao cinto, e depois, como

se se ataviasse de uma armadura para partir em combate, passou por sobre o ombro a correia do alforje onde pusera o

pacote que lhe fora entregue por um marujo holandês, numa praia deserta, numa noite em que chovia a cântaros.

Sacola que a cada vez lhe parecia tornar-se mais pesada e carregada de maldição.

A lua estava no zénite quando a chalupa tocou a extremidade da ilha, no lado da casa de Guilhermina.

A feiticeira estava lá, rondando à beira dos gelos com toda a sua gente: a moça de cabelo de linho, as crianças,

os índios e a bela Eleonora de Saint-Damien, com o filho do primeiro casamento, e o terceiro marido. Esta,

porém, não ia pular entre o gelo, como Guilhermina. Chegava de brincadeiras assim!

Guilhermina mirava cobiçosamente a grande planície caótica e estalante do Saint-Laurent.

— Enquanto as noites gelarem, a gente ainda poderá passar.

Vestira as saias curtas a meia perna e esfregara as botas indígenas com resina. Se fosse preciso, sairia a "correr

sobre os gelos.

— Se ele me vir, terá medo. Sempre teve medo de mim.

Um morador das colinas da ilha, que ela pusera de vigia, mandou o filho avisar que Pacífico Jusserant se

preparava para sair da casa da mãe.

— Irei falar com ele — disse Piksarett. — Combatemos juntos sob a bandeira do Padre d'Orgeval. Ele me dará

ouvidos.

Conversaram no bosque, que descia pela vertente. Exceto pela brancura da neve, estava tudo escuro. Por entre

os troncos das árvores, na outra margem do Saint-Laurent, avistava-se a costa de Beaupré, toda iluminada pela

lua, que subia._

O silêncio daquela noite era tão completo, que se podia ouvir o leve clop-clop da seiva de bordo a escorrer pelo

rego de sabugueiro para a escudela de madeira amarrada ao tronco da árvore.

— Traidor! — sussurrou o "dado" ao reconhecer a silhueta do narrangasett na penumbra. — Sei que você está

atrás de mim para me impedir de chegar até o bispo, conforme me ordenou que fizesse o nosso padre santíssimo.

Por que você entrava minha missão, Piksarett, você, o Grande Batizado?

— Porque você não defende uma causa justa. Traz a infelicidade. O conteúdo de sua saca de caça fede como

um animal morto. Sinto o cheiro até aqui, e o feiticeiro me preveniu. Passe-me a sua bolsa e o que ela contém, e

depois poderá ir à casa do bispo.

— Não tenho nada a fazer na casa do bispo senão entregar-lhe o que trago aqui, e não deixarei que ninguém se

apodere disto. Não, você não me fará trair aquele que me guia a consciência, do modo como o traiu, você, chefe dos

patsuiketts,, em Newehe-vanick, abandonando-o na batalha para seguir a mulher branca.

— Não tente engodar-me, Alce Cabeçudo, nem humilhar-me. O grande narrangasett sabe o que deve fazer. Ele é o

único juiz do caminho que ele quer seguir. Sabe reconhecer os sinais. Não é como os brancos, não é uma criança

que deve segurar a uma mão paterna para decidir acerca dos próprios atos. Os Filhos da Aurora são livres.

Pacífico Jusserant sentiu a cólera do selvagem. Alegrou-se por havê-lo atingido. Sempre tivera ciúme da estima que

o jesuíta Sebastião d'Orgeval dedicava ao Grande Batizado.

— Eu sempre soube que você o trairia — resmungou, com ódio. — Onde está ele agora? Se Quebec lhe continuasse

fiel, ele me avisaria com um sinal em Levis, perto de minha casa. Não vi sinal algum. Senti as armadilhas... Senti a

ausência dele. O que fizeram com ele? O que fizeram com o meu padre?

— Partiu para as missões iroquesas, a levar a palavra de Deus...

— Maldição! Os inimigos dele o enviaram para a morte, e seus irmãos ajudaram nisso... E agora, na cidade santa,

reina a mulher das perversões funestas, e também você sucumbiu, Piksa-rett, você, o Grande Batizado?

— Esqueceu que essa mulher tratou dos seus olhos cegos?

— Também tratou de Utakê, o iroquês, seu inimigo mais cruel e dos franceses.

— E isso poupou muitas vidas de franceses no verão.

— Você fala como uma mulher. Você, o grande abenaki. Bah! Só se ganha a salvação eterna destruindo-se os

inimigos do Bem.

— Seu cérebro está perturbado, Alce Cabeçudo, sua razão gira ao contrário. Não é bom que o Bem combata o

Bem, e quando o Bem responde a benefícios com a vingança, torna-se Mal.

— Estaria você querendo dizer que nosso santíssimo padre praticou o Mal?

— Ignoro qual foi o demónio que se apoderou do espírito do nosso padre santíssimo, mas não desejo, amigo, que

você também seja vítima da loucura dele.

— Você está blasfemando — murmurou Pacífico Jusserant, horrorizado. — Como pode falar assim dele? Você

mesmo não foi testemunha de seus prodígios e de sua alta virtude?

— A criatura mais sábia e virtuosa pode, um dia, ser vítima dos demónios. Porque ele escreveu: cuidado, pois

não se sabe nem o dia nem a hora! Talvez ele não tenha velado pelo próprio coração e seus pensamentos com

vigilância suficiente.

— Maldição! — exclamou o "dado". — Você o abandonou. Ele foi abandonado por todos... Afaste-se de mim,

Satã!

Atirou o tacape na direção de Piksarett. Este, porém, desviou-se. Não queria travar combate com aquele

homem louco.

Com um pulo, o servidor do Padre d'Orgeval lançou-se na corrida, desabalando por entre os troncos das

árvores. Quando alcançou a borda da saliência rochosa, saltou na areia, e, sempre correndo, atingiu as balizas do

rio. Piksarett não o seguiria sobre o gelo. Era um narrangasett do sul, da região das florestas. Para se atravessar o

Saint-Laurent no degelo, era preciso haver-se nascido, como ele, Pacífico Jusserant, em Quebec.

Estava sozinho. Sozinho e fraco, pois perdera o seu padre. Avançando agora através dos montículos com

asperezas cortantes de gelo, olhava esperançoso para a costa de Beaupré. Embora não ignorasse o risco de

atravessar o rio convulsionado pela violência da correnteza, a planície branca não o assustava. Conhecia-a.

Passaria.

De súbito teve a impressão de avistar, irrompendo pela extremidade da ilha, a que ficava de frente para

Quebec, silhuetas leves e como que aureoladas de luz, correndo sobre o gelo. Na hora entendeu: anjos maus!

O medo aguilhoou-o. Não lhe tinham dito que anjos maus o aguardariam em Quebec?

Seu jesuíta, o santo que levava a cruz e o mosquete pela glória do Altíssimo, o vidente, prevenira-o antes de

deixá-lo em No-ridgewook.

"Talvez você encontre anjos maus em Quebec. Tema-os, fuja deles! A beleza é enganadora, é a de Lúcifer.

Vejo esses anjos maus tentando barrar-lhe o caminho. Escape-lhes. Se puder alcançar o bispo e entregar-lhe o

envelope em mãos, você terá cumprido sua missão e eu poderei retomar meu combate."

Escondido atrás de uma saliência de gelo, Pacífico os via agir e pular de bloco em bloco, rapazes ágeis, de rostos

viçosos e imberbes, de cintura pouca coisa avolumada pelos capotes de lã ou peles transpassadas e apertadas pelo

cinto indígena de mil cores. Os anjos maus, belos demais, corroídos de pecados. Ele já não encontrara um, no posto

de troca do Saint-François? Na hora sentira o mal naquele jovem demasiado belo, que ainda por cima tinha a

ousadia de atravessar os desertos sem medo. Conhecia-o, era Alexandre de Rosny, a quem vira em Quebec e a cuja pas-

sagem cuspira. Anjo luxurioso, pertencente àquela espécie indócil que não respeita nenhuma lei, nem as da devoção,

nem as da virtude. Lia-se a concupiscência nos lábios dele. Pacífico Jusse-rant urdia o projeto de unir-se a ele como

companheiro para o final da viagem. Numa parada, enquanto ele dormisse, ter-lhe-ia esmagado o crânio com o

tacape de marfim, pois, quanto menos exemplos de devassidão continuassem vivos, mais bem servido seria o

Altíssimo. O jovem concordara, mas na manhã seguinte tinha desaparecido, como um espírito.

Estaria entre aqueles ali, que corriam e paravam, examinando a planície descampada do rio? Se fosse a ele,

Pacífico, que procuravam ou esperavam, ele saberia escapar-lhes. Ao invés de caminhar rumo a Quebec, seguiria para

Q cabo Tourmente. Já não havia balizas, mas ainda era o caminho mais sólido e contínuo.

Deixou a escuridão da praia e meteu-se por sobre o rio. Surgiu um primeiro canal. Ia atravessá-lo de um pulo, quando

uma massa escura e luzidia se alçou para fora da água e, com a agilidade daquela serpente que se diz dormir no fundo

dos abismos obscuros do Saint-Laurent, um animal subiu para o gelo, à sua frente.

Pacífico Jusserant recuou, apavorado. Os olhos brilhantes do animal e o clarão de seus dentes aguçados deram-lhe

vontade de gritar. Persignou-se. Em seguida a lua dourada, ultrapassando a crista da ilha, pareceu mirar-se no flanco

do animal, destacando um crescente furta-cor na pelagem. Um glutão. Um carcaju... Jusserant ficou ainda mais

apavorado. Um carcaju! O animal possuído pelo espírito da floresta! A besta cujo combate faz perder a razão!

O "dado" foi se afastando com prudência. O animal o espreitava com suas pupilas semelhantes a duas velas acesas,

parado no gelo e a chicotear com a cauda, que espalhava gotículas de água. Sem aquele ruído de aspersão e de

açoite, o homem se teria imaginado vítima de um sonho. Estacou de novo, temendo ver a grande lontra perigosa

atirar-se na sua direção.

Levantando os olhos, contemplou o flanco norte da ilha, que se erguia como uma fortaleza maciça e negra,

estendendo sua sombra protetora sobre ele. Ouviam-se os açúcares a gotejar nas ace-ráceas. O narrangasett

estaria a observá-lo por entre os troncos, divertindo-se com suas incertezas? Mais acima, na direção da fazenda

onde nascera, teve a impressão de ver um olho avermelhado piscar, a lanterna de chifre que a mãe segurava alto.

Ela ouvira gritos, adivinhara um alvoroço insólito, pressentira que o filho era a causa do alarido. Ele não lhe

ocultara que gente mal-intencionada, inimigos de Deus, tentaria impedi-lo de alcançar Quebec. A velha deixara a

roca e, de lanterna em punho, avançara até a beira do campo que sobranceava.

Jusserant teve saudade, vontade de voltar para se sentar naquele refúgio seguro. Mas reencetou a marcha para a

frente. O glutão desaparecera. As sombras luminosas dos jovens estacavam, indecisas. Procuravam-no.

Acompanhavam a margem. Era preciso, então, partir correndo, como fazem os índios.

"Você tem que chegar até o bispo", instava com ele uma voz interior. "E se o próprio bispo o houver traído?",

respondia ele. "O que devo fazer se todos se desviam de mim? Quando o Bem ataca o Bem, torna-se Mal... Por

quê? Por que sou condenado assim? Jurei-lhe obediência, meu padre santíssimo. Mas por que, por que quer a

morte da mulher que me tratou dos olhos?"

O punho fanático que lhe oprimira a vida apertou-lhe a garganta, sufocando-o. Sentia-a como-uma mão

fantasmagórica que o estrangulasse, enquanto a voz premente o ameaçava. Não devia duvidar nunca... Nunca. Ou

iria para o inferno. Logo o dilema que lhe torturava o cérebro simples evaporou-se. Por pouco não sucumbira à

tentação mais grave: duvidar. Somente a obediência cega dava acesso ao paraíso. Aos pobres espíritos incultos

não cabia escolher. "Padre, perdoe-me, cumprirei minha missão." E seria mais veloz do que os anjos maus.

No instante em que se preparava para retomar a marcha, viu bem longe, para o norte, do lado da paróquia da

Sagrada Família, um barco que punham na água. Pouco depois os tripulantes tiveram que pular para fora e

empurrar o esquife sobre o gelo. Em seguida, encontrando um novo canal, voltaram, a embarcar e se puseram a

remar. Jusserant entendeu que o objetivo da manobra èra cercá-lo.

Se quisesse atingir Château-Richier, não podia perder um segundo. Seguiu pela ponte de gelo cujo começo havia

vislumbrado.

Mas, ao dobrar um promontório eriçado de .árvores mortas, surgiu-lhe pela frente o terrível Basílio. O homem

era pesado, mas sabia muitíssimo bem andar sobre o gelo. Dele o jesuíta dizia que era mau porque era cheio de

ideias "subversivas". Não corria, mas quando avançava a passos contados, como que andando sobre ovos, era como

se fosse feito de bexiga cheia de ar quente.

— Pacífico — disse —, desista, meu velho. Em Château-Richier e em Notre-Dame-des-Anges também o esperam.

Você não passará e não chegará ao bispo. O bispo não quer vê-lo. Dê o alforje e volte para casa.

Paralisado, o homem acuado olhou à volta, procurando uma saída. Sentindo-se perdido, gritou pela mãe, a velha,

que no alto da encosta abrupta segurava bem alto a lanterna de chifre para guiá-lo. Sem compreender, ela podia

acompanhar toda a caçada que se desenrolava através do espaço lunar, onde os homens, pulando à procura do seu

filho, eram como sombras negras de lobos silenciosos. Não podia fazer nada por ele.

Pacífico Jusserant olhou para o cabo Tourmente. Lá, a mata... Os que vinham pela sua direita avançavam com

dificuldade, puxando a grande piroga, ora a carregá-la, cambaleantes, de um buraco a outro, ora voltando a colocá-la

na água, mas para serem arrastados na direção oposta, pois a maré estava mudando. Da extremidade sul, os outros

que convergiam na direção dele, a pé, não podiam fazê-lo muito depressa, porque os arredores estavam caóticos como

se o rio tivesse sido imobilizado em plena tempestade.

Durante o inverno, massas de neve soprada tinham-se acumulado ali, dunas moles, que, nos recôncavos, às vezes

dissimulavam o perigo mortal de um buraco de água.

Mas também ele, o "dado" do Padre d'Orgeval, possuía força espiritual e conhecia o rio... Atirou na direção de

Basílio o machado indígena de gume afiado. E lançou-se para a frente, avançando aos saltos. Uma voz juvenil

chamou ao longe:

— Pacífico Jusserant! Pacífico Jusserant!

A voz aproximava-se e ele já não sabia de que silhueta vinha o chamado.

— Renda-se! Entregue-nos a correspondência de que está encarregado, Pacífico Jusserant! E salvará a própria

vida!

Ele casquinou. Não se deixaria convencer, pois os anjos maus queriam sua danação. Quando atravessasse a crista de

gelo erigida à sua frente, qual onda imóvel, toda franjeada de uma espuma brilhante, acharia um caminho mais seguro

e poderia correr sem interrupção. De manhã, das colinas da ilha, ele havia demarcado o traçado do caminho, e o frio da

noite devia ter soldado os pontos frágeis.

Mas imobilizou-se de novo, mudo de horror...

Elevando-se por trás do cimo cintilante da onda, viu surgir a feiticeira, com todos os cabelos brancos como uma

auréola de prata ao luar.

Erguia-se à sua frente, imensa.

— Maldito! Jogue a infelicidade que traz consigo! Jogue-me o alforje ou perecerá!

Aterrorizado, ele começou a puxar a correia da sacola, que se embaraçava em sua gola. A sacola, carregada de

condenações e anátemas, pesava como chumbo. O homem queria livrar-se dela como de um fardo. Sob o impulso

dos seus gestos desvairados, o solo instável em que se apoiava vacilava. A água marulhava e recobria em ondas

grandes superfícies planas à sua volta. Ia atirar aquela maldita bolsa assim como se atira uma carcaça a ser

despedaçada por uma matilha esfomeada, ou um tição em chamas para deter o impulso das feras.

Com toda a força, lançou a sacola na direção de Guilhermina, equilibrou-se em tempo ao balanço do bloco de gelo

que o sustentava, pulou para outra balsa translúcida mais vasta, que ia à deriva. Conseguira o que queria. Os

perseguidores paravam, rompiam o cerco, e os que lhe vinham pela esquerda mudaram de rumo e correram a

apanhar o alforje, antes que o gelo sobre o qual caíra fosse arrastado pela correnteza, ou que escorregasse para a

água.

Pacífico Jusserant, o "dado" do Padre d'Orgeval, lançou-se pela brecha aberta. Não iria para Château-Richier.

Tomou à direita. Ao longe, na outra margem, avistava a sombra do cabo Tourmente.

Adiante, a mata. A mata! A salvação! Não o alcançariam nunca. Ele corria como um louco, repetindo consigo

para manter a resolução:

— Os anjos maus... Os anjos maus...

Sentia-os voando na sua direção, belos e sedutores como Lúcifer, o anjo da luz, para fazê-lo perecer e atraí-lo para

os infernos. Corria e pulava. O gelo voava em clarões acerados, rachava e fendia-se, e ele ia vencendo, como num

delírio, as fissuras que se iam escancarando sob seus passos.

O ronco das correntezas nòturnas, arrastando sua colheita de diamantes, enchia-lhe os ouvidos.

Pelo meio do rio, ele aterrou mais pesadamente sobre uma laje oval, polida como um espelho. Qual armadilha

mecânica bem oleada, a laje virou. O homem soltou um grito terrível e desapareceu, tragado pelas águas.

CAPITULO V

Identificação das forças do Mal — Angélica sonha com o rei

No seu solar, Guilhermina de Montsarrat-Béhars mandou servir uma bebida fervente a todos os sobreviventes

da perseguição.

Aquelas expedições pelo rio, no degelo, sempre acarretavam ameaças de afogamento. Rara era a pessoa que,

num momento da corrida, não sentia o gelo traiçoeiro ceder ao seu peso.

Os mais afortunados tinham apenas chapinhado em água. Outros tinham mergulhado de todo, com o frio da

água a rodear-lhes o ventre, apertar-lhes o peito por sob as axilas. Havia sempre o punho sólido de um

companheio para agarrar o afogado pela gola, içá-lo à tona ou para o barco, com a roupa de pele pesada, viscosa,

gotejando, ou as lãs e capotes encharcados como esponja, logo se recobrindo de gelinhos cintilantes, como o traje

de um marquês num dia de festa em Versalhes.

Felizmente para Paulo Le-Follet,-logo nos primeiros passos que dera atrás do terrível Basílio sobre o gelo, ele

caíra na água. Tinham-no levado de volta, duro como um pau, batendo os dentes, para o solar, onde, diante de

um bom fogo, envolto numa manta, aguardara pelo regresso do grupo.

"Onde está o Sena? Sena tão alegre! Gentil senhorita!"

Para os jovens, ágeis e ligeiros, para os índios seminus, para os homens da ilha, que conheciam as passagens

seguras e que com uma olhada sabiam avaliar a espessura do gelo antes de pousar ° pé, a fidelidade, a

"honestidade" do gelo, a excursão concluía-se com perneiras úmidas e botas cheias de água, que se descalçavam para

esvaziá-las, aos risos. Desenrolavam-se os cintos indígenas, torciam-se os gorros antes de se voltar a pô-los na cabeça,

úmidos tanto de água quanto de suor. Quem nunca tinha pulado sobre o rio não podia imaginar: suava-se a própria

vida naquele duelo com a morte.

Os lábios ficavam secos e queimados. O vapor gelado da respiração arquejante machucava. A sede devorava.

O vapor se ergueu em torno da grande mesa do solar, onde os homens, em pé, aqueciam os dedos entorpecidos

nos flancos da gamela que continha a beberagem fumegante, uma mistura da feiticeira, de ingredientes nada

"católicos", exceto por uma boa dose de álcool, que se distinguia com prazer.

Como crianças dóceis, todos engoliam a grandes goladas, sabendo que não havia coisa melhor do que aquela poção

da feiticeira da ilha de Orléans para descongelar o sangue, matar a sede e revigorar.

Depois comeram pão e queijo da ilha, um queijo redondo, de cheiro forte: uma delícia.

O alforje de Pacífico Jusserant fora atirado em pleno centro da mesa, e contemplava-se-lhe a forma espessa,

inchada de uma carga nociva, fruto do ódio e da intolerância.

— Isto lhes diz respeito, meus jovens — disse a feiticeira, com um gesto na direção de Florimond e Cantor de

Peyrac.

Mas Florimond esquivou-se:

— Peço-lhe, senhora, faça o obséquio de abri-lo.

O rapaz mereceu aprovação geral. Todos os presentes sentiam a necessidade de ver mãos habituadas a manejar

armadilhas de sortilégios incumbir-se de abrir aquela sacola, que lhes custara tanto trabalho e uma morte, e que se

dizia ter vindo do Velho Mundo, tendo atravessado o mar das Trevas numa estação perigosa e, em seguida, os

espaços gelados interditados — conseguindo, depois de vencer mil obstáculos, chegar até eles, por mais isolados do

mundo que se encontrassem, com a intenção de causar dano.

Olharam enquanto a Sra. de Montsarrat-Béhars abria as correias e atirava para trás a aba da sacola, como se a

olhassem preparar seus filtros ou conjurações.

Ela trouxe à luz um grosso pacote arredondado, envelopado em tela gomada solidamente costurada. Com a ponta

de uma faca, cortou os fios. Surgiu um rolo pesado, composto de inúmeras folhas de pergaminho e seguro por uma

fita vermelha, cujas pontas estavam presas na placa colada de um espesso lacre de cera vermelha. Os iniciados

reconheceram no lacre o sinete da cidade de Paris.

— Por favor, parta o lacre, senhora — pediu ainda Florimond.

Guilhermina fez isso e seus dedos finos e longos desenrolaram as folhas recobertas por uma letra apertada. A fim de

examiná-las, largou-as e pôs os óculos. Em seguida estendeu à sua frente, alisando com a mão, o manuscrito, que se

defendia, como se se recusasse a entregar seu segredo. Começou a ler. De súbito, largando tudo como teria feito

com um animal venenoso, recuou e cobriu o rosto com as duas mãos diáfanas e tremulas.

— Sempre a mesma coisa! Sempre as mesmas palavras! As mesmas palavras, sempre os mesmos gritos...

Seu jovem amante aproximou-se dela e rodeou-lhe os ombros com um braço. Aquele órfão de pai e mãe, a quem

ela criara, adorava-a. Fora da alcova, eram raros os momentos em que ela se mostrava fraca, entregando-se à força

viril e jovem dele.

— Não trema, minha amiga! — murmurou ele. — Eu a defenderei de tudo.

— Oh, sim! Defenda-me! Defenda-me dos inquisidores! — soluçou ela.

Ninguém sabia o que dizer, desacostumados que estavam de vê-la baquear. O rolo de pergaminho continuava ali,

enrodilhado. Cantor puxou-a para si, mas assim que pousou os olhos no texto também pulou para trás, como se

tivesse sentido a dor de uma queimadura. Em seguida foi a vez de Florimond.

O rapaz inclinou o fino rosto moreno sobre as linhas. Os longos cabelos negros, que lhe roçavam as faces, davam-

lhe, enquanto Ha, o ar de um escolar estudioso. Decifrou a primeira página, percorreu algumas outras, depois enrolou

tudo cuidadosamente e enfiou no envelope gomado.

— Isto interessa a nosso pai — disse, dirigindo-se a Cantor. —Devemos levá-lo para ele.

— Não seria melhor queimar imediatamente? — indagou Cantor, assustado.

— Penso que nosso.pai se interessará por isto, e cabe a ele decidir se estas páginas devem ser queimadas ou

não.

— Ah! Como você se parece com ele! — exclamou o irmão, com um misto de admiração e censura.

Mas o sangue-frio de Florimond e a desenvoltura com que tratava a detestável papelama dissiparam a

atmosfera opressiva.

Onde estava Basílio?

Paulo Le-Follet levantou-se, de súbito aterrorizado.

Correram para fora. Acharam Piksarett, que, dominando o horror que tinha ao gelo, saíra em socorro de

Basílio, ferido pelo machado que o selvagem e intolerante visitante do Altíssimo lhe atirara, e o trazia às costas.

A lâmina afiada só lhe roçara a têmpora, mas o choque atirara o negociante na água. Ainda estava inconsciente.

Piksarett o trazia sobre a espinha magra, sem esforço. A pele de urso era toda pedaços de gelo.

Houve nova distribuição de bebidas quentes.

Estancado o sangue do ferimento, o sólido Basílio logo voltou a si.

A aurora raiava, leitosa, e dois ou três rapazes começaram a bocejar largamente. Mas estava fora de cogitação

irem para a cama, pois os dois filhos do Conde de Peyrac, Basílio e seu amanuense tinham que ser levados de

volta para Quebec, e seria preciso novamente se lançarem através dos gelos e águas, arrastar o barco pelas

geleiras, empurrá-lo nas correntes, só que desta vez entre os carmins e os salpicos de ouro do alvorecer.

Piksarett ficaria na ilha. Sua independência era conhecida, e DS amigos não se preocuparam. Os narrangasett

eram do sul. Para vadear as corredeiras de seus rios torrenciais, seguir a pista do iroquês pela floresta ou tomar de

assalto um povoado na Nova Inglaterra, não havia ninguém mais hábil. Mas desconfiavam, com razão, daquele

grande monstro marinho do norte: o baixo Saint-Laurent. Por hoje ele já tivera que bastasse. Voltaria quando ti-

vesse vontade. Atravessaria o rio quando lhe desse na telha.

Tinham que se apressar para levar o butim para Quebec.

— Só ficarei tranquilo quando essas malditas folhas estiverem queimadas — disse Cantor.

— Eu também — aprovou Guilhermina. — Antes tivessem ido água abaixo!

— E nunca teríamos sabido — protestou Florimond. — Não! É melhor saber sempre quais são as armas de que os

nossos inimigos dispõem e o que eles nos reservam.

Afivelou o alforje do falecido Pacífico Jusserant e encarregou-se dele, intrepidamente.

— Cuide para que esses papéis cheguem bem a seu pai — insistiu Guilhermina. — Se caírem em outras mãos,

poderão causar mais mal do que o sopro da peste.

Florimond bateu na sacola inchada e disse, alegremente:

— Senhora, não tema nada. Se preciso for, afogo-me com eles. Fazia parte da trama das noites.

De dia os rostos eram lisos e alegres. Vozes frívolas falavam de teatro, da querela entre o bispo e o governador a

propósito do pão bento ou do uso do incenso pelo turiferário.

O limo das noites recobria o que devia permanecer secreto. O dia apagava os vestígios.

Angélica encontrava-se na casa da Sra. de Mercourville quando um homem do Gouldsboro veio pedir-lhe, a mando

do Sr. de Peyrac, que se dirigisse ao solar de Montigny. Ali ela encontrou no apartamento de Joffrey, além do marido,

Florimond e Cantor.

No centro da mesa havia maços de folhas espalhadas. Assim que lançou os olhos sobre aquilo tudo, viu que eram,

cuidadosamente copiadas palavra por palavra, perguntas e respostas, dia após dia, as minutas do processo de

feitiçaria que transcorrera em Paris, na sala do palácio de justiça, e de que Joffrey de Peyrac fora vítima uns quinze

anos antes.

O último brulote de um combate sem mercê viera à deriva, então, até eles, e na qualidade de bons estrategos

marítimos, haviam-no interceptado antes que causasse outro incêndio.

Mas como tudo aquilo estava longe, pensava Angélica, enquanto o Conde de Peyrac percorria os autos daquele

antigo processo, sem manifestar repugnância. No entanto o Padre d'Orgeval, na sua habilidade, escolhera bem o

dardo supremo a lançar e o local onde desferi-lo,, atingindo no Canadá uma população extenuada pelo isolamento.

Aquele relatório teria propagado o medo e a perturbação na proporção do distanciamento e da impossibilidade

que haveria de "diluí-lo? nas novas correntes de espírito de julgamento e de se saber a opinião do rei. -

Luís XIV sempre se mostrara reticente em relação ao fanatismo religioso. Só lhe importava a docilidade de seus

súditos. No início de seu reinado, deixara que corresse um processo iníquo que o desembaraçava de um vassalo

demasiado poderoso, mas preocupava-se tão pouco com acusações de feitiçaria, que o agraciara em segredo, com a

condição de que o acusado desaparecesse. O caso, agora, não poderia resolver-se da mesma forma?

Sem o estardalhaço, mas por meio de pequenos decretos, o rei desmantelara o tribunal da Inquisição e reduzira as

prerrogativas judiciais dos bispos. A Companhia do Santíssimo Sacramento fora dissolvida, o que não a impedia de

continuar muito influente e de ganhar muito mais adeptos em decorrência de se haver tornado uma sociedade

secreta.

Assim é o mundo, assim é a vida...

Eles conversaram por muito tempo diante da lareira, e a noite surpreendeu os quatro no solar de Montigny,

fazendo projetos para o futuro, avaliando as chances que, aos olhos de Florimond, pareciam certas de retornarem

todos à França, enquanto Cantor continuava a mostrar-se mais desconfiado. Nem ali, em Quebec, se podia saber no

que dariam as coisas para eles, dizia Cantor.

— Meu pai, peço-lhe, queime essas folhas. Vejo o perigo delas. Os melhores espíritos não são tão livres quanto

imaginam ser. Somente o fogo apaga e purifica.

Joffrey de Peyrac começou a atirar às chamas os autos do processo, um a um. O pergaminho espesso estalava e se

consumia com dificuldade. Angélica sentia o mesmo alívio que o filho ao ver cada página desaparecer, contorcendo-se

dolorosamente e exalando uma fumaça azul.

Claro, o mundo mudava, os espíritos esclarecidos tentavam racionalizar os mistérios, desvincular-se do invisível e,

firmando sólidos tratados de assistência mútua com Deus e seus santos, escapar aos velhos medos ancestrais

causados pelo Demónio.

Por muito tempo ainda a acusação de feitiçaria continuaria sendo, e certamente com razão, a mais temível de

todas. Fugaz e demente, despertava "esse mal que difunde o terror...", o medo do Diabo, o todo-poderoso deus da

infelicidade.

Diante das minutas do processo, nenhum deles se iludia.

Monsenhor de Lavai se mostrara sábio, recusando-se até a saber de que se tratava. Se lesse, não teria ficado

abalado? Teria podido assumir a responsabilidade de ignorar completamente um documento tão irrefutável?

Isso teria sido ainda mais dificultado nos dias que se seguiram, quando ventos indolentes percorriam as ruas,

aturdindo e deprimindo as pessoas, quando enormes estalactites caíam dos telhados, quebrando como vidro e

atingindo os passantes, quando a neve, diminuindo, parecia roer a terra, deixando somente ossos, pelo fato de que

o penoso caso Varange, de conjuração diabólica e que perturbava os espíritos e a consciência da cidade, chegava

à maturidade.

Garreau d'Entremont conseguira prender o soldado La Tour, que um índio do acampamento onde ele se

refugiara veio denunciar no prebostado em troca de um quartilho de aguardente. O soldado, declarado culpado de

práticas sacrílegas, foi submetido a interrogatório.

Novamente não se conseguia achar um carrasco.

— Irei eu mesmo — disse Gonfarel, arregaçando as mangas. — Por esse cavalheiro, volto ao serviço com toda

a boa vontade.

— E eu lhe servirei de assistente — disse Paulo Le-Follet, o amanuense de Basílio.

No cavalete, o militar começara gritando que fora ela, ela, ela que o denunciara e que ele tinha avisado

Banistere de que precisavam desconfiar.

Perguntaram-lhe sobre os primeiros dias de outubro e o que ele fizera sobre um crucifico na casa do Sr. de

Varange.

Gritou que não matara nuiguém e que não tinham o direito de culpá-lo. Com isso provada que era esperto e que

conhecia as leis novas contra a Inquisição.

O tenente de polícia manteve se firme. Com os pés triturados pelas botas de tortura e vários quartilhos de água

na barriga, La Tour começou a ceder. Reconheceu que estivera presente na casa do Sr. de Varange. Não fizera

nada. Fora tudo perpetrado pelo Conde de Varange, sob os conselhos do Velhaco Vermelho.

"Pergunta: Por que lhe haviam pago, então?

Resposta: Para preparar o crucifixo.

Pergunta: Ele reconhecia que assistia à cerimonia satânica?

Resposta: Sim.

Pergunta: O que vira? Ouvira?

Resposta: ...!"

La Tour levou tempo a ceder, não sabia de quem tinha mais medo: da vingança dos demónios ou da punição

dos justiceiros. Afinal, sob tortura, confessou tudo: as recitações e os apelos en-cantatórios dirigidos pelo Conde

de Varange aos poderes infernais, as crianças profanadas, o cão esfolado vivo e cujo sangue escorrera sobre o

crucifixo, o espelho negro onde aparecera o rosto de uma mulher ensanguentada.

"Pergunta: O que foi que ele viu no espelho mágico?

Resposta: Navios.

Pergunta: De que bandeira?

Resposta: Não sabia.

Pergunta: O que dissera a aparição?

Resposta: Pronunciara um nome.

Pergunta: Que nome?

Resposta: Não sabia..."

Deu-se uma volta nas botas.

Ele urrou. Acabou revelando o nome e também identificou outra personagem da cidade, que presenciara o

sabá. Mas esses nomes não foram divulgados fora dos muros da prisão. A curiosidade pública não conseguia

saber de tudo, e corriam os boatos mais fantasiosos e aterrorizantes. Sem se ousar abordá-lo, espreitava-se o Sr.

d'Entremont, que ia com ar taciturno e arrogante do prebostado ao Castelo Saint-Louis, do castelo ao seminário, e

retornava alguns tentavam aliviar a dor de consciência geral dizendo que o tenente de polícia não parecia mais

taciturno nem mais arrogante do que de costume, e que não havia nada de sério naqueles comentários todos e

nada que pudesse abalar a justiça. Outros, ao contrário, aterrorizados, subornavam os fa-briqueiros, para obter

um pouco de incenso de igreja para queimarem em casa.

Em suma, conseguiram arrancar ao soldado uma confissão completa, que o pobre Le Brasseur, promovido a

escrivão no lugar de Carbonnel, registrou, com a testa molhada de suor ao correr de uma pena tremula de horror.

Garreau d'Entremont extraiu do réu tudo o que pôde.

"Pergunta: Ele sabia para onde fora o Conde de Varange?

Resposta: Não sabia.

Pergunta: Sabia o que se havia feito do crucifixo?

Resposta: Não sabia.

Pergunta: E da pedra negra?

Resposta: Tinham-na enterrado no porão."

Recuperou-se um pedaço de antracita, brilhante e polido, de que ninguém ousou aproximar-se. Os coveiros que

cavaram o buraco fugiram como os filisteus da Bíblia quando, depois de encontrar num campo a Arca da Aliança

abandonada pelos hebreus, viram cair mortos os primeiros que a tocaram com a mão.

Didace Morillot, o exorcista, foi chamado para decidir quanto ao destino do objeto. Ninguém lhe teve inveja.

Azar dele. Era sua função. Veio com seu livro, o Pontifical, o ritual dos exorcismos. Ninguém soube o que ele

oficiou nem que preces recitou. Mas o exorcista devia ser bom, pois não pareceu sofrer consequências.

O crucifixo foi encontrado num monte de estrume no quintal de uma casa de subúrbio. O empregado que o

descobriu acreditou-se amaldiçoado. Enquanto o patrão corria a Quebec para avisar os eclesiásticos, o homem

juntou as coisas e fugiu para a floresta.

Desta vez o bispo foi em pessoa, assistido por dois padres e um turiferário, recolher a pobre relíquia.

"O bispo acreditou que morreria de sofrimento", escreveu a Srta. d'Houredanne. "O fato é que está sumindo a

olhos vistos..."

Levado de volta em procissão, o crucifixo foi reclamado para expiação pelas santas moças de duas

comunidades religiosas da vila: as ursulinas e as freiras da Santa Casa.

— Confiem-nos o nosso caro Senhor — suplicavam. — Saberemos fazê-lo esquecer com nossas preces e

nossas lágrimas os ultrajes dos ímpios.

Foi a Santa Casa que o levou. Rodeado dos mais belos ramos de flores de papel que as artistas freiras puderam

compor, as preces de expiação passaram a ser entoadas todos os dias perante a imagem do divino condenado,

acompanhadas de essências perfumadas de rosas, mirra e jasmim.

O soldado foi enforcado no pelourinho do monte Carmel. O corpo, exposto aos corvos.

Ninguém mais queria ouvir falar na história. Que os parisienses de Paris, a corte e os cortesãos ficassem com

seus envenenamentos e seus magos. A vida já era demasiado dura, no Canadá sem aqueles jogos assustadores.

Na lareira do solar dos Montigny, os pergaminhos relatando o velho processo de feitiçaria, de uns quinze anos

antes, encolheram como folhas mortas, e Pacífico Jusserant, o mensageiro do Saint-Laurent, o devotado servidor

do Padre d'Orgeval, seria mais um morto esquecido.

Guilhermina de Monsarrat-Béhars enfrentaria sozinha a mãe do "dado". Só as mães não esquecem. As duas

talvez fossem iniciar uma longa história de vingança na ilha, onde as pragas e as novenas, os venenos e as

maldições se fariam cada vez mais possantes, destinados a prosseguir para além da morte e ao longo de gerações.

Ou então, com o espírito desempoeirado por. aqueles ventos que ralam a alma e a pele nos confins do Novo

Mundo, elas, depois de muito se maldizerem e gritarem, saberiam unir-se e fazer as pazes.

A feiticeira, que conhecia todos os bálsamos para aliviar todas as dores, seria a primeira a recomendar à outra,

à devota: "Mande rezar missas... Mande rezar missas pelo seu filho... Mas não continue com o Mal, se quer

salvar a própria alma... Confie em mim! Reze! Eu lhe direi, quando ele estiver no paraíso..."

Em todo caso, era assunto de habitantes da ilha de Orléans, que não dizia respeito à gente do "continente".

Angélica foi a única a ficar sabendo do nome que a mulher desfigurada, aparecendo no espelho, pronunciou. O

Sr. Garreau d'Entremont revelou-o, sob sigilo, numa noite em que, acabando de cumprir suas devoções a São

Miguel Arcanjo, encontrou-a no átrio da catedral. O soldado "interrogado", não podendo safar-se com mentiras,

não ocultara nada do que vira e ouvira durante a cerimónia satânica.

Num tom de ódio e raiva indizíveis, a mulher ferida, moribunda, pronunciara um único nome: — Peyrac.

Assim, pensou Angélica, com a nuca arrepiada, Satã fizera aparecer o rosto da diaba vencida, dilacerada e

ensanguentada, ao devasso que fora amante dela em Paris e que a esperava, ardendo com a febre que ela lhe acendera

no sangue.

O resto se adivinhava facilmente.

O Conde de Varange, sem avisar ninguém, embarcou para o norte.

Velho Fausto apaixonado, desvairado de vingança, navegante trágico, enfiara-se pelas brumas do Saint-Laurent.

Fora ao encontro da frota daquele Peyrac maldito e desaparecera.

O Sr. d'Entremont continuava a falar por entre dentes, confidencial. Contou que fora auxiliado em suas

conclusões pessoais por uma descoberta curiosa que fizera ao vistoriar a residência do velho conde, na Grande

Alléé. Encontrara cópias da letra e da assinatura do Sr. Governador Frontenac, como se o Conde de Varange

quisesse escrever uma carta que pudesse passar como redigida pelo governador em pessoa.

Nos rascunhos não completamente queimados, o tenente de polícia pudera decifrar algumas frases e compreender

que a pretensa mensagem se destinava ao Conde de Peyrac.

Também se haviam encontrado os restos de um sinete que imitava o do governador, o que era muito grave, pois

levava a suspeitar que o falsificador conseguira obter uma impressão em cera do sinete em questão, objeto que, no

entanto, era muito bem guardado.

O tenente de polícia deduzira que o Sr. de Varange, mediante a apresentação de uma carta quede diria vir de

Frontenac, tinha a intenção de atrair o Sr. de Peyrac para uma emboscada. Aparentemente, porém, fora ele que

caíra numa armadilha.

Os olhinhos de javali cravavam-se direto nos de Angélica.

— Pois — continuou —, Varange e o criado foram avistados em Tadoussac antes da chegada de seus navios, e

houve testemunhos de que Varange embarcou só com o criado, servindo de piloto, depois de anunciar que

tencionava continuar a descer o no. Mas nunca mais foi visto depois disso.

— Sei o que lhes aconteceu — disse Angélica de chofre.

Levantou os olhos para o céu noturno.

— Foram levados pelas canoas da "chasse-galerie". Está lembrado? Avistou-se sua passagem sobre Quebec na

mesma época.

Ela fitava a noite. Aquela noite de onde às vezes surgiam luzes misteriosas, qual armada cintilante: as canoas

em chamas da "chasse-gãlerie".

As canoas levariam a bordo, no seu curso em chamas, o mago e o explorador, o jesuíta mártir e o bruxo, o

soldado e o mercador, o índio e o trabalhador, os santos e os maldúos? Angélica imaginou-os todos. Todos

aqueles andarilhos loucos, lançados em cometas fulgurantes através do céu do Novo Mundo sob a bandeira do rei

da França...

Garreau d'Entremont abriu a boca. Depois, vendo-a de nariz para o ar com uma expressão de fascinação

inspirada, balançou a cabeça, como faz um avô ranzinza diante de uma menininha travessa, e preferiu manter-se

calado.

Mas Angélica sonhou com o rei. Via-o sentado atrás de sua majestosa escrivaninha, em seu gabinete de

trabalho em Versalhes, revestido de tapeçarias azuis salpicadas de flores-de-lis douradas.

Tinha a expressão abatida. Ela lhe dizia: "Por que você nos repeliu? Por que desejou nossa destruição? Nós o

haveríamos defendido desses rapinantes de que está rodeado..."

O que mais a espantava, quando despertou, não era que tivesse visto aquela expressão de derrota no rei, mas o

fato de havê-lo aconselhado no sono. Era inconcebível, e ela ficou chocada como se tivesse cometido uma

inconveniência. Sua ternura feminina, compassiva ao homem ameaçado, mesmo que rei, armara-lhe uma cilada.

Ela sabia muito bem que, mesmo na solidão do gabinete de trabalho ou na penumbra do confessionário, Luís

XIV nunca tinha o ar abatido ou triste. Era um ator que jamais tirava a máscara.

Angélica sempre sentira nele uma força inabalável. As grandezas de Versalhes lhe haviam ensinado que um rei

não pode permitir-se ser fraco e terno, e também que não pode haver rei justo.

Ela pensou que seria bom lembrar-se disso para não se iludir demais, nem esperar uma resposta indulgente na

primavera. Pouco a pouco se firmava no espírito de todos que na primavera, com os primeiros navios, o destino

dela e de Joffrey de Peyrac seria selado, e pelo perdão do rei. Ora, não havia nada menos seguro que isso.

Apoiada aos travesseiros, Angélica repensava no senhor de Versalhes, no homem que conhecera, adivinhara,

atingira, por trás da majestade do príncipe. Dele se podia esperar tudo, inclusive o que mais lhe constituía a

substância: as esquivanças e os subterfúgios, misto de promessas, de garantias benévolas e ameaças veladas, que

punham todo mundo em posição falsa e instável.

Assim reinava ele. Pois sua maior paixão era reinar.

— Mas eu o enfrentarei, sire — disse ela a meia voz —, e desta vez com toda a consciência, como uma mulher

que decidiu que tinha o direito de dispor de si mesma e que se dirige ao homem que quis dominá-la.

"Se ele não fosse rei, será que eu o teria amado?", pensou.

Depois, a eventualidade lhe pareceu longínqua. Adormeceu, de novo, com um sorriso nos lábios. A volta deles,

o Saint-Laurent, gelado, traçava, gigantesco e intransponível, aquele círculo de giz, das velhas lendas nórdicas,

que nenhum inimigo pode atravessar.

O SUPLÍCIO DO IROQUÊS

CAPITULO VI

Piksarett provoca a ira de Utakê

Piksarett desaparecera. Soube-se que ele esperara que o rio se tornasse mais navegável para deixar a ilha e

alcançar a costa meridional, na direção de Lauzon.

Angélica esperava vê-lo reaparecer. Uma manhã, uma velha abe-naki muito devota, a quem o Grande Batizado

honrava com sua consideração, abordou a Condessa de Peyrac à saída da missa.

O rosto da mulher, cor de buxo, emoldurado por duas tranças cor de neve, tinha sempre uma expressão serena.

Vinha envolta com movimentos amplos e harmoniosos na manta vermelha com borda preta por sobre o vestido e

as botas de pele acamurçadas. Avisou Angélica, que, retornando da consulta ao feiticeiro de Loreto, Piksarett

passara para visitá-la em sua tipi, erguida há muitos anos no pomar das ursalinas. Havia uma infelicidade a cami-

nho, e ele tinha que aguardá-la, a fim de proteger os amigos. Em seguida, precisaria partir. Na verdade, precisaria

ter partido mais cedo, mas o feiticeiro aquiescera com a demora, em vista da necessidade em que se encontrava o

grande narrangasett de opor sua força benéfica à infelicidade que se aproximava.

— Partir? — repetiu Angélica. — O que está querendo dizer?

— Não o espere. Ele não voltará mais.

E como Angélica se visse sem palavras, não podendo admitir que aquele brusco desaparecimento fosse

definitivo, a índia lhe contou que Piksarett obedecera a dois impulsos que tinham sido provocados pelas

revelações do feiticeiro, homem que lia o futuro próximo e distante e que era muito versado na interpretação da

irradiação do espírito vital.

Piksarett já não. tinha o que fazer em Quebec. Vencida a última prova, sua protegida, Angélica, só teria que

avançar pela rota ininterrupta do triunfo. Os inimigos tombavam como a erva ceifada á frente dela. Era até

preferível que ele se afastasse, deixando os brancos, abandonando-os à distância de seus olhos demasiado

perspicazes, que poderiam pesar-lhes ou perturbá-los, pois eles tinham um modo muito próprio de trançar as

coroas da vitória, e Piksarett preferia deixá-los às suas manobras. Principalmente a ela, sua cativa. Era melhor que se

afastasse. Assim, quando se quer evitar fazer sobre os amigos julgamentos a que os fatos nos obrigam, é preferível a

ausência, como se pudica-mente desviássemos os olhos. Sua cativa tinha seus génios particulares, e ele achava mais

prudente deixá-la acomodar-se com eles, sem perturbá-la nem distraí-la com a própria presença. Pois, se o feiticeiro

dissera que haveria triunfo, não dissera que seria alcançado sem dificuldade.

Mas ela triunfaria. E Piksarett se afastava.

— Agora — acrescentara ele —, tenho que ir socorrer o Casaco Negro, Hatskon. Outsi, nosso pai, encontra-se em

grande perigo.

— Está ferido, doente, prisioneiro doslroqueses? — indagara a velha índia.

— Não, pior! Está em vias de perder a própria alma!

Piksarett lançou a canoa ao sabor dos rios que haviam voltado a correr e cujos ruídos surdos enchiam a floresta.

Menos de uma semana depois, alcançou os arredores do lago Saint-Sacrement. As árvores eram mais altas. A floresta

começava a recuperar a folhagem tenra. Acompanhando-se o cume dos montes, encontravam-se trilhas à flor da

rocha, por onde se podia caminhar com a rapidez do selvagem quando este, já não tem sob o mocassim ou sob o pé

descalço mais do que o solo de sua terra. Piksarett não parara de descer rumo a sudoeste.

Uma noite, na curva de uin caminho sob as árvores, topou com um batedor de um grupo de guerra iroquês, de nome

Sakahese. A palma ficou com o que levantou o tacape primeiro.

Ao encontrar o corpo de Sakahese com o crânio rachado e devidamente escalpelado, Utakê, o chefe das Cinco

Nações, que conduzia aquele grupo de mobawks, soube.que o grande narran-gasett estava pelos arredores. Pois

Sakahese também era o mais rápido de seus guerreiros para levantar o tacape, e para ter sido superado em rapidez,

só podia tê-lo sido pelo Grande Batizado, pois, mais veloz do que Sakahese, somente Piksarett, chefe dos

patsuiketts.

De noite, Piksarett entrou no acampamento deles, matou dois guerreiros e tirou-lhes o escalpo. Fez o mesmo

cinco noites seguidas. De dia, não o encontravam. Empoleirava-se nas árvores e confundia os próprios rastos, pois

andava de ré.

No quinto dia, Utakê, louco de raiva, despachou uma mensagem ao diversos grupos das Cinco Nações que, junto

com ele, haviam deixado a cidade dos iroqueses e avançavam para o norte. A ordem foi: "Para Quebec!"

CAPÍTULO VII

A amizade de Basílio de Quebec e Paulo Le-Follet

Da expedição sobre o gelo, Paulo Le-Follet trouxera uma bronquite que lhe pôs os dias em risco. Angélica foi vê-lo

na Santa Casa e encontrou Basílio à cabeceira dele.

Saíram juntos, e Angélica falou da amizade que unia o grave comerciante àquele pândego.

— Foi por causa do encarceramento dos pobres — disse Basílio.

— Eu o acreditava filho de um magistrado do parlamento — admirou-se Angélica.

— É fato. E, quando estudante, destinava-me a seguir-lhe as pegadas, quando sobreveio o encarceramento dos

pobres.

Contou como, ao sair da Fronda, Paris era a cidade dos crimes, da mendicância e da vadiagem.

O Grande Coesre, Rei de Tunes, príncipe dos bandidos, reinava na capital com segurança igual, até maior talvez,

à do jovem rei da França, Luís XIV, com os cagoux, ciganos, traficantes, mercantisses polissons e outros larápios.

Para sanear a capital de seus miseráveis, que representavam um quinto do população, não havia outra solução senão

reuni-los todos e trancafiá-los fora das vistas da gente honesta.

Os altos muros dos cinco estabelecimentos do presídio geral foram levantados com essa finalidade.

La Salpêtriere para as mulheres, Bicêtre para os homens e rapazes perigosos. A casa de Scipion para as mulheres

grávidas. Na Pitié, encerraram-se as meninas de sete a dezesseis anos, junto com as velhas, que se ocupavam

fiando. Na Savonnerie, os meninos, a quem ensinavam a fabricar tapetes turcos e persas.

Criaram-se os esquadrões de militares, denominados "arqueiros dos pobres". Dia e noite percorriam a cidade,

juntando tudo o que encontravam, dando caça aos recalcitrantes. Alguns eram hábeis no uso de uma rede pesada,

com que, de um único golpe, apanhavam todo um grupo de mendigos e órfãos e enchiam as ;arroças.

Uma noite em que o estudante Basílio retornava da Sorbonne, tomou o partido de um pobre-diabo a quem

perseguiam.

Foi parar, com o protegido, acorrentado a uma argola, nos porões de Bicêtre, reservados aos loucos. Puseram-

no lá para que se acalmasse, pois, muito vigoroso, havia atacado um arqueiro e ferido outro.

O companheiro, apelidado Papaulo, o Louco, já tinha lugar designado naquelas masmorras. Basílio conversou

com ele, achou-o bem inteligente, apto a aprender cálculo e leitura.

Entrementes, o magistrado procurava pelo filho. Acabou encontrando-o e fazendo-o sair de um presídio de

onde raramente se saía. Mas daquela estada no inferno, Basílio conservara um intenso ódio por muros e qualquer

horizonte limitado.

Não podia suportar a ideia de deixar para trás aquele rapaz, encarcerado como um animal inocente e sem outra

perspectiva senão perecer ou enlouquecer. Obteve-lhe a libertação e, com ele, embarcou no primeiro navio com

destino ao Canadá. O pai, com quem não deixara de manter excelentes relações comerciais, arrumara para ele

uma posição na Companhia dos Cem Associados, de que era acionista, e com o correr dos anos ele se tornara o

Sr. Basílio de Quebec, com o amanuense, irmão de cárcere, salvo do encarceramento ou da "corda, Paulo Le-

Follet.

— Ele me causa todo tipo de aborrecimento. Rouba, provoca censuras do clero... mas é livre e precioso para

mim. Arruma a casa, de que conhece cada objeto, vela pelas minhas filhas como um irmão, e conhece débito e

crédito de cada morador da cidade inteira.

— Gosto de sua história — disse Angélica.

— Não se deixe enganar! Sou um comerciante astuto.

CAPITULO VIII

Sinais da primavera — Tortura selvagem

E a primavera? Chegava ou não?

— A primavera — dizia a Polaca —, a gente nunca a vê. De repente é verão. A primavera? Passa como um silfo.

Há que estar atento para notá-la. Mas, quando a notamos, é maravilhosa.

Frio, gelo, neve. Nunca que a terra poderia voltar a florir.

Era um sonho muito longínquo. Melhor esquecê-lo para não sofrer esperanças vãs e desperdiçar forças e

reservas.

Jamais se poderia imaginar que chegaria o dia em que o médico Ragueneau, acompanhado pela prole de dez filhos,

fosse levar à Santa Casa o imposto anual de um ramo de flores naturais, colhidas no seu jardim.

No entanto, o rio descongelava. Grandes superfícies desnudas voltavam a refletir a luz, e as nuvens se miravam

com volúpia no reflexo da água ressurgida.

Na mata, os índios arrancavam cascas de olmos e bétulas, e nas praias, onde a neve evaporara primeiro,

costuravam-nas e aplicavam-nas recobertas de resina, sobre as carcaças de varetas flexíveis de seus pequenos botes.

Em breve uma flotilha inteira estaria pronta, e se dispersaria para o sul, norte, sudoeste, para os grandes lagos,

sudeste, Acádia, baía Francesa.

Do estaleiro e das bacias de reparos perto do Saint-Clarles subiam os ruídos de martelos e os odores de piche

derretido. Consertavam-se os cascos das embarcações que haviam sofrido com os gelos, apodrecido ou rachado

enquanto permaneceram prisioneiras da longa espera.

No cabo Rouge, numa manhã de bruma espessa, úmida e glacial, uma sombra moveu-se sobre o convés

desmastreado do Saint-Jean-Baptiste, encalhado. Farejando os odores da floresta, de caça, um urso magro

apontava o focinho para as alturas invisíveis das falésias. Mister Willoagby, intrigado, tomava ar.

Os navios, retirados para as enseadas e angras, recomeçavam a jogar e a puxar a corda da âncora.

Era frequente a cerração, depois das pancadas de neve chuvosa que despencavam abundantes e cerradas. Nos

dias de brisa seca e clara, os blocos de gelo arrancados dos telhados caíam e partiam-se como vidro. Era preciso

tomar cuidado. Um homem foi morto: uma massa de neve e gelo deslizou de repente de um telhado e abateu-o.

Natal Tardieu de La Vaudiere, recuperando o vigor, promulgou regulamentos. Cada cidadão devia providenciar

a limpeza do próprio telhado, tomando as precauções habituais. Nos locais ameaçados, deviam-se colocar

pranchas, para obrigar os passantes a andar pelo meio da rua.

O rio recomeçara o seu lento vaivém das marés. Os derradeiros blocos de gelo eram como grandes ilhas de

vidro, a rondar pela vasta estrela de água que novamente cintilava sob Quebec, últimos sobreviventes de uma

tropa que não se decidiam a deixar o lugar onde haviam reinado como senhores. Seguiam para o norte, a unirem-

se à massa de gelo do estuário atulhado, ou desapareciam, derretendo-se antes de chegar lá.

Nos primeiros dias de maio, os meninos do seminário, todos vestidos de preto, mas excitados como pássaros

soltos da gaiola, e entre eles Marcelino, Abbal Neals, uns trinta mais ou menos, acompanhados do jovem

Emanuel e dois clérigos, partiram para Saint-Joachim, sob o cabo Tourmente, para aguardar o regresso dos

gansos selvagens, anunciadores da primavera.

A neve ainda cobria grande parte das alturas da encosta de Beau-pré. O tempo da semeadura seria atrasado por

aquele inverno rigoroso. Mas a grande fazenda e a pequena fazenda, propriedade de Mosenhor de Laval, e os

prédios que abrigavam a Escola de Artes e Ofícios de Saint-Joachim, ficavam na longa planície de baixios e

pradarias ao pé das falésias, e as crianças poderiam dar início aos trabalhos de verão, para variar as horas de estudo e

missas entre os muros do seminário.

Reergueriam as cercas, limpariam os campos, cuidariam do gado. _Nas oficinas de arte, aprenderiam com os mais

velhos a trabalhar còm madeira, a esculpir, pintar, malhar o ferro, trabalhos de artistas e artesãos que dotariam com

um ofício citadino aqueles que não tivessem gosto pelo estudo ou pelo sacerdócio, e que os impediriam de partir para

as matas.

Os meses de verão passariam assim para eles, entrecortados por longos passeios pelas florestas nos montes e

pescarias ao longo do rio Sainte-Anne.

Na cidade, a neve, retirando-se, abandonava no chão, como a espuma de um naufrágio, trapos, roupas, inúmeros

gorros, lenços, botas, sapatos, missais, guarda-chuvas, utensílios, objetos de todo tipo, perdidos, esquecidos, arrancados,

que as raiadas de neve haviam sepultado sob diversas camadas e que reapareciam encalhados na terra ressurgida...

Corpos também...

Encontrou-se Joana da Alemanha, a mulher de Banistere. E trouxeram para Quebec o corpo de Martim d'Argenteuil,

que o rio Montmorency libertou da prisão de gelo e arrastou até os baixios nas proximidades do Saint-Laurent" A

morte dele foi aceita sem emoção. Um acidente. Mas houve curiosidade acerca da flecha indígena que ele tinha

cravada às costas. Diante do corpo de Martim d'Argenteuil, o Duque de Vivonne, impressionado, pois tivera o

rapaz consigo durante muito tempo, lembrou-se de algo que Atenaís, sua irmã, a favorita de Luís XIV, lhe contara e

que, na época, ele considerara um exagero.

A irmã lhe garantira que Angélica mandara assassinar seu mordomo, Duchesne. Sua gente queria que se realizasse

um inquérito. O que significava aquela flecha? Assassinato por um índio? Mas não estavam cercados de tribos

aliadas? Teriam sido iroqueses? Onde? Quando? Ninguém quis incumbir-se de arrancar aquela flecha do corpo que

deveria ser enterrado rapidamente. Os que podiam reconhecer as penas da flecha e atribuí-la a um abenaki calaram-

se. As mãos enluvadas de vermelho, que pendiam rijas e enlameadas, não tinham feito amigos. Ainda se tinha

presente na memória que o mestre do jogo da péla fora suspeito de havei estrangulado uma menina.

E enquanto todo mundo falava daquela flecha, os espíritos confundiram-se ainda mais, pois na mesma época

abenakis da missão São Francisco trouxeram um prisioneiro da nação iroquesa dos oneiuts, capturado nos

arredores do posto de troca, sobre o rio do mesmo nome.

Os abenakis falavam de uma concentração de iroqueses, que estavam se reunindo na cabeceira do Chaudiere e

do rio dos et-chemins. Uns falavam de quinhentos, outros de mil, outros ainda de dois mil...

O cativo iroquês foi levado perante o governador, que não conseguiu arrancar-lhe uma única palavra. Em

seguida foi entregue aos huronianos, que o reclamavam para fazê-lo perecer segundo seus costumes. Iroqueses e

huronianos, povos irmãos tornados inimigos, colocavam a tortura no topo das exigências a que tinham que

atender ao longo de sua existência para provarem a superioridade de sua raça. Morrer entre os mais atrozes

tormentos causados pelas mãos do inimigo mais odiado e mais corajoso era o sonho de todo guerreiro.

Para os iroqueses e os huronianos, tratava-se de um dever a que não tinham o direito de esquivar-se e para o

qual se preparavam desde a infância. Para os huronianos, que meio século antes tinham sido massacrados e

dizimados pelos ferozes iroqueses, termo que, na língua deles, significava "víbora lúbrica" e que os franceses, à

força de ouvi-lo, tinham adotado, preparar a morte do iroquês na fogueira era uma tarefa que lhes cabia de

direito.

E o prisioneiro logo começou a dizer-lhes que o que considerava mais terrível na morte que flíe preparavam era

que ele, um grande e honorável guerreiro, devia morrer pela mão daqueles cães sarnentos, os huronianos, tão

covardes, que tinham que refugiar-se à sombra dos franceses para sobreviver.

Estava dado o tom. Seria duro o páreo entre os carrascos exasperados e os sarcasmos da vítima a acusá-los de

covardia, pusila-nimidade e de ignorância na arte da tortura.

Os abenakis, que o tinham trazido, desinteressaram-se de seu destino. Os capitães queriam conversar com o

governador e o conselho, e saber se Onôncio estava disposto a entrar em guerra. Caso estivesse, as tribos aliadas

se uniriam a ele. Os iroqueses avistados ainda não tinham atacado as aldeias indígenas nem as missões jesuítas,

mas rondavam por ali. Não se sabia quais eram as intenções deles. A floresta fervilhava com os grupos de guerra.

Pareciam dirigir-se para Quebec, pois tinham sido surpreendidos a carregar as canoas pelas trilhas que levavam

ao rio Chaudiere.

Os huronianos, depois de oferecerem um banquete ao prisioneiro, conduziram-no ao local do suplício,

entoando as virtudes dos bravos e dizendo-lhe:

— Meu irmão, tenha coragem...

Um pouco adiante das últimas casas da Cidade Baixa, por um caminho que prolongava a Rue de l'Habitation,

levaram-no a uma praia à beira do rio, onde estava cravado um poste. Amarraram-nó, animados de uma alegria

canibal, e acenderam a fogueira para incandescer os instrumentos de suplício. Para os huronianos e iroqueses, a

tortura, desafio do ser encarnado à servidão da carne que o aprisiona, era um ato nobre quando a vítima era nobre

e digna de enfrentar o desafio. Aos refinamentos mais cruéis, a vítima demonstrava um inalterável sangue-frio,

não devendo nunca dar sinal de dor.

Angélica viu chegar à sua casa Berengária Amada, enlouquecida, descabelada, e que parecia a ponto de ter uma

crise nervosa.

— Angélica! Venha! É terrível! Não posso suportar mais esse horror!

Sua casa na Cidade Baixa não ficava longe do local escolhido pelos huronianos para supliciar o iroquês, e já

fazia uma noite e um dia inteiros que ela precisava suportar aquele cheiro de carne queimada, mas, pior ainda,

ouvir os cânticos sinistros deles e os gritos de fúria dos algozes, quando aquele iroquês furioso, ao invés de

gemer e implorar piedade, respondia com insultos, cantando as próprias façanhas, enumerando os parentes e ami-

gos dos huronianos que-elé matara, pormenorizando os suplícios que lhes infligira, o que redobrava a raiva dos

outros. Agora se calara, mas continuava vivo, e iniciava-se uma segunda noite de sabá.

De vez em quando o Padre Jorras, jesuíta, descia até lá para examinar e ver se o homem não dava sinais de ter

sido tocado pela graça e não desejava converter-se.

As comunidades religiosas se tinham posto a orar para que o tal sinal se manifestasse antes do derradeiro

suspiro do índio. Pelo batismo de sangue, o iroquês iria para o céu, mas ansiava-se pelo sinal, que provaria que

ele seguiria para o paraíso de boa vontade.

Berengária abordara o Padre Jorras, pedindo-lhe que interviesse para que a morte do infeliz fosse apressada. O

religioso, porém, balançara a cabeça. Não se podiam contrariar os costumes dos huronianos, e o próprio iroquês

se teria indignado, caso lhe roubassem a morte.

— Os homens não têm entranhas — disse Berengária. — O Sr. de Frontenac me apresentou a mesma razão.

Disse que está exasperado, porque o cheiro sobe até ele, e lamenta que os huronianos se tenham instalado perto

de nós, mas é-lhe difícil intervir. Quanto a seu marido, responde-me, certamente com razão, que não pode

imiscuir-se nos assuntos dos franceses nem no entendimento deles com os seus aliados indígenas.

— Por que você veio a mim?

— Porque você é mulher e porque dizem que sabe falar com os índios.

Angélica refletiu. Compartilhava dos sentimentos de Berengária, mas a intervenção que esta lhe pedia,

transtornada na sua sensibilidade de europeia ainda não acostumada com aquela existência rude e terrível no

Canadá, forjada de fogo e sangue, era difícil.

Se Piksarett estivesse ali, pedir-lhe-ia que fosse partir o crânio do supliciado com um golpe de tacape, e os

huronianos não ousariam dizer nada, pois tinham medo dele.

— Esses selvagens são horríveis! — repetiu Berengária Amada, batendo os dentes. — Ah! Por que vim para a

América?! Bem que minha mãe me disse: "Não vá!"

Subiram ambas na carruagem do Sr. de La Vaudiere e desceram para a Cidade Baixa. Na extremidade da Rue

de 1'Habita-tion, que terminava num relvado, as labaredas da fogueira que iluminavam o supliciado varavam a

noite. As duas fizeram a carruagem avançar até o fim do caminho e apearam.

Os lacaios e o cocheiro, vindos da França com o jovem casal Tardieu de La Vaudiere, e que passavam sua

primeira estada no

Canadá, mostravam-se pouco dispostos a acompanhar aquelas senhoras, demasiado arrojadas para o gosto deles.

Somente o criadinho as seguiu alguns passos, e estacou.

Tinham medo daqueles diabos vermelhos, de danças bizarras, cantos lúgubres, que "balançavam ali adiante,

batendo tambores, e nos transes de um prazer de vingança e crueldade cujo paroxismo nào arrefecia. .

Ao topar com o espetáculo e com as exalações de carne queimada, a coragem da pobre Berengária cedeu. Ela

parou e, desviando-se, começou a vomitar. Angélica teve que continuar sozinha.

Ao se aproximar, tentava nào olhar para o poste de tortura, onde pendia uma criatura escalpelada, retalhada,

queimada, cor-\ tada em tiras. Do seu flanco aberto, escorria sangue negro. "Comeram-lhe alguma coisa de dentro",

haviam comentado os ociosos da Place du Cul-de-Sac. Parecia impossível que o mártir ainda respirasse, e no entanto

era uma. fato. A habilidade da nação huro-iroquesa em manter vivas as suas vítimas pelo máximo de tempo

possível era fruto de uma longa ciência.

Assim tinham morrido os jesuítas missionários Bréboeúf e Lallemant, e outros.

Aos pés do iroquês, uma fogueira cuidada pelos jovens ardia, vermelha, com todas as suas brasas. Um após outro

os guerreiros vinham incandescer ali um machado, um espeto, a fim de procurarem, cada um por vez, causar-lhe

um novo sofrimento.

Angélica parou a alguns passos do capitão deles, Odessonk, a quem conhecia.

Atraído pelo olhar dela, avistou-a e aproximou-se com ar altivo, como faziam certos índios. O rosto imberbe, de

traços não definidos, poderia fazer pensar na face de uma mulher um pouco gorda e envelhecendo, não fosse o

penacho feroz espetado no crânio raspado e a expressão dura e sombria dos olhos. Era um guerreiro de grande

estatura, vigoroso, de músculos salientes.

Ela falou com ele a meia voz, sem emoção.

— O Odessonk! Perdoe a minha fraqueza de mulher. Venho pedir-lhe que suavize seu coração indomável, por

piedade pelo sofrimento do meu... Termine o suplício do iroquês... Liquide-o! Não satisfez o seu desejo de

vingança? Não tratou seu inimigo com todos os rigores que ele exigia? Ninguém pode dizer que o tenha

desprezado, não lhe concedendo o suplício reservado aos mais corajosos dentre seus inimigos... Liquide-o, rogo-

lhe. Poupe nossos corações, que não estão acostumados a nutrir tanto ódio... Porque não precisaram endurecer

nos combates... Você, que é cristão, pode compreender que não dispomos de força igual à sua, acostumados que

estamos a chorar e a sofrer diante da imagem de nosso Deus preso ao poste de tortura da cruz? Liquide-o,

Odessonk. Tire-lhe a vida com um golpe do seu tacape. Já mostrou a todos seu valor...

O huroniano examinava-a, impassível. O que ela lhe pedia era importuno. O prestígio dele estava envolvido.

Os seus guerreiros o reprovariam caso deixasse recair sobre si a suspeita de amolecimento, que atinge os que

esquecem dos próprios irmãos massacrados pelo inimigo.

— Você me feriu no salto do Katarunk! — disse ele.

E ela não entendeu se ele lhe lembrava isso para transmitir uma recusa ou se para reconhecer nela uma

superioridade diante da qual ele podia inclinar-se. Suspirou de alívio quando o viu levar a mão à cintura e sacar o

tacape, composto de uma grande bola de pedra branca.

Sempre a fitá-la com seu olhar enigmático, ele bateu duas ou três vezes com o cabo de madeira polida na palma

da mão, como a se certificar da própria empunhadura.

— Fico-lhe grata, Odessonk — -murmurou ela, humilde, enquanto os lábios lhe dedicavam um sorriso. —

Jamais esquecerei que, por solicitação minha, sacrificou suas nobres aspirações de vingar seus irmãos. Também

eu saberei dar-lhe ouvidos, caso um dia precise da minha palavra.

Odessonk empunhou o tacape com firmeza. Olhou para o supliciado. Ainda hesitava. Angélica, virando a

cabeça, malgrado seu, cruzou, num rosto sulcado de sangue, com o brilho de duas pupilas vivas. O iroquês

acompanhara de longe a mímica dos dois e compreendera. Ela sustentou aquele olhar de águaia negra, velado e

como que suavizado pelo excesso de sofrimento. Nele leu uma confissão de rendição. O iroquês ficava-lhe

agradecido. Graças a ela, já não precisava ter medo de ceder e de perder a própria morte, gemendo como uma

mulher.

Murmurou algumas palavras numa voz rouca.

Vendo Odessonk resoluto, um dos huronianos, que se aproximava do supliciado com um machado em brasa e

que se preparava para fincar a lâmina num sulco na coxa, já.aberto até o osso, interpôs-se.

— Odessonk não podia decidir suspender um suplício, disse o homem, antes que o iroquês soltasse o último

suspiro.

Odessonk replicou que devia respeitar o coração sensível das brancas, pois era cristão e vivia sob a proteção de

Onôncio. Intimou o huroniano a áfastar-se. Este quis tomar por testemunhas os demais participantes, que tinham

parado de dançar e de bater o tambor. Mas ninguém proferiu palavra. Também os carrascos estavam cansados, e

não se incomodavam com que se desse cabo daquele iroquês intratável, que, conservando toda a sua virulência

de índio das matas, treinado na caça e nas expedições guerreiras, estava a ponto de esgotar a resistência deles,

huronianos de Loreto, que tinham quase perdido o hábito daquelas cerimónias terríveis.

O guerreiro do machado inclinou-se e jogou longe a arma inútil.

Nas suas amarras, o iroquês preso ao poste de tortura pareceu esforçar-se para aprumar o corpo dilacerado,

descarnado, esfolado vivo e queimado da cabeça aos pés.

Odessonk, de tacape em riste, encaminhou-se na direção do homem, que finalmente ia morrer.

CAPÍTULO IX

Parte a expedição de pacificação dos iroqueses

Antes de morrer, o iroquês falou. Disse:

— Utakê vem vindo.-Há de matá-los a todos, cães!

O comunicado foi estudado, aquela espécie de informação que parecia ter-lhe sido arrancada pela intervenção

humanitária de Angélica, e interpretado como um sinal de boa vontade que lhe abrira o céu. Mais uma alma

entrara no paraíso.

E o Sr. de Frontenac, junto com o Sr. de Castel-Morgeat, preparou-se para ir ao encontro do chefe das Cinco

Nações.

Começou-se a falar de caldeirões de guerra, e os tambores puseram-se a ressoar pelos arredores de Quebec, a

reunir os guerreiros algonquinos, huronianos e abenakis.

Odessonk fez um discurso aos seus jovens guerreiros:

— Juventude, tenha coragem, lave o rosto, penteie o cabelo, encha as aljavas. Façamos as florestas ecoar com

nossos cantos de guerra, alegremos nossos mortos e façamos que saibam que serão vingados...

O Sr. de Frontenac e o Sr. de Castel-Morgeat pediram ao Sr. de Peyrac que os acompanhasse. Queriam ir ao

encontro de Utakê maciçamente, mas para parlamentar. Não acontecera nada que justificasse desenterrarem o

machado de guerra, solenemente enterrado nos arredores do Forte Frontenac, alguns anos antes. Por que Utakê

queria romper a paz iroquesa? A presença de seu amigo Teconderoga, o Homem do Trovão, ao lado dos

franceses, e os colares de wampum que lhe efereciam, facilitariam uma expedição pacífica.

A dificuldade estaria em conter os aliados selvagens, sempre muito excitados. Não era a primeira vez que se

viam diante de tal situação. Frontenac estava encantado. Era fascinado pelos grandes encontros com os índios,

sobretudo com os iroqueses. Gostava da beleza dos discursos deles, suas discussões astuciosas, e de conseguir

seduzi-los e apaziguá-los com a própria habilidade e com a compreensão que possuía da natureza e dos

sentimentos dos índios.

Florimond pediu para participar da expedição. A sua "loura" do momento, conforme se dizia comumente,

desaparecera, o que não deixava de preocupá-lo. Os pais dela a teriam sequestrado? Tê-la-iam trancado em casa?

Os jovens tinham sido traídos por Eufrosina Delpech, cuja casa sobranceava a do capelista Prunelle. A mulher

dissera aos pais: "Vi pegadas em seu telhado, na neve. É um ladrão ou um namorado que visita sua filha à noite".

O capelista Prunelle não era homem fácil de lidar. Andava à procura da identidade do visitante noturno, e

Florimond, um pouco embaraçado, acolhia com prazer a ideia de uma expedição de guerra.

O exército, em canoas de três, dez ou doze remadores, deixou Quebec ao som de vivas, e desapareceu na

direção sul, rumando para a embocadura do rio Chaudiere. Para se prevenirem contra toda eventualidade, uma

parte da flotilha continuaria até Trois-Rivieres, para o caso de a vila ser ameaçada pelos grupos de guerra que

tinham sido avistados nos arredores de Saint-François.

O governador entregou a responsabilidade militar da cidade ao major D'Avrensson.

Joffrey de Peyrac levava consigo o Conde d'Urville e uma vintena de homens.

— Se vir Utakê — disse Angélica a Peyrac, ao se despedirem —, lembre a ele de como sempre me considerei

honrada com o colar de wampum que ele me mandou, bordado pelas mãos do Grande Conselho iroquês, que

resolveu nos salvar da fome, no ano passado. Diga-lhe que o guardo preciosamente num cofre, ao alcance de

minha mão, a fim de recobrar forças ao contemplar esse símbolo de amizade.

E, como toda vez que ele se distanciava, ela evitou demonstrar-lhe os seus receios.

Ao longo daquele inverno, aprendera a amá-lo demais. As confidências, as brigas, as reconciliações, as horas

de amor, os proje-tos, os sonhos de sucesso, de paz, de regresso à França, mas no fundo dos quais permanecia

informulada a única aspiração de ambos, primordial à sua satisfação em viver: continuarem lado a lado, para

sempre.

Como explicar tudo isso a ele? Fitava-o com seus belos olhos verdes. Como de hábito, ele parecia adivinhá-la e

troçar um pouco:

— Tenha cuidado — disse. — Não quero entravar seu espírito de independência, minha bela audaciosa,

deixando uma escolta a seus passos. Mas eu gostaria de saber que, quando passear pela cidade, pelo menos levará

à cintura uma de suas pistolas... e pronta para atirar.

CAPITULO X

Confronto entre Vivonne e Bardagne — Angélica em perigo

O Duque de La Ferté-Vivonne e o Conde de Bardagne bebiam juntos no albergue Ao Navio de França.

— Tivemos o inverno para conquistá-la — dizia o duque, numa voz que de vez em quando ameaçava sumir

num murmúrio. — E o inverno está terminando. Inverno covarde, que nos traiu. Convenceu-nos de que seria

fácil conquistá-la. Acreditamos, não foi? Ela está perto, e no entanto, quanto mais nos aproximamos, mais a

perdemos de vista, como se ignorássemos tudo do jogo da sedução. Todas as armadilhas que lhe preparamos, ela

as quebra como a varetas. O que foi que aprendemos antes de conhecê-la? E com que mulheres? Para nos vermos

tão desprovidos? Você verá, caro emissário do rei, também você haverá de chocar-se com o incompreensível.

Haverá de quebrar o nariz contra o espelho sem estanho atrás do qual acreditou tê-la vislumbrado.

— Paremos de beber — disse Bardagne de súbito.

— Que outra coisa fazer nesta cidade maldita?

Pela janela aberta, Vivonne lançou um olhar melancólico e desiludido ao rio volumoso que rolava ao nível do

cais. Os estupor da morte hibernal, os horrores da ressurreição entre os estrondos de águas e gelos, cediam lugar

a uma espécie de convalescença tristonha e rancorosa em relação à violência dos sofrimentos suportados.

O suave mês de maio, no Canadá, tinha cara terrosa e lívida.

O inverno acabava de ceder. A neve retirava-se lentamente das alturas, dos vales, de sob as árvores. Na vertente leste

das pradarias, a lama ganhava as ribanceiras. .Mas os sinais de ressurreição tardavam. Não brotava um único talo de

erva. A terra se fechava em si, como se não se quisesse salva nem libertada, ruminando a própria desconfiança.

A própria Quebec sofria com o contágio desse humor. Entediada, revelava a sua desordem: cercas quebradas, calhas

arrancadas, soleiras arrebentadas — e examinava-se, como uma mulher que no espelho se descobre pálida, descabelada

e envelhecida após uma longa doença.

A ausência dos homens e a preocupação com os iroqueses era o pretexto para a ociosidade. Ninguém se decidia a

começar a trabalhar, e ninguém ainda tivera a ideia de soltar os porcos pelas ruas.

Angélica fizera para a primavera um vestido de veludo leve, verde como uma folha tenra, com a ideia de que isso

apressaria a renovação. O capelista guardava de reserva algumas peças de tecido, para uma estação em que as

mulheres, cansadas das pesadas roupas de inverno, costumavam ser presas de um desejo de mudança, pelo qual

pagavam qualquer preço. Da rendeira, Angélica comprou uma grande gola trabalhada com florões em ponta, a ser

admirada quando ela passeasse pelas ruas só com uma capa ou uma mantilha sobre os ombros.

Ainda não fazia três dias que o exército partira, e já parecia um longo tempo. As pessoas inquietavam-se,

ansiavam por notícias.

Angélica também abrira a janela, apesar do ar que diziam estar "áspero". Admirava do alto o rio, que retomara os

seus folguedos diversificados. Hoje o vento soprava. Subia do rio uma bruma que a ponta das ondas arrastava em

fiapos brancos, em penachos, o que dava à superfície da água o aspecto de uma plumagem de pássaros arrepiada

pelo vento.

O movimento brincalhão das ondas evocava as naus que as cortavam alegremente, fazendo oscilar as velas redondas

e enfunadas, avançando com alegria para a América.

A sorte já estava lançada.

A sorte deles.

Caso o rei se pronunciasse contra eles, Angélica reconheceu que, apesar de suas forças novas, que a deixavam

menos vulnerável, não seria sem tristeza que veria afastarem-se deles os amigos que fizeram no Canadá. Não seria

sem pesar que deixaria Que-bec, a Francesa, onde reencontrara seu passado, sua juventude e o melhor de si

mesma. Sim, o rei da França ainda podia fazer-lhes muito mal.

E mais uma vez lamentou aqueles sinais precursores da primavera, que iam romper-lhes o isolamento. Mais dois

meses, um pouco mais, um pouco menos, mas com toda a certeza, surgiriam velas brancas na extremidade da ilha

de Orléans... O inverno de Quebec já teria passado. E, apesar de tudo, seu sonho se realizara, pois ela vivera um

inverno maravilhoso.

De mãos nos bolsos, cachimbo na boca e gorro de lã vermelha enterrado até os olhos, o filho da Polaca subia a

rua. Exemplo bem-sucedido e roliço da mistura de normando e auvergnat, com um toque de malícia parisiense, e

forjado nas nevascas do Canadá.

— O que você quer, bochechudo? — perguntou da janela.

Ele vinha a mando da mãe, Janine Gonfarel, da taberna Ao

Navio de França, avisar que o Sr. de Bardagne e o Sr. de La Fer-té se haviam batido em duelo.

Angélica sempre precisava de alguns segundos para associar o nome de Vivonne ao de La Ferté, e quando

entendeu, empalideceu.

— O que é que você está dizendo?

Foi-lhe ao encontro na rua e cobriu-o de perguntas.

O emissário do rei e o duque, bebendo juntos na taberna Ao Navio de França, puseram-se a alfinetar-se, como de

hábito. Os ânimos exaltaram-se. Parecia que a Sra. de Peyrac fora a causa da divergência, pois esse nome fora

pronunciado com frequência por seus lábios espumantes.

As testemunhas ainda não conseguiam dizer qual dos dois imprecara furiosamente contra ela e qual reclamara do

outro uma reparação pelo insulto a uma mulher admirável.

O fato é que tinham saído para a praça, sacado da espada e terçado armas. O Sr. de La Ferté fora ferido. Tinham-no

levado para casa, onde o médico Ragueneau, a quem o jovem Gonfarel, de passagem, acabara de avisar, já devia

estar à cabeceira dele.

— E o Sr. de Bardagne?

Pelas aparências, ele ainda estava bem vivo logo depois que o Sr. de La Ferté caíra. Fora muito difícil chegar perto

dele, pois brandia a espada no ar, ameaçando partir em dois o universo inteiro, que, por conter criaturas tão vis

quanto as que o rodeavam, merecia ser destruído até o último homem. Depois, dando um repentino pulo para o lado,

abalara na corrida e se perdera entre a multidão. Como falasse em atirar-se ao rio, seus amigos correram-lhe atrás,

mas não conseguiram alcançá-lo.

Angélica começou indo à casa do Duque de Vivonne. Adivinhava que tivesse acontecido o que previa e era

inevitável, mas que esperara só estourasse com o regresso dos navios, quando uma carta do rei revelasse ao pobre

Bardagne seus erros.

Encontrou o irmão de Atenaís, aborrecido, diante da lareira, enquanto o médico lhe pensava o braço.

— O que foi que você lhe contou? — lançou-lhe ela, ofegante

e já pronta para repreendê-lo.

Vivonne examinava na coxa o rasgão maculado de sangue na calça de seda.

— Aquele imbecil não poderia ter-me ferido apenas uma vez?

— Ele não é um imbecil! O que foi que você lhe disse para ele deixá-lo nesse estado?

Pois bem! Tudo. Contara-lhe tudo... Que se não tivesse tanta vontade, e continuamente, de ridicularizá-lo, teria

tido piedade, pois, de fato, é lamentável ver-se um homem a mais acorrentado a uma mulher, àquela mulher! Pois

estavam todos acorrentados. Acorrentados ao vento... visto que ela não era uma rameira mas era odiável, perversa ou

provocante. Era inacessível!!! Ainda assim, quando alçava os olhos para um deles, parecia dar esperanças...

— Mas o que é que ela tem?... O que é que ela tem, afinal, que nos destrói? — bradara Vivonne, agarrando

Bardagne pelo peitilho. — Todos, você, eu, o próprio rei...

— O rei? — repetira Bardagne, atónito.

— O quê! Não sabia? Sim, o rei! A loucura do rei por ela, o ouro, as jóias a seus pés, as festas mais suntuosas, e

em troca... ela se tornou a Rebelde do Poitou.

— O que você está dizendo? — berrara Bardagne.

E recuara, pálido como um morto.

— Isso mesmo! — casquinara Vivonne. Por que é que ele imaginava tão inofensiva aquela jovem de olhos de sereia

e sorriso cativante, atrás da qual se balia como um bode, à qual não parara de cortejar desde que ela chegara,

entrando êm êxtase ao primeiro olhar, aquela mesma que mal fazia seis anos galopara através de uma província inteira,

conclamando os camponeses à revolta contra o rei da França? O mesmo rei de que ele, Bardagne, era o emissário

encarregado de uma missão especial. O emissário acreditava que o rei a trazia no coração, àquela mulher que o

enfrentara, massacrando-lhe os soldados, erguendo contra ele, o monarca,

cidades vassalas do reino?

Pois bem! Sim, o rei trazia a Rebelde no coração! E era a ela que revia entre todas as suas damas quando parava

no alto do tanque de Latona. Ela está lá... As jóias dela... a pele que as refle-te, tão macia, transparente, luminosa, a dar

umá irresistível vontade de se lhe pousar os lábios...

Fora então que o Conde de Bardagne se levantara, dizendo:

— Saiamos, senhor. Vamos bater-nos.

Lá fora, desembainhara a espada e arremetera contra Vivonne, sem quase dar-lhe tempo de pôr-se em guarda.

— Essa gente da pequena nobreza duela sem grandeza. Eu já estava no chão e ele continuava a investir contra

mim. Não entendo por que caí, pois este golpe no braço não foi nada.

— Você estava bêbado. Suas palavras dão conta disso... E acho que o Sr. de Barbagne se mostrou bem clemente não

lhe desferindo golpes mais mortais, tendo-se em vista o que você lhe fez.

— E o que foi que eu fiz ao seu favorito, ro seu dodói?

— Você o feriu gravemente, fazendo-o avaliar o próprio equívoco e pressentir o descontentamento do rei em

relação a ele. Sempre haveria tempo para que ele se inteirasse de tudo. Agora, quando se vê impotente para defender-

se, no extenuamento a que estamos reduzidos pelas fadigas do inverno, receio que atente contra a própria vida.

— Qual! Aposto como está em casa, tranquilamente, a gabar-se com seus criados de haver-me arranhado, e a

esperá-la para apresentar-lhe seu relato. Oh! esse vestido verde...

— O que tem este vestido verde?

— Cai-lhe bem! Você está maravilhosa. Mas atenção, minha cara, é demasiado simples. O rei há de querê-la

mais suntuosa...

— O rei há de querer-me morta ou na Bastilha, com certeza, e sua irmã, mais ainda... Pare de falar no rei.

Se ele não estivesse ferido, Angélica o teria agarrado pelo peitilho de renda e lhe teria dado umas sacudidelas.

Rebentou em imprecações.

— Quem é você para permitir-se maltratar, sem razão, os que o rodeiam? Nada! Nada aos meus olhos, digo-lhe

com toda a franqueza. Acredita que tudo lhe é permitido. Trata as pessoas que lhe servem como dados de gamão

que a gente agita num copo. Não tem coração, nem consciência, nem encanto, e sequer está seguro acerca de sua

fortuna. O orgulho dos Rochechouart é conhecido, mas nem você nem sua irmã jamais me impressionaram, e

sempre os tomei pelo que são: insolentes brilhantes, ávidos, orgulhosos, ignorantes, sem coração e sem nada. Seu

brasão lhes serve de entranhas, e acreditam que o número de seus quartos de nobreza pode substituir a nobreza de

caráter, que é a única que cativa. Você é que é um imbecil por imaginar que a maldade de seu espírito não

acabará por prejudicá-lo. Pode contar comigo para fazer-lhe lamentar por ser um inútil tão nocivo. É por causa de

gente da sua espécie que nunca se pode viver feliz. Você envenena até as belezas de Versalhes. Hei de fazer-lhe

pagar caro, prometo. Talvez amanhã. O rei me receberá na corte. Você sabe disso. E então, cuidado, pois hei de

vingar meus amigos. Se você estiver entre meus inimigos, hei de afastá-lo...

— Não me fale assim. Gosto demais de você — exclamou Vivonne, erguendo-se com tanta brusquidão, que

cambaleou na perna ferida, e o médico, empurrado, quase caiu no fogo.

— Não se mova assim, monseigneur, ou não consigo pensá-lo.

— Você está exagerando as coisas. Não tenho nada contra você, Angélica — disse o duque. — E, pouco me

importam as intrigas que seu retorno suscitará. Você conhece Versalhes. O jogo é esse. Cada um jogará sua

partida por si, e se Atenais perder, azar! Talvez eu seja seu irmão, mas ela se engana ao imaginar que continua

sendo a rainha. Caso continuasse, eu não teria precisado exilar-me e fazer-me esquecer para me safar de um mau

passo. Você tem razão. Também ela se consumiu em intrigas desgastantes e aviltantes, para a defesa e a

manutenção de prazeres e honras de que já não se tem tempo nem gosto para gozar. Você é nova. Se voltar a

Versalhes, apostarei em .você. Pois também o rei está cansado dos que o cercam. Foi por isso que não conseguiu

esquecê-la. É por isso que se volta para aquela carola de Maintenon, a viúva Scarron... Ah! Ah! Não sou tão tolo

nem tão mau quanto você acredita. Se você ganhar, não a prejudicarei.

— Bom. Tomo nota disso — disse ela, acalmada pelos protestos dele. — Mas fique avisado.

Ao virar-se para deixar o aposento, pareceu-lhe sentir assestados sobre ela, como se fossem pistolas, no

mínimo três pares de olhos cheios de ódio.

O quarto, onde entrara como um vendaval, estava escuro, iluminado apenas pelo fogo na lareira. Ocupada com

Vivonne e em extravasar o que trazia no coração há muito tempo, não se dera conta dos outros presentes além do

médico. Ora, Saint-Edme estava ali, bem como o Barão de Bessart e o lacaio, barbeiro, fac-tótum e, sem dúvida,

cúmplice, devotado a eles, que segurava a bacia enquanto se limpavam os ferimentos do gentil-homem.

O discursinho de Vivonne, garantindo a Angélica que se desligaria da irmã oportunamente, não pareceu

agradar aos demais. A amante do rei talvez os tivesse a soldo, retendo-os por meio de generosidades, ou por

ameaças de denunciar-lhes os crimes, roubos, trapaças ou dívidas de jogo.

A impressão que Angélica levou daqueles olhares furibundos que a fitavam como que saídos da penumbra da

tapeçaria não foi das mais agradáveis.

"Assinei meu decreto de morte", pensou. "Mas, aconteça o que acontecer, paciência!"

Subiu a encosta da montanha às carreiras, ofegante. Estava preocupada com Bardagne. O que sabia sobre ele e

sobre a evolução de seu caráter desde que o conhecera em La Rochelle não a encorajava a mostrar-se otimista,

conforme Vivonne lhe aconselhava.

Bardagne era um sonhador. Apegava-se mais às suas ilusões do que a realidades decepcionantes. Devia as

maiores alegrias, em boa parte, a miragens que ele forjava e que nutria com um cará-ter entusiasmado e

ligeiramente presunçoso.

Apaixonado, era-lhe fácil, graças à ilusão que tinha da amada, criar uma pessoa segundo sua própria

conveniência, o que é sempre mais fácil e agradável do que adaptar-se à pessoa mesma, nem sempre maleável. E

isso dera muito certo com ele no passado, enquanto tudo se limitara a seduzir as castelãs da vizinhança de sua

propriedade no Berry ou as senhoritas das cidades de guarnição ou de La Rochelle, onde conhecera alguns

dissabores com as jovens da sociedade protestante, zelosamente defendidas pelos respectivos pais, furiosos de

verem um papista ousar rondar em torno delas, com a pretensão de corrompê-las ou, pior ainda, desposá-las. A

simples ideia de uma aliança como essa arrepiava os cabelos dos dignos calvinistas. Ainda assim, sua posição de

representante do rei para assuntos religiosos lhe permitira levar uma vida bem agradável na cidadela protestante

do reino de França. Como o Marquês de Ville-d'Avray, naquela altura achava a vida bela, quase não tendo

ocasião de despencar do alto de seus sonhos. Angélica, criada de um huguenote, constituíra-lhe um enigma. E

fora ainda por ilusão que tentara solucioná-lo. Hoje, para ele, voava tudo em destroços.

Correndo, Angélica penetrou no pequeno parque da Closerie e subiu pela aléia. A vegetação rasteira ainda

conservava vestígios de neve.

No vestíbulo da casa, encontrou o primeiro oficial do Sr. de Barbagne, que vagava como uma alma penada por

entre uma desordem aflitiva. Levantava do chão e recolocava no lugar, aqui e ali, uma cadeira, um tamborete,

enquanto o secretário dobrava roupas e as punha uma a uma em arcas e malas de couro.

O Sr. de Bardagne chegara havia duas horas, desnorteado, dizendo que partiria imediatamente daquele "lugar

maldito".

— Aonde foi ele?

Anunciara que se mudaria de volta para a casa que lhe haviam destinado- quando chegara, afastada da cidade,

no seio das planícies de Abraão. Levava somente umas roupas, suas armas pessoais e dois livros.

— Mas essa casa nas planícies de Abraão deve ser úmida e pouco confortável! Por que você não o

acompanhou?

— Ele exigiu que eu ficasse aqui para guardar a casa, providenciar o encaixotamento dos livros, preparar a

mudança, não deixar sem vigilância a gente da casa e das cozinhas. Mas isso foi só um pretexto. Ele quer ficar

sozinho. Só levou o criado de quarto. Um empregado, guarda da outra casa, ajudará o criado esta noite.

Angélica perguntou a hora.

Eram cinco da tarde e ainda estava claro. Os dias se alongavam.

— Vou visitá-lo, é talvez o traga de volta, mais calmo!

— Oh, sim, senhora! Faça isso, rogo-lhe. Somente a senhora pode fazer algo por ele. Nós, seus amigos,

sentimo-lo tão atingido! Como se tivesse sido ele, e não o Sr. de La Ferté, a receber aquele golpe de espada no

duelo.

— O que foi que aconteceu?

— Então não sabe, a senhora, que é a causa do encontro?

— Talvez! Mas não assisti ao duelo. Ignoro o que disseram antes de se lançarem a luva ao rosto.

— Confesso que também não sei. Mas adivinho o suficiente para saber que toda intervenção de sua parte lhe

será benfazeja. A senhora está envolvida na perturbação dele, pois o amor que lhe dedica, conforme me repetiu

inúmeras vezes, talvez lhe tenha arruinado a vida. Mas agora receia haver arruinado a carreira, o que poderia

levá-lo a um gesto fatal, pois é muito apegado ao serviço do rei.

— Ele certamente me receberá muito mal.

— Não! A senhora sabe como lidar com ele.

Angélica passou em casa para avisar que não a esperassem para o jantar. Não encontrou ninguém, estavam

todos passeando, à procura dos primeiros açafrões descobertos pelos prados. Incumbiu um dos guardas do

bastião de avisar Iolanda, quando retornasse com as crianças, para que não se preocupasse caso sua ausência se

prolongasse. Teria várias coisas para fazer naquela noite.

Pensou em ir inicialmente ao albergue Ao Navio de França, mas era mais urgente saber do estado de ânimo de

Nicolau de Bardagne.

Seguiu apressada para as planícies de Abraão.

Estas, prolongando as alturas de monte Carmel e marcando o ponto culminante do promontório, ainda estavam

parcialmente recobertas de longas placas de neve. No entanto, depois de se ultrapassar o jardim do governador,

era possível achar as trilhas marcadas pela passagem dos caminhantes, camponeses ou índios, que, retornando a

pé ao cabo Rouge, aos acampamentos de Sainte-Foy ou de Loreto, preferiam seguir pelas planícies a meterem-se

pelo atoleiro da Grande Allée.

Avançando para o poente, Angélica sentiu-se tocada de repente pelo aspecto do céu. As cores ardentes mas

claras e límpidas que admirava havia pouco tinham mudado para um quadro estranho.

Acima de um horizonte escuro, banhado numa tinta de um preto intenso, desenhando à pluma a longa frisa das

silhuetas de árvores da floresta impávida que se entendia sem fim, os clarões de cobre e ouro de um incêndio

imóvel enchiam o céu de um braseiro imenso. Nas franjas desse braseiro, nuvens acastanhadas e cor de carvão se

desdobravam e desenrolavam em volutas, como espessa fumaça fuliginosa exalada por matérias pesadas e

sufocantes, invadindo o espaço numa forma torturada, qual um leque; as nebulosas a se dilacerar e dispersar

tragavam o ouro do crepúsculo, arrastando-o e diluindo-o num céu manchado de laivos escuros e sangrentos, de

correntes de púrpura sombria e escuridão, de panos de cortina rasgados, levantados por um vento gigantesco e

solene, cuja direção e impulso se podiam ver, mas não o movimento, pois nada se mexia. O céu paralisado abria-

se sobre o fogo do inferno, sem que se lhe percebesse a aproximação. Tudo se espalhava sem se deslocar, como

que nascendo insidiosamente de profundezas desconhecidas. E na ponta dessas plumas negras arrancadas,

marcando o contorno do leque, ressurgia o fogo, escarlate, dispersando em explosões múltiplas centelhas e brasas

de rubis.

Era como se a oeste, naqueles turbilhões imobilizados de um cataclismo, ardessem cidades gigantescas e

condenadas, destruídas por um apocalipse sem remissão.

"Vai acontecer alguma coisa", disse Angélica consigo, com o coração contraído de angústia, diante da beleza

daquele pôr-do-sol..Nunca vira outro tão belo e tão inquietante!

O que iria acontecer?

As criaturas pareciam bem pequenas, minúsculas, formigas desatinadas. A morte estava ao cabo de um gesto, e não

tinha importância se esse gesto seria o que marcaria o fim do mundo ou o gesto único de uma espada a cravar-se

num coração, assinalando o fim de uma única vida. A vida era fragílima, mas, na sua essência, ainda era mais do que

aquele sopro grandioso da natureza.

A vitalidade de seu sangue a correr-lhe pelas veias pareceu um milagre a Angélica, em vista da fragilidade do que

lhe mantinha o curso. A vida! Nada merecia que alguém se privasse de tamanho tesouro, dessa certeza, de um

segredo de tamanha importância, de uma promessa tão grave!

Explicaria isso a Bardagne, e saberia colocar-lhe a cabeça no lugar. O que importava aquela mistura de nomes,

de mentiras e tragédias? Ele existia, ela existia. O rei? O que importava?... A vida. A vida não se reduzia ao

franzir de cenho de um rei.

Avistou a casa de longe e diminuiu jp passo. Tinha que coordenar as ideias. Se Vivonne realmente contara tudo ao

pobre Nicolau, ela entendia a humilhação que acabrunhava o enviado do rei.

Apesar de certa leviandade de propósito e da ingenuidade de suas presunções, Bardagne não era um tolo. Angélica

duvidava que qualquer argumento que pudesse apresentar conseguise dessa vez mitigar a humilhação que fora infligida

a ele quando, diante das palavras de Vivonne, se dera conta da tolice da carta que enviara ao rei. Desta vez a

imaginação dele agiria no sentido pessimista e podia arrastá-lo ao desespero.

Assim, conquanto avistasse a fumaça que saía da casa, não se sentia menos preocupada ao se aproximar da cerca

que rodeava o jardim. A residência isolada nas planícies de Abraão tinha um único andar, de janelas fechadas. Só as do

térreo tinham sido abertas, naquela mudança apressada. Das cozinhas, ouviu cortarem achas sobre um cepo.

Começou dando uma volta em torno da casa, para descobrir as janelas do salão ou do apartamento onde o

emissário do rei se trancara para esconder o próprio desgosto. Ao aproximar o rosto de uma vidraça atrás da qual

adivinhava o clarão de uma lareira, o que temia ver eram os pés e as pernas de um cadáver pendurado às vigas do

teto e balançando à altura de seus olhos. Soltou um suspiro de alívio. Chegara a tempo. O Sr. de Bardag-ne

estava sentado numa poltrona, não longe do fogo.

No entanto, a penumbra do aposento não deixava ver a expressão do seu rosto. Sua atitude era de um homem

prostrado, mas tudo indicava que ainda não havia engolido nenhum medicamento fatal. Adivinhava-se que ele

meditava tristemente, oferecendo a imagem do que seria doravante a existência daquele funcionário

desafortunado, vivendo os dias de uma desgraça solitária, no fundo de sua província. Alguém deve ter batido à

porta, pois Angélica o viu levantar a cabeça ligeiramente. Entrou o criado, trazendo um castiçal. Depois de depô-

lo sobre uma mesa, quis colocar mais algumas cobertas no leito preparado às pressas. Angélica viu que Bardagne

o dissuadiu, desejando ficar sozinho. O homem ofereceu-se para ajudar o amo a tirar as botas e a desembaraçar-

se do boldrié e da espada. Novamente Nicolau de Bardagne o afastou, impaciente.

Quando o domético se retirou, Angélica voltou até a fachada da casa e entrou. O criado tinha retornado para os

fundos e ela o ouviu falar com o outro serviçal, que rachava lenha.

Angélica se encaminhou até o fundo do vestíbulo, onde se abria a porta do apartamento. Ao vê-la em pé à sua

frente, Nicolau de Bardagne não esboçou reação: Os movimentos das labaredas acentuavam-lhe as sombras das

feições cavadas. Envelhecera dez anos e tinha os olhos melancólicos.

Angélica tirou o manto e as luvas, que atirou a um canto da mesa. Como ele não a convidasse a sentar-se,

procurou com os olhos uma cadeira, mas ele a imobilizou com um brusco sobressalto.

— Não se aproxime de mim — disse, em tom feroz. Depois, mais sombrio:

— Maldito seja o dia em que a conheci!

— O que tenho eu a ver com esse duelo de que acabam de me informar? — indagou Angélica, conhecendo

muito bem a resposta, mas não querendo deixar-se envolver logo de saída nas disputas daqueles, insuportáveis

cavalheiros.

— Você sabe! E não me admira que tenha a ousadia e a maldade de vir juntar suas zombarias às dos outros.

— Quem zomba de você?

— O Duque de La Ferté.

— Você lhe deu uma lição. Está quites. Quanto a mim, nunca zombei de você.

— Ah, com efeito! — exclamou Bardagne, com um sorriso amargo. — Acha que o que ele me disse, e que me

revelou a que ponto você me desdenha, algum dia se apagará de minha memória? Ele me contou que você, a

quem eu imaginava de condição humilde, conforme você me deixou crer, foi uma das grandes .damas de

Versalhes. Que frequentava a corte sob o nome de Sra. du Plessis-Bellière, que era viúva de uma grande

personalidade dessa família aparentada aos Conde. Contou-me que foi amada pelo rei... e disse-me também que

você era a rebelde a respeito de quem o rei me falou. A Rebelde do Poitou... E eu! Eu! Não escrevi ao rei, em

Tadoussac, uma carta em que afirmei a La Rey-nie que você não podia ser essa mulher de maneira alguma? Con-

fiei a carta ao Sr. de Luppé, comandante do navio de guerra Mirabelle, que prosseguiria para a Europa. O rei,

portanto, já leu o meu relatório e entendeu a extensão de minha imbecilidade e engenuidade.

— Não faça tempestade em copo d'água! Quem não comete equívocos?

— Minha carreira está acabada, liquidada.

— Você prestou outros serviços e provou suas qualidades de inúmeras maneiras. Não está enviando ao Sr.

Colbert o trabalho magnífico que redigiu durante o inverno, um relatório completo sobre o estado atual da

colónia, suas necessidades e seus recursos?

— Atirei tudo ao fogo — disse ele, com um gesto em direção da lareira. — Pouco me importa a colónia. Que

pereça ou sobreviva! Pouco me importa o Sr. Colbert e o relatório que eu preparava para ele!

— Que pena! Você é demasiado impulsivo. Poderia ter atraído a atenção do ministro...

— Pouco se me dá! Está tudo acabado. Apresentarei minha demissão ao rei e me retirarei para minhas terras.

— Nada disso! Você não pode retirar-se assim. É tão apegado à função pública e ao serviço do rei!

Ele meneou a cabeça.

— Não! Está tudo acabado. Eram só futilidades. Voltarei ao Berry..

— Ânimo! — disse ela, agastada de ver-lhe aqueles ares de enfermo lânguido. — Seria de crer que foi você o

ferido e não o duque!

Nicolau de Bardagne fitou-a com uma acuidade de ave de rapina.

— Ele pode cobri-la de beijos... E Desgrez... E o rei... E eu não passo de um fantoche!

— No entanto, se foram apenas beijos, você não tem de que queixar-se.

— Nenhum homem pode ser mais ridicularizado do que eu fui. Agora entendo o sorriso sardónico do Sr.

Francisco Desgrez quando, ao lhe falar da paixão que você me inspirou, lhe disse: "Eu chegaria a ponto de me

casar com ela". Qual! Você era a Rebelde do Poitou, e eu, nesse tempo, seguro da sua inocência, redigi

pessoalmente três folhas, evitando ditá-las a meu secretário a fim de que nada transpirasse, e me desmancho em

protesto para garantir de mil maneiras a Sua Majestade que de modo algum a mulher que vive com o Conde de

Peyrac, esposa ou concubina, acerca de quem Sua Majestade me incumbiu de conduzir uma investigação, pode

ser a fidalga que empunhou armas contra o soberano e a quem o rei procura... Enquanto escrevo isso, sorrio.

Afinal, não tenho certeza? Eu conheço a mulher que acompanha o Conde de Peyrac... E uma humilde criada, a

quem tive ocasião de ajudar em La Rochelle, uma mulher que, embora católica, servia na casa de huguenotes,

apesar das proibições proclamadas...

— Você escreveu-lhe tudo isso?

— Sim...

— Senhor! — gemeu ela, aflita.

— O que não lhe contei — prosseguiu Bardagne, que fazia seu relato no tom monocórdio de um salmo fúnebre —

é que eu estava apaixonado por essa mulher...

— Teria- sido o cúmulo!

Angélica conteve com dificuldade uma intempestiva alegria diante do rosto devastado do infeliz missivista, que

continuou rondando as perspectivas deprimentes acarretadas por sua lamentável carta.

— Talvez o rei já o soubesse.

— O quê?

— Quem você era... Ou desconfiasse e quisesse apenas que eu o confirmasse.

Continuou refletindo, e cada palavra da carta ao monarca o queimava como ferro em brasa, pois imaginava o rei a

lê-las, desconfiando, por sua inépcia, de uma intenção dissimulada de enganá-lo ou, pior ainda, troçar dele.

— Vão cortar-me a cabeça!

Depois, mudando de ideia:

— Não, não se corta a cabeça de uma criatura tão lamentável! Hão de enviar-me às galés! Nem isso! A palha úmida

dos calabouços da Bastilha... O que estou dizendo! As masmorras do Châtelet! É isso que me espera! Mas o pfor de

tudo — prosseguiu, após um momento de silêncio — é compreender como você riu de mim em Tadoussac. Também

não aproveitou o Mirabelle para enviar uma mensagem à Europa? Ao Sr. Desgrez, aquele policial infame? Não é

verdade?

— Sim.

— Você me traiu!

— E no quê?

— Eu lhe havia contado que esse tortuoso policial agiu de maneira inconcebível em relação a mim. Pior ainda do

que imaginava, pois, deixando-me crer que me escolhia e me recomendava ao rei por meus méritos, ele me enviou de

propósito para o Canadá, porque supunha que eu a encontraria aqui.

— Mais um motivo para eu retomar contato com ele, visto que suas deduções a meu respeito se revelavam corretas.

Suas confidências naquela noite em Tadoussac provaram-me que se debatia nosso destino em Paris. Ocupavam-se de

nós. Chegara o momento de indicar em que direção desejávamos que os acontecimentos evoluíssem, pois, a

partir do momento em que se ressurge à tona, é preciso cuidar para se dar. a conhecer, dissipar mal-entendidos,

não permitir que as más lendas ganhem crédito, fazer que entendam que dispomos de armas e o tipo de armas de

que dispomos. Ele a ouviu, com um muxoxo de asco.

— Como reconheço bem seus cálculos e astúcias! E ao vê-la à minha frente, segura e sem escrúpulos nem

remorsos, como lamento aquela noite nevoenta em que vi descer de uma charrete uma criatura frágil e miserável,

toda trémula, de olhos baixos, segurando nos braços uma filha bastarda que ela, envergonhada, esquivava aos

olhares e às perguntas normais que era meu dever fazer-lhe acerca de sua situação, de seu motivo para encontrar-

se na cidade.

Angélica ia perguntar de que criatura miserável ele falava, quando lembrou que Bardagne se encontrava

presente na noite em que chegara a La Rochelle com mestre Berne, que, por caridade, obtivera sua liberdade da

prisão de Sables-d'01onne. Trazia Ho-norina nos braços e ainda sentia a arder-lhe nas costas, sob o vestido, a

chaga da flor-de-lis com que o carrasco a marcara a ferro.

Naquela época, é verdade, ela tinha o hábito de manter os olhos baixos, a fim de que não lhes notassem a cor,

que fora anunciada como sinal de identificação.

— Como lamento aquela noite, aquela hora — suspirou Bardagne. — No entanto, eu não sabia que minha

destruição se encontrava a caminho. Eu era um homem feliz, pouco acostumado a me debruçar sobre mim

mesmo. Não percebi nada. Gostava das mulheres, das honras, da boa vida... Minha vida, de repente, porque

topou com o brilho de seus olhos, tomou outro rumo. Logo foi tarde demais. Eu dizia comigo mesmo, como um

ado lescente em sua primeira aventura: "Então o Amor é isso..."

Sob o seu olhar abatido, que parecia acusá-la, Angélica lembrou-se das reflexões do Padre de Maubeuge:

As mulheres que receberam o apanágio da beleza conhecem um destino diferente. Vivem algo singular. Podem,

como que por descuido, por sua simples aparição, desviar o curso de uma vida..."

— A partir daquele momento — continuava ele —, foi tudo loucura, demência, inconsequência. Passei a ser um

polichinelo, cujos cordéis seus cúmplices puxavam, dirigidos por suas mãos hábeis. Você teve ter rido muito,

quando, em Tadoussac, a censurei porque sé havia deixado perverter para se casar com um gentil-homem

aventureiro, tentada que foi por suas riquezas e também para se alçar a uma condição mais elevada na*sociedade.

Sou inteligente o suficiente para entender que, em vista de sua nobreza de nascimento, desposar um pirata não

representava uma ascensão, mesmo que ele viesse coberto de ouro e pérolas. Representava, pelo contrário, um

rebaixamento... Caso o pirata não fosse, também ele, de alta linhagem! Pois sob o nome dele se ocultava o Conde

de Peyrac, familiarizado com a corte. Assim, tudo se combinava sob a máscara da comédia que você me

apresentava. Que bonito, não?

— E ainda mais complicado do que isso, meu pobre amigo — suspirou ela.

— E você se diverte! Brinca com corações assim como um malabarista brinca com suas tochas!

Angélica viu que a cólera o arrancava da apatia. E também começou a enervar-se.

— E eu podia contar-lhe minha vida? — exclamou. — Entre duas portas? duas detenções? dois navios? dois

desembarques? Podia, em Tadoussac, impedi-lo de lançar-se à pena para escrever ao rei o que lhe passava pela

cabeça? Você nunca ouve nada do que lhe digo. Nunca prestou atenção ao que tentei explicar-lhe quando isso

não correspondia a seus desejos. No fundo, Nicolau, sempre foi dificílimo contar-lhe a verdade... Houve vários

motivos para isso... Com frequência nos vimos numa situação que tornava perigoso enunciar a verdade, perigoso

para você, para mim... E também porque você é demasiado sensível, demasiado generoso, demasiado desejoso de

que as coisas sejam conforme as sonha. Sente-se que essa verdade vai abatê-lo, liquidá-lo, como neste momento,

por exemplo... E calamo-nos, mentimos e omitimos para poupá-lo. Sim, Nicolau! É muito difícil contar-lhe a

verdade, sobretudo porque você não quer ouvi-la.

Mas Nicolau de Bardagne não pareceu abalado pelas admoestações dela.

— É inútil procurar desculpas falaciosas para os ludíbrios — replicou. — Suas cartas foram reveladas, e tudo

se torna claro para mim. Admirei-me de que você não apreciasse o oferecimento que lhe fiz, de chegar ao

casamento. Para mim seria um matrimónio abaixo de minha classe, que eu estava disposto a assumir por amor a

você. Agora entendo sua surpreendente recusa. Você me desdenhou porque me considerava de linhagem

demasiado baixa para si mesma. Quando se foi a esposa de um grande do reino, quando se foi amante do rei...

— Quando se teve a cabeça a prémio e quando se é procurada por todas as polícias do rei... Sim! Pode-se ter

motivos para ficar de boca fechada...

E como ele fizesse uma pausa em sua diatribe, desconcertado que ficou com a réplica, ela prosseguiu:

— Deixe o rei em paz! Ele não obteve nada de mim, e nunca fui sua amante.

— Por quê?

— Ele não me agradava.

Disse isso de modo altivo e despreocupado, como que para lembrar que no domínio do amor não existe rei e a

mulher é a única soberana.

Bardagne foi chocado como de um crime de lesa-majestade.

— Que mulher é você, afinal, para permitir-se resistir ao rei assim?

E vendo-a a rir:

— Você não respeita nada! — exclamou.

Ela continuou a rir, fitando-o com um misto de ternura e insolência. Ele não pôde deixar de achá-la admirável e

perturbadora, e voltou a mergulhar em seu desespero.

— E, foi a você — murmurou — que tive que encontrar no momento decisivo de minha vida! Sob aquela coifa

inofensiva de criada laboriosa! Todas as aparências da modéstia, da diligência, da virtude mais severa. Amei-a

como homem algum jamais amou uma mulher.

— Todo mundo diz isso.

— Para mim foi verdade! E na medida em que me acusa de idealizar a vida, reconheça

que não nasci para tais tormentos, nem para ser vítima de farsa tão perfeita e conhecer desilusão tão completa. Você me

destruiu.

Na voz dele vibrava um sofrimento tão pungente, que ela se sentiu impelida na sua -direção. Mas Bardagne se

aprumou de repente.

— Não se aproxime! — intimou de novo.

Seus olhos claros brilhavam com um fogo intolerante.

— Desejei-a demais! Minha vida consumiu-se em delícias e dores. Durante muito tempo quis acreditar que o que

você me inspirou significava algo, e quando a encontrei pareceu-me que a resposta me seria dada... Mas, mais uma

vez, foi para o meu mal. Agora vejo-a em tudo o que você tem de perigoso. De destrutivo. E você me causa horror.

Vá embora!

Com isso Angélica perdeu a paciência e se deixou arrastar pelos turbilhões de sua indignação diante de tanta

injustiça.

Era evidente, disse com frieza, que o Sr. Bardagne tinha a dicção, o gosto pelo verbo e o sentido da tragédia. E que

sabia muito bem acusar os outros por todos os dissabores que atraía para si mesmo, sob os pretextos de uma paixão

que ela lhe teria pretensamente inspirado, ainda que sem nenhuma provocação de sua parte. Mas, apesar das

recordações enternecedoras dele e de seus remorsos, ela preferia ser o que era agora e não mais uma mulher de olhos

baixos. Ele a conhecera miserável, perseguida, acuada, e guardava disso uma nostalgia lancinante, mas tivesse a

bondade de permitir a ela não compartilhar de sua nostalgia... Pois era um direito seu não ter querido continuar

miserável, assim como era direito seu erguer altivamente a cabeça, agora que recuperara a própria posição, como ele

lhe censurava. E que sua filha já não era considerada uma bastarda, mais desprovida e sem defesa, em sua inocência,

do que um cão sarnento... E que agora a criança sem nome se chamava Honorina de Peyrac. E que agora a

bastardinha de La Rochelle frequentava as ursulinas, rodeada de amizades. Seria inútil que ele lhe apelasse à

consciência para que tivesse saudade de tudo isso. E azar dele, Bardagne, se insis tia em considerá-la uma criminosa

que desejara sua morte, quando ela sempre nutrira amizade por ele. Pois bem: passaria muito bem sem a amizade

dele! Ele não podia imaginar que ela seria afetada por isso a ponto de lamentar já não ser aquela criatura

deplorável que ele tanto lamentava, provando assim que nunca tivera amor real por ela, pois não valia mais do

que todos os outros homens que só podem amar as mulheres quando elas se encontram à sua mercê e sem defesa

contra sua tirania...

Quando parou, sem fôlego, entendeu, só pelo rosto dele, que falara em vão e que, ao lembrar-lhe seu destino,

ao invocar o direito de ter gostos pessoais, de fazer as próprias escolhas, só conseguia aumentar o sofrimento

dele, demonstrando-lhe quão pouco espaço ele ocupara em sua vida amorosa. Era mínima a parte que lhe

concedia! Feliz dele se ela não o afastava entediada, como ao mais importuno dos insetos a perturbar-lhe o

sossego.

Ele estava muito pálido.

— Ama-se! — murmurou como se gemesse um surdo queixume. — Ama-se! E o amor vai-se... Vai-se para

outros que já receberam todas as respostas, ou para quem ele não é tão importante. Como esse amor nos invadiu

todo o ser e não podemos sobreviver sem ele, acreditamos que nos é destinado. Um dia é preciso entender que se

distancia... Um dia é preciso admitir que não foi mais do que um raio de sol que passou, o roçar de uma estrela, e

às vezes, nada... E que não fomos sequer vistos...

— Mais uma vez você se deixa levar por sua imaginação, Nicolau de Bardagne — protestou ela. — Você sabe

muito bem que foi visto por mim... E mais do que isso até...

— Vá-se! — repetiu ele, de dedo estendido para a porta.

Angélica apanhou as luvas e o manto.

— Muito bem! Vou embora! Voltarei quando você estiver mais razoável!

Saiu. Depois de atravessar o jardim às escuras, parou diante da cerca, mirando à sua frente a vasta extensão das

planícies de Abraão. Um vento fresco descia em longas lufadas do cume do monte Carmel.

O crepúsculo e as nuvens de cores torturadas e fulgurantes do poente haviam cedido lugar a uma noite serena,

límpida e preta, exceto no ponto, no firmamento, em que a lua brilhava, já alta.

Algumas nuvenzinhas muito brancas, naus, navezinhas nacaradas, isoladas, separadas umas das outras, navegavam

lentamente, arrastadas num mesmo movimento insensível. A terra parecia refletír o céu preto e branco na alternância

das faixas de neve nos flancos das vertentes e no fundo dos vales, contrastando com as zonas tenebrosas do solo

descoberto.

"Pobre Nicolau", pensou ela, pondo-se a caminho. "Por que está tão magoado comigo?"

Entristecia-a que ele se mostrasse tão aborrecido com ela. Mas voltaria no outro dia e insistiria. Saberia demonstrar-

lhe que nunca procurara enganá-lo nem fazê-lo sofrer com toda a astúcia maldosa que ele lhe atribuía, Haveria de

convencê-lo da estima e do afeto; que sempre nutrira por ele. Fá-lo-ia entender melhor que ele fora vítima sobretudo

de seus próprios cargos oficiais, pois, representando o poder tanto em La Rochelle quanto no Canadá, ela, a pária,

se via na obrigação de desconfiar e proteger-se contra ele.

Meditando nos consolos que prodigalizaria já no dia seguinte ao seu caro Bardagne, apaixonado retraído e

impenitente, mas cuja constância e desejo febril acabaram per perturbá-la a longo prazo, e cujo sentimento profundo

e indefectível ela percebia lhe faria falta, Angélica subia calmamente a vertente das planícies, que a conduzia até um

pouco abaixo do monte Carmel. Dali desceria rumo à cidade pelo jardim do governador, e depois pela Place

d'Armes.

Se não viesse andando de olhos fitos na chão, tê-los-ia avistado já há um momento. Mas não teria feito muita

diferença para o perigo que a ameaçava, pois encontrava-se em pleno centro das planícies desertas, fora do alcance da

voz e de qualquer socorro. Ainda assim, eles devem ter-se divertido bastante, ao verem-na encaminhar-se

tranquilamente na direção deles, mergulhada em seus devaneios...

De súbito, levantando os olhos, descobriu-os delineando-se no alto do outeiro que ela estava subindo. Três silhuetas

masculinas desenhavam-se em preto contra o luar.

A distância já era demasiado curta para que tivesse qualquer dúvida acerca da identidade deles. Assistidos pelo

lacaio de ombros largos, que segurava sua adaga, o Barão de Bessart e o Conde de Saint-Edme a aguardavam, de

espada na mão.

CAPITULO XI

Os assassinos espreitam na noite — A ternura de um coração agradecido

Maldizendo a própria despreocupação, Angélica disse consigo que devia ter previsto aquela emboscada. Ao deixar

a morada do Duque de Vivonne, poucas horas antes, e cruzando com o olhar odioso dos comparsas dele, pensara:

"Assinei meu decreto de morte!" Eles a tinham seguido e esperavam-na longe da cidade, no seio daquele deserto onde

os chamados dela se perderiam sem esperança alguma de serem ouvidos."

Seu coração disparou.

"Ele me disse que portasse pelo menos uma arma!"

— Assassinos! — gritou, feroz, como o animal acuado que cospe a própria cólera ou o índio que solta um grito de

guerra para assustar o inimigo.

Já dera meia-volta e desabalava ladeira abaixo. Surpresos, eles de início se lançaram atrás dela. Mas ocorreu um

incidente que permitiu a Angélica colocar mais rapidamente uma distância maior entre si e os perseguidores. Tropeçou

numa placa de neve, caiu, e o manto, escorregando no gelo, arrastou-a de roldão até a base da vertente, aonde chegou

com alguma violência. Ao se levantar, receou haver luxado o tornozelo, e deu alguns passos incertos. Viu que, diante

de seu súbito desaparecimento ao longo da placa de neve, os três homens tinham estacado, hesitando em seguir o

mesmo caminho. Quando a avistaram lá embaixo, reiniciaram a caça, contornando a neve. Angélica reuniu todo o

fôlego para lançar um grito:

— Sr. de Bardagne! Socorro!

Agarrou as saias a mancheias e reencetou-a corrida, de olhos fitos na massa escura, salpicada de uma luz

avermelhada, que, ao longe, lhe parecia ser a casa do enviado do rei.

Ouvia logo atrás o galope surdo de botas sobre o solo esponjoso a aproximar-se. Adivinhando os perseguidores

logo atrás, a ponto de alcançá-la, deu meia-volta. Enfrentava-os de mãos vazias. Com os olhos, procurava em vão uma

arma, uma pedra que fosse, para atirar na direção deles, como se faz para afastar os lobos. Mas não havia nada, nem

mesmo um resto de neve ali perto, para que ela executasse o gesto risível de atirá-la nos olhos deles. Vendo-a à sua

frente, esperando-os, o Barão de Bessart e o lacaio, que chegaram primeiro, estacaram, sem fôlego. Postaram-se a

alguns passos, observando-a.

O barão espreitava com uma alegria maldosa, fazendo hora para que o velho Saint-Edme pudesse alcançá-los. O

conde, de espada em riste, grotesco rei Lear a delirar ao luar, corria com pernas tortas de fantoche desarticulado,

com os olhos cintilando na antecipação do prazer de matar...

Reunindo forças, Angélica tornou a soltar um grito lancinante.

— Sr. de Bardagne! Sua espada! Sua espada!

— Tarde demais, minha cara — disse Bessart. — O lugar é deserto. Ninguém pode ouvi-la. Você vai morrer!

— Mas... O que foi que lhes fiz, miseráveis? Como ousam perpetrar esse crime contra mim? Haverão de prestar

contas!

— A quem?

— Ao rei! — lançou ela, sabendo que a evocação podia fazê-los tremer.

— Que o Diabo nos livre de deixá-la chegar perto do rei! — rosnou ele. — É exatamente por isso que estamos

aqui. Para impedi-la de chegar perto do rei definitivamente.

Deu um passo à frente.

Ela recuou, não descravando os olhos deles e ainda mantendo-os a alguma distância pelo brilho imperioso de seus

olhos verdes, que ela sabia ser terrível e inquietante para subjugá-los por um instante, deixá-los desconfiados, pouco

certos da vitória. Mas eles logo se tranquilizaram, vendo-a indefesa e, enfim, visivelmente à sua mercê.

O velho odiento chegava arfando, claudicando, e a precedê-lo como uma matraca diabólica, ouvia-se-lhe a

casquinada senil.

— Hê! Hê! Hê! Hê! Tarde demais, minha bela! Tarde demais! Hê! Hê!.

— Você vai morrer — repetiu o barão, com os olhos luzindo de uma fria resolução. E avançou mais um passo,

assim como o lacaio.

Queriam cercá-la, pois não sabiam o que ela lhes reservava. Desconfiavam. A atenção que prestavam a ela,

regozijando-se, antegozando os últimos instantes que iam pô-la à disposição deles, impediu-os de ver abater-se

sobre eles, como uma águia, como um raio, o Conde de Bardagne, de espada em riste.

Caído do céu, surgiu de repente entre eles. Com um golpe, abriu o peito do lacaio, que tombou maciçamente

para trás, mal tendo tempo de soltar um suspiro de agonia.

Voltando-se, Bardagne terçou armas com Bessart. Em alguns passes, mandou longe a arma do barão, que não

era muito forte na esgrima, e cravou-lhe a espada, até a guarda, no ventre, para logo retirá-la, provocando um jato

de sangue, e atravessar-lhe a garganta com a ponta acerada do metal.

Subiu alguns passos para alcançar Saint-Tidme, que parara e se debatia, impotente, como um morcego

ofuscado. Bastou roçá-lo para que desabasse no chão. A golpes desferidos com o mesmo ardor justiceiro,

Bardagne imobilizou-o, transpassando-o no ventre, no coração, na garganta, atingindo-o em todos os pontos mor-

tais, como se temesse não conseguir liquidar de fato a besta peçonhenta.

Afinal, ofegando, recuou e esperou, vigiando os três corpos abatidos para surpreender um último espasmo de

vida.

Dos três, era o Conde de Saint-Edme, o mais ferido, quem ainda se mexia. De repente levantou a cabeça

hedionda, de onde a peruca escorregara, revelando um crânio depenado de abutre. O olhar vítreo embaciou-se-

lhe. Vomitou um jorro de sangue e caiu para trás, rijo e sem vida.

O criado do Sr. de Bardagne e o carregador chegavam correndo nas pegadas do amo, um armado de pistola, o

outro, de bastão.

— Aqui estamos, senhor — gritava o doméstico. — Precisa de ajuda?

Quando chegaram perto, Bardagne apontou-lhes com um dedo autoritário os três cadáveres. Depois, indicando

ao longe a borda da falésia, no limite sul das planícies de Abraão, ordenou:

— Amarrem-lhes uma pedra ao pescoço e joguem-nos ao rio.

Ao luar, o gentil-homem parecia inteiramente lívido. Branco de rosto, branco de olhar, branco de uma raiva

desmedida que irradiava dele:

— No rio! Joguem a carniça no rio!

— Pois sim, senhor!

— Dez escudos a cada um, pelo trabalho... e não chamem a atenção! Mais dez escudos pelo seu silêncio...

— Sim, senhor, ao seu serviço e ao serviço do rei — respondeu o criado, que sempre se orgulhara muito de

pertencer à casa de um emissário do rei em missão especial, e a quem não desagradava em absoluto desempenhar

um papel em execuções sumárias e secretas.

Quanto ao carregador, um marujo que ficara em Quebec porque curava uma bebedeira num canto qualquer

quando seu navio, o último, zarpara, era um sujeito que já vira outras. Por vinte escudos, seria capaz de esquecer

que matara a própria mãe.

Logo os dois homens puseram mãos à obra, agarrando rapidamente os corpos inertes pela gola ou pelos pés e

começando a arrastá-los até a casa.

A terra beberia o sangue.

Depois de vê-los distanciar-se, Nicolau de Bardagne voltou-se para Angélica e paralisou-se, acreditando-a

tomada de loucura, pela expressão de êxtase que lhe viu no rosto.

— Você está rindo!

— Não é nada — disse ela. — Não, não estou rindo, mas que prazer, não é? Que prazer!

—. Sim — entendeu ele. Olhou a ponta da espada, que brilhava ensanguentada sob a lua. — Sim... é verdade!

Também senti um prazer... quase luxurioso, destruindo-os...

De cenho franzido, aproximou-se dela.

— Reconheci os homens que a atacaram. Pertencem à casa do Duque de La Ferté. Devo entender que foi ele

quem os enviou para matá-la?

— Não! Não! — exclamou ela, afoita, pois diante da expressão de Bardagne, ao fazer a pergunta, ela o adivinhou

capaz de correr imediatamente até Quebec, arrombar a porta da casa de Vivonne ferido e degolá-lo no sono. — Não!

Não foi ele... Garanto... Estes facínoras agiram sem o conhecimento dele... Eles... Eles me disseram... Queriam

matar-me porque... Temiam que... que eu os denunciasse... ao... ao...

Teve que interromper-se, pois sua voz, sob o efeito do frio e do susto, entrecortava-se. Embainhando a espada, o

Conde de Bardagne lançou-se para ela.

— Perdoe-me! Você está desfalecendo! Sou um animal!

Estreitou-a contra si.

— Graças a Deus pude chegar a tempo. Eu tinha saído da casa para acompanhá-la com os olhos através da sebe.

Ouvi seus chamados. O vento os levou até mim...

Abraçava-a.

— Ah, meu amor! Que terror ante a ideia de que uma infelicidade possa ocorrer-lhe! O que seria do mundo se você

desaparecesse?

Amparando-a, levou-a de volta para a casa. O vento amainou, assim que atravessaram a cerca, e, no vestíbulo,

Angélica já se sentia melhor.

Do fundo, ouviam-se os dois criados, que tinham vindo buscar cordas e que, enquanto amarravam solidamente

os corpos de que estavam encarregados, detalhavam a tarefa: — Primeiro a gente lida com o grandão... O velho não

pesa nada. Com duas viagens a gente resolve isto... É melhor levar a carroça...

Nicolau de Bardagne afastou-se por um instante e Angélica ouviu-o dizer aos criados:

— Não lhes tirem nem a roupa nem as jóias. Não quero que nem um único objeto receptado possa pôr alguém na

pista deles. Receberão mais dez escudos de compensação pelo butim. Mas saibam que se um de vós me desobedecer, e

isso, mais dia, menos dia, é coisa que se fica sabendo com certeza, mesmo que seja conservando um anel ou um

lenço, há de pagar-me com a vida.

— Muito bem, senhor — responderam os dois em uníssono.

No quarto-biblioteca, Angélica pusera mais lenha sobre as brasas. Nicolau de Bardagne entrou, foi até ela,

ajudou-a a tirar o manto enlameado. Retirou o boldrié e jogou-o com a espada a um canto da mesa. Ouvindo a

batida do estojo sobre a madeira, Angélica reviveu a cena que acabava de desenrolar-se nas planícies de Abraão,

o brilho daquela espada brandida, o sangue que jorrava. De repente notou que chorava, não de medo, nem de

horror, mas de alegria, daquela alegria irradiante e brutal que a acometera, enlevara, e que ela não conseguira

extravasar, tão contraída sentia a garganta — mas era um sentimento de justiça, de vitória, triunfo, cuja violência

a sufocou quando viu os três celerados trespassados pela lâmina cintilante, rodopiante, quando viu o horrível

Saint-Edme abatido como um sinistro vampiro flácido por entre os panos do próprio manto.

Com que fúria Bardagne os liquidara! Com que frenesi! Ela ouvira o ferro penetrar-lhes as carnes, os arquejos

e os estertores, e o que a transtornara naquele momento fora a consciência de estar assistindo a um momento de

justiça inebriante, a um ato de punição merecida, que até então parecera irrealizável, mas que se executara e que

ela pudera presenciar com os próprios olhos.

Destruído! Trespassado! Imundo! Afinal! De uma vez por todas... Até então, todo espetáculo de violência,

mesmo justiceira, fora penoso para ela, oprimira-a, como se se sentisse responsável por esse mal do mundo.

Desta vez, porém, era diferente. Porque ela estava diferente.

Agarrou-se aos ombros do gentil-homem.

— Sempre gostei de São Miguel — disse, entre dois soluços —, mas agora o compreendo. Não se pode

deixar... sempre... que eles sejam os mais fortes...

Rodeou o pescoço de Bardagne com o braço e ocultou o rosto contra a pele dele, procurando-lhe a tepidez de

homem robusto.

— Eu deveria tê-lo escolhido como santo de devoção... São Miguel...

Ele não entendia nada do que ela balbuciava a propósito de São Miguel. Mas sentia-a aninhar-se em seus

braços, e, quando ela levantou para ele os olhos brilhantes de lágrimas felizes, Bar-dagne leu naquele olhar uma

ternura que o deixou desnorteado.

— Você tem... Tem de beber alguma coisa — disse ele —, para se aquecer, recompor.

Mas era ela que o retinha e lhe atraía o rosto e lhe tomava a boca. EÍe, então, pôs-se a abrir-lhe a blusa,

querendo expor-lhe os ombros, em gestos de estupro.

Ela recuou, quis repeli-lo.

— Ouça, Nicolau...

Ele empalideceu.

— Não! Não! Você brinca com meu desejo... Você me enlouquece com essa taça junto aos meus lábios. E

depois se esquiva novamente...

— Tenho que dizer-lhe...

— Não! Desta veznão a deixarei lograr-me.

— Mas ouça-me, Nicolau de Bardagne! — gritou ela, batendo o pé. — Você me salvou a vida, mas não vê que

estou esgotada?... Fique tranquilo. E ouça... Eu fui marcada com a flor-de-lis! Está ouvindo? Marcada com a flor-

de-lis!

Ele examinou-a com olhos enlouquecidos e levou algum tempo a compreender.

— Sim — insistiu ela —, marcada com«ferro em brasa, como os assassinos, as prostitutas, as ladras.

— Como rebelde contra o rei?

— Sim!

Pegou a mão de Bardagne e levou-a até a axila.

— Aí! Está sentindo?

Com a ponta dos dedos, ele reconheceu, sobre a carne acetinada das costas, a abjeta cicatriz: o lacre da flor-de-

lis. Ela estremeceu ao roçar daquela mão fresca.

— Reconheceu a flor-de-lis? Ele, de voz embargada, indagou:

— Por que me revelou isso agora?

— Para que não tenha que descobrir por si mesmo, daqui a pouco...

Ele-cravou-lhe um olhar vacilante, incrédulo. Os lábios tremiam-lhe. Susto diante da revelação da marca

terrível? Ou alegria desmedida de ler nas feições dela, transtornadas, uma perturbação igual à sua, uma

promessa...

— Foi... Foi por isso — sussurrou ele, numa voz rouca, quase moribunda — que se recusou a mim em La

Rochelle?

Ela sequer pensara nisso. Mas logo concluiu que só podia aquiescer. A sugestão, lógica afinal de contas,

acalmaria os ferimentos que ela outrora infligira ao amor-próprio dele com os seus desdéns.

— Sim! Que outra coisa fazer? Eu era uma pária e você era o tenente do rei.

— Você fez mal! Não devia... Deveria... ter confiado em mim... Ele puxava-a para si, abraçando-a a ponto de

quebrá-la em duas. Lentamente foi deslizando diante dela, pondo-se de joelhos.

— O minha bela criada!

Um soluço vibrou-lhe na garganta. Ela sentiu os braços dele, duros como um círculo de ferro à volta de seus

quadris. Na extremidade do ventre, a investida daquek fronte viril inclinada diante de sua feminilidade, qual

adorador diante do ídolo, causou-lhe uma vertigem. Os dedos dela crisparam-se nos cabelos do homem

ajoelhado. Mas ao invés de repelir aquela cabeça pesada e vencida, apertava-a contra si.

Com a boca ardente, ele a levara ao prazer. Agora, iluminado pelo fogo, que esmorecia, avermelhando,

ajudava-a a terminar de despir-se. Nu e em todo o vigor de uma necessidade carnal que não se saciara de todo,

ele tinha gestos lentos de sonâmbulo, mas suaves, cheios de devoção.

Lentamente conduziu-a ao leito, e deitaram-se. Olhavam-se, oprimidos por aquela liberdade total da carne, dos

membros nus, que podiam enlaçar-se e unir-se seguindo os impulsos de um desejo que, por já não ser restringido,

assustava-os. Deixavam que esse desejo se intensificasse, subindo em saltos ágeis, como um animal sendo

aprisionado pouco a pouco. As mãos maquinais de ambos, acariciando, eram-lhesmais indiferentes do que os lá-

bios. Beijaram-se com um daqueles beijos devoradores cuja febre se apoderara deles com frequência e que

finalmente podiam trocar sem receio de frustração, e que finalmente podiam prolongar até os limites de seu

fôlego e de suas forças.

Longamente, sofregamente, avidamente, beijaram-se, enquanto seus membros se atavam num abraço cada vez

mais convulsivo, até a dor, até o paroxismo. Enquanto de olhos fechados, levados num maremoto às escuras, eles se

abandonavam aos gemidos profundos e lascivos que lhes arrancava a efervescência interior de um gozo que eles nunca

haviam imaginado pudesse ser tão completo entre eles.

— Você é leal! Como você é leal! — dizia Nicolau de Bardagne na noite.

O que queria dizer? Que, depois de atravessada a última fronteira, ela se entregava lealmente ao prazer? Por que

não o faria? Sentia-se bem nos braços dele.

A experiência que ambos tinham do amor, e que acabara conferindo a seus gestos uma espécie de familiaridade,

permitiu-lhes entrègar-se a esse amor sem hesitação nem constrangimento naquele primeiro encontro.

Bardagne era um parceiro sem monotonia. Sensual, ativo e impelido pelo delírio que o dominava quando se dava

conta de que era ela, ELA, que estava ali, a quem acariciava, beijava, possuía, alternava crises de sombrio desespero a

sustentar-lhe o ardor amoroso com a ideia de que ia perdê-la e a que ela se comprazia em acalmar com carícias e

palavras ternas, com crises de arrebatamento e alegria que o arrastavam a se deter em cada parcela do corpo dela,

acompanhadas de exigências, que era preciso saciar, de palavras de adoração que a faziam rir. Em pleno discurso, en-

laçados um no outro, mergulhavam no sono como num poço, para despertarem com a carne do outro sob os

lábios, já dominados de novo pelo estímulo desse contato.

Num desses curtos períodos de inconsciência, ela sonhou com homens que a perseguiam para matá-la. Despertou

soltando um grito. Mas ele já estava debruçado sobre ela, a cobri-la de beijos para serená-la.

Deleitada, ela disse consigo que os sórdidos e libidinosos malfeitores estavam mortos. Enquanto ela estava viva.

Recebia no seio de uma noite aliciante as carícias de um homem apaixonado. Haveria sempre amor para ela! Vida!

E os outros não passavam de cadáveres frios, no fundo das águas geladas.

Com um impulso de ternura e reconhecimento pelo homem que estava ali, aninhou-se contra o peito dele, onde

ouvia bater um coração fervoroso.

O rosa tremulo da aurora luzia através da janela. Ao despertar num estado de lânguida euforia, Angélica viu

Nicolau de Bardagne, em pé diante da lareira, a jogar sobre as cinzas quentes da véspera lenha miúda e achas. Na

penumbra, a nudez revelava o que a cabeleira e o bigode castanhos haviam anunciado: uma pele muito branca.

Ele brilhava como mármore quando voltou, mansamente, para se sentar na beirada da cama. Ela se sentou

também, os braços à volta dos joelhos, e ficaram os dois apoiados um no outro, num estado de cansaço fraternal.

Os dedos do enviado do rei acariciavam a marca da flor-de-lis, maquinalmente acompanhando-lhe o contorno,

com uma espécie de voluptuosa piedade.

— Quanto sofrimento — murmurou —, quantas felicidades perdidas por causa de rigores inúteis, quantas

alegrias imoladas a medos sem objeto, quantas injustiças cometidas a serviço dos príncipes! Quando bastaria

amar... amar-se... Por que não enxerguei em tempo? Por que você me deixou aferrar-me aos meus erros?

— Reflita! De que lhe teria servido que eu fosse perturbar-lhe a consciência de funcionário perfeito?

— Sim! É verdade! E julgou-me bem. Eu era um ingénuo, inimigo da realidade, temendo que sua luz cruel

destruísse ilusões que me convinham. Em servir ao meu rei eu via uma espécie de dever religioso, cujo zelo seria

recompensado por cargos mais elevados. Ora, os caminhos que segui eram falsos. Não entendi que, para agradar

em altos círculos e para conseguir melhorar, ainda que pouco, a própria condição, era preciso ser justiceiro,

inquisitivo, e não filósofo e libertino.

Tocada pela tristeza que vibrava na voz dele, Angélica roçou-lhe a face com o ombro redondo e liso. Fazia-lhe

bem sentir a carne de Bardagne contra a sua, e também a calma daquela hora furtiva.

Apoiados um no outro, na fraqueza da própria nudez, Adão e Eva melancólicos, felizes por o serem, trocavam

recordações em frases breves, recordações que as liberdades voluptuosas da noite pareciam ter esvaziado do

conteúdo amargo.

— Fui estúpido. Eu contava com as almas de boa vontade e não com sua sombria intolerância... Os próprios

huguenotes, a quem eu desejava conduzir de volta, para a paz deles mesmos, ao caminho da obediência de Deus

e ao rei, e convencer de que minha amizade e conversas inteligentes bastariam para esclarecê-los, como me

desprezavam... Lembra dos Manigault?

Ela inclinou a cabeça, assentindo.

— Deixei-me seduzir pela formosura e a gentileza da filha mais velha deles, Jenny. Bem longe de honrá-los,

entendo hoje que meu pedido de casamento os escandalizou: um papista impuro a desejar-lhes a filha.

Apressaram-se a casá-la com José Garret, um néscio, mas pertencente à RPR, a Religião Pretendida Reformada...

Apesar da disposição que ele demonstrava no sentido de olhar com mais coragem a face negra da vida,

Angélica não considerou útil informá-lo de que os Manigault tinham emigrado, que se encontravam em

Gouldsboro, menos fanáticos agora, e sobretudo que a pobre Jenny Manigault desaparecera para sempre no

fundo da floresta americana, raptada logo depois do desembarque por uma pequena tribo de índias saqueadores

do Alto Kennebec.

O espírito de Bardagne continuava em La Rochelle.

— E foi então que você apareceu, mais perturbadora e ilusória do que as outras.

— A culpa foi sua, já lhe disse. Porque a seus olhos eu nasci no dia em que me viu pela primeira vez. Surgi de

repente de uma laje das calçadas de La Rochelle, com meu cesto de roupa numa mão e minha filhinha na outra.

Antes de você eu não vivi e nunca me havia acontecido nada. Quanto a meu futuro, só podia determinar-se

segundo seu bel-prazer. Não é assim?

— Sim, você tem razão, minha bela criada. Reconheço meu egoísmo absoluto. Você se impôs a mim de modo

tão completo, que eu só enxergava a você, tal como você era, ali, pelas ruas de La Rochelle. Eu nunca me

questionava acerca de seu passado.

— Graças a Deus por não se haver questionado acerca de meu passado... Se o tivesse feito, eu estaria perdida.

— Eu a teria protegido — disse ele, debilmente.

— Não! Nâo naquela época... Yocê teria ficado horrorizado com meus crimes e me teria entregado à justiça do

rei.

Ele meneava a cabeça suavemente.

— Não! Horrorizado? Talvez! Mas entregá-la? Nunca!

— Baumier o teria feito por você. Ele fuçava em tudo, como um rato. Já havia desconfiado de muita coisa.

Mandou chamar Francisco Desgrez em Paris a fim de me confrontar com ele. Achava que Desgrez me reconheceria

como a Rebelde do Poitou.

E acrescentou, rápido, sentindo-o estremecer à mera menção do nome Desgrez:

— E você... Baumier o havia afastado, a fim de poder prender-me com toda a tranquilidade. Ele sabia que sua

fraqueza por mim lhe arrancaria a presa.

Suavemente, para acalmá-lo, ela lhe acariciava a coxa branca e rija.

— Está vendo? Fiz bem em mentir!

Sob a leve carícia da mão dela, ele gemeu, como que espicaçado pelo aguilhão de um desejo demasiado intenso. E

deitando-a novamente no leito, voltou a tomá-la nos braços e a possuiu, uma última vez, com uma fúria desesperada.

No momento em que se retirava, ela lhe pediu uma arma. Mostrara-se demasiado descuidada com os conselhos de

prudência. Seus inimigos mais perigosos talvez tivessem morrido na noite da véspera, mas ela não queria correr outros

riscos... Ele se ofereceu para acompanhá-la, mas ela recusou.

O dia nascera, ela não desejava ser vista tão cedo na companhia dele. Bardagne lhe preparou uma pistola com

dois canos e lhe entregou uma pequena provisão de pólvora e balas. Ela estava em pé à sua frente, novamente

envergando o vestido de veludo verde e o manto, que o criado escovara.

Levantou os olhos para ele.

— Então? Consolado?

— De sua ausência? Nunca. Da amargura? Talvez... Um dia!

— Em boa hora! Revejo-o, meu caro amigo de La Rochelle, animado, contente de viver.

. Ele balançou a cabeça com melancolia.

— Não! Infelizmente, quando você fala assim, não consigo reconhecer-me... De minha vida insípida e leviana,

você fez uma estranha festa dolorosa e inebriante. Nasci para tais tormentos? Não sei. Mas jamais voltarei atrás.

E agora, há que sobreviver! Que dor!

— Para começar, você vai atravessar o oceano e retornar à França.

— Ah, sim! A travessia... Que coisa medonha! Você tem razão. Eis um excelente derivativo para as penas de

amor. E em seguida será preciso.enfrentar Versalhes...

— Você está sendo muito pessimista quanto a sua posição. Se o rei se tiver mostrado clemente em relação a

nós, no que poderá censurá-lo?

— Ilusão sua... Minha posição não depende da escolha que o rei fará entre perdoá-la ou condená-la. Sejam

quais forem as decisões de Sua Majestade a seu respeito, que se felicite de poder chamá-la de volta ou, pelo

contrário, dei havê-la encontrado para deixar tombar sobre você seu cetro justiceiro e mostrar ao mundo o preço

que devem pagar aqueles que lhe são rebeldes, eu, nessa história, nunca serei mais do que um funcionário

ridicularizado que se deixou engodar e que, por meio de afirmações feitas sem garantias suficientes, revelou a

própria incompetência. Para mim não haverá saída senão uma entrevista em que terei que limitar-me a baixar a

cabeça e suportar o sarcasmo real. Nosso soberano sabe fustigar.

— Que seja! Mas para auxiliá-lo nesse momento penoso, gostaria de dar-lhe um trunfo. Lembre, Nicolau, por

mais desdenhoso e acrimonioso que se mostre a seu respeito, que o rei compartilhou com você de um sonho e

que, nesse sentido, você ganhou, pois recebeu mais do que ele...

— Isso realmente consola — disse Bardagne, levantando a cabeça.

E seus olhos brilharam.

— Talvez enquanto o considere em sua glória, o rei me inspire um pouco de piedade enquanto homem.

— Bem pensado! E aposto que essa lembrança lhe ajudará a permanecer digno e impassível diante dele,

— Evitarei a Bastilha? — suspirou ele. — Desejo somente uma coisa: retirar-me para minhas terras.

Como na véspera, falava de suas aspirações pela calma dos campos, pela intimidade de sua propriedade.

Antecipadamente lhe sentia o bálsamo sobre os ferimentos, o único bálsamo capaz de acalmar-lhe as dores

lancinantes. Reveria com alegria sua biblioteca, muito bem montada, com obras seletas, por um ancestral que

fora amigo das belas-letras e que conhecera Montaigne. Seus criados, que o amavam, haveriam de alegrar-se de

revê-lo na residência familiar abandonada. Sempre se comera bem ali. A vizinhança não era desagradável. Ele

passearia, redescobriria cantos de floresta, vales, vertentes, ideia que o animava, como a de rever amigos. No

Berry, todas as estações eram amenas, até o inverno, branco, leve.

— Antevejo sucesso para seus projetos — disse ela, depois de ouvi-lo — e o deixo quase com inveja dos dias

que passará em seus campos, e tranquila a seu respeito. Sua fineza de espírito e seu gosto epicurista pelo prazer o

ajudarão a construir uma existência das mais felizes.

Passou os braços em torno do pescoço dele.

— Até a vista, meu valente São Miguel!

— Por que São Miguel?

Mas a resposta lhe importava pouco. Tudo o que ela dizia de imprevisto, de louco e encantador, ele não podia

ouvir sem deslizar para um mundo fluido e turvo, enfeitiçador e cruel, por ser inacessível, por distanciar-se

lentamente rumo a um horizonte onde ele não a alcançaria mais. E de súbito pareceu bem insípido o futuro que o

aguardava lá e que ele acabava de descrever com satisfação. Tinha que desapegar-se dela! Tinha...

Com as duas mãos, afastou a cabeleira de Angélica de cada lado do rosto, a fim de segurá-lo nas mãos e beijar-

lhe, com um último olhar, a testa, os olhos, a boca um pouco quente, um pouco deformada, inchada pela fúria de

seus beijos. Nunca conseguiria desapegar-se! Nunca! Mas era preciso!

Numa voz alquebrada, como que sucumbindo ao peso de um sentimento ao mesmo tempo deleitável e dilacerante,

em que felicidade e tristeza infinitas se mesclassem: — Doce coração! Adeus! Você me iluminou a alma!

CAPÍTULO XII

O valente enciumado

Angélica subiu pelas planícies de Abraão. No ponto onde quase morrera, parou. Era de manhã, e o ar tinha um

suave frescor, com perfume de fumaça. As longas faixas de neve diminuíam. Caso o dia fosse ameno e o sol,

quente, desapareceriam a olhos vistos, evaporando.

Naquele local a terra estava pisoteada, e a lama amassada pelo vaivém das botas se revelava mais escura em

certos pontos.

Angélica examinou os únicos vestígios do combate da noite e foi presa de uma enorme gratidão pela bondade

do céu para com ela. Estava viva e os outros estavam mortos. Nunca antes acreditara tão próxima a sua última

hora.

Retomou a marcha, apertando contra si, em si, como um tesouro precioso, a palavra "vida". A vida que de um

instante para outro pode ser-nos tirada, a vida, dom sem igual, que ela ainda possuía, que lhe tornava c corpo flexível

e feliz. A manhã conservava os reflexos do sol levante. Ao longe, as nuvens azuladas, esparramadas, alinhavam-re

acima de uma lago de cobre rosado, de total serenidade, e, surgir do dos vales, brumas pairadas ao nível do solo

rosavam-se por rua vez. O dia ia nublar. Ainda estava claro e fresco. Abaixo, os rampanários e telhados de Quebec

erguiam sua populaçaozinha de ventoinhas e cruzes.

Angélica começou a descer r\mo à cidade. De trás de uma ou duas árvores isoladas, surgiu algi ;ém que pareceu

postar-se na trilha, à espera dela. Angélica levou a mão à coronha da arma que Bardagne lhe dera. Toda silhueta em

movimento pelas planícies de Abraão inspirava-lhe desconfiança. Mas ao reconhecer o jovem Ana-Francisco de

Castel-Morgeat, continuou a caminhar sem apreensão.

O rapaz avia aproximar-se com ar sombrio. Ela chamou-o e dirigiu-lhe um sorriso, ao chegar mais perto, mas a

expressão dele não se desanuviou. Angélica viu que o rapaz estava muito pálido, corri as feições crispadas, e às voltas

com uma emoção tão violenta, que não podia falar.

— O que está acontecendo, Ana-Francisco? — indagou, inquieta.

Ele recobrou a palavra bruscamente e, no esforço que fez para isso, sua raiva explodiu e, com os traços deformados

pela cólera, exclamou:

— Ah! Que bela partida de cartas! Trocam-se os reis e as damas, e o valete, que não conta, é rejeitado de todo

lado.

Depois, com voz surda:

— Suportar as homenagens de que você está rodeada e saber que acalento um sonho impossível, mas consolar-me

dizendo a mim mesmo que somente sua virtude está em jogo foi o pensamento que me ajudou até agora a não

enlouquecer. Mas você se entregou a Bardagne. Ele teve sua chance... E por quê? Por quê? Por que não eu? Já

que sequer você é uma mulher fiel.

Surpresa com a brusca afirmação, ela abria a boca para responder, mas ele prosseguiu:

— Não negue. Eu estava passeando. Vi você sair daquela casa lá...

— É muito frequente estar onde seria melhor que não estivesse, Sr. de Castel-Morgeat — disse ela, secamente.

— Oh, sim! Isso é verdade! — exclsmou ele, com um riso desencantado. — Vejo coisas demais, para infelicidade

minha...

Fitando-a com um sofrimento que o envelhecia, murmurou:

— Ama-se... e o amor vai-se... È a gente se dá conta de que fica sozinho, negligenciado, despojado do que ontem

nos fazia a força e a segurança, injustamente punido.

Proferia as mesmas palavras qu." Nicolau de Bardagne. Como se, por amá-la em vão, só houvesse descoberto do

amor a crueldade. Angélica lamentou isso rama criatura tão jovem.

— Meu pobre Ana-Francisco, por que pôs tal loucura na cabeça? É demasiado cedo para você. O mundo está

cheio de jovens sorridentes...

— ... e tolas! E sem experiência! Sim, eu poderia contentar-me com elas. Por que você veio? Por que se adornou de

tantas virtudes e encantos para me fazer crerna realidade dessa mulher que traz em si todos os nossos sonhos e que

não existe? Já não sou uma criança, e você sabe muito bem que a amei como um homem pode amar uma mulher.

Minha esperança oscilava sem cessar entre o sonho impossível de conseguir emocioná-la, ainda que por uma noite, e

a certeza, que ao mesmo tempo me oprimia e aumentava meu amor por você, de que você não podia ser como as

outras, uma mulher volúvel e insensível... Que desilusão! Você era o sol e não tinha o direito...

— O direito de quê?

— De decepcionar a tal ponto.

— A exigência de uns não cria de modo algum a obrigação de outros, Ana-Francisco. Há muitas coisas que você terá

que aprender com a vida... se quiser obter a indulgência das mulheres. Não tema nada. Você já não é uma criança, pois

já se comporta como um homem, em sua intransigência egoísta. Porque ama, não admite de modo algum não ser

retribuído. Ora, o amor é um jogo, na verdade, em que o destino distribui as cartas segundo o seu bel-prazer, e o

perdedor é aquele que não sabe ser bom jogador.

— Como sê-lo quando nossa vida depende de uma resposta, de um olhar, e uma palavra demasiado dura pode

levar-nos ao desespero?

— Mas é esse o jogo do amor, minha pobre criança!

— Pare de me lamentar, não sou uma criança. — E prosseguiu, com rancor: — Você tem todas, as forças. Mesmo a

força culpável de apresentar-se sem remorsos, sem embaraço nem receio. Isso me aumenta a amargura, pois

entendo que eu tinha chances. E que se você não pousou os olhos em mim, foi porque não lhe interessei. Você segue

apenas seu bel-prazer, como todas as mulheres. Pouco lhe importa provocar paixão, sofrimento ou ciúme.

— Oh, o ciúme! — exclamou Angélica, irritada. — Será que eu não poderia me esquecer do ciúme por algumas

horas? Deixe-me prosseguir meu caminho, Ana-Francisco.

Ele se afastou lentamente e, enquanto ela retomava a marcha pela trilha e lhe passava à frente, os olhos do rapaz a

acompanhavam, estudando-a como se quisesse reter tudo dela num último olhar.

— Seu poder não tem limites — disse. — Entre outras coisas, fascinou meu pai a ponto de ele não ter sequer

ousado cortejá-la.

— Basta de idiotices, Ana-Francisco. Sua família imiscuiu-se um pouco demais em nossos assuntos. Eu gostaria de

guardar pelo menos uma recordação amistosa, mas se você continuar nesse tom, isso me será impossível.

Ele via que perdia, que por meio de palavras execráveis alienara até aquela ternura indulgente que ela lhe dedicava

porque ele era amigo de seu filho Florimond, e porque era jovem e belo.

A decepção apertou-lhe o coração, deu-lhe vontade de matar, e ele finalmente se sentiu mais forte do que ela.

— Eu poderia revidar-lhe a censura, senhora — disse, com um sorriso superior —, quanto ao incómodo e aos

desprazeres causados por sua família à minha, pois se é cruel, para mim, desdenhá-la, imaginá-la nos braços do Sr. de

Bardagne, acredite, não é menos penoso que imaginar minha mãe nos braços do Sr. de Peyrac.

Angélica, querendo encerrar um diálogo que considerava tolo e sem saída, e fazê-lo saber que não- o temia em

absoluto, distanciava-se. Já se encontrava a alguns passos, quando as últimas palavras a atingiram. Paralisou-se e

voltou-se. Tinha empalidecido muito. No entanto, disse friamente:

— Explique-se!

E retornou para ouvi-lo. A claridade que a atingia no rosto deixava-a translúcida. Nunca parecera tão bela a ele. A

severidade com que o media com o olhar humilhou-o. Intimava-o a explicar-se como uma criança que, depois de

uma falta, provocou uma censura de adultos. Decididamente ela era de uma força indómita e ele a odiava.

— Sim! Minha própria mãe! — bradou ele. — Ela e seu marido. Vi-os juntos ufn dia em que você estava na ilha de

Orléans. Eu estava no solar de Mohtígny, embaixo... Sei tudo o que eles fizeram naquele dia... E Eufrosina Delpech

também sabe, a bisbilhoteira... Avistei-a espreitando a saída de minha mãe, do lado de fora. Ficou ali tanto tempo,

que o nariz lhe congelou... Pergunte a ela. Ah! Que bela partida: dois reis, duas damas, e azar do valete, que não

conta...

A imagem o obsecava.

Ele ofegava, perguntando a si mesmo -que outras provas fornecer.

— Foi logo depois disso que o Sr. de Peyrac mandou entregar a ela um bibelô de valor, a taça de ouro e

esmeralda.

De repente ela o esbofeteou, com violência, com a presteza fustigante de um açoite.

Ele levou a mão ao rosto e teve dificuldade em recompor-se. Quando o fez afinal, ela já estava longe,

encaminhando-se para a cidade.

CAPITULO XIII

Sinais de fumaça na ilha de Orléans

Depois de ladear o jardim do governador, Angélica entrou na cidade pela Place d'Armes. Atravessou-a muito

ereta, andando como uma sonâmbula.

As palavras pronunciadas por Ana-Francisco de Castel-Morgeat lhe ressoavam na cabeça. Estavam inscritas nas suas

retinas em letras de fogo. Não queria repeti-las nem decifrá-las. Mas, contra a sua vontade, já lhe vinha a certeza de

que ele dissera a verdade! Era verdade! Porque ela sempre soubera, sentira, vira. Enxergara aquilo nos olhos

matreiros de Eufrosina Delpech quando lhe tratara do nariz congelado.

Sentira-o na perturbação de Sabina certo dia, quando, estando no Castelo Saint-Louis, notara a pequena taça de

ouro e pensara: "Ora! Quando foi que ele mandou entregá-la a ela?"

Até podia dizer que o soubera devido à habilidade com que a Sra. de Castel-Morgeat respondera quando lhe

perguntara sobre a equimose na têmpora. Demasiado hábil e despreocupada, para variar. Ordinária!

Angélica andava sem notar as pessoas com que cruzava. Só desejava uma coisa: chegar a casa, fechar-se no quarto.

Só então re-fletiria.

Ao chegar à Place de la Cathédrale, um cortejo barrou-lhe o caminho. Vindo do convento das ursulinas, uma

multidão numerosa escoltava as carroças e andores sobre os quais iam as peças do retábulo de Santa Ana, brilhando

de um ouro puro e recém-aplicado, e se encaminhava para a encosta da montanha, a fim de atingir o embarcadouro

do Sault-au-Matelot.

Aquele fora o dia escolhido para conduzir o novo retábulo ao local dos milagres, situado no extremo norte da

costa de Beau-pré, não longe do pequeno cabo. Iam colocá-lo no novo santuário, uma capela de pedra que

substituía a de madeira, dedicada a Santa Ana, e que se incendiara.

Acompanhada do escultor, de seus filhos e aprendizes, dos padres que dariam a bênção, e de inúmeros devotos de

Santa Ana, entre os quais Elói Macollet, salvo das águas, e a pequena Erme-lina, salva de uma existência de entrevada

ou dos perigos de suas fugas, levada nos braços da ama negra, a obra de arte, rodeada de pessoas piedosas que

entoavam cânticos, seria transportada por duas grandes barcas, que aguardavam no porto. O bispo viria mais tarde,

com toda a pompa, para a inauguração que certamente transcorreria no mês de agosto, no dia de Santa Ana.

Angélica esperou, com o espírito longe, que a multidão se afastasse.

— Vem conosco, Sra. de Peyrac? — perguntavam-lhe de passagem.

Ela dizia "Não", maquinalmente. Passada a procissão, atravessou a pontezinha diante do mosteiro dos jesuítas e

começou a subir a sua rua.

Não ouviu o grito agudo da pequena Ermelina, que, avistando-a, escorregou dos braços de Pedrina e desapareceu como

um camundongo pelas vielas que saíam da Rue de la Fabrique. A mãe e a negra lançaram-se atrás dela, esperando

alcançá-la antes de as barcas zarparem.

No porto, logo se completaram os preparativos, em meio à simpatia da população. Os menos devotos juntavam-se

aos cânticos de bom grado. Logo se encheu a primeira barca, ocupada pelos que seguravam os relicários, as

estátuas e o tabernáculo.

A Sra. de Mercouville e a ama Pedrina não retornaram com Ermelina, de modo que as outras crianças

Mercouville, já a bordo, desistiram da viagem e desembarcaram, cedendo o lugar a outros.

— Diga-me — pedia o jovem Gonfarel a Elói Macollet —, o que é que os feiticeiros da ilha de Orléans estão

contando hoje, com suas fumaças?

Um aprendiz levava uma estátua em cada braço. Ao recobri-las de ouro, às ursulinas tinham desenhado nos

vestidos bordados belíssimos. Nunca se tinham visto estátuas mais principescas.

A grande embarcação levantou a única vela, quase quadrada, quando se enfunou quase de súbito e se afastou

rapidamente, carregada de ouro cintilante, de padres e de trabalhadores, que entoavam cânticos.

Menos Macollet, designado para acompanhar a "tumba" em outra embarcação, e que, com a mão acima dos

olhos, decifrava as mensagens dos feiticeiros da ilha de Orléans.

Marinheiros de arpéu em punho trouxeram para perto uma barcaça sobre a qual a "tumba", peça mestra de

base, poderia ser arrimada mais solidamente.

"•? Ei, Elói, dê uma mãozinha — resmungou um deles —, ao invés de ficar aí a sonhar, olhando a paisagem!

Mas Elói Macollet não sonhava. De rosto severo, que se emudeceu de súbito, com a mão de anteparo acima dos

olhos argutos, as bastas sobrancelhas franzidas, ele fitava as inúmeras nuvenzinhas esbranquiçadas que, como tufos

redondos, subiam intermitentemente de diferentes pontos na ilha de Orléans. Os lábios moviam-se-lhe à medida

que elç, decifrava a mensagem.

— O que é que estão dizendo, Elói? — insistiu o garoto.

— Caramba! É verdade — notou, afinal, um dos marinheiros. — Essa gente da ilha está bem tagarela hoje. O que é

que estão contando a esta hora, Elói, você que sabe ler os sinais?

— Estão pedindo socorro! — respondeu o velho.

CAPÍTULO XIV

Utakê e seus exércitos às portas de Quebec

Angélica entrara em casa por trás e atravessara o salão. A manhã já devia ir bem avançada, pois Susana, estava ali.

Cantarolando e de mangas arregaçadas, resolveu polir os cobres com giz, porque fazia sol.

Angélica respondeu maquinalmente à saudação da gentil canadense, e subiu de quatro em quatro os degraus da

escadinha. Enfiou-se no quarto como num refúgio, onde finalmente pode-ria recuperar o controle.

"É bem feito para você! Isso lhe ensinará!"

Apoiada à parede, repetia a frase com amarga ironia.

"E bem feito para você! Isso lhe ensinará!"

Não sabia exatamente por que o golpe terrível que recebera lhe parecia fatal e merecido. Não, não era aquilo que a

fazia murmurar "Bem feito para você...", mas a imensidade de sua tolice, que não enxergara nada. Agorar estava

traída. Perdera tudo.

Correndo os olhos pelo quarto diminuto, pelo grande leito onde conhecera com ele tantas noites maravilhosas,

sentiu-se atingida em pleno coração. Não conseguiu suportar a vista do pequeno aquecedor de louça, em que,

durante tantas noites ou manhãs geladas, tinham aquecido, risonhos, rum ou vinho com canela e especiarias. O

sofrimento fez-se mais intenso, e ela sufocou, com um acesso de raiva enlouquecida. Agarrando o frágil aquecedor,

levantou-o bem alto e atirou-o ao chão, fazendo-o em mil pedaços.

— Senhora! — gritou Susana, de baixo. — O que foi?

Angélica conteve-se.

— Nada! — respondeu, calma. — Foi só um objeto que se quebrou.

E calmamente, dominando a violência que a fazia tremer, conseguiu fechar a porta sem ruído.

"Sim", pensou, "um objeto que se quebrou. Foi meu coração que se quebrou. " Foi apoiar a testa à vidraça. Com a

mão sobre a boca entreaberta, retinha um grito, um gemido, que ainda não podia transformar-se em soluço.

"Joffrey e Sabina... Não, não é possível! Não é verdade! Sim, é verdade! E verdade!"

A transformação de Sabina, repentinamente bela e serena, gritava a verdade. E na casa dela, no Castelo Saint-Louis,

estava agora a pequena taça de ouro e esmeralda, que Angélica notara. O presente destinado à Sra. de Castel-Morgeat,

que ele não julgara oportuno entregar a ela depois do desagradável canhonaço, e que de repente mandara levar-lhe

sem razão. Sem razão? Agora sabia a razão. Quando fora? Enquanto estava na ilha de Orléans.

Depois de muito remoer o detalhe da pequena taça de ouro e entender que a discreta entrega que se fizera do

objeto a Sabina de Castel-Morgeat firmava uma reconciliação completa entre gas-cões e não lhe permitia mais duvidar,

Angélica teve a impressão de que morreria.

Nunca! Não, nunca suportaria a ideia, a imagem de Joffrey a dirigir a Sabina o mesmo sorriso que dirigia a ela!

Não! Não o mesmo sorriso!

"Oh, meu Deus! O que será de mim?"

Ocorreu-lhe a ideia de que, na noite anterior, ela mesma estivera entre os braços de Bardagne, mas para ela

Bardagne não contava muito. O caso não tinha importância alguma. Nada teria acontecido, caso aqueles vermes

imundos não a tivessem deixado com os nervos à flor da pele, tentando assassiná-la de modo aviltante.

Enquanto Joffrey nuhca fazia nada por descuido.

Soluçou, e apoiou a testa contra a vidraça fria. Mirava aquela paisagem que com frequência lhe inspirara tanta alegria,

e achava-a detestável. Também a paisagem a traíra. Fizera-a crer que a vida era bela, que se podia ressuscitar de tudo.

Agora achava-a assustadora na sua melancólica e impávida imensidão. O nevoeiro que se levantava em camadas

cinzentas a arrastarem-se ao longo da costa de Beaupré pareceu-lhe lúgubre, triste hálito de uma terra insalubre

prometida à morte e que lutaria em vão.

"Eu sabia que alguma coisa ia acontecer."

O sofrimento, que ela não queria permitir que lhe chegasse ao nível da consciência, causou-lhe um mal-estar que a

aturdiu. Sentiu-se invadir por vibrações interiores. Seu abatimento transformava-se em angústia. "Eu sabia que alguma

coisa ia acontecer! Alguma coisa terrível!"

Lutando para não desmaiar, desviou-se da janela, querendo chegar à cama para deitar-se.

Foi então que viu Utakê à soleira. Utakê, o iroquês, o chefe das Cinco Nações.

Não passou de uma visão. Desapareceu -quase na mesma hora. A porta continuava fechada, não fora aberta. Mas ela

o vira como se estivesse presente, com sua alta crista de mechas engomadas de resina, e, nas orelhas, os brincos de

bexiga de cabrito inflada e pintada de vermelho. E o rosto amarelo-castanho-claro, o peito vigoroso, recoberto de

pintura de guerra. Era ele.

"Utakê! Era Utakê, o iroquês! Eu o vi!"

O coração começara a bater-lhe de modo irregular, mas esse medo era diferente. Por que, assim de repente, fora

vítima de uma evocação tão nítida? Tudo o que acontecera desde a noite anterior lhe anuviara o espírito. A menos

que...

Os olhos de Angélica dirigiram-se de novo para a janela, examinando aquelas brumas distantes, que, ao invés de

subirem lentamente e invadirem o céu, estagnavam e se adensavam ao nível da terra e da água. O que ela pressentira

há pouco, de anormal e sinistro naquela paisagem tranformada, poderia revelar-se cor-reto? As faixas de nevoeiro

cinzento, que considerara horríveis, estariam na realidade ocultando o horror?

Perscrutava-as atenta, paralisada por um pressentimento, mas ainda sem querer dar-lhe fé. Ali e acolá, porém,

discernia o clarão de braseiros.

As propriedades na costa de Beaupré ardiam.

Angélica compreendeu.

Enquanto o exército os procurava ao sul, os iroqueses chegavam pelo norte. E se vira Utakê à soleira da porta, fora

porque ele se encontrava às portas da cidade.

Saiu do quarto, correndo para o patamar da escada.

— Susana! — gritou. — Corra! Corra! Corra para casa! Sua mãe! Seus filhos! Os iroqueses! Os iroqueses!

Pela expressão do rosto de Angélica, Susana não se deu ao trabalho de pronunciar uma palavra, e disparou para

fora.

Angélica viu-a subir pela rampa atrás da casa. E olhou ao redor. Tinha que pensar rápido. Já não dava para ouvir

o alarido do grito de guerra dos iroqueses? Entrou no quarto e abriu a arca que ficava ao pé do leito. Febrilmente,

afastou as roupas e achou o colar de wampum que, no inverno anterior, por intermédio de Tahutaguete, o Conselho

das Mães das Cinco Nações mandara entregar-lhe. Examinou-o: largo e longo, mosaicos brancos e azul-escuros,

franjas de couro. Todos diziam sempre que, naquilo, ela possuía um dos mais belos tratados de aliança.

"Utakê! Utakê! Dê-me a vida deles! Assim como lhe dei a sua!"

Enrolou a faixa de conchas e colocou-a embaixo do braço. O silêncio da casa lhe pareceu demasiado sereno,

pesado de uma tragédia a ponto de rebentar.

Desceu para o salão, abriu portas. As crianças tinham sido levadas para as ursulinas, mas onde estava Ademar? E

Iolanda? Embaixo, talvez, ordenhando a cabra? Pegou um mosquete no cabide de armas perto da porta de entrada e

desceu ao porão, à procura de algum dos domésticos. Encontrou Iolanda e Ademar, enlaçados sobre o monte de

palha e mergulhados numa ativa sessão de reconciliação.

Vendo-a, eles soltaram um grito de terror. Terror bem vão, pois da cena ela só registrou a boa sorte de encontrá-

los.

— Depressa! Depressa! — disse. — Levantem! Os iroqueses estão chegando... Vocês se encarregarão da defesa da

casa. Fechem todas as saídas. E os alçapões do sótão. Coloquem os postigos. Retirem as escadas. Você, Iolanda,

ficará à janela do primeiro andar, a que dá para a rua, a fim de cobrir a casa da Srta. d'Houredanne, caso eles

desemboquem pela Rue de la Closeríe. Você, Ademar, vigiará de meu gabinete, para ver se eles vêm pelas co

linas de Montigny...

— Sim... se... se... senhora — respondeu Ademar, que abotoa va o uniforme batendo os dentes.

Ao sair, Angéiica deu-se conta de que não pensara nos dois homens de sentinela no fortim construído no local

da casa dos Ba-nistére. Saindo para a plataforma, os dois se perguntavam sobre os motivos que teriam feito a

criada da Sra. de Peyrac disparar da casa como um raio e se lançar pelos campos, mais rápido do que uma

galinha perseguida por uma raposa.

Angélica preveniu-os e mandou que um permanecesse no posto e o outro fosse dar o alarme, depois de avisar a

gente da casa do Sr. de Bardagne. Que estes se armassem e se pusessem de tocaia, atrás da sebe da Rue de la

Closerie, preparados para qualquer eventualidade.

Lançou-se sobre as pegadas de Susana. Atravessou o altiplano diante do solar de Montigny e encontrou

homens já em estado de alerta.

— Sua criada acabou de passar e nos avisou que um grupo de iroqueses vem subindo na direção de Quebec

— disse o quartel-mestre, que os comandava.

Em todas a circunstâncias ele mascava seu tabaco com calma. Mandara dois homens alertar os outros postos

que dependiam dele. O restante do efetivo estava içando para uma prancha com quatro rodas uma pequena

bombarda vinda de um dos navios desarmados de Peyrac.

— Iremos ao encontro deles.

Fizeram um rápido conciliábulo. Angélica achava que deviam seguir pela beira do platô, a fim de esperá-los lá

em cima. Caso os índios ainda não houvessem chegado lá, eles poderiam entrincheirar-se na granja de Susana,

depois que as crianças e a família fossem trazidas para lugar seguro em Quebec. De sua janela ela vira Château-

Richier em chamas, mas o inimigo talvez ainda não houvesse atingido Beauport.

— É preciso impedi-los de subir a encosta que leva à cidade.

— Aonde vai, senhora? — gritou o quartel-mestre, vendo-a disparar na frente deles.

— Vou ao encontro de Utakê! Tenho que achá-lo. Tenho que falar com ele!

— Como é que uma mulher não tem medo desse selvagem terrível? — perguntou um dos jovens grumetes, que

por antecipação já se sentia bem assustado com aquele primeiro encontro que teria com os iroqueses, os índios tão

temidos.

— Ela cuidou dele no ano passado, ele estava ferido e morrendo, em Katarunk. Uma mulher nunca tem medo do

homem cujos ferimentos ela tratou e cuja vida ela teve entre as mãos. Vamos agora — disse ele.

E enfiaram pelo caminho bem marcado que levava para os campos. Um pouco adiante, avistaram um agrupamento,

no meio do qual se encontravam Angélica e Susana.

—Osberrichons! — gritaram-lhes, quando se aproximaram. — Chegou um dos meninos deles!

A criança, desnorteada, tremia da cabeça aos pés. Contava em frases entrecortadas como um bando de demónios

empenacha-dos surgira em silêncio, cercara a casa, e, como um empregado passara a barra sobre a porta em tempo,

destruíram a machadadas os batentes das janelas. Ele, o menino, estava na cabaninha afastada, a retreta. Do

esconderijo, vira o pai, a mãe, o tio, os empregados serem escalpelados, enquanto os irmãozinhos e ir-mãzinhas

eram atirados vivos às chamas de sua própria casa.

Susana soltou um grito de agonia.

— Meus filhos!

Chegaria em tempo para poupá-los desse destino? Retomou a marcha, correndo como só uma moça canadense

sabe correr, quando teve uma mãe e talvez uma avó que também tiveram que vencer na corrida os iroqueses surgidos

de repente, de tacape em riste, enquanto elas trabalhavam nos campos.

Os homens das moradas da vizinhança começavam a acorrer, trazendo fuzis ou machados. Finalmente se ouviu

soar em Quebec o sino de alarme e o rufiar de tambores. Ao longe, na dire-ção do mosteiro dos recoletos,

espocavam tiros de mosquete.

Angélica, sem se igualar a Susana, corria a ponto de perder o fôlego. Ia aguilhoada pelo medo de chegar

demasiado tarde para salvar a família Legagne. Se os iroqueses tinham alcançado a concessão dos berrichons, era

porque já haviam cortado o promontório, marchando sobre Sainte-Foy e Loreto, onde dizimariam as famílias

huronianas. No cabo Rouge, Barssempuy os receberia em seu forte bem-defendido. Mas a cidade ficaria cercada.

Ao se aproximar da orla do platô, Angélica ouviu uma mulher gritar. Era Susana. Amigos a seguravam,

suplicando-lhe que geasse ali, entre as árvores, protegida. Dali se descobria um grande descampado inclinado,

em cujas costas se avistavam os telhados da casa dos Legagne. Uma fumaça acre já subia aos turbilhões.

— Meus filhos! Meus filhos! — gritava Susana, torcendo os braços de desespero.

Queria correr, atravessar o campo na direçào da fazenda que ardia. Mas os homens a retinham.

— Tão logo você saia das moitas, eles lhe cravam uma flecha em pleno coração! Eles estão lá, estão por toda

parte!

Ainda não se via nada. Os movimentos furtivos por entre os arbustos só traíam um jogo de sombras ou do

vento, enquanto o bosque em frente, do outro lado da rampa, ia se povoando de pessoas. Não era o menor dos

prodígios da floresta canadense que aquele amontoado de bétulas, olmos, faias e abetos, de troncos às vezes

delgados, pudesse dissimular um selvagem à espreita atrás de cada árvore.

Eles estavam lá.

Os homens haviam posicionado o canhãozinho e preparavam a mecha.

— A gente pode disparar umas duas ou três descargas no bosque aí em frente. Matamos alguns, e isso talvez

lhes dê vontade de se retirar. Depois a gente corre até a fazenda.

— E se eles se lançarem sobre nós? Seremos subjugados... Eles são quantos? Não sabemos!

— Não! Esperem! Não atirem! — disse Angélica.

Tivera tempo de retomar fôlego. Os moradores e os soldados reunidos ao abrigo das árvores ignoravam o que

ela tencionava fazer. Não acreditaram nos próprios olhos quando a viram sair a descoberto, de braços levantados,

exibindo o colar de wampum.

— Utakê! Utakê! Dê-me a vida deles!

Estava sozinha no espaço aberto. Exposta, vulnerável. O sol fazia cintilar seus cabelos e seu vestido verde.

— Um autêntico alvo! — exclamou alguém. — Ela está perdida!

—Não, não com esse wampum nas mãos. Ninguém ousaria.

Angélica corria. Apesar da terra endurecida e ainda escorrega dia, movia-se com rapidez para alcançar o outro

lado do campo.

—Utakê! Utakê! Dê-me a vida deles!

Correndo e gritando assim, o que ia registrando — lembraria mais tarde — era que a relva à sua frente brotava da

lama em talinhos verdes de um frescor arrogante. Corria, gritando e descobrindo, sem a ver, a primeira relva da

primavera. Chegou ao outro lado. Viu-se diante do abrupto talude, que não podia atravessar. Volutas de fumaça

rolaram em sua direçào. Por trás da cortina espessa, onde se insinuavam labaredas .ainda indecisas, viam-se mover-se

as silhuetas emplumadas dos índios, entregando-se ao saque.

"Os iroqueses! Já estão aqui!", pensou. Mas teve tempo de vislumbrar os filhos de Susana, vivos, no meio do pátio,

rodeados de guerreiros, e a velha só, em sua poltrona, agitando a bengala.

Angélica voltou, sempre correndo, para o descampado, i — Utakê! Utakê! Dê-me a vida deles!

Voltava-se em todas as direções para lançar seu apelo, pois tinha certeza de que ele estava ali perto.

O grumete pousou a mão sobre a manga do quartel-mestre. Tremia.

— Olhe! Lá em cima, irmão! Na orla do bosque...

Angélica retornava na direçào deles^ Queria avisar Susana de que os filhos dela ainda estavam vivos. Do abrigo de

espinheiros, eles lhe faziam sinais veementes, apontando-lhe o topo do campo: lá! lá!

Ela se virou e o viu.

Utakê, o chefe das Cinco Nações. Era ele. Sua silhueta, menor do que a de Piksarett, mas que mesmo assim dava

uma impressão de poder, destacava-se por entre as árvores, como se fosse da sua mesma essência. Sua imobilidade

lhe conferia a aparência de um ídolo tutelar.

Fora assim que ela o vira pela primeira vez, na orla da floresta, ao anoitecer de Katarunk.

Avançando, ela reconheceu a crista alta da mecha de escalpo dele, com espinhos de porco-espinho e rabos de

gambás pretos e brancos, empinado sobre o crânio amarelo-acastanhado, raspado rente. Assim como em Katarunk,

ele trazia o colar de dentes de urso e os brincos pintados de vermelho. Sob as multicoloridas pinturas de guerra,

adivinhava-se-lhe o rosto liso, impassível, jamais deformado por um ricto de ódio, por nenhuma crispação de

esforço. Deixava aos traçados negros, azuis e vermelhos de que estava recoberto o cuidado de exprimir ao inimigo os

assustadores sentimentos de cólera e ódio de que trazia a alma cheia. Rosto impassível. Vontade imperiosa.

Avançando, ela reconhecia sobretudo o olhar, única vida negra e cintilante, que se impunha e transparecia, mas

lentamen-te,pela sua fixidez.

"Que crueldade nesse olhar!"

Era crueldade! A caminhada na direção dele, com o colar de imampum sobre as mãos estendidas, levava-a de volta

a seus primeiros dias no Novo Mundo, em que ela e Joffrey estavam sozinhos, face a face com a floresta, face a face

com os índios. Avistá-lo agora trazia-lhe à memória o drama de que ele se tornara o principal herói.

Lembrar-se disso tudo sob o olhar fixo do chefe mohawk, que a mirava subindo na sua direção, encheu-a de

coragem.

Chegando a alguns passos dele, depôs-lhe diante dos pés a faixa de porcelana. Depois, erguendo-se, perguntou a si

mesma o que deveria fazer para testemunhar-lhe o respeito que lhe tinha.

"Ela lhe fez uma reverência", escreveu mais tarde a Srta. d'Houredanne, "pelo que me contaram... Aquele bárbaro!

Como na corte!"

Ele permanecia imóvel. Angélica resolveu falar primeiro.

— E bom revê-lo, Utakê!

— Você fala com sinceridade? — fez a voz rouca, que parecia sair das árvores.

— Você sabe que sim.

Um clarão mais mortal do que o que irrompe da lâmina de uma faca atravessou o olhar de ídolo impassível.

— Eu queria ver a. você — exclamou Utakê, fremido de cólera —, e aquela raposa fedorenta de narrangasett,

Piksarett, surge em meu caminho e racha a cabeça de meu melhor guerreiro sakahese. Em seguida, penetra toda noite

em nosso acampamento para arrancar a cabeleira de um guerreiro. Assim, exaspera nossa cólera. Prometemos então

que vingaríamos esses crimes em Quebec.

— No entanto, você sabia que Teconderoga e eu nos encontrávamos aqui.

— Eu queria vê-la. Mas isso não me impediria de ir lembrando, de passagem, que não se provoca impunemente o

chefe das Cinco Nações.

Ao vê-lo assim tão feroz, Angélica perguntava-se se ele não se teria tornado ainda mais selvagem do que no ano

anterior. Viu-lhe à cintura escalpos cujo sangue lhe escorria pelas perneiras de pele.

Utakê lançou-lhe um rápido olhar cortante.

— Estes são franceses que não voltarão a me enganar — disse. Após uma pausa, continuou: — Quem são esses cuja

vida você quer que eu lhe dê? — perguntou, altivo.

Angélica apontou a fazenda ao fim da vertente.

— Mulheres, crianças naquela casa.

A sombra de outro selvagem desenhou-se entre as árvores, ao lado do chefe, que, quase sem mover os lábios, deve

ter-lhe transmitido uma ordem.

Pouco depois os filhos de Susana apareceram abaixo, na outra extremidade do campo.

Com desdém, Utakê olhou os quatro garotinhos avançar, escoltados por alguns iroqueses, que riam e esboçavam

uma dança do escalpo, lançando insultos e zombarias na direção do bosque onde sabiam que os franceses estavam

escondidos.

Assustados, mas corajosos, os pequenos canadenses avançavam bravamente e subiam a campina descalços, para

irem mais rápido, mas trazendo na mão o par de tamancos, como crianças dóceis. O mais velho, Pacômio, de dez

anos, trazia nos braços o bebé de um ano. Os dois irmãos mais novos se agarravam ao casaco dele.

— Semente de guerreiros — murmurou o chefe iroquês. — Quando crescerem, esquecidos de minha misericórdia,

virão nos perseguir em nossos vales para nos arrancar o escalpo. Conheço as serpentes de vileza que dormem nesses

corações de normandos!

Quando as crianças chegaram perto da orla do bosque, Susana não aguentou mais. Precipitou-os, agarrou-se entre

os braços e os levou todos juntos para baixo dos ramos.

Depois disso, iniciou-se uma negociação a propósito da avó. Era inválida, não podia andar, e estava fora de

cogitação pedir aos iroqueses que a carregassem na poltrona até sua gente. Angélica teve alguma dificuldade em

encontrar dois voluntários entre os franceses que se abrigavam sob as árvores.

— Esses coiotes vão nos arrancar a cabeleira...

Afinal, o quartel-mestre e um velho que fora explorador de bosques — aquele Marivoine, que soltava o grito de

guerra dos iroqueses quando estava bêbado — avançaram.

Enquanto voltavam, carregando a poltrona onde a velha se debatia, muito agitada, tiveram direito a um cortejo

de cabriolas e insultos ainda mais alentado. Para os iroqueses aquele espetá-culo de homens a carregar uma

mulher era de extrema comicidade. No meio da sarabanda, os dois voluntários iam com o coração nas mãos, mas

a avó continuava a vociferar e a ameaçar os selvagens com a bengala, o que os deliciava.

Nesse ínterim, a fazenda ardia. Susana estava feliz demais por poder abraçar os quatro filhos, vivos, para se

queixar pela perda da casa construída por seu pai. Haveriam de reconstruí-la... A tia e os empregados da fazenda

tinham sido mortos e escalpelados. Mas as crianças viviam.

— Leve-os logo para casa...

Angélica retornou para junto de Utakê. Ele recuava para o bosque. Fazia silêncio de novo, exceto por alguns

tiros de mosquete longínquos. Ele já teria dado ordens? Os iroqueses se distanciavam de modo quase

imperceptível, assim como a maré reflui.

Ao longe os tiros foram se espaçando, para cessarem aos poucos.

— Eu queria vê-la — disse Utakê. — Aproximei-me de Que-bec e chamei-a.

— Eu sei. Mas você me chamou cedo demais. A cidade poderia ter sido sua, se não tivesse projetado até mim

sua imagem.

— Quem lhe disse que eu queria entrar nessa cidade? Não quero atingir os franceses no coração. Somente

preveni-los de minha astúcia e de meu poderio. Por que eles fazem aliança com um furão como esse Piksarett?

Por que só quiseram trocar peles de castor com os huronianos? E por que nos desprezaram? Sem a traição de

Piksarett talvez não tivesse havido derramamento de sangue hoje.

— Talvez!

Via-se que a ideia de penetrar em Quebec lhe repugnava. O temor ao homem branco, de mordidas venenosas e

sempre repetidas, tinha acabado por levar a melhor sobre a fé que ele tinha em si mesmo. Acontecia de os

franceses lhe frustrarem as astúcias ancestrais mais secretas. Assim, afirmou, não penetraria naquela cidade-

armadilha. O objetivo da expedição: vê-la.

— Queria vê-la, e você estava em Quebec com seu esposo, Teconderoga. Quebec... As vezes a gente tem que

provar a si mesmo que ainda conhece todos os caminhos. Há muitas e muitas luas, eu era jovem e os franceses

vieram trazer a guerra até os vales dos mobawks, perto de Niágara. Nossos povoados das Casas Compridas foram

incendiados. Foi dessa campanha com o Sr. de Tracy que eles me trouxeram prisioneiro. Vi Quebec. Depois me

fizeram atravessar o oceano.

Ele ficou pensativo por alguns instantes, como se procurasse as recordações do que conhecera do outro lado do

oceano.

—Dar caça ao cervo na corrida, lá no Bois de Boulogne deles, não foi nada — disse. — Eles viram que os

filhos do vale dos mohawks tinham as pernas mais velozes do universo, e diziam "É de valor!", todos aqueles

franceses entre suas casas altas de pedra, onde eles se perdem. Mas depois me mandaram para as galés.

Mandaram-me às galés, a mim, Utakê, filho de um chefe dos mohawks, povo das Cinco Nações do vale dos três

deuses. Sabe o que foi minha vida mas galés? O dia inteiro movendo um remo gigante. A água daquele mar era

salgada como um ácido para queimar as chagas dos homens... Estive mergulhado num universo de demónios,

que sem me ver nem conhecer me molestavam com sua agitação importuna. As barbas deles eram imundas.

Eram impudicos, sempre a uivar, sempre presa de uma cólera abjeta. Oranda, o Grande Espírito, não existia para

eles. Eram incapazes sequer de conceber-lhe a ideia. O Grande Espírito os rejeitara como ao lixo do inferno.

Foi isso o que o grande chefe confiou a Angélica sob os ramos do bosquezinho, no seu francês rebuscado, de

tonalidade mono-córdia e interminável.

— Eu o compreendo, Utakê.

Angélica tinha dificuldade em imaginar Utakê, aquela criatura livre das florestas americanas, mergulhando na

fossa fedorenta das galés, entre aquela escória da,humanidade que eram os forçados, e cuja companhia horrenda

parecia havê-lo impresio-nado mais do que as chicotadas dos comitres, as correntes aos pés, a comida imunda, e

o penoso labor do remo.

Perguntou-se qual podia ter sido o funcionário imbecil que, ao enviar para as galés aquele inimigo dos

franceses, perpetrara um erro tão aberrante e pesado de consequências.

— Mas o que ela está fazendo? O que está fazendo? — resmungava, impacientando-se sob as árvores, um

capitão da milícia que ocorrera com seis cidadãos armados e a quem seguravam à força.

Havia que esperar, diziam-lhe, que a Sra. de Peyrac terminasse o diálogo com o chefe dos iroqueses, Utakê.

— Utakê? Ao alcance de meu fuzil e não posso atirar!

— Fique tranquilo! Eles são numerosos e podem nos subjugar. A Sra. de Peyrac está em conselho, você bem

sabe que os conselhos dos índios podem durar luas inteiras.

O miliciano suspirava. Estava farto de ficar ali com os outros, acocorados como squaws em torno de uma

bombarda inútil, enquanto se abandonava o destino da guerra a uma mulher.

— Mas o que ela está fazendo? O que está fazendo? De que estão falando? Pode-se imaginar uma dama tão fina

a conversar com um bábaro tão feroz e imundo como se estivessem num salão? Como é que ele ainda não lhe

partiu a cabeça com um golpe de tacape?

— Em Katarunk ela o carregou -nos braços, ferido, e salvou-lhe a vida. É o poder das mulheres sobre o homem

mais feroz.

— O senhor governador D'Arreboust veio me libertar — prosseguia Utakê, continuando para Angélica a

crónica de suas viagens e vicissitudes naquelas paragens estranhas do reino da França. — Mas quando viu onde

eu estava, deve ter entendido que dali em diante eu só podia ser inimigo da gente de sua raça.

Ele não pedia aprovação. Queria fazer entender como era inevitável a luta que o opunha aos franceses.

— Por que eles têm a força? Quer dizer, a de Satã?

— Utakê; tenho a impressão de ouvir no som de sua voz como que um pesar ardente. Sei do conflito que lhes

separou os corações. E vejo a expressão desse conflito no fato de que, se você é inimigo dos franceses, nem por

isso é aliado dos ingleses. Você hão gosta dos ingleses. Não se sente atraído a apoiar-lhes os empreendimentos,

nem mesmo a comerciar com eles. Não troca peles com eles senão com repugnância. Enquanto com os franceses

a coisa é diferente. Você não odiaria tanto a esses franceses, Utakê, se não soubesse a que ponto são irmãos e

como poderia ter sido boa a aliança entre os iroqueses e os franceses. Os neo-ingleses invejam os franceses por

isso. Ouvi-os queixando-se: "É quase inacreditável a inclinação que têm os iroqueses para se aliarem com os

franceses", diziam eles. É frequente lamentarem que "a natureza parece ter implantado no coração dos franceses

e no dos índios uma afeição recíproca..."

— Isso é de valor — reconheceu Utakê, gravemente. — É verdade que, se procuro hospitalidade, ainda prefiro

alojar-me na morada de um colono francês, fumar o cachimbo com ele diante do fogo, a entrar na casa do mais

rico proprietário inglês ou flamengo, de Orange ou de Manhatte. Mas foram essas feras dos huronianos que

atrapalharam tudo. Bem antes de os franceses chegarem, eles resolveram que os guardariam para si, quando vies-

sem, para arrastá-los contra nós com seus bastões de fogo. Conseguiram convencer Champlain e nos tornamos

inimigos para sempre. É por isso que exterminaremos os huronianos até o último deles. E quanto aos franceses,

digo de bom grado: é tarde demais. O curso do rio não pode retornar à nascente. Mas vocês vieram, Teconderoga

e você, Kawa, vocês, que são franceses de outra espécie, vieram sem adotar os rancores dos seus. É por isso que

vocês, que vieram com as mãos limpas do sangue de nossos irmãos, e que tentaram evitar o sangue entre nós e

nossos irmãos de alma, os franceses, nos trazem esperança. Não lhe trairei a confiança e não tornarei vãos seus

esforços, que, em Katarunk, lhes fizeram enfrentar o exército iroquês sedento de vingança somente com sua

coragem, temendo menos a morte do que ver a aliança traída. Sim, você tem razão, Kawa. Sei onde se encontra a

raiz do fogo que nos consome. Somos demasiado próximos dos franceses, demasiado semelhantes, na coragem

assim como na astúcia. Em nossas guerras não paramos de rivalizar em crueldade e perfídia, a ver quem

enganará o outro, quem se mostrará mais audacioso e mais hábil. O que. você diz-de minha surpresa de hoje?

Anunciam-se os iroqueses ao sul. Tahutaguete, chefe dos oneiuts, envia emissários. O exército de Onôncio vai ao

encontro do grande Utakê. Mas, enquanto isso, o grande Utakê, com mil guerreiros, atravessou o Saint-Laurent,

no ponto onde ele salta como uma pequena torrente, quase igual aos riachos, e pelo país dos missiqueses

alcançou o país dos utaués... Passa sem depredação e poupa esses utaués primitivos e tolos, para que não se dê

aos franceses o alarme dessa passagem. Com as canoas à cabeça ou carregadas por dez ou doze bravos,

dependendo do tamanho, eles seguem, vadeando corredeiras, riachos, lagos, e apesar dos lamaçais do inverno,

dos gelos ainda presentes , Utakê atinje as nascentes do rio do Gouffre e descobre o Saint-Laurent na baía Saint-

Paul, e ali lança suas canoas, geralmente livres para seguir as correntes, e chega a Quebec, pelo norte... Não foi

assim mesmo que as coisas aconteceram?

— Foi assim mesmo que as coisas aconteceram — aquiesceu ela.

— Ninguém pensou nisso?

— Ninguém pensou nisso.

— Nem você?

— Nem eu.

— Nem Teconderoga? Ela hesitou.

— Não posso saber o qae ele pensou... Mas partiu para o sul com Onôncio. Se desconfi 3U de que você viria

pelo norte, não disse nada.

Utakê afetou uma expressão condescendente.

— Não fiquem humilhados, brancos, de ver seus dons de adivinhação e presciência vencidos por um índio

como Utakê. Ele não é um índio como os outros. É o deus das nuvens, que conversa com Oranda. Entre vocês

existem excelentes adivinhos, feiticeiros e visionários, que vêem e adivinham, farejam o vento e contam com o

invisível. Mas Utakê é mais forte para embaralhar os espíritos à distância, adormecê-los, desorientá-los, e Deus

sabe que o espírito dos franceses se deixa desorientar com facilidade.

Deu um sorriso indulgente e desdenhoso, como se estivesse falando com crianças atordoadas.

. — Vim, então, e cheguei às portas de Quebec com meu exército, assim como a água se espalha por entre os

caniços na época das chuvas e o rio de repente está à soleira das cabanas, sem que o tenham yisto avançar. E

digo: Quebec se lembrará deste dia em que lhe tive a vida entre as mãos.

— Quebec se lembrará deste dia — repetiu ela.

Ansiosa, pensava nos colonos da costa de Beaupré e da ilha de Orléans, que tinham sido os primeiros a receber

o choque, e perguntava-se. angustiada, a que cabeças pertenceriam as cabeleiras ensanguentadas que Utakê trazia

à cintura. Guilhermina? As crianças de Saint-Joachim?

— Não se entristeça, Kawa — disse ele, acompanhando-lhe o olhar. — O homem só prova o que é quando tem

a coragem de enfrentar a morte e de matar... E, o que é pior, de enfrentar o risco de perder tudo de sua obra, de

seus títulos e riquezas. Ele mata, mas começa matando a si mesmo, ao prever a morte como possível. Inflige

ferimentos ao inimigo, mas começa ferindo a si próprio com a perda de seu combate. E esse o destino do homem,

desde que vem ao mundo.

Estendeu os braços musculosos, untados de gordura de urso e adornados com pequenos braceletes de plumas.

— Veja! Nossos corpos e nosso corações estão cobertos de cicatrizes. É o destino de nossa carne.

Seguindo o movimento dele com o olhar, ela levantou os olhos e, ao mesmo tempo, percebeu nos galhos secos

das árvores do inverno uma infinidade de gotas verdes, que perolavam. Os primeiros brotos.

Soprava um vento suave. O silêncio era total. Os guerreiros do chefe iroquês se haviam afastado, e, ao vê-lo ali

sozinho perto dela, Angélica teve medo.

— Cuidado para que nãò o capturem! — disse, olhando para todos os lados.

O rosto de Utakê anuviou-se, e ele reassumiu a aparência aterrorizante, com os olhos a faiscar.

— Quer dizer que ousariam levantar a mão contra mim enquanto estou debatendo a paz com você e quando

temos entrenós uma faixa de wampum de tamanho valor?

Ele tremia de indignação.

— Veja a que ponto de deslealdade podem chegar seus irmãos franceses, já que você mesma pode considerá-los

capazes de cometer tamanha desonra!

Grunhiu e, avançando o braço, pousou sobre o ombro de Angélica a mão engordurada, suja do sangue dos

escalpos que naquela manhã ele "colhera" dos crânios de franceses, aqueles irmãos malditos, amados demais,

temíveis demais, decepcionantes demais...

— Que também eles tenham cuidado! Posso levá-la como refém.

— Não! — protestou ela. — Falei porque temi por você, mas falei como mulher... sem refletir.

— Você temeu por mim? — repetiu .ele, suavizando o tom.

— Sim! Porque notei que seus guerreiros se afastaram e que você estava sozinho. Mas conheço sua força.

Julguei mal meus irmãos e fiz mal ao duvidar da lealdade deles. Ninguém lhe prepara uma cilada, Utakê, juro-

lhe. Este dia não é de astúcia e traição. A população de Quebec está sem defesa, pois muitos soldados partiram

com o governador. As mulheres e as crianças de Quebec o bendirão pela sua generosidade, se você desistir de

consumar sobre eles sua vingança.

— Não irei além da orla deste campo — afirmou ele, categórico. — É essa a minha vontade, para agradar você.

No bosque em frente, eles estremeceram ao ver a mão do selvagem sobre o ombro de Angélica.

— Ele levantou a mão para ela!

— Vai levá-la!

Mas o quartel-mestre do Gouldsboro continuava a mascar seu tabaco e a pedir sangue-frio.

— Não compliquem a missão da Sra. de Peyrac. É uma pessoa que sabe o que faz, como o marido, nosso

almirante.

E Jacques Vignot, o carpinteiro que se encontrava entre eles, casquinou:

— Ela já enfrentou outras, no ano passado em Katarunk. Eu estava lá. — Puxou o cabelo. — Naquela ocasião

dei estas gadelhas por -perdidas. Mais do que hoje. Mas todos nós escapamos.

Utakê retirara a mão do ombro de Angélica.

— São estas as minhas intenções, informo-a: irei ao encontro de Teconderoga e Onôncio. Será que meus dois

grandes irmãos franceses saberão conter esses bastardos, os huronianos e os abe-nakis, dispostos a destruir a

qualquer preço nosso povo, o Povo das Casas Compridas?

— Haverão de contê-los. Abenakis e huronianos lhes obedecerão. Utakê, você passou muito tempo longe, lá em

seu feudo de Niágara, guardando a grande queda-d'água que protege seu vale escuro... Já não vê como se

distribuem as forças das nações indígenas. Os huronianos, talvez em resultado de seus ataques, mas é um fato, já

não passam de um povo dizimado, e só podem subsistir à sombra dos franceses. Os abenakis são batizados, na

maioria. São menos inimigos dos iroqueses do que aliados dos franceses.

— Hum! — grunhiu ele. — Desconfio dos abenakis, que o Toga Negra levantou contra mim. São numerosos,

grandes guerreiros sem palavra... Veja Piksarett, essa doninha traiçoeira...

— Não o cite... Você bem sabe que ele está fora dos tratados. Não sobrecarregue seu povo com um fardo

demasiado pesado por obra de um único homem. Você conhece Piksarett? Ele é como o glutão, o Diabo das

matas. E sozinho e persegue um único objetivo: o seu próprio, que ninguém sabe qual é...

Os olhos do mohawk se franziram a ponto de se reduzirem a uma fenda brilhante e móvel, como mercúrio. Era

sua maneira de sorrir ou de indicar alegria.

— Vejo que você nos conhece bem, pelo que somos, índios, povo das florestas. Que seja! Rendo-me a seus

argumentos. Não quero mal a Piksarett.

— Até lhe está agradecido, porque lhe deu um motivo para vir a Quebec, manifestar sua força e a habilidade de

suas campanhas.

— Você nos conhece bem! — aprovou novamente o iroquês, satisfeito.

As feições dele continuavam a iluminar-se com aquela onda de sorriso divertido.

— Foi assim, não discordo.

Depois apontou o colar de wampum aos pés de ambos.

— Pegue de volta este colar e continue a guardar, por intermédio dele, a palavra das Mães das Cinco Nações.

Doravante se saberá que é bom estar entre seus aliados. E a paz poderá continuar reinando nas margens do Mohawk.

Agora vou ao encontro de Onôncio e Teconderoga. Vou reclamar miçangas de tratados, com que eles devem

certificar-me de sua palavra.

— Sei que levaram inúmeros wampuns e uma quantidade ainda maior de presentes para você.

— Gosto de ouvi-la. E você, mulher, pegue de volta este colar. Guarde-o como um sinal entre nós. Pelo menos

enquanto você viver e enquanto houver este colar entre nós, haverá esperança. Falei!

Angélica se inclinou para apanhar a faixa de conchas cujo desenho, sobre fundo branco, representava as mães do

conselho iroquês, em círculo à volta de sua presidenta, a enviar uma chuva de feijões destinados a alimentar os

brancos de Wapassu que iam morrer de fome em seu forte de madeira, isolado pelo inverno.

Quando se levantou, Utakê tinha desaparecido. Apagara-se como uma sombra, sem que ela notasse um roçado do

pé dele no chão nem o estalido de um raminho.

E não fosse pelo cheiro de fumaça e de carne queimada que subia da ravina, era como se a passagem dos iroqueses

tivesse sido um sonho.

Com o wampum enrolado debaixo do braço, Angélica desceu pelo campo em rampa. Sentia-se levemente

atordoada. "Eles não passam de pobres selvagens", pensou, "pobres selvagens desconcertados, inquietos, procurando a

estrela de seu universo transtornado."

Caminhava de olhos baixos, e agora via nitidamente, por toda parte à sua frente, aqueles talinhos de relva

enrodilhados, que apontavam entre pedaços de argila dura que sua frágil força afastara.

— E agora ela volta como se tivesse ido colher flores — cochichou o miliciano, confuso.

Bem que lhe haviam dito que a Dama do Lago de Prata não era como as outras. "Sim! Realmente! Ela não é

como as ou tras!"

Angélica encontrou sob as árvores inúmeras cabeças ávidas e caras estupefatas, pois, enquanto confabulava lá

em cima com Utakê, o contingente de defensores fora engrossado ali embaixo, com todos os indivíduos que

podiam portar armas e que tinham acorrido para os pontos ameaçados, a fim de defenderem a cidade.

— Utakê me deu sua palavra — disse ela. — Vai retirar-se. Poupa Quebec. Não retornará.

Quando regressava à cidade, rodeada por todos os que haviam presenciado seu encontro com o chefe dos

iroqueses, uma mulher saiu de uma casa para se lhe atirar aos pés.

— Você foi ao encontro daquele bárbaro assim como Santa Genoveva foi ao encontro de Atila. Você salvou a

cidade assim como ela salvou Paris... Deus a abençoe!

Foi assim que a Sita. d'Houredanne apresentou as coisas, numa correspondência que se revelou uma autêntica

crónica do ocorrido, hora a hora.

A Cidade Alta fervilhava. O tempo todo chegavam notícias de diferentes pontos da batalha, para onde haviam

seguido espontaneamente, sem terem tempo sequer de solicitar ordens, todas as pessoas que, num momento de

sua vida cotidiana, tinham sido surpreendidas, informadas do que estava acontecendo. Alguns, por um

pressentimento; outros, por um odor, um rumor longínquo, um aspecto do céu. Com os iroqueses, assim como

com os incêndios, era uma questão de rapidez. Havia que cair em cima deles, sem esperar...

A Cidade Baixa, de frente para o rio, e a Cidade do Meio, a meia encosta, ficaram quase que à parte do drama,

apesar dos sinos de alarme. Foi o tempo de subirem à Cidade Alta para se informarem, e os defensores já

refluíam, trazendo seus feridos, rodeando os sobreviventes dos massacres da vizinhança, que, por milagre' se

haviam escondido ou fugido em tempo. Susana veio ao encontro de Angélica, gritando de longe:

— Ele está salvo! Ele está salvo!

— Quem?

— Nosso Cantor!

Foi assim que Angélica ficou sabendo, ao mesmo tempo, que um pelotão de rapazes da Cidade Alta seguira na

corrida ao encontro dos iroqueses e fora dizimado num combate corpo a corpo, a machadadas e golpes de tacape,

mas que Cantor, que integrara o grupo, retornava são e salvo.

De medo pelo que ocorrera e de alívio, Angélica sentiu que as forças lhe fugiam.

— Senhora, venha logo sentar em casa.

O jovem Alexandre de Rosny fora morto, bem como um filho de dezesseis anos do Sr. Haubourg de

Longchamp.

O objetivo dos jovens encabeçados por Cantor fora ir em socorro de um fortim construído nos arredores de

Quebec pelo Sr. de Peyrac, e onde três dos homens dele lutavam, bloqueando a passagem a tiros de mosquete.

Estavam prestes a ser dominados, quando os rapazes chegaram. A intervenção permitira manter à distância mais

de duzentos iroqueses, salvando assim os acampamentos de huronianos em Loreto e em Sainte-Foy, que tiveram

tempo de entrincheirar-se sob a orientação dos jesuítas de suas paróquias.

De repente os iroqueses se retiraram para a mata e desapareceram.

Angélica perguntou sobre as ursuíinas e suas alunas. Logo que soara o primeiro alarme, o mosteiro fora

rodeado de soldados e defensores, mas como o inimigo não pudera avançar para além do fortim dos homens de

Peyrac, para o lado de Sainte-Foy, a cidade inteira, na verdade, permanecera calma. No momento, no convento

das ursuíinas, as religiosas proferiam uma ação de graças, enquanto as crianças comiam sua merenda, como de

costume.

Na casa, havia muita gente: os filhos de Susana, a quem os adultos reconfortavam, e os vizinhos, a pedir

notícias. Angélica subiu e fechou-se no quarto, como fizera algumas horas antes, num momento que agora

parecia inacreditavelmente longínquo.

Cantor estava salvo. A cidade estava salva. Utakê se retirara.

Jogou o colar de wampum em cima da cama e o contemplou de longe, como num sonho. "Obrigada! Obrigada

às Mães das Cinco Nações!", disse consigo várias vezes. "Um dia irei até o vale dos cinco lagos para agradecer a

elas."

Estava esgotada. Como que vazia. Acontecera, e o pior perigo passara. Mas Angélica não estava feliz. Seus

olhos toparam com o caco do pequeno aquecedor de louça, que quebrara num acesso de cólera impotente, e

soltou-lhe a recordação da catástrofe que não parara de corroê-la em surdina e de picar-lhe o coração enquanto

corria ao encontro de Utakê, para detê-lo, assim como Santa Genoveva fora ao encontro de Atila. Só que Santa

Genoveva não levava no coração uma dor tão pungente. A dor se avivava, como a de um ferimento entorpecido

pejo choque.

A vida ia continuar e, com ela, Angélica teria que enfrentar uma visão corrosiva. Joffrey traindo-a. Joffrey

dedicando a Sabina de Castel Mogeat aquele mesmo sorriso que a transtornava. Ele... Ele, que era tudo para ela.

Sem quem ela não podia viver. Já não a amava, cansara-se dela...

Seu pensamento, então, se deteve, pois ela sentiu um tom falso no que lhe passava pela cabeça. Declarar que

ele já não a amava e que se cansara dela era tragédia de mau gosto, que devolvia um som oco. A ideia valia tanto

quanto quererem convencê-la de que Nicolau de Bardagne tinha mais importância para ela do que Joffrey. Pobre

Bardagne! Se pudesse, ela de bom grado o riscaria com uma penada, o apagaria com um sopro.

Mas ele! Ele! Era diferente! Ele não era como uma mulher atordoada... Angélica exasperou-se ante a ideia de

que Joffrey pudesse ter desejado Sabina de Castel-Morgeat, tanto mais que fora ela a primeira a notar a beleza

original da fidalga tolosana. A hipócrita alcançara seus objetivos! Enquanto Angélica se acreditava cada dia mais

segura do amor do marido e desabrochava sob a irradiação desse amor, a bela dama tolosana se ocupava em separá-lo

dela.

"É bem feito para você! Isso lhe,ensinará!" .

A catástofre perfurava-lhe no coração um orifício ardente. Nunca mais... Nunca mais as coisas seriam como antes.

Não conseguia desviar os olhos daqueles cacos de sonho a seus pés, sinal de uma realidade que o jovem Ana-

Francisco, vingativo, lhe atirara no rosto numa aurora tão bela. Quando fora aquilo? Havia muitíssimo tempo, em

outra vida... Outra vida tão bela! Tão bela! E que ela perdera...

Uma voz chamava-a lá fora, com apelos lancinantes.

— Angélica! Angélica! Uma voz detestada.

— Angélica! Angélica! Por piedade!

A voz aproximava-se, subindo da rua. A voz de Sabina de Castel-Morgeat.

Angélica ergueu a cabeça, não podendo crer nos próprios ouvidos. Como é que a miserável ousava?!

O chamado agora já não vinha da rua, mas de dentro da própria casa. Gritos agudos, misturados com soluços que

se elevavam por entre um clamor de vozes apiedadas, prodigalizando recomendações de calma e de esperança,

palavras de conselhos e consolo, gritos agudos, misturados com soluços.

— Angélica! Angélica! Socorro!

Angélica saiu lentamente do quarto e chegou ao patamar, nuir passo trémulo, que pousava como num chão

algodoado. Embai xo, no salão, entre as cifras brancas das comadres, de Susana t Iolanda, entre os soldados e os

vizinhos que ainda empunhavam mosquetes, entre as crianças e os sobreviventes, envoltos em mantas diante do fogo e

que se reconfortavam com tigelas de sidra, sopa e vinho quente, avistou Sabina de Castel-Morgeat, que estendia os

braços para ela.

— Angélica! Venha! Venha depressa! Suplico-lhe! Ana-Francisco! O meu filho! Minha criança! Está

terrivelmente ferido! Está morrendo! Nenhum cirurgião ousa cuidar-lhe dos ferimentos... Somente você! Somente

você poderá salvá-lo!

No alto da_ balaustrada da escada, Angélica agarrava-se com as duas mãos ao corrimão e fitava a Sra. de Castel-

Morgeat com olhares fulgurantes. Não ouvira nada.

— Como ousa atravessar a soleira de minha casa?.E dirigir-me a palavra, depois do que me fez? — disse, numa voz

abafada. — Como tem cara para" se apresentar à minha frente sem corar?

Sabina, já pálida, tornou-se lívida. As pupilas dilatadas grudaram-se à fisionomia de Angélica, como se fitassem.uma

aparição assustadora. E entendeu que acontecera o que ela temera o tempo todo: que Angélica soubesse um dia

daquele momento único de fraqueza, fora do tempo e da vida, que ela conhecera nos braços de Joffrey de Peyrac.

Um momento que só pertencia à vida deles, e que não mudava nada ou mudava pouquíssimo no curso das coisas.

Só que ela, Sabina, fora salva.

Extremamente perturbada pelo perigo mortal em que se encontrava o filho, Sabina não teve tempo de fingir,

como da outra vez, de recompor-se, protestando contra a acusação.

E Angélica, vendo surgir-lhe nos traços todos os sinais da culpa, sentiu que seu coração parava, imobilizava-se, como

que apertado por um punho de gelo.

Não ouvia mais nada. Um ronco de torrente troava-lhe aos ouvidos, enchia-lhe a cabeça. Ela se agarrava ao

corrimão para não cair.

As palavras súplices de Sabina não chegavam até ela.

— Angélica, não se recuse a salvar meu filho... Não condene meu filho por minha causa! Meu único filho... meu

amor, minha vida!

Ouvia somente aquela voz maldita que dizia palavras assustadoras, entre as quais se insinuava "amor".

— Cale-se!

Sentindo-se paralisada e louca de medo pelo filho, Sabina caiu de joelhos sobre o lajedo, levantando para Angélica

as mãos postas, apertando-as com tanta força que seus dedos se tornavam brancos, translúcidos.

— Perdão! Perdão!

E Angélica lhe teve um ódio de morte. Pelo seu rebaixamento, que era uma confissão, Sabina não lhe deixava

sequer a esperança da dúvida. Sempre soubera que era verdade. No entanto, naquele instante, que a condenava sem

remissão, achou que morreria de sofrimento.

— Você me tomou meu marido!-— urrou:

"Imbecil!", pensou. "Bem sabe que ela não lhe tomou absolutamente nada." Mas estava fora de si. Tinha que

gritar, gritar alguma coisa, ou sufocaria de raiva ou pesar.

— Cale-se! Levante-se! E saia da minha casa! Você me dá nojo!

Sabina continuava de mãos postas e tremulas na direçào dela.

— Venha! Venha! — repetiu, numa voz entrecortada, que lhe passava pelos lábios com dificuldade.

— Não!

— Meu filho! Minha criança! Meu orgulho!

— Não!

— Ele vai morrer...

— Pois que morra, aquele imbecilzinhò!

A Sra de Castel-Morgeat ficou sem voz. Atingida em pleno coração, viu-se em meio a um pesadelo onde seu

universo, instável, sim, mas muito amado apesar de tudo, desmoronava. Naquela mulher que se debruçava para ela, viu

uma desconhecida cruel, não era Angélica. Angélica desaparecera. Talvez nunca tivesse existido. Em breve Ana-

Francisco já não seria mais do que uma sombra, longe dela.

Deixou tombar as mãos. Levantou-se penosamente. Em pé no círculo mudo dos presentes petrificados, procurava

com os olhos um meio de romper a prisão daqueles olhares e fugir.

Alguém se precipitou para lhe abrir a porta da rua.

Precisava voltar para junto de Ana-Francisco, revê-lo antes que ele a deixasse. Tinha necessidade dela. Talvez a

chamasse.

Atravessou a sala, desceu os degraus que conduziam ao pequeno vestíbulo e saiu. As pessoas afastavam-se dela como

que diante do símbolo do luto, do desespero e da maldição.

Depois que ela saiu, o véu que enevoava a vista de Angélica pareceu dissipar-se. Viu-se de repente no alto da

escada, dominando o grupo de pessoas, que não proferia palavra.

Teve a impressão de que nunca dissera tanto e fizera tantas tolices num instante tão curto. Diante da expressão de

estupor dos presentes, ocorreu-lhe que ninguém sequer suspeitara de seu infortúnio,- éxceto os protagonistas, a

Delpech e o filho ciumento, e que era ela mesma que acabava de informar Quebec — de cátedra, por assim dizer.

Tanto pior. Gritar lhe fizera bem. De súbito tomou consciência dos olhares alçados para ela, cheios de espanto, de

incompreensão. Rostos simples e cândidos.

A cólera abandonava-a, deixando-a vazia de rancor e sem saber sequer por que sofrera tanto. Não tinha havido

motivo real. Estava cansada.

Dissera coisas horríveis: "Que ele morra, aquele imbecilzinho!"

Imaginou Florimond à morte, perdendo a vida que ele tanto amava. Seu olhar procurou o de Susana, a mulher

corajosa, tão franca, tão jovemr tão "natureza", uma irmã de coração, feita à sua imagem.

— Susana, o que devo fazer?

— Senhora, não pode deixar aquele belo garoto morrer. Angélica deu de ombros. Era exatamente um protesto de

mãe.

As mães são todas iguais. Como ela! Amam a beleza. Todo jovem é belo, o prolongamento da vida dada e

defendida por elas. A morte de um homem as atinge na continuidade da obra delas e no sentido do combate que

empreendem. Com frequência, com o filho que desaparece, advém o fracasso de uma vida de mulher, a negação de

tantos cuidados e sonhos.

— Irei — disse. — Mas como é duro, Susana, como é duro!

— A senhora pode.

— Mande-me Pacômio, para me carregar a sacola... Entrou em seu gabinete de plantas e escolheu o necessário.

Susana pôs-lhe o manto sobre os ombros.

Na rua, Angélica ficou surpresa ao avistar Sabina de Castel-Morgeat, que mal ultrapassara a casa da sita.

d'Houredanne. Esmagada pela dor, avançava a passos vacilantes, curvada como uma velha, apoiando-se aos muros.

Angélica alcançou-a e pegou-lhe o braço, dizendo:

— Apresse-se.

Com o pequeno Pacômio a carregar a sacola de medicamentos a correr logo atrás delas, a Cidade Alta viu-as

passar assim, o ue mais tarde invalidaria os comentários acerca da briga terrível que ocorrera entre elas.

A caminho, Angélica indagou sobre os ferimentos de Ana-Francisco.

— Foi ferido no ventre. E como você costurou...

— Os ferimentos não são todos iguais... Nada me diz que desta vez poderei fazer alguma coisa...

No salão do Conselho, no Castelo Saint-Louis, haviam-se disposto enxergas pelo chão, colocando ali os primeiros

feridos, entre os quais o jovem Castel-Morgeat. As senhoras da Sagrada Família, encabeçadas pela Sra. de

Mercourville, tinham levado todo o necessário para os primeiros socorros.

Aproximaram mesas e escabelos do local onde o ferido jazia, e preparavam cuias e panos, enquanto mandavam

vir das cozinhas caldeirões cheios de água.

Era difícil comparar o caso do rapaz com o de Aristides. Os ferimentos eram inúmeros, e ele fora golpeado na

cabeça. Não estava encharcado de álcool, como o velho pirata, coisa que não o prejudicara e até parecia haver

colaborado na cura. Por outro lado, o jovem não permanecera estripado por tanto tempo quanto o pirata. Agindo-se

depressa, podia-se esperar que a juventude saudável e robusta fizesse o resto.

— O que está esperando? O que está esperando? — gemia Sabina de Castel-Morgeat, torcendo as mãos.

Angélica teve vontade de mandar trancá-la em algum quarto afastado. Sabina perturbava as correntes benéficas

que ela tentava criar em torno do ferido com um pensamento confiante. Fez sinal à Sra. de Meicourville e

murmurou-lhe que seria uma caridade se alguém pudesse ocupar-se da Sra. de Castel-Morgeat.

— Eu me encarrego.

— Não! Preciso de você.

— Irei eu — disse a meiga Sra. de Beaumont.

— Acompanho-a — interveio Berengária Amada de La Vaudiére. Foi louvável da parte dela oferecer-se.

Berengária não gostava de sacrificar-se nem de perder o papel principal. Mas todos aqueles horrores, aquele sangue e

ferimentos a faziam desfalecer.

Uma pessoa só não conseguiria afastar a Sra. de Castel-Morgeat da cabeceira do filho. Mas a duas não pôde resistir.

Berengária também teve a ideia de mandar chamar a Sra. Le Bachoys. As três juntas arrastaram a Sra. de Castel-

Morgeat para a igreja e rezaram uma boa hora com ela. Mas, como traziam os mortos para a absolvição, em meio a

soluços e prantos, e o dobre de finados começasse a soar em notas lúgubres, levaram-na para ajudar na instalação dos

refugiados e depois à Santa Casa, onde auxiliaram no preparo de caldeirões de sopa.

Angélica pusera-se ao trabalho. Enquanto fervia as plantas e mergulhava os instrumentos de cirurgia no frasco de

aqua vitae, a Sra. de Mercourville lhe agradecia profusamente, a meia voz, .por haver salvado a vida dela e de

vários de seus filhos.

— Fiz o que piíde — disse Angélica. — O chefe iroquês me devia obrigações. Eu podia esperar que ele me desse

ouvidos.

— Não foi isso!

A Sra. de Mercourville falava de uma intervenção mais direta, mais pessoal: o encontro que tinham tido no

momento em que desciam rumo ao porto com as peças do tabernáculo de Santa Ana e que determinara aquele

furãozinho da Ermelina a precipitar-se atrás de Angélica fizera com que perdessem a primeira barca. Dois filhos da

Sra. Mercourville, que já tinham subido a bordo, desembarcaram para esperar a mãe e a ama. Ora, corria o boato de

que a barca em questão fora atacada ao lado da ilha de Or-léans por uma nuvem de iroqueses, cujas canoas surgiram

de repente por detrás de um promontório, e todos os passageiros haviam perecido.

— Deo gratiasl

A mão de Deus estava sobre os sobreviventes, poupados pelo acaso de um encontro benéfico com Angélica.

Ela passaria várias horas à cabeceira do jovem Castel-Morgeat. Chegavam notícias, a zumbir à volta dela e de sua

competente auxiliar, a Sra. Mercourville.

Contava-se que os bárbaros haviam precisado contornar o mosteiro dos recoletos, solidamente defendido pelos

monges, cujo comando Loménie assumira. A resistência retardara o avanço do inimigo e lhe infligira muitos danos.

Ville-d'Avray chorava seu belo Alexandre.

_ Minha criança! Minha criança! — repetia.

Tinham evitado mostrar-lhe o corpo, pois o corajoso adolescente fora escalpelado, mas o marquês desconfiava

disso, e seu sofrimento redobrava, quando pensava naquela cabeleira loura pendurada à cintura de um selvagem.

As ursulinas mandaram anunciar que as aluninhas da cidade dormiriam aquela noite no convento, para não

precisarem voltar para lares transtornados pelo luto e para o triste espetáculo de feridos e mortos.

Honorina devia estar encantada com essa variação da vida co-tidiana. Mais tarde se saberia que ela esperara

resolutamente pelo iroqueses, de arco e flecha em riste.

Os homens de Peyrac, que tinham participado da defesa da cidade, foram aclamados nas tascas para onde os

arrastaram a fim de lhes pagarem rodadas sem conta de bebida. O devoto Mari-voine não parava de relatar o

encontro da Sra. de Peyrac com o assustador chefe das Cinco Nações.

— Se a tivessem visto com o colar de wampum, correndo por toda parte como uma andorinha verde...

— E você por acaso já viu andorinhas verdes?

Afinal Angélica chegava ao fim de seus labores. Tivera que fechar cada ferimento, um após o outro, impedir que

evoluíssem, amparar as forças do jovem inconsciente. Já anoitecia, quando ela cortava, à luz dos primeiros

castiçais, o último fio com que cosera o corte arreganhado, que uma machadada abrira na coxa do rapaz. Depois

aplicou emplastros de milefólio e de sínfito, cataplasmas ao mesmo tempo emolientes e cicatrizantes.

Sabina de Castel-Morgeat voltara a sentar-se junto ao filho. Estava calma, vendo que ainda respirava e parecia

sofrer menos.

A Sra. de Mercourville partira para ver sua gente.

Berengária ofereceu-se para ajudar na arrumação.

O Sr. d'Avrenson, major comandante de Quebec, na ausência do Sr. de Frontenac, veio indagar sobre o estado

do ferido.

Angélica lavava as mãos. Estava esgotada. Tomou de um gole só dois copos de água fresca e sentiu-se melhor.

Nisso entrou um jovem soldado, com ar assustado, a dizer que os iroqueses, soltando seu grito de guerra e' subindo

o rio em canoas, avançavam sobre a cidade.

CAPITULO XV

O cortejo de mil iroqueses sobre Quebec

Era impossível, replicaram-lhe. Os iroqueses tinham partido.

Sim! Mas estavam voltando, disse ele. Estavam voltando pelo rio.

— Utakê me deu sua palavra! — exclamou Angélica.

— Venha ver!

O soldado levou-os ao grande terraço que corria ao longo de toda a fachada sul do castelo, dando para o Saint-

Laurent, e que permitia observar um vasto círculo de horizonte.

A noroeste, no ponto onde a ilha de Orléans se aninhava, contra um crepúsculo azulado, mais azulado por estar

impregnado da fumaça que continuava a acumular-se, elevando-se das ruínas das fazendolas e das casas, miríades de

luzes pareciam dançar, acendendo e apagando como pirilampos.

Um ronco surdo, elevando-se a intervalos regulares, subia em ondas até eles.

— Ouça! Os "sassakuês" deles! Os gritos de guerra! — disse o

jovem soldado, tremendo.

Que vontade de provar a ele que se tratava de um ronco de tempestade e que os clarões a atravessar a noite e a

salpicar a superfície da água, intermitentemente, eram relâmpagos! Mas não havia como.

Iluminadas de tochas, várias canoas surgiam dos dois lados da ilha de Orléans, convergindo para reunirem-se no

centro do rio, na extremidade sul da ilha.

A cidade começou a agitar-se. Abriram-se janelas, brotou um murmúrio que se ampliou em lufadas caóticas e

inquietas, de súbito atravessadas por um longo grito agudo de mulher assustada, vindo da Cidade Baixa:

— Eles estão voltando!

Também deu vontade de crer que se tratava .de mais uma demonstração espetacular de intimidação, talvez de

adeus.

No entanto, a massa ao longe movia-se, e os assistentes adivinharam que, depois de reunida na noite, agora

profunda, a floti-lha iroquesa encetava a marcha rumo a Quebec. Não se podia duvidar de seu avanço. Os gritos se

tornavam mais audíveis. Às vezes havia uma interrupção naquele ronco contínuo, um ponto de silêncio, depois uma

nova explosão de clamores subia e troava por longo tempo.

Na cidade Alta, do lado da Place d'Armes, um rumor de pânico bateu às portas diante do pátio de honra do

Castelo Saint-Louis. As mulheres e crianças do acampamento dos huronianos no bairro Sous-le-Fort, abandonando

wigwams e paliçadas, suplicavam que os deixassem entrar para se porem sob a proteção dos soldados do

governador.

— Que os deixem entrar! — autorizou D'Avrenson. — Ficam enlouquecidos com a aproximação de seus inimigos

mais ferozes, que lhes dizimaram a nação.

"Não é possível", repetia Angélica consigo, torcendo as mãos. "Utakê me prometeu..."

Mas, no fundo, o que foi que ele lhe prometera? Não sabia mais nada. O que ocultavam aqueles discursos que ele

proferira em sua voz rouca e monocórdia? O que foi que ela não soubera discernir por trás das ameaças dele, dos

conselhos e alusões?

"Rivalizamos em audácia e astúcia!" A vitória caberia àquele que enganasse e voltasse a enganar, sempre melhor e

cada vez mais sorrateiramente, o inimigo irredutível.

"Ah! Nunca entenderei nada desses índios!"

Angélica tinha a certeza de que ainda havia algo a fazer. Mas o quê?

Mais tarde ela se felicitaria pelo fato de o Sr. d'Avrenson, por feliz acaso, encontrar-se no castelo naquele

preciso momento, pois ele faria um comentário que poria fim à sua perplexidade. Esse corajoso gascão viera para o Canadá como alferes do regimento de Carignan-Saliere. Participara da

campanha do Sr. de Tracy e tinha uma longa experiência da guerra com os iroqueses. De cabeça inclinada, ele ouvia com atenção, e disse subitamente:

— Não são "sassakuês"... Não são gritos de guerra!

— São o quê, então?

— Gritos, insultos, zombarias. Eles estão cantando. Cantam ameaças... Lembram o mal que lhes foi causado.

Mas não estão soltando gritos de guerra.

— Tem certeza?

— Absoluta!

Angélica pousou a mão sobre o pulso do oficial. Apertou-o convulsivamente.

— Senhor, eu sinto... sinto e entendo o que eles querem... Querem passar. Foi isso o que pediram em Katarunk:

que os deixassem atravessar o Kennebec para voltarem para... Passagem! Sinto e entendo as intenções de Utakê...

Mas o velhaco absteve-se de salientar minha inconsequência, quando eu lhe disse que fosse ao encontro de

Onôncio... Imaginava que não fosse revê-lo... Ele não me lembrou que, para fazer isso, seria obrigado a subir o

rio até a embocadura do Chaudiere, ou seja, passar sob Quebec... E deve estar se regozijando com o-susto que

nos causou... Talvez espere que em nosso nervosismo rompamos a trégua... Major, peço-lhe, envie mensageiros

em todas as direções: que não se dispare um único tiro de mosquete... Nem uma flecha... Avise os sacristãos das

igrejas: que de modo algum toquem os sinos de alarme... E despache emissários pelas ruas, para avisarem os

habitantes e transmitirem suas ordens. Que se apaguem todas as luzes em todas as casas... e todas as fogueiras do

porto. Que nada atraia a atenção dos guerreiros iroqueses que possa parecer-lhes uma provocação nem lhes

desperte os instintos homicidas e saqueadores. A face que devemos apresentar-lhes é a de uma cidade morta, às

escuras. Uma cidade insensível a seus gritos. Uma cidade que não os teme e que os vê passar dignamente. Eles pas-

sarão, Sr; d'Avrenson, irão embora, e estaremos salvos.

A mão sobre o punho do major o queimava.

Galvanizado, elé se lançou para fora. Reuniu seus oficiais, que imediatamente despacharam mensageiros e soldados

levando ordens.

Dominando os clamores surdos, ouviram-se abater sobre a cidade, como granizo, os estalidos das janelas a fechar-

se rapidamente, correrias pelas ruas, latidos prontamente abafados enquanto os cães eram levados para dentro de

casa pelos donos, as exortações lançadas pelos militares ou pelos arqueiros, a percorrer vielas e praças.

— Tranquem-se! Tranquem-se!

E as barras de ferro ou de madeira grossa foram postas de través atrás das portas.

A vela da Candelária foi acesa e colocada embaixo da cornija da lareira. A mulher e os filhos se ajoelhavam, de

terço na mão, diante da estátua da Virgem. O homem, fosse quem fosse, e apesar do que lhe diziam, punha

mosquete, balas e pólvora ao alcance da mão. Se aquela horda de canibais resolvesse de repente desembarcar nas

margens de Quebec, seria preciso defender a cidade, pé a pé, rua a rua, casa a casa.

Artesãos, comerciantes, lojistas, todos tinham uma arma. Assim o exigia a vida no Canadá.

Angélica retornara ao terraço do Castelo Saint-Louis. O coração Jhe batia disparado. "Que Utakê não me engane",

suplicou consigo, "que não me traia!" Ela não passava de uma mulher, coisa sem muita importância...

O Sr. d'Avrenson voltou.

— Senhora, tenho. que camuflar alguns atiradores à beira do rio... para estarmos preparados para qualquer

eventualidade.

— Você me garante o sangue-frio deles?

— Escolherei os mais velhos e mais disciplinados. Somente eu darei o sinal para disparar, caso isso seja necessário.

E permanecerei aqui, a fim de avaliar com a senhora, do castelo, os riscos que deveremos enfrentar. Estava saindo,

quando ela exclamou:

— Espere!... — e, a um criado que passava: — Tinta, uma pena!

Rabiscou um bilhete rápido, que não se deu ao trabalho de fechar, e entregou-o ao major.

— Tenha a bondade de mandar entregar esta mensagem ao Sr. de Barssempuy, que comanda o forte sob o cabo

Rouge. Ele precisa ser avisado e ter a coragem de deixar os iroqueses passarem sem disparar um único tiro.

Apagavam-se as velas, cobriam-se os fogos. As tochas de resina ou de-alcatrão, nos cantos das praças ou no porto,

eram retiradas dos suportes e enfiadas na água ou em areia.

As lanternas foram despenduradas.

A cidade apagou-se.

A cidade calou-se.

Angélica pedira que trouxessem castiçais para iluminar a.sala do Conselho e tochas que seriam fincadas nos

quatro cantos do terraço.

— Mas você disse que se devia apagar tudo — gemeu Berengária.

— Menos aqui. O topo do rochedo. O palácio do governador deve ficar iluminado. Utakê precisa avistar os

estandartes e as insígnias do rei da França. E precisa enxergar a mim e saber que o olho enquanto parte .à testa de

seus guerreiros e o admiro.

— Admirá-lo! — exclamou a mulher do procurador com um riso desvairado. — Você está louca! Será trucidada!

— Nenhuma arma têm alcance suficiente para nos atingir neste terraço. Se você tem medo, vá embora. Refugie-

se num quarto.

— Não! Não! Quero ficar com você. Você é a única a quem ele respeita e que pode proteger-nos com sua

ascendência sobre ele.

Sabina de Castel-Morgeat estava muito calma. Foi umedecer a testa e os lábios de Ana-Francisco, ainda

inconsciente, mas que lhe parecia mais.sereno. Depois voltou e postou-se junto de Angélica, em pé no centro da longa

galeria em belvedere,' com as mãos sobre a balaustrada.

— É verdade, você tem razão — disse. E acrescentou: — Você é admirável.

— Você é indomável! — balbuciou Berengária.

As duas mulheres adivinhavam, instintivamente, que, se o terrível selvagem não a avistasse, assistindo à sua

partida gloriosa e tonitruante, poderia ser presa de uma fúria sombria e perigosa.

Depois de distinguir uma mulher a ponto de lhe falar como igual, não suportaria que, ausentandd-se, ela parecesse

manifestar-lhe receio ou desconfiança. Talvez até desprezo, o que seria pior do que tudo. Seria mais uma provação a

que ela se submeteria. E, por felicidade, ela entendera em tempo.

Afinal! As duas esperavam que Angélica não estivesse enganada. Como saber, com aqueles selvagens volúveis e

sem honra!

Mas ela sabia, e as duas se sentiram mais calmas e corajosas, só de olhá-la.

De súbito elas enxergaram com clareza. Descobriram, novo, aquele belo rosto, cuja sedução tanto haviam

invejado. Aquele olhar verde, que elas acreditavam destinado somente a apanhar os tolos dos homens numa

armadilha, brilhava com o fogo de uma inteligência pelo qual agradeceram ao céu. Ela as salvaria. O destino delas,

sua vida e a dos seres a quem amavam dependiam de Angélica. Já estava fora de questão pensar que recebera tudo

injustamente, que lhes roubara tudo, e que retinha de modo imerecido a atenção dos homens e o amor exclusivo do

mais cativante de todos: Joffrey de Peyrac.

Todas essas mesquinharias ruíram no coração vencido e desamparado de Sabina e de Berengária.

Deram-se conta daquelas feições tensas, a indicar cansaço e preocupação. Desde o amanhecer Angélica não parara de

correr e de cansar-se. Não era de admirar que estivesse um pouco despenteada.

Dominando o medo visceral que a mantinha recurvada sobre mesma, Berengária aproximou-se dela e, com uma

mão trémula, começou a ajeitar-lhe o cabelo. Angélica, que, debruçada à balaustrada., tentava adivinhar s

movimentos da frota iroquesa, que parecia haver parado, fez um gesto impaciente para afastar a moça. Mas a Sra.

de La Vaudiere insistiu e com alguns toques compôs um penteado perfeito, atividade que teve a vantagem de distraí-la

por um instante de sua angústia. Sabina de Castel-Morgeat, depois de entrar um instante, voltou com o manto de

Angélica. A noite estava fria.

Angélica, sentindo sobre os ombros arrepiados a tepidez do manto, tomou consciência da presença das duas

mulheres.

— Obrigada! — disse.

Olhou uma e outra.

— Retirem-se, caso a vista deste espetáculo lhes seja demasiado insuportável.

Mas elas menearam a cabeça.

— Eles não pararam? — perguntou, em voz baixa, Sabina de Castel-Morgeat, esperançosa.

— Qual! Receio que tenha sido só para se reunirem.

Na entrada da garganta, onde o rio estreitava, entre a ponta de Levis e o cabo Diamant, em cujos flancos se

erguia Quebec, a frota iroquesa fizera alto, a fim de subdividir-se. Agora se punha em marcha de novo, com quatro

pirogas de vanguarda e uma única piroga grande na dianteira. Numa ponta desta primeira embarcação, um feiticeiro,

coberto com a cabeça e a pele de um bi-sonte, brandia o totem dos representantes da nação, cujas embarcações

vinham atrás.

Ao avistar aquele animal peludo na proa da primeira canoa a aparecer-lhes à luz das tochas, Berengária soltou um

grito abafado e agarrou-se a Angélica:

— Vamos morrer! Vamos todos morrer!

— Não olhe.

A mulher do procurador afundou o rosto entre as mãos. Não sabia se era melhor tapar os olhos ou os ouvidos.

Fazia ora uma coisa, ora outra, dependendo do que mais a aterro^ I zasse. De vez em quando não podia impedir-se

de olhar por entre os dedos, fascinada por aquele espetaculo alucinante; depo|s t horrorizada, desviava o rosto e

escondia-se atrás-do ombro de Angélica.

CAPITULO XVI

O fragor da horda selvagem

O urro de mil bocas encolerizadas, multiplicado pelo eco, saltou à face de Quebec, silenciosa e cega.

— Vocês nos traíram, franceses!

— Vocês nos bateram nas palmas das mãos abertas, quando elas se estendiam para acolhê-los!

Não havia a menor necessidade de entender as palavras; ouvi-las bastava para eriçar o cabelo.

— Ainda há umas luzes no porto.

O velho Topin corria ao longo das praias para apagar os seus fogachos. Despachara os filhos e os auxiliares:

— Escondam-se! Escondam-se! Aí estão eles! Metam-se no primeiro esconderijo que acharem!

Só lhe restava a apagar um braseiro de carvão na extremidade de um molhe de madeira. Chegava ali quando os

rugidos o recobriram como uma rajada de neve soprado por um vento terrível. Ele voltou, com a cabeça encolhida

entre os ombros. As primeiras canoas passavam.

Impelidas pela correnteza, passaram tão perto, que ele pôde ver, quase tocar, os rostos hediondos, os olhos cruéis

voltados para ele e as bocas abertas a cuspir insultos.

Em cada canoa ia um arqueiro, com os penachos da flecha agarrados à corda do arco.

Topin abandonou o fogacho. Apagar? Não apagar? Que diferença fazia? Aquelas tochas iluminavam como se

fosse pleno dia. E aqueles animais não enxergavam no escuro?

Deu meia-volta e correu para as casas à beira da água, que nunca antes Lhe haviam parecido tão distantes.

Nenhuma flecha lhe foi ao encalço, para cravar-se-lhe entre as omoplatas, e ele pôde enfiar-se são e salvo na

primeira casa — a de Le Bachoys, que ousou entreabrir a porta e a fechou quase no mesmo instante.

Era evidente que os remadores tentavam manter-se em ordem no meio do rio. Encontravam dificuldades. As

correntes contrárias eram fortes, e os remos, de pá em forma de amêndoa, afundavam a duras penas na água

negra recortada de turbilhões.

O suor do esforço escorria pelas costas e pelos braços dos guerreiros. Enumerando os próprios rancores,

encontravam um reforço de energia para lutar contra o rio tão duro, mau e temível quanto aquela gente cuja

cidade orgulhosa as ondas banhavam. Cidade muda, que se calava no escuro.

— Nós os acolhemos nas nossas wigwams. Matamos nossos cães fiéis para alimentá-los. Cozinhamo-los nos

caldeirões do banquete da hospitalidade... Mas vocês ainda tinham a boca engordurada de comida e já estavam

ateando fogo às nossas cabanas e aos nossos campos...

Quatro a quatro, as pirogas de diferentes tamanhos avançavam. Às vezes uma se isolava, aquela onde seguia o

feiticeiro com a pele de bisonte, a brandir um totem.

Angélica lembrou-se dos diferentes emblemas das Cinco Nações: o lobo, o cabrito, o urso, a raposa e a aranha.

Apoiada nela, Berengária gemia e recitava preces:

— Senhor, tende piedade de nós. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pobres pecadores, agora e na hora

de nossa morte!

— Veja! Utakê! — disse Angélica, estremecendo.

Sentiu a mão de Sabina de Castel-Morgeat agarrar-se à sua. Sozinho e em pé, ele ia no centro de uma grande

piroga com o sinal da tartaruga, emblema da confederação iroquesa. Era inquietante a força que emanava dele.

Alçou os olhos e a viu.

Viu-a. A única iluminada. Lá no alto! No terraço da orgulhosa morada de Onôncio, apertando contra si, para

protegê-las, duas de suas irmãs aterrorizadas. Viu-a. E era Kawa mesmo, a estrela fixa da lenda, brilhante e sem

medo. Assistia à partida dele. Isso exaltou. Pois desta vez ela o via antes que o poderio dos iro-ueses se

dissipasse. Via-o tal como ele era, aquele deus das nu-ens que conversava com os espíritos. Ele não era somente

um lerreiro a deslizar pelas florestas, conforme os brancos acreditavam, mas o chefe de uma nação. Passando

diante da sombra do rochedo, onde o clarão dos ar-hotes revelava as casas mudas, ele se regozijou com o fato de

la haver relegado às sombras todos aqueles covardes, conservando luz apenas para si e para ele. Era uma

homenagem. O que ela he exprimia era que o considerava grande e o único "de valor" naquela noite em que

todos os cães e chacais se ocultavam.

Ele então deixou-se arrebatar, de braços abertos e levantados para a cidade, machado e tacape no ar.

— Eu os destruirei, normandos... Arrancarei a cruz que plantaram... Hei de atá-los a ela para a tortura... Hei de

abrir-lhes o peito e comer-lhes o coração...

A voz rouca ia longe, fazendo retinir as falésias.

— Com os dentes lhes arrancarei uma a uma as unhas dos dedos... Com os dentes mais afiados lhes deceparei

as falanges e as cuspirei com desprezo, no fogo, como um naco de tabaco podre... Hei de cozinhar-lhes a carcaça

nos caldeirões de guerra e verterei essa água para envenenar os rios dos meus inimigos...

Para os que entendiam, havia motivo para estalar os dedos sob a coronha dos fuzis e assestar e mirar a arma

vinte vezes, na tentação de "matar" aquela voz odienta, de liquidar o maior inimigo da Nova França.

Para os que não entendiam, era quase igualmente assustador. Aquela voz na noite percorria a espinha e

petrificava de terror.

— O Demónio! O Demónio! Que ele se cale! — suplicava Berengária, agarrada a Angélica e escondendo o

rosto no ombro dela.

Tiveram medo de que os guerreiros, hiperexcitados com os gritos de ódio e apelos à matança, desviassem as

pirogas do meio do rio a fim de ganhar as margens e se lançar por elas, sedentos de escalpos.

O Sr. d'Avrenson ficou abalado. , — Devemos atirar? — indagou, numa voz surda.

— Não! Não! Pelo amor de Deus, não está vendo? Eles estão indo embora! Estão indo embora!

E também ele Utakê, passou. Imperceptivelmente a barca o levava para além de Quebec. Ele se calou. Durante

longo tempo ficou a contemplar a silhueta iluminada no topo da montanha.

Era o último sonho. A visão mais irrealizável com que ele sonhara para arrematar suaexpedição de guerra, uma

expedição que fora a mais louca e perigosa que jamais conduzira. Ele temia não poder organizar outras tão

prodigiosas para o .renome dos iroqueses. Pois as forças dos iroqueses definhavam. Estavam sendo rechaçados

para longe, para o vale sagrado, onde permaneceriam e onde seriam os últimos guerreiros livres.

A passagem da frota iroquesa com quase trezentas canoas pareceu durar uma eternidade.

Pouco a pouco a tensão na cidade se aliviou. Pelas fendas das paredes ou pelas janelas entreabertas, as pessoas

começaram a examinar com mais atenção o espetáculo espantoso oferecido por aquelas canoas compridas a

deslizar sob uma chuva de fagulhas desprendidas dos archotes, que se espelhavam na superfície da água luzidia e

faziam brilhar os penachos espetados das cabeleiras iroquesas, eriçadas de plumas e espinhos de porco-espinho.

Os olhares começaram a tentar perceber se os bárbaros não estavam levando cativos, capturados nas costas de

Beaupré ou na ilha de Orléans...

Foi só pelo final do cortejo, enquanto a escuridão, a avançar como uma esteira sombria, se fechava sobre as

últimas pirogas, que se avistaram, atirado no fundo de uma canoa, um homem amarrado e, em pé perto dele, duas

criancinhas, que gritavam e choravam de mãos estendidas para a cidade.

Esse instante em que Quebec se arrepiou, impotente, por detrás de suas janelas fechadas, e o momento em que

o chefe das Cinco Nações se ergueu em toda a sua soberba à luz das tochas, expondo-se, alvo odiado e

provocante, foram os dois instantes durante aquele desfile interminável em que Angélica acreditou que a partida

estivesse perdida. Parou de respirar, preparando-se para ouvir no segundo seguinte um tiro de mosquete espocar

e ver tombar um dos guerreiros orgulhosos que queriam saber até onde iria a paciência dos normandos. O tempo

estagnava-se. Era como se a flotilha iroquesa fosse ficar para sempre a subir a correnteza sob Quebec. No

entanto, em dado momento, para acompanhá-la com os olhos, foi preciso voltar a cabeça na dire-ção de jusante.

Depois, na primeira curva do rio, a massa compacta de embarcações começou a sumir, a diminuir. Até que

desapareceram as últimas canoas da retaguarda.

Por muito tempo ainda, no negrume do céu para além dos contrafortes do cabo Rouge, flutuaram o clarão dos

archotes e o rumor dos gritos. Aos poucos, porém, a claridade morreu e o clamor se extinguiu.

Uma noite opaca, percorrida por um vento de odores selvagens, com um acre ranço de fumaça, gordura e

carnificina, recaiu sobre a cidade e o rio, envolveu-os como que numa asa algodoada e ampla, e os reconduziu

suavemente, salvos, ao seio das trevas e do silêncio.

Lá no alto, no terraço do Castelo Saint-Louis, Angélica relaxou, soltou os braços e deu um profundo suspiro.

Em eco, dois suspiros igualmente profundos lhe responderam.

Angélica de Peyrac, Sabina de Castel-Morgeat e Berengária Amada de La Vaudiere entreolharam-se.

Deram-se conta de que ao longo daquela terrível provação não tinham deixado um instante de se agarrar umas

às outras, rezando, chorando, encorajando-se. Sabina fora a mais silenciosa, Berengária, a mais assustada. Mas

Angélica sabia que, amparando-as, estreitando-as contra si, num convulsivo impulso de proteção, encontrara a

força para suportar, sem fraquejar, a tensão daquela hora terrível.

As três soltaram outro suspiro, e disseram juntas:

— Obrigada, meu Deus!

Ninguém dormiu muito em Quebec naquela noite.

A Cidade Baixa, que contemplara mais de perto aqueles demónios sarapintados e ululantes, recobrava-se das

emoções nas tabernas. Levaram as crianças para as tascas, deram-lhes vinho, aguardente, cerveja. Crianças do

Novo Mundo que não temiam mais nada. Eque conservariam para sempre a recordação de uma noite em que,

numa algazarra infernal, tinham visto com os próprios olhos mil iroqueses desfilar sob Quebec, entoando insultos

aos franceses.

CAPITULO XVII

Brinde a uma "moça do outro mundo"

O Duque de Vivonne, ou Sr. de La Ferté, ferido, febril e muito indisposto, do ataque e da passagem dos iroqueses

só conheceu o abandono total a que sua criadagem o relegou.

Começara com a ausência do Barão de Bessart e do velho Saint-Edme. Despertando após um primeiro sono dolorido,

e sem poder readormecer, chamara-os a um ou outro, para jogar uma partida de gamão. Embora fosse alta

madrugada, não foram encontrados nos respectivos quartos. De manhã, ainda não tinham voltado.

Além disso, o lacaio que o barbeava e com cujo vigor Vivonne contava para se locomover no desconforto de seus

ferimentos tampouco estava ali.

Despachou para pedirem notícias, primeiro, o criado de quarto, e depois o secretário qué Carlon lhe pusera à

disposição. Os dois homens saíram e não voltaram. Vivonne acabou enviando, um depois do outro, o mordomo, o

cozinheiro e o ajudante de cozinha. Todos desapareceram.

Passou o dia sozinho, a enfadar-se, sem conseguir posição suportável ou mesmo arrastar-se para comer, dormindo e

acordando penosamente na mesma solidão, investindo as últimas esperanças na visita do cirurgião, que prometera

vir vê-lo mas tampouco apareceu. Pelo anoitecerão ajudante de cozinha retornou, muito nervoso, a cara lambuzada

de preto, a contar que um exercito de iroqueses investira contra Quebec, que os homens tinham lutado como

demónios e que a Sra. de Peyrac salvara a cidade.

Vivonne, que sofria muito, perguntou onde andava a cirurgião.

Estava cuidando dos feridos da batalha.

Os demais criados retornaram, afinal, exceto o criado de quarto, que levara uma flechada enquanto ia em

defesa de um fortim.

Vivonne esbravejou: não trouxera aquele imbecil da França para que ele se deixasse ferir numa guerra de

iroqueses, tem no dia em que o amo e benfeitor estava dolorosamente imobilizado e tinha a máxima necessidade

de seus serviços. A ele, ao criado, dispensavam cuidados, enquanto o duque ficava esquecido num canto, como

uma carcaça morta.

A febre aumentava, os ferimentos supuravam, o braço e a perna estavam inchados. Vivonne berrou que

mandaria todo mundo para as galés e que, almirante das galeras do rei que era, haveria de comprazer-se em vê-

los remar.

Onde estavam o Barão de Bessart e o Conde de Saint-Edme? Quando é que alguém ia se decidir a dar-lhe de

beber? Por acaso já não se tinham cansado de contemplá-lo ali, com aqueles olhos arregalados? Lamentava que

os iroqueses não os houvessem esfolado a todos...

Os criados puseram os pés no chão, esqueceram-se dos iroqueses e acorreram para acudir o patrão, com

dedicação. Refrescado, com os curativos que bem ou mal o mordomo lhe fez, e depois de engolir um caldo que o

cozinheiro e o ajudante de cozinha se apressaram a aquecer, depois de acender as lareiras, Vivonne se sentiu

melhor e muito cansado. O secretário retirou-se, garantindo-lhe que ele podia dormir em paz. O perigo passara.

Mas, durante a noite, Vivonne foi presa de pesadelos horríveis. Um estertor rouco de fera invadiu-lhe os sonhos,

aterrorizando-o até a medula. Inutilmente tapava as orelhas e, acreditando-se desperto, o mesmo rosnado não

parava de atormentá-lo, contorcendo-lhe as entranhas de medo. Readormecendo, via surgir monstros no meio

daquele alarido infernal e vir na sua direção, e de repente, pensar.do em feiticeiras e em venenos, entendeu,

pingando de suor, que morrera e estava no inferno, por todos os crimes que cometera.

De manhã, abrindo uni olho mortiço para uma aurora cinzenta e gelada, levou longo tempo a convencer-se de

que continuava vivo e que as formas inquietantes e corcundas que o rodeavam não passavam das poltronas,

mesas ou consolos do salão-biblioteca, onde lhe haviam preparado a cama, e não um recanto qualquer da

antecâmera de Lúcifer. No entanto, um prolongamento do pesadelo, a casa estava de novo irremediavelmente

silenciosa, fria e deserta. Seus chamados foram vãos. A solidão era completa, o abandono, intolerável, mas os

sonhos absurdos continuavam a colar-se-lhe à pele, embora ele se esforçasse por retomar pé na realidade. O

ajudante de cozinha surgia-lhe à cabeceira. De olhos arregalados, cochichavam-lhe que durante a noite inteira o

exército iroquês desfilara sob Quebec, soltando urros medonhos, que por pouco eles todos não haviam perecido e

que a Sra. de Peyrac novamente salvara a cidade.

O Duque de Vivonne tornou a fechar os olhos. O delírio anunciava o fim. Na qualidade de homem de campos

de batalha, que vira morrer muitos bravos, fez um esforço para farejar os próprios ferimentos, convencido de que

o odor nauseabundo que deles se desprendia confirmaria seu diagnóstico terrível de gangrena, causadora de febre

alta e de visões. Espantou-se por não notar nada disso e sentir mais lépido. Sem dificuldade, sentou na beirada da

cama e entendeu que estava melhor e que as chagas se curariam. O ajudante de cozinha, afirmando a realidade da

própria presença com a tigela de caldo que lhe trouxe, confirmou-lhe a impressão de que a vida continuava e que

o mais difícil já passara.

Enquanto tomava pensativamente o caldo, descobrindo-lhe sabores cujo prazer ele esquecera-desde a infância,

começou a re-fletir, como estratego, naquela sucessão de acontecimentos confusos. Acabou fixando a atenção no

único fato concreto que lhe pareceu suspeito e inquietante: onde andariam o Conde de Saint-Edme e o Barão de

Bessart, junto com o lacaio Anselmo, que também desaparecera?

Remoía a questão e estava a ponto de despachar o ajudante da cozinha, o único criado presente, até a casa da

Sra. de Campvert, que talvez tivesse alguma ideia sobre o que acontecera aos três homens em questão, quando o

Sr. de Bardagne entrou e foi iogo dizendo que os três estavam mortos, que os matara com a própria mão, e que se

felicitava muito por isso.

E você ficará calado — disse-lhe o emissário do rei, olhando-o de cima, com frieza —, acerca do desaparecimento

dós seus companheiros. Para seu bem, espero que não tenha de modo algum participado da elaboração do plano

criminoso que me obrigou a matá-los. Gostaria de ter certeza de que você não lhes sugeriu nada, muito menos

ordenou, pois saiba que não s'omente minha vingança poderia colocá-lo em risco de vida um dia, mas também que se

nutre a intenção de dar prosseguimento aos mesmos projetos homicidas de seus lacaios, estou decidido a me valer de

tudo para afastá-lo e desencorajá-lo.

— O que fizeram eles?

— Atacaram a Sra. de Peyrac no momento em que, sozinha, sem escolta e sem armas, ela atravessara de noite as

planícies de Abraão. Esperavam-na deliberadamente, depois de resolver liquidá-la, por motivo que ignoro.

Cheguei em tempo e dei cabo deles. Não procure vingá-los denodo algum. Fique sabendo igualmente que nada me

deterá caso precise denunciar os inimigos da Sra. de Peyrac ou torná-los inofensivos. Não ignoro, Sr. de La Ferté,

que por trás de seu nome se oculta o de uma família ilustre, e parece-me que quanto mais elevada a linhagem, maior

a depravação. Naturalmente, não passo de um modesto fidalgo, mas minhas funções me conferem acesso ao rei, e

seja qual for seu grau de parentesco com ele, e ainda que eu tenha que passar o resto da existência sobre a palha

úmida das celas da Bastilha, ou mesmo deixar a vida lá, nada me impedirá de revelar seus atos a Sua Majestade, caso

tente, doravante, causar o menor dano à Sra. de Peyrac.

Vivonne o ouvia, boquiaberto. Ao cabo do discurso, ergueu-se lentamente e passou a mão pelo rosto

malbarbeado.

— Pelas labaredas de Belzebu! Ela dizimou minha casa! Primeiro DArgenteuil, agora Saint-Edme, Bessart, o.

criado...

Depois, caiu na gargalhada, como faz um grão-senhor que, virando o copo de dados, acaba de dar-se conta de que

perdeu terras e castelos e não lhe resta mais do que a camisa.

— Ei, tratante! — gritou, dirigindo-se aos aposentos de serviço. — Traga-nos um bom vinho e dois copos. Já me

fartei do seu caldo. Confesse, cavalheiro — continuou, voltando-se para Bardagne —, que todos os tormentos

causados por uma mulher como essa são pouca coisa ao lado dos prazeres e divertimentos que ela nos propicia. A

existência é tão entendiante! Pelo menos seremos poupados de um excesso de enfado, graças ao conhecimento que

ambos travamos com uma mulher única. Com o braço bom, serviu o vinho.

— Bebamos a esse anjo exterminador, e acalme-se... De que serviria um crime tão inútil, que me assombraria as noites

depois... e me esvaziaria os dias! Apego-me... Só peço para encontrá-la de vez em quando e que ela me faça rir.

Bebeu.

— Com o que é que estou sonhando? Nunca mais ela será para mim. Eu devia ter entendido isso mais cedo.

Tenho que

contentar-me com a lembrança.

Depois que a bebida fez efeito:

— Esse ataque de iroqueses vem a calhar e me permitirá satisfazer suas exigências. Caso me perguntem onde foi

parar a gente de minha casa, direi que, passeando pelos campos na outra manhã, foram todos capturados pelos

batedores inimigos e levados em cativeiro para a terra dos iroqueses...

Ante a ideia de Saint-Edme e do Barão de Bessart, prisioneiros dos iroqueses e amarrados ao poste de torturas, o

Duque de Vi-vonne se pôs a rir tanto, que chorou.

— Acredite, conde, que acabarei sentindo saudade deste país de selvagens e dessa moça do outro mundo!

CAPITULO XVIII

Visão macabra ao pé do cabo Tourmente — A chegada dos "veleiros"

Ainda não se tinha notícia alguma da gente da ilha de Orléans e das crianças de Saint-Joachim.

Angélica quis ir até lá. No porto, encontrou uma grande barca, prestes a desfraldar a vela. O velho Topin também

pretendia ir indagar sobre possíveis vítimas da incursão iroquesa. O marinheiro e seus filhos tinham armas.

Juntamente com os soldados, formariam um bom contingente. Excetp por eles, não havia ninguém na praça da

enseada do fundo da baía.

A cidade, extenuada, dormia afinal atrás de janelas fechadas.

Surgiram dois carregadores de um abrigo de tábuas, para ir lavar o rosto no rio.

Ao saberem do objetivo da expedição, retornaram à cabana e saíram com pás e picaretas, dizendo:

— Nunca se sabe! Talvez seja preciso abrir umas covas.

E embarcaram.

Angélica levava consigo a sacola de medicamentos, linho para a eventualidade de curativos, pomadas para as

feridas e queimaduras...

Um objeto insólito, como que uma grande arca encalhada na praia, chamava atenção. Era a base do tabernáculo de

Sainte-Anne-de-Beaupré, o altar-mor em forma de tumba, esquecido ali desde a véspera e cujos adornos e volutas

brilhavam em todo o seu ouro à doce luz da manhã.

Na véspera, Elói Macollet, o explorador salvo por milagre, que Se encarregara de levá-la de barco até Saint-Anne,

abandonara-a ali, quando, decifrando os sinais de fumaça, entendera que a ilha de Orléans pedia socorro.

Janine Gonfarel vira-o embarcar com alguns latagões resolutos, depois de trocar o rosário pelo fuzil, e zarparem para

a grande ilha.

Macollet e os companheiros teriam assistido de longe à captura da barcaça que partira primeiro, levando o escultor

Le Bras-seur, peregrinos e diversos elementos do tabernáculo, destinados ao retábulo? Teriam sido testemunhas do

massacre dos passageiros? Teriam sofrido o mesmo fim?

Com um bom vento a inflar-lhe a vela, a barca de Topin chegou num instante às proximidades da ilha de Orléans.

Passaram diante da enseada de Sainte-Pétronille mas não atracaram, pois se o fizessem não teriam tempo de ir a

Saint-Joachim e, depois de constatar em que estado se encontrava o lugar, regressar antes do anoitecer.

Tudo parecia deserto, Angélica olhou na direção do solar de Guilhermina, entre as árvores, e para grande alívio

seu teve a impressão de perceber um filete de fumaça de aspecto bem tranquilo.

— Estou vendo alguém — disse um dos marinheiros.

Era Elói Macollet, que os avistara.

A maré estava alta. Puderam aproximar-se e trocar notícias aos gritos.

A extremidade sul é que mais sofrera. Macollet, chegando na barca, margeara a ilha e se aproximara dos iroqueses,

entoando-lhes o canto de paz. Tivera a sorte de ser reconhecido por um dos grandes chefes — o que lhe permitira

parlamentar para obter a vida dos habitantes, que se haviam refugiado nas colinas, onde se entrincheiravam sob o

comando de homens treinados em emboscadas, com Maupertuis.

Os selvagens receberam ordem de retirar-se e, com gritos esganiçados, embarcaram às pressas nas canoas, para irem

reunir-se ao largo, atrás do cabo Tourmente e adiante, onde o resto da frota os aguardava.

A noite foram avistados de novo e, mais uma vez, os sobreviventes da ilha pegaram os caldeirões e subiram para

as colinas. Mas foi só-para desfrutarem melhor do espetáculo de todas aquelas canoas subindo o Saint-Laurent à luz de

tochas.

— E Guilhermina?

—Está viva! E toda a gente da casa dela também.

Macollet recusou o convite para juntar-se a eles. Tinha seu próprio barco e retornaria a Quebec no dia seguinte.

— É melhor assim —comentou o velho Topin, depois de assestar o leme na direção de Beaupré. — Não quis dizer

nada, porque essas coisas a gente sempre fica sabendo mesmo, mas parece que também houve estrago em Lauzon e

que Cipriano Macollet, o filho dele, foi morto.

Ao final da manhã, avizinharam-se dos "recifes" silenciosos dos arredores de Saint-Joachim. Antes, brilhando ao

sol, surgira o campanário de Sainte-Anne-de-Beaupré. A nova igreja nâo fora incendiada.

Agora o cabo Tourmente erguia ali bem perto sua massa azul de dois mil pés de altura, cuja base estava banhada

numa vasta camada de fumaça estagnada, que se estendia sobre a planície, continuando a alimentar-se dos diversos

braseiros de ruínas, espalhados de longe em longe. Depois de atracarem num pequeno molhe de madeira que surgia

dentre tufos de caniços esbranquiçados de sal, eles avançaram, de coração contraído, rumo às construções ainda

distantes, e cujas paredes enegrecidas, infelizmente, eles viam fumegar.

Aproximando-se por uma vereda que se foi alargando, ouviram os mugidos de vacas, espalhadas pelas campinas.

Pelo menos a manada não perecera inteiramente nos estábulos em chamas. As vacas tinham podido escapar. Ou então

tinham sido levadas para fora nos dias anteriores pelo fazendeiro, que finalmente as devolvia aos campos após o

inverno. A neve se retirara daquelas planícies havia muito tempo. Dela pouco se via, somente no alto das encostas, a

recobrir a vegetação rasteira sob árvores.

A casa maior, de dois andares, à direita, de fora parecia intacta.

Atravessando o pátio, o grupo se dirigiu primeiro às construções que tinham sido danificadas. As de madeira,

quase inteiramente consumidas, não passavam de carcaças de carvão. Os muros de pedra da fazendola já não rodeavam

com suas ameias enegrecidas senão o vazio desordenado das ruínas. Tetos e soalhos tinham desabado, assim

como os telhados. Os tubos das chaminés, eretos sobre a base das grandes lareiras, pareciam vigiar como

sentinelas desnudadas e miseráveis.

Por último havia a capela, rumo à qual se dirigiam com apreensão.

Os iroqueses não a haviam incendiado. Teria sido para que nada se apagasse do espetáculo com que o grupo

topou ali?

Qual aviso trágico, viram na frente, caído no chão com as patas enrijecidas, o grande mastim do Abade Dorin,

que devia ter-se erguido para alertar, latindo, da aproximação silenciosa do inimigo, e que fora trespassado por

um flecha.

Os habitantes de Saint-Joachim deviam ter sido surpreendidos, reunidos na hora da missa.

O capelão, seus servidores, que eram jovens alunos artesãos da Escola de Artes e Ofícios, de quinze a dezesseis

anos; os assistentes, entre os quais os fazendeiros e seus empregados; O Abade Dorin; professores do seminário e

da escola — todos tinham sido mortos a facadas, machadadas ou golpes de tacape, e escalpelados.

— Onde estão as crianças?

Angélica olhava apreensiva para a casa grande, que respirava calma. Encontrariam ali, vitimados, menininhos

de seis a dez anos?

— Não tenho coragem — disse ela aos militares que trouxera consigo. — Vão vocês, senhores, que estão

acostumados aos horrores dos campos de batalha.

Entrando na casa, de armas em punho, os soldados reapareceram pouco depois à soleira, gritando:

— Ninguém!

Vazia, a grande fazenda se encontrava numa ordem miraculosa. No dormitório, todas as pequenas enxergas

alinhadas se apresentavam bem arrumadinhas. No refeitório, a longa mesa estava posta, com as escudelas de

madeira em seus lugares, cada uma delas ladeada de uma fatia de pão integral tão grande quanto um prato.

Nas salas de aulas e na oficina, as mesas, os escabelos, o material de ferraria e carpintaria, de pintura e escultura

em madeira, pareciam esperar pelos alunos.

— Onde estão as crianças?

— Talvez os iroqueses as tenham capturado e levado consigo.

— Não! Eles não levaram prisioneiros, exceto o homem e as duas crianças avistados na canoa e que vinham de

Lauzon.

Retornaram ao centro do pátio e dispararam uma carga de mosquete.

Depois, com coragem, os homens começaram a retirar os cadáveres, quinze ao todo, e a alinhá-los diante da capela,

enquanto os dois carregadores começavam a abrir covas.

De vez em quando disparavam um tiro.

Uma hora mais tarde, esboçou-se um movimento no sopé da montanha. Eles se aproximaram. Ali estavam, todos

vivos. Uns : trinta pequenos seminaristas, vestidos de preto, encabeçados pelo jovem e louro Emanuel, o anjo da

guarda deles, que os salvara.

Primeiro, fora por iniciativa dele que todos, naquele dia, se levantaram bem antes do amanhecer. Na véspera,

Emanuel obtivera do superior permissão para levar os meninos a admirar o nascer do sol do alto do cabo

Tourmente.

Na noite ainda profunda, depois de arrumarem direitinho o dormitório e de sentarem na soleira^da porta para

calçarem os sapatos, tinham seguido na direção da grande massa sombria do cabo, o vizinho, o gigante tutelar deles,

que se adivinhava mais escuro contra um céu opaco. A lua já sumira.

Abbal Neals, que era um dos grandes, vigiava a retaguarda. Enquanto a noite se ia acinzentando, eles foram

escalando. Lá em cima, sentados à beira da falésia, apertados uns contra os outros, viram o sol nascer, mirando-se no

rio-mar cuja vasta extensão se confundia com o céu.

Ao norte, para além do cabo, o Saint-Laurent já se abria numa largura de umas sete ou oito léguas..

Fora naquela imensidão rosa-azulada que Emanuel vira surgir de repente, como que uma nuvem de insetos

daninhos, as canoas da frota iroquesa.

Logo de início foi como um pesadelo. Ele esfregou os olhos. Centenas de canoas de índios... Chegavam pelo

norte... Depois viu-os chegar à margem, ao pé da montanha. A metade desembarcou e rumou para Beaupré. Os

demais ficaram guardando as canoas. Traziam armas. E Emanuel reconheceu-lhes as cabeleiras: eram iroqueses.

Então, pegou as duas crianças mais novas pela mão e correu:

— Venham comigo! Depressa! Depressa! E sem barulho. Neals, feche a retarguarda!

Ele sobe o máximo que pode. Distancia-se por detrás dos picos, embrenha-se na mata, depois torna a descer e

segue pela beira da falésia. Ele conhece por ali as ruínas de um antigo posto de vigia, que a vegetação recobriu,

dissimulando-se ao olhar. Introduz-se ali com as crianças. Deitam-se todos no fosso, longe das vistas dos

selvagens.

As vezes, Emanuel arrisca uma olhada acima da elevação de terra e musgo que fecha o esconderijo. Avista ao

longe a planície, onde ardem igrejas e casas, assinalando o avanço dos iroqueses rumo a Quebec.

Pelo meio-dia, seu instinto, alerta, sente a aproximação dos selvagens. Fareja-os pelo silêncio das árvores, pelo

cheiro, pelo vento, que se tornou mudo. Por entre os galhos, distingue a alguns passos silhuetas de guerreiros

iroqueses, que desfilam como sombras, seguindo pelo caminho dos cumes. Os penachos no alto do crânio

cintilam. Os riscos de tinta vermelha e preta acentuam-lhes a expressão cruel.

Estendendo as duas mãos, Emanuel faz sinal às crianças para fazerem-se de mortas.

Por qual milagre da espécie nova que se desenvolvia no sangue daqueles pequenos colonos, que lhes dava a

astúcia instintiva dos animais da floresta, eles conseguiram conter a respiração e manter-se como que em transe,

ausentesde si mesmos? As feras de faro treinado passaram a dois passos, sem sequer desconfiar que os

garotinhos estavam enfiados sob as moitas.

Ao ver o pequeno Marcelino estremecer à vista daqueles com quem passara a infância e com quem

compartilhara de caçadas e festas, Emanuel, delicadamente, tapou-lhe os olhos com uma rnão e a boca com

outra. Assim, os iroqueses passaram como fantasmas.

Uma ordem misteriosa parecia reconduzi-los ao local onde haviam atracado e onde as embarcações os

aguardavam.

Emanuel achou que os índios só estavam interessados em pilhagem e-escalpos. No entanto, não lançaram todas as

forças nessa operação. A maioria permanecera à espera guardando as canoas nas enseadas para além do cabo

Tourmente.

Ao anoitecer, Emanuel viu, no distante azul embaciado do cres-púsculo, as inúmeras luzes das canoas, constelando

de estrelas a grande superfície de água onde eles se reuniam, adiante da ilha de Orléans.

"É agora que estão marchando para Quebec", pensou, aterrorizado.

Fizera-se noite de todo, e com ela chegara o nevoeiro que subia das falhas úmidas. A escuridão era profunda. As

crianças dormiram na ravina gelada, pesadamente, como pedras, como animais hibernando.

Emanuel rezou: "O que será de nós, caso nossos irmãos de Quebec sejam mortos? Que Deus proteja nossas almas!"

Nasceu o sol, as crianças despertaram. As brumas se dissipavam, revelando o rio novamente, mas da altura onde

se encontravam não podiam enxergar se Quebec fora arrasada ou não.

Na planície, nada se movia. A fumaça continuava a elevar-se daqui e dacolá das casas incendiadas ao longo da costa.

Finalmente os meninos ouviram tiros. Tinham avistado uma vela na orla dos recifes. Silhuetas de militares, de homens

armados a seguirem para a grande quinta. Entre eles, uma mulher, o que os tranquilizara de todo. Estavam à

procura deles, vinham em seu socorro.

Saíram do esconderijo e encetaram a descida abrupta rumo à planície. Agora, estavam ali, tiritando nas roupas

sujas de terra e descobrindo os cadáveres alinhados diante da capela. Compreendendo o destino horrível a que haviam

escapado, permaneceram imóveis, mudos, contemplando as pessoas que, ainda no dia anterior, eram seus professores

ou companheiros de estudos ou de jogos. Amigos, protetores, de quem dependia a animação da vida deles, o

movimento das horas, o despertar, o trabalho, comer, deitar, orar. Com aqueles corpos imóveis de cabeça ensanguen-

tada, retirados da vida, rompia-se a existência, transtornava-se a lei, revelava-se a face macabra do destino... Os

iroqueses tinham matado.

Angélica e os companheiros tentavam em vão levá-los dali, para arrancá-los à mórbida contemplação.

— Venham! Venham, crianças! — insistiam. — Venham, seu-refeitório as espera... A grande quinta continua

em pé. Ainda a têm.

Não se moviam, assustados. O jovem Emanuel, que descobriu entre os mortos o Abade Dorin, seu pai

espiritual, que tomara em mãos sua formação como futuro sacerdote, foi acometido de uma dor profunda.

De repente, o adolescente levantou a cabeça, pareceu aguçar os ouvidos, enquanto uma expressão transtornada

lhe surgia no rosto.

— Ouçam!

Angélica receou que, sob o efeito das provações, a razão dele vacilasse, atormentada pelo medo de ver os

horríveis assassinos aparecerem de novo, de tacapes em riste.

— Não — tranqúilizou-o logo —, não tenha receio algum, Emanuel. Seus cruéis inimigos se afastaram e por

muito tempo não retornarão. Garanto.

— Não é isso — disse ele, febril. — Ouçam! Ouçam Com o rosto iluminado, lentamente levantou o braço e o

estendeu na direção sul, de onde começava a vir um chamado longínquo.

Quá! Quá!

— Os gansos brancos — gritou ele, com soluços na voz. — Os gansos brancos do cabo Tourmente. Estão

chegando! Estão chegando!

E as aves apareceram desenhando-se no céu num primeiro vôo angular.

Depois, outras formações, ainda quase invisíveis, anunciaram-se com o eco em surdina de seus grasnidos.

Quá! Quá!

As crianças, esquecendo tudo, terror, fadiga e fome, dispararam na direção dos charcos, a soltar gritos de

alegria.

E quando a primeira revoada, como que caindo direto do céu, abateu-se a alguns passos deles, nas margens

salobras do cabo Tourmente, as crianças começaram a dar saltos e aplaudir, gritando boas-vindas aos gansos.

As aves pousaram, tão cansadas, que não tinham forças sequer para se assustarem com aqueles duendezinhos negros

que dançavam entre elas-, a bater palmas, a abrir os braços como se quisessem abraçá-las, sem se importarem com os

bicos duros das aves, às vezes quase tão altas quanto eles.

Num turbilhão branco, deixavam-se cair como mortas, extenuadas.

Cinco mil cento e vinte quilómetros desde as Garolinas, sem paradas, sem etapas, sem outro repouso senão as

extensões escorregadias de azul, negligenciando bosques e pradarias abaixo delas, e as tentações da floresta do Maine

a desenrolar-se sem fim, já verdejante, incrustada com seus milhares de lagos de safira.

Nas cabecinhas redondas dos gansos, na extremidade dos longos pescoços retesados como flechas, um único

pensamento: o cabo Tourmente, a escala de amor antes das terras do Grande Norte.

Tendo chegado, finalmente dobravam as asas, que há três ou quatro dias não paravam de bater naquele

movimento amplo e regular do voo migratório, contínuo, vigoroso, perseverante, e os gansos desabavam ao pé do

promontório como que para expirar ali.

Assim que tocavam a terra, porém, reanimavam-se, e depois de ensaiarem alguns passos inseguros, já levantavam

o pescoço altaneiro para abarcar e reconhecer com olhos vivazes os horizontes do rio, a sombra do cabo Tourmente

e a ilha de Orléans a mirar-se nas águas. Depois, tranquilizados, punham-se a remexer na lama, à procura do junco da

América de que tanto gostavam, deleitável rizoma que só encontravam naquele lugar.

Os "veleiros", conforme se designavam comumente os diferentes agrupamentos de gansos selvagens em vôo, não

paravam de chegar, nascendo do céu, turbilhonando, mergulhando, pousando. No meio de um bailado de asas

estalejantes e de grasni-dos ensurdecedores, atracou uma barca, onde vinha a Sra. de Castel-Morgeat.

Os ocupantes da embarcação encontraram dificuldade em pisar em terra e abrir caminho por entre a multidão de

gansos, cada vez mais numerosos e dominadores.

Foi só lentamente que os recém-chegados conseguiram avançar, com largos gestos de braços e safanões com o

chapéu.

Avistando de longe a mulher a quem começava a chamar com amargura de "a sua rival", Angélica pensou:

"Ana-Francisco morreu".

Quando a descobriu ali, Sabina de Castel-Morgeat foi a primeira a demonstrar surpresa.

— E seu filho? — indagou Angélica.

— Vai bem... Ou tão bem quanto querem me convencer disso... Não sabia que você estava aqui...

A Sra. de Mercourville, continuou, quisera afastá-la da cabeceira do jovem, onde ela se consumia à espreita da

respiração dele.

— Então pensei que era preciso fazer algo pelas vítimas da costa de Beaupré. Apenas quando me ocupo da

miséria alheia me distraio da minha.

Auxiliada por uma amiga corajosa, senhora da Sagrada Família, a Sra. Barbeau, que a acompanhava, Sabina

fretara uma embarcação para Saint-Joachim e a pusera à disposição do Sr. de Bernieres, diretor do seminário.

Este também viera, com dois acólitos e alguns domésticos.

Os clérigos chegavam bem na hora para cantar o Deprofundis junto às sepulturas recém-abertas, e para onde os

mortos logo seriam baixados.

Preces e cânticos soaram débeis e tristes, encontrando alguma dificuldade para dominar o cacofônico concerto

dos gansos nas margens.

A Sra. de Castel-Morgeat trouxera roupas limpas, lavadas e passadas pelas freiras da Santa Casa. Os colarinhos

dobrados e engomados estavam dispostos como panquecas sobre a mesa, depois de retirados da pequena arca

redonda de pele de lobo-marinho em que tinham sido transportados.

Caldeirões de água foram postos ao fogo para aquecer. As senhoras ajudaram o bravo rapazinho, Emanuel, e o

secretário do Sr. de Bernieres a limpar o pequeno grupo. Em seguida os garotos enfiaram as grossas e quentes

camisas de linho, e meteram-se na cama. Os pequenos seminaristas canadenses dormiriam embalados pela

melodia estridente e roufenha dos gansos selvagens retornados.

Decidiu-se que uma embarcação regressaria a Quebec. Angélica e Sabina embarcaram. Angélica levava Marcelino,

que se agarrara a ela, e a Sra. de Castel-Morgeat tomou ao colo, envolto numa manta, um menininho que tiritava de

febre e necessitava de cuidados urgentes.

Ainda estava claro quando Topin hasteou a vela. Mas não chegariam a Quebec antes da noite.

A meio caminmho cruzaram com um comboio de barcas que se dirigiam a Saint-Joachim. Na maior delas viajava

Monsenhor de Lavai. Trocaram-se notícias de bordo para bordo. Os que retornavam falavam primeiro das crianças

salvas, depois mencionavam os mortos.

Enquanto os botes eram mantidos à distância pelos remos, Angélica notou numa chalupa, a reboque da barcaça

episcopal, um homem cujo rosto não lhe pareceu desconhecido.

Estava sentado, com uma mulher e crianças, em torno de um grande fardo de forma indistinta, que todos, inclusive

os garotos, pareciam rodear de precauções, a fim de evitar choques:

— Você não é o moleiro de Château-Richier? — perguntou-lhe ela.

— Exatamente — respondeu o homem, risonho.

Apesar das tragédias recentes, mostrava-se bem alegre.

No dia em que Angélica fizera a primeira visita ao episcopado, conhecera aquele rapaz, que acabava de assinar

com o bispo o arrendamento de dois moinhos de seu feudo, em troca de um pagamento anual de seiscentas libras de

Tours, seis francos e um bolo.

— Não se disse que Château-Richier foi atacado pelos iroqueses?

— Sim! Meu moinho foi reduzido a cinzas, mas estou salvo, e minha família também.

Devia a vida ao bolo anual. Desejando oferecer ao bispo uma obra-prima de importância, fora a Quebec com a

família na véspera, a fim de utilizar o forno, maior, de um colega e de escolher confeitos para a decoração.

Sem se preocupar com os rumores de guerra, sovara, assara, enfeitara e decorara durante todo aquele tempo, e não

seria para ver passar os iroqueses que ele correria o risco de deixar o fruto de tanto trabalho queimar. O moinho

ardera, mas ele e os seus estavam salvos, e o bolo era um sucesso.

Agora levavam a obra-prima para Saint-Joachim. O homem levantou a toalha que o cobria para mostrar às

senhoras a apetitosa maravilha, decorada com confeitos e pasta de amêndoas.

— As crianças se consolarão — disse Sabina.

Deixando que o comboio se distanciasse, a barca retomou o trajeto rumo a Quebec.

A noite não caíra de todo. Um último "veleiro" de gansos despontava no céu dourado. Os lados do triângulo

flutuavam como fitas negras, formadas por cada uma das aves a esforçar-se por manter o alinhamento tão correto

quanto possível, com o desenho da figura nitidamente traçado, desde as extremidades de abertura até o grande

ganso na vanguarda. E de muito alto, caíam das nuvens as saudações alegres.

Quá! Quá! Quá!

Angélica sentia que Sabina de Castel-Morgeat tinha vontade de lhe falar, e desviava a cabeça ostensivamente.

Vivera os dois últimos dias sem ter tempo de pensar. O que não impedia de, por vezes, sentir como que uma

punhalada aguda, uma pontada sorrateira.

Não sabia o que aconteceria quando tivesse tempo de refletir...

Topou com os grandes e patéticos olhos negros de Sabina fitos nela, e a beleza daqueles olhos lhe pareceu

insuportável.

Por que tinha que estar sentada ao lado daquela mulher naquela barca?

Por culpa de um vento contrário e do refluxo da maré, tiveram que ficar um longo tempo a" bordejar sob

Quebec, enquanto Topin se debatia com sua vela quadrada e a censurava por se haver tornado preguiçosa durante

o inverno.

— Você ficou tempo demais enrolada! Chega de vadiagem...

Quebec erguia-se na noite, sombra negra onde se acendiam uma a uma as lâmpadas das casas.

No fim do outono, do castelo de popa do Gouldsboro a dançar sobre as ondas, Angélica avistara pela primeira

vez Quebec, a pequena capital perdida do reino da Nova França.

Seu sofrimento despertou, como se ela houvesse tocado um ponto sensível, sem poder diagnosticar onde se

encontrava o mal e de que tipo era.

No que lhe concernia, o desafio fora aceito, a partida, ganha.

"Você é uma triunfadora", dizia Guihermina.

Mas não pagava caro demais pelas suas vitórias?

O preço estava à altura do desafio.

"Terei coragem?", perguntou-se ela.

Novamente seu olhar cruzou com o de Sabina de Castel-Morgeat.

— Angélica, ouça...

— Não! — disse ela, desviando a cabeça, feroz. — Não me exaspere.

— Mas tenho que dizer-lhe... Você tem que saber.

— Não! — repetiu Angélica, mas com menos convicção. — Deixe-me, estou cansada.

Sentia as pálpebras pesadas. Morria de sono.

O balanço das ondas, a fazê-los dançar com uma rolha diante da cidade, enquanto aguardavam que o vento,

amainado de súbito, retomasse vigor, vencera-lhe a resistência. Sentia-se invadir por uma incontrolável vontade

de dormir.

— Você não aguenta mais! Já fez demais!

De fato, pensou ela com ironia, dois idias de correrias desenfreadas, a parlamentar com o mais selvagem dos

iroqueses, cuidar de feridos, navegar, enterrar os mortos, tudo isso na esteira de uma fogosa noite de amor e de

um sinistro atentado em que quase perdera a vida — até que tinha motivo para estar fatigada. A cabeça inclinou-

se-lhe, contra a sua vontade, roçando nos cabelos louros de Marcelino, adormecido em seu colo.

De olhos fechados, Angélica se pôs a fazer projetos muito precisos acerca do comportamento que teria assim

que desembarcasse. Para começar, não daria ouvidos a pedido algum. Se encontrasse, na praça, uma carruagem,

mesmo que fosse a da Sra. de La Vaudiere, entraria e mandaria que a levassem direto para casa, na Cidade Alta.

Ao passar, pediria a Boisvite um pouco daquela aguardente de pêra. Misturaria a bebida com leite bem quente e

xarope de or-chata. Depois de beber se enfiaria na cama, com as cortinas da alcova bem fechadas.

Depois, dormiria, dormiria, dormiria...

— Ouviu a voz de Sabina murmurar:

— Você tem que saber, Angélica... Não pode duvidar nunca... Para ele somente você existe, somente você!

CAPITULO XIX

A morte de Cipriano Macollet — A partida de Eustáquio Banistere

—Achem-me Elói Macollet e, se possível, que ninguém lhe dê a triste notícia antes de mim.

A morte de Cipriano Macollet, filho dele, fora confirmada. Macollet chegou, assobiando uma canção. Os

acontecimentos, na boa tradição primaveril, deixavam-no alegre. Estava retornando da ilha de Orléans"e não

sabia de nada.

— Você foi informado — perguntou-lhe Angélica — de que um grupo iroquês de oneiuts atravessou o rio e

causou infelicidades na costa de Lauzon?

Ele parou de assobiar e sua expressão anuviou-se.

— Não! Não sabia de nada.

— Seu filho morreu, Elói.

Contou-lhe em seguida como o gordo e pacato curtidor de couro resistira aos selvagens por mais de duas horas.

Correra de um canto a outro de sua casa entrincheirada para meter o cano do fuzil por todos os interstícios das

paredes, conveniente e estrategicamente perfuradas, como era de regra para umahabitação de colono canadense.

Finalmente, os bárbaros conseguiram arrombar a porta, apoderaram-se do furioso defensor, mataram-no a

machadadas e golpes de tacape e escalpelaram-no.

— Seu filho o havia desapontado, Elói, mas ele morreu como herói, bem digno de você.

Macollet a ouvira em pé, em silêncio.

— Não era mau sujeito — disse —, mas éramos tão pai e filho quanto um cervo dos bosques é pai de um boi de

charrua. Eu o concebi, por assim dizer, por ordem do rei, assim como fora obrigado a me casar com a mãe dele.

Tinha de obedecer às ordens. Se, completados os dezoito anos, um sujeito não estivesse casado, era multado.

Podiam retirar-me a licença de viajante, retomar-me a concessão e até as terras que eu tinha comprado com meu

dinheiro. Bom! Casei com uma Moça do Rei. Ela não teve de que se queixar. Dei-lhe a fazenda, fiz-lhe um filho,

mas assim que o assunto foi resolvido, parti para os Grandes Lagos durante vários anos. A moça com quem me casei

devia ser batalhadora, pois fez a granja prosperar e educou bem o filho. Eu voltava de vez em quando. Mas foi

principalmente depois que ela morreu que reatei com o rapaz. Ele já estava casado.

Calou-se. Depois indagou, em voz baixa:

— E Sidónia?

— Não se afastou dele durante a batalha inteira, passando-lhe armas carregadas. Quando os inimigos entraram, ele

se refugiou no sótão, cujo escada havia retirado. Do alçapão, atirava neles, usando o restante da munição que

possuía. Antes de subir, encheu um pote de brasas e levou-o consigo. Quando se viu sem cartuchos, atirou pela

abertura, na sala, feixes de palha, sobre os quais jogou as brasas. O fogo pegou. Desistindo do saque, os índios

fugiram. Ela, então, recolocou a escada, desceu e, com muitos baldes de água do poço, conseguiu apagar o

incêndio.

Ele a ouvira, ofegando.

— Então! Está viva?

— Viva.

— Graças a Deus! — exclamou ele.

Deixou-se cair num escabelo.

— Eu lhe tinha dito, essa Sidónia enfrenta tudo!

Girava o gorro vermelho maquinalmente na cabeça escalpelada.

— Este país maldito! Este país maldito! — resmungou.

E as lágrimas lhe vieram aos olhos.

Depois de muito chorar, levantou a cabeça e através das lágrimas viu Angélica sentada perto da mesa, onde

estava o gato, ambos a fitá-lo com p mesmo olhar pensativo, meigo e compreensivo.

— Macollet, é a você que ela ama — disse Angélica. — Sempre o amou, e não sei se é uma ideia errada de

minha parte, mas as mulheres costumam ter uns desvios estranhos de comportamento, quando é o sentimento que

as guia, por isso me pergunto se ela não terá casado com seu filho para aproximar-se de você... atraída por você...

pela sua reputação. Criou uma situação sem saída... Ela o amava e não sabia... Só vivia quando você estava lá, e

o tempo todo você andava pelas matas ou então a correr atrás das vizinhas. Não pensava nela. Era sua nora.

Agora está livre. E mesmo que até um momento atrás você também não soubesse, você também a ama: acabo de

ver a confissão disso em seu rosto.

— Com a breca! — imprecou ele. — Os padres haviam de se pôr aos berros, falando de incesto!

— Você é pai somente por afinidade... Pode desposá-la. Ele meneou a cabeça.

— Não é possível. Um velho e uma moça nova! —.Tolice! Um velho que não desdenha tanto assim as moças,

ao que me consta! Macollet, isso não o. impedirá de partir para a floresta enquanto for capaz de remarpelos rios

e de carregar a canoa na cabeça... Mas pelo menos essa mulher de trinta anos, que se consumiu por você, terá um

filho seu... Foi o que ela me disse. Elói Macollet se levantou, recobrando a vivacidade habitual.

— Não prometo nada! Mas tenho que ir ver isso mais de perto... De qualquer maneira, antes de ir embora tenho

que ir dar um auxílio a ela para reconstruir a casa.

Será que agora Angélica poderia chorar por si?

Mas uma silhueta de urso emoldurou-se na porta aberta obstruindo a entrada. Era Eustáquio Banistere.

O gato, que se levantara para acompanhar Angélica ao quarto, enrodilhou-se de novo, juntando as patinhas

peludas. Fazia isso desde o amanhecer, desde a primeira hora, com a chegada daqueles que vinham mostrar

ferimentos, e depois, de gente aos prantos que vinha contar as mágoas, e que havia arrancado a Sra. de Peyrac da

cama. A condessa, que na véspera voltara bem tarde de Saint-Joachim, conseguira ao menos dormir algumas ho-

ras de um sono sem sonhos.

O visitante do momento, Eustáquio Banistere, acabava de sair do hospital. Depois de atravessar a soleira e

deixar a claridade entrar de novo pela porta para avançar alguns passos, anunciou que não quisera partir para os

Grandes Lagos sem vir saudar a Sra. de Peyrac, sua ex-vizinha. Mostrou-lhe o documento que ela conseguira

com D'Avrenson para ele: "Tenente-geral do rei na Nova França, representando Sr. de Frontenac, impedido,

certifica que deu licença ao Sr. Banistere, autorizando-o a acompanhar os selvagens, do lugar dito Sault-Saint-

Louis até o lago dos illinois e para adiante, pelo tempo que ele considerar conveniente para o serviço do rei e o

bem do país, e poderá ir ou passar o inverno com eles, caso se sinta seguro para tal e veja nisso alguma vantagem

para o bem público. Feito em Quebec em 10 de maio de 16... assinado Duqueylac d'Avrenson e lacrado com suas

armas". O documento vinha avalizado pelo bispo e pelo negociante Basílio, que o comanditava.

Banistere levaria o primogénito consigo.

Deixava feito o testamento.

Estava pronto para a estrada, magnífico em sua calça de pano grosso, presa por várias voltas de um longo cinto

de lã, tecido com desenhos de flechas em fios coloridos e longas franjas. Estava calçado com as famosas botas de

pele de alce, artisticamente bordadas com pêlo de porco-espinho de diversas cores e ornadas de pequenos

cilindros de metal, de onde saíam tufos de pêlos de cabrito tingido de vermelho.

Informou que estava cedendo ao Marquês de Ville-d'Avray suas concessões ali ao lado porque sabia que o

marquês é que as aproveitaria.

Restava o caso Eufrosina Delpech. Angélica interrompeu-o, dizendo que não estava a par, e que Eufrosiha'nãò

a interessava. Banistere lamentava que seu escrivão-escultor Le Brasseur tivesse morrido. Mas antes de morrer

pudera estabelecer um cuidadoso memorando que atacava o procurador Tardieu por haver deixado caducar seu

pedido de cartas de nobreza. Como deixava uma abundante provisão de escudos nas mãos de Basílio, o litígio iria

adiantei o procurador havia de ver-se mal. Banistere demonstrava assim que seu nome índio, Ackhiraches, ou "Ele

Bate Forte", justificava-se.

Dito isto, Banistere deu um chamado roufenho e ofílho, que estava láfora, sempre arisco, apertando contra o

peito um magnífico pedaço de pão bento do dia de Páscoa. Era tradição guardar esse pão pelo máximo de tempo

possível, e os viajantes nunca deixavam de levá-lo, só devendo comê-lo em caso-de"extrema necessidade, visto que

constituía o último elo do explorador de bosques com sua Igreja e sua paróquia.

A criança calçava botas de alce e trazia o gorro de lã enfiado até os olhos. O pai o fez tirá-lo com um cascudo, o

que era o máximo de civilidade a obter-se do garoto.

O cão saiu de sob o forno de pão, a balançar o rabo.

CAPITULO XX

Lágrimas e saudades dos últimos meses

Durante aqueles três dias que assistiram à passagem dos iro-queses, Angélica, vez por outra, quando voltava à

tona, sentia-se sufocar, lembrando que, em algum ponto de sua alma, sofria muito. Era melhor mesmo que

Joffrey estivesse longe, pois a dor vinha dele.

Ao dar-se conta de que se alegrava com a ausência dele, ficou desesperada. Deveria entender que por isso o

amor deles morrera? Todo mundo repetia o tempo todo que ela salvara Quebec e não paravam de adulá-la. Nela,

porém, algo se partira.

Poupara.a cidade, o jovem Ana-Francisco fora de perigo, os garotinhos de Saint-Joachim fazendo jus ao bolo

que ganharam, os grandes gansos brancos de regresso, Angélica mergulhou nas lágrimas.

Por que ele não o faria? Sempre a fascinara pela liberdade dos próprios atos. Não havia homem mais livre no

mundo...

Mas os argumentos eram impotentes contra a amargura que a invadia quando ela remoía as circunstâncias em

que o homem que lhe era mais caro se desviara dela, ainda que somente por uma hora. Não conseguia parar de

torturar-se, querendo saber com exatidão onde e quando o fato acontecera. Na verdade, sabia, pois Ana-Francisco

não fizera mistério algum. Fora no solar de Montigny, no dia já longínquo em que fora à ilha de Orléans visitar

Guilhermina, a feiticeira. E fora até lá precisamente para pedir a Guilhermina que lhe desse conselhos ou alguma

poção para acalmar os nervos da Sra. de Castel-Morgeat. Era o cúmulo! Enquanto se empenhava, preocupada com o

estado próximo à loucura em que a mulher do governador militar se encontrava, ela... ele...

Angélica atirou-se na cama e enfiou o rosto no travesseiro para não gritar, berrar. Todo mundo zombara dela.

Naquele dia, estava na ilha de Orléans, e Guilhermina, a feiticeira, que, sendo vidente, sabia, não podia deixar de

saber, tivera a petulância de lhe dizer: "Você é uma mulher feliz!" Pois sem dúvida alguma ela sabia. Falando de

Sabina de Castel-Morgeat, não dissera com um sorriso, cujo ironia Angélica agora entendia: "Não se preocupe com

ela, será salva"? E para desviar suas suspeitas, dissipar as ondas de seu instinto, que mesmo de longe poderia ter

intuído a traiç-ão que se consumava, a feiticeira, hipócrita, retivera-lhe a. atenção com todo tipo de artifício,

cativando-a com relatos e confidências, assim como se contam histórias a uma criança para fazê-la engolir um

remédio. E quando estavam a ponto de se separar, proferira outra tolice qualquer, para lhe alimentar falsamente, a fim

de que, intrigada pelo enigma, Angélica não percebesse o que acontecia embaixo do nariz: "Ele não deve ir a Praga".

Praga! A capital da Boémia, entrando na Ijistória como um cabelo na sopa, a embaralhar-lhe o entendimento. Ah!

Por trás de todas as amabilidades, como todos deviam ter rido dela! Até a Sra. de Mercourville, que a encorajara a

afastar-se, dando-lhe o escapulário de Sabina, que devia ter-se deliciado, pois sabia de tudo, quase vira... E Angélica

a tratar-lhe do nariz congelado, como a tola que era, contente de prestar favores, de aliviar, enquanto lhe

exploravam a bondade, todos aqueles ciumentos e invejosos, qué não lhe eram gratos pelos cuidados que ela lhes

dispensava.

Com o rosto enfiado no travesseiro, Angélica se via rodeada de traidores a zombar dela enquanto lhe

prodigalizavam gentilezas, a fim de se aproveitarem das vantagens de sua amizade. Torturada, passou todos os atos

deles pelo crivo de um maquiavelismo refinado, em que via Joffrey e Sabina, auxiliados pela cidade inteira, a enganá-

la, até o momento em que sua honestidade a obrigou a lembrar-se de que fora à ilha de Orléans por iniciativa

própria, sem avisar ninguém, e que, se houvera maquiavelismo, só podia acusar disso o acaso, grande mestre na arte

da farsa.

Levantou-se, cambaleando. Já não conseguia erguer as pálpebras, tão inchadas estavam, mas sentia-se mais calma.

Topando com o reflexo do próprio rosto intumescido pelas lágrimas, disse consigo que precisaria de no mínimo

uma hora de compressas, cremes e cataplasmas para recuperar uma aparência razoável.

Começando a chorar de novo, deu-se conta de que máscaras e compressas não serviriam para nada, se não

conseguisse conter os pensamentos lamentáveis que forjava, como que por gosto. Tinha o direito de manter

prisioneiro um homem como Joffrey de Peyrac?

Mas os apelos que fez à própria resignação não obtiveram resposta. Não conseguia impedir as lágrimas de correr, e

dizia consigo que algo se partira nela.

— Por que você está chorando? — perguntou a Polaca.

— Não estou chorando.

— Acha que eu não enxergo? Venha, sente. Beba! Coma! Preparei-lhe um pedaço de vitelo. É raro matarem

bezerros, mas na primavera há que comer carne de primavera.

Pensar no bezerro deixou Angélica ainda mais triste, e ela balançou a cabeça.

— Marquesa, nenhum homem merece que a gente se prive de um bom prato. Os homens são todos iguais. Você

deveria saber disso.

Angélica não tinha vontade de ouvir a Polaca filosofar sobre os homens e misturar Joffrey com os malandros a

quem ela amara, entre os quais aquele canalha do Calembredaine ou, por bom sujeito que ele fosse, aquele seu

Gonfarel do momento.

Levantou-se para ir embora.

— Marquesa, cuidado... Pense um pouco antes de sair na disparada por aí, sem saber para onde ir... Há vezes em

que você enxerga melhor a palha que o seu homem tem no olho, e não ve a viga que tem no seu próprio olho,

— O que é que você sabe?

— Nada! Mas desconfio!

Angélica tinha de reconhecer que só de vez em quando lhe ocorria a lembrança de Bardagne. A recordação da noite

que passara nos braços dele fora varrida como que por um vagalhão. Não pensava nisso, ou pensava pouco. E era

sempre com .serenidade ou satisfação. Incapaz de arrepender-se. Aquele ato fora importante para ela. Mas não-

concebia que pudesse acarretar qualquer consequência grave sobre sua vida.

O ciúme de Joffrey? Deus se encarregaria de que ele não viesse a saber de nada, pois não valia a pena. Bardagne

não era Colin. Só ele, Joffrey, contava para ela.

Pensando bem, passado o primeiro ferimento de amor-próprio ante a ideia das más-línguas e dos sorrisos, o que

restava e a torturava era a dúvida. Ela já não havia, antes mesmo, começado a temer que o amor dele esmaecesse?

Lembrava-se de uma vez em que tinham feito amor. Fora numa tarde no solar de Montigny. Naquele ato de amor,

ela sentira um prazer indizível. Quando se lembrava dele, tinha que confessar a si mesma que houve um instante em

que tivera a impressão de ver o céu entreabrir-se. E fora envolta naquela felicidade toda que começara a recear que

ele se desligasse dela. Não sentira como que uma ausência súbita da parte dele, como se ele se recusasse a

acompanhá-la no êxtase?

A vida é naturalmente injusta e se compraz em brincar com os corações, como se fossem um bilboquê. Não é no

momento em que atinge o paroxismo que o amor está a ponto de morrer?

A remoer essa recordação, Angélica convenceu-se plenamente de que, se Joffrey a enganara, não fora porque amava

Sabina, mas porque já não a amava.

Voltaram-lhe à memória certas palavras de Ana-Francisco, falando-lhe do seu amor por ela. O rapaz usara os

mesmos termos lancinantes de Bardagne: "A gente ama... e o amor vai-se!" Ela agora entendia o sofrimento contido

nessas palavras. Ante nossos olhos, o ser a quem amamos olha em outra direção e se encontra com outra presença.

Pensando em que Joffrey podia amar a outra, Angélica compartilhava da dor de seus apaixonados e apiedava-se

deles, forçados que eram a arder de um amor que jamais seria correspondido e que só se lhes poderia arrancar do

coração se ele próprio fosse arrancado a gume de adaga, e que ainda assim permaneceria sempre como um coto

ofegante e sensível.

— Não sobreviverei! Morrerei! Morrerei!

para ela, só Joffrey existia. Desde a primeira vez ele estava inteiro nela, a sua lembrança, sua presença, todo o

seu ser. Os amores passageiros não significavam nada. A ponta da flecha não podia ser extirpada... "Só você

existe."

Chegou um mensageiro, trazendo notícias do exército. Contou do terror que sentira ao ver-se cercado de

iroqueses, que subiram pelo rio Chaudiere. Utakê convocara-o à sua presença: "Vou ao encontro de

Teconderoga. Poupo-lhe a vida".

Nas notícias que o homem trazia, o Sr. de Frontenac confiava que o exército se encontrava nos arredores do

lago Bleu, mas que ainda não se haviam iniciado negociações.

Havia uma carta de Joffrey de Peyrac para Angélica, mas ela a fez em pedacinhos, sem ler, para logo se

arrepender.

A semana que se seguiu foi de lágrimas inesgotáveis para Angélica.

No entanto, a primavera explodia. E a exclamação da Polaca ganhava sentido: "E de inebriar!"

De Beauport a Saint-Joachim, três mil macieiras em flor explodiam pelo flanco da costa de Beaupré. Rosa,

branco, uma fragrância suavíssima... Em todos os jardins, uma neve de aurora. As faces da ilha de Orléans

estavam rosadas e brancas, como as de uma mocinha, uma mocinha normanda.

Angélica atribuía ao efeito dos aromas capitosos que se exalavam pelo ar tépido as pálpebras avermelhadas e o

lenço que levava com frequência ao rosto. Compadeciam-se dela. Muita gente, na primavera, sofre de males

diversos:'gripes, furúnculos, febres, a famosa febre do feno...

Ville-d'Avray apareceu uma tarde. Era o primeiro passeio que fazia desde seu acidente. Coxeava, tinha o rosto

descomposto e a fala, embaralhada.

— Bebe-se demais nesta cidade. O calor veio somar-se à minha tristeza para me levar a beber a fim de

estanear a sede e esquecer minha dor. Mas estou ficando doente, e você me abandonou.

— Vou fazer-lhe uma sopa de cebola. Chamam-na de "sopa do bêbado", conforme você sabe, pois a cebola tem

a propriedade de dissipar os vapores do álcool e de purificar os humores.

Pelo menos, enquanto descascasse as cebolas, poderia enxugar os olhos sem que ele lhe fizesse perguntas a

respeito das pálpebras inchadas. Aliás, o marquês estava distraído, só pensando em Alexandre, e achou que

Angélica chorasse pelo jovem, como ele.

— Era um anjo, um verdadeiro anjo. Eu sei. Entendi agora. Ele viveu o destino dos anjos, que são enviados

com uma missão nesta terra. Os anjos que encarnam gostam do corpo. Quiseram muito tê-lo. São belos. Sempre

têm um comportamento alado. E costumam morrer de morte violenta, jovens, consumando o ato heróico e

miraculoso para o qual foram criados.

Depois de muito falar, nessa linha de pensamento, concluiu:

— Vou embora. Deixarei a Nova França no primeiro navio. E tanto pior se o rei não gostar... Como foi que ele

ousou impor um exílio destes a uma criatura com a minha sensibilidade? Tudo isso por um vasinho da China. Ele

não tem coração. Irei a Saint-Cloud. Monsieur me protegerá e advogará a minha causa. Não se pode subsistir

nestas terras selvagens sem se virar um selvagem também. Os que guardarem este país terão raízes de sangue.

Tiveram que sacrificar o escalpo de seus filhos mais queridos... A mim, basta um... Levarei meu filho, meu

pequeno Querubim. Preciso me revigorar num país mais civilizado. Será que nos reen contraremos em Versalhes,

cara Angélica?

Durante esse período, não ocorreu a Angélica ir pedir conselho ao Padre de Maubeuge. Ele a teria mirado com

um clarão zombeteiro nos olhos amendoados e lhe teria lembrado que as mulheres muito bonitas têm um destino

singular, o que não as impedia de ser enganadas como as outras, e que ela era o coração do ciclone, o que lhe

havia evitado tempestades interiores.

No entanto, era muito doloroso. A vida, a vida que ela tivera tanta dificuldade em reconstruir, era-lhe arrancada

em tiras, deixando-a em carne viva.

"Preciso continuar bela", dizia consigo, soluçando diante do espelho. "Fui tão feliz! Tão feliz!"

E sentia saudade dos últimos meses.

Houvera brigas entre eles, mas que pareciam haver surgido somente para lhes dar a oportunidade de se

explicarem, conhecerem melhor um ao outro e descobrirem, em deliciosas reconciliações, a força sempre renovada

de seu desejo. Não fora num dos mais belos momentos de êxtase que ela tivera a impressão de perceber nele uma

reticência, um recuo?... No momento em que... levantavam vôo? Juntos, os dois! O cume fica próximo ao

precipício. A rocha Tarpéia, onde se pode quebrar o pescoço, fica perto do Capitólio, onde os cidadãos de Roma

que alcançavam a glória corriam o risco de ouvir uma sentença de condenação.

— Não a entendo — dizia a Polaca. — Eu não a haveria imaginado assim tão complicada, marquesa... Foi a vida boa

que a estragou. Tanta choradeira por umas migalhas que lhe surrupiaram da mesa! Do que é que você tem medo?

Acha que se abandona assim facilmente a uma criatura como você? Pois sim! Eu bem que gostaria, mas não vai

acontecer. Você há de cativar sempre!... Emana de sua pessoa, pelos olhos, pelos lábios, pela pele... A pele, é pela pele

que passa o amor... E isso só morre com a gente. Você acha que dá para esquecer a pele dos anjos? Acha que um

homem, depois de se acostumar com essa pele, pode passar sem ela? Mesmo que queira? E seu homem não deseja

isso!

Mostrava a pontinha do indicador com o polegar.

— Não existe nada, garanto! Nem isto aqui! Você é que fica aí a cavar a própria sepultura com suas momices!

CAPÍTULO XXI

Conselhos de amiga

— Minha amiguinha! Minha amiguinha!

Com o leque, que levava muito ereto, como um espanador, a Sra. Le Bachoys lhe dava pancadinhas no ombro.

A catedral estava deserta. Diante do altar-mor, o Sr. Gualber-to de La Melloise rezava, garantindo sua hora de

adoração diante do Santíssimo Sacramento.

Na penumbra da igreja, onde acabava de entrar a fim de subtrair o rosto alterado à claridade do dia,;Angélica

reconheceu o rosto largo de tez avermelhada da brava senhora e os olhos azuis, que lhe sorriam com indulgência.

— Vamos! Vamos, minha amiguinha — ralhou ela com sua voz generosa. — Têm cabimento esses olhos

vermelhos? Você! Você! Uma sedutora! Uma mulher a quem é impossível deixar de amar assim que aparece? Se

você não fosse tão amável, as outras mulheres a odiariam, pois não somente desvia delas os olhares de seus

admiradores, como também acorrentou o coração de um homem que todas lhe invejam. Será que ele a magoou

de algum modo? Mal consigo crer...

— O que foi que lhe contaram? — indagou Angélica humildemente.

— Nada! Mas a única explicação que encontro para vê-la assim aos prantos seria uma rispidez ou uma

leviandade do Sr. de Peyrac...

Confiando na generosidade da interlocutora, Angélica revelou que tinha motivos para crer que o marido lhe

fora infiel. Não queria retê-lo como um prisioneiro, esclareceu, mas as circunstâncias em que a coisa acontecera

tinham-na magoado... Via aquilo como desrespeito, falta de coração. Tinham aproveitado a sua ausência na ilha

de Orléans...

—- Minha querida! Bem se vê que você não tem experiências de ser traída — exclamou a Sra. Le Bachoys. —

Se tivesse, saberia que, quais forem as formas e as circunstâncias, o fato é sempre torturante. Se acontece sob seu

teto, em sua ausência, é um insulto. Longe, então, com discrição, é uma hipocrisia revoltante. Faça-se o que se

fizer, é sempre de uma covardia sem igual da parte do homem e de uma traição inimaginável da parte da mulher.

Não existe adultério elegante.

— Em suma, você o desculpa? — disse Angélica pensando que sua própria aventura, lá no fundo das planícies

de Abraão, pelo menos salvaguardara melhor as aparências.

— E você, minha cara criança, você se desculparia? No mesmo caso?

Sob o olhar franco, Angélica não procurou fingir uma indignação virtuosa.

— Sim — admitiu —, pois sei que nada pode afetar meu amor por ele... Não passaria de um capricho.

— Quem lhe diz que não aconteceu o mesmo com o Sr. de Peyrac? Capricho, você disse? Uma escapadela! Um

rasgãozinho no contrato! Mas que tipo de contrato?

Angélica teve que confessar a si mesma que as palavras da Sra. Le Bachoys valiam ouro. Também ela chegara

à mesma conclusão. Mas tudo se transformava em catástrofe pelo fato de se haver convencido de que ele já não-a

amava... Ou que a amava menos.

Recomeçou a chorar.

O Sr. Gualberto de La Melloise, de seu genuflexório na segunda fileira diante do altar-mor, voltou a cabeça,

perturbado nas suas orações por aquele zumzum de cochichos e soluços que vinham do fundo da igreja.

— Vamos! Vamos! — ralhou a Sra. Le Bachoys. — Tente falar com clareza. Conte-me o que a atormenta.

Haveria alguma coisa que observou ou que teria imaginado, que a leve a atribuir mais gravidade do que

necessário a essa história... antiga, parece-me?

Angélica acabou confiando seu único receio de .uma infelicidade perto da qual o resto perdera a importância, e.

que ela até teria esquecido, caso essa inquietação não o houvesse reforçado. Receava estar em vias de perder o

amor dele. E contou do sinal sobre ó qual fundamentava seu diagnóstico. Aquela reticência súbita durante um ato

de amor ardente, como se de chofre ele tivesse tido vontade de estar em outro lugar, de ir embora. Oh! Não fora

assim tão acentuado, definitivo... Aquilo não revelava um enfraquecimento amoroso que ela lhe inspirava?

— Pelo contrário!

A Sra. Le Bachoys parecia completamente tranquilizada e mesmo encantada com a história. Segundo ela,

Angélica interpretava erroneamente uma reação muito masculina, que não era mais do que uma confissão do

poder que ele reconhecia nela, da intensidade da felicidade que sentia junto dela.

— Talvez você não tenha pensado em tudo... Minha amiguinha... Os homens têm medo do êxtase. Desconfiam

dele. Exceto os muito jovens... ou os místicos. Têm medo dessa entrega, desse soltar-se, desse desaparecimento

de toda... segurança. Eles querem conduzir o coche. Afirmar-se... Q sangue frio deles sente-se ameaçado. Têm

medo do desnorteamento ou de uma fraqueza que seria mal interpretada. De parecerem subjugados ou fulmi-

nados por um raio...

— Então você acredita que, sob a violência e o maravilhamen-to do prazer que se apoderava dele e que também

me dominava, ele quis defender-se? \

— Não é impossível. Os grandes mestres na arte da volúpia, dotados para o amor e para dispensá-lo, podem

temer fundir-se numa mulher, confessar o abandono em braços tão frágeis e perigosos. Atribuem-nos mais

maquinações do que somos capazes... Se soubessem... Nós, mulheres, guardamos o segredo dos nossos...

transportes. E um segredo entre Deus e nós. Ocultamo-los de nossos confessores, de medo de sermos julgadas e

condenadas ao inferno. Certos homens imaginam que a nós nada é concedido, senão de uma maneira difusa. Mas

é por isso que nos é mais fácil perder os sentidos, perder a cabeça, deixarmo-nos embarcar para Citera sem

pensar no regresso. Oh, sim minha cara, somos favorecidas!

— Entendo o que você quer dizer. Inúmeras vezes fui feliz, louca, maravilhada pelo amor, mas- naquele dia me

pareceu que eu estava prestes a morrer sem pensar. Pois morria de alegria.

— Eu, pessoalmente, desmaio! — disse a Sra. Le Bachoys.

Ante a ideia daquela gorda mulher a desfalecer sob os olhos assustados de um amante, Angélica caiu na risada.

Mas a Sra. Le Bachoys não se aborreceu e compartilhou sua alegria.

— Sim! Você pode imaginar como a situação pode ser embaraçosa para um homem que fez o melhor que pôde

para conduzir... digamos, o caso a bom termo, e com o maior sangue-frio, de que ele se glorifica. Ei-lo ali, então,

todo confuso, a acreditar-se culpado... tanto mais que esses senhores têm inveja da amplidão de nossos enlevos...

Riram mais ainda.

Desta vez o Sr. Gualberto de La Melloise considerou ultrajante aquela dissipação, e levantou-se com a intenção

de dar-lhe um basta. Foi o tempo de ele fazer sua genuflexão e percorrer a nave, e Angélica e a Sra. Le Bachoys

já se encontravam no átrio da catedral, para escapar-lhe às admoestações.

Deram-se o braço e desceram os degraus.

— Vamos andar um pouco pela praça. Passeemos à sombra das cerejeiras, ouvindo o murmúrio do regato. O

que é que eu estava dizendo? Sim, eu desmaio, e assim abandono o timoneiro na margem, o que o põe furioso. E

você? Quais são suas confissões?

— O que quer dizer?

— O que foi que lhe manifestou? O que lhe confessou? O que lhe diz dos sentimentos que ele lhe inspira?

Angélica, então, lembrou-se das palavras de amor que ele pronunciava com frequência. Como ele fizera todo o

possível em Gouldsboro, em Wapassu, ali mesmo, para reaproximá-la dele, despertá-la, consolá-la. E, tornando-

se acessível a ela, dizia: "Apaixonei-me por essa nova mulher em que você se transformou. Pude viver sem você.

Agora já não poderia..."

Que resposta dera ela a esses discursos?

Às vezes lhe acontecera, num excesso de ternura, de ter vontade de transpor certa vergonha, timidez ou medo, e

cumulá-lo de palavras, talvez ingénuas, mas que tentassem traduzir tudo o que era ele para ela. Tinha vontade de cair

de joelhos ou de apertá-lo nos braços, beijá-lo num impulso possessivo e fogoso que a presença dele lhe inspirava.

— Mas... ele talvez não gostasse disso — comentou.

— O que lhe dizia eu? Existem muitas barreiras dentro de nós que se opõem à nossa felicidade. Você ainda têm

muitos caminhos a seguir, descobertas a fazer... Só se conhecem bem os amantes que sabem que quase não se

conheceme que lhes restam tesouros a descobrir. A gente sempre acha que está apaixonada e, olhando para trás,

percebe que estava pouco, e que é então, dessa vez, que está de fato apaixonada... e depois, ainda mais adiante...

revelações infinitas nos aguardam. Dizemos e repetimos: estou apaixonada. Mas .para cada pessoa a palavra muda.

Permanece semelhante, mas oposta em relação a verdades diferentes e que somos os únicos a conhecer e definir. Que

verdades? Tenho uma ideiazinha a respeito... Elas são diferentes! Não muito variadas e ainda assim múltiplas, pelos

desenvolvimentos e ressonâncias que lhe damos, cada um de nós, no coração... O orgulho dos homens lhes serve de

espartilho — prosseguiu ela. — Assim como as mulheres no amor, só o tiram a custo e não sem constrangimento.

Desatam-no com mais apreensão do que um guerreiro a despir a armadura sob o fogo do inimigo. Nosso Peyrac

nunca foi assim, nem quando não passava de um jovem gascão audacioso... e impaciente por saborear todos os frutos

da existência, dos mais variados e mais belos. Conheço a vida dele, pedi que ma contassem várias vezes, em

detalhes. Mas ele preferia tomar o amor por um divertimento e uma arte, e você lhe ensinou o que ele sabia muito

bem, ele, poeta, trovador, que o amor morde o coração. Você o introduziu num domínio de cuja existência ele

suspeitava, mas em que acreditava poder dispensar-se de penetrar. Essa força que o dominou pode, de vez em

quando, tê-lo tornado... difícil. Mas há patamares, etapas, que um homem como ele não pode lamentar haver

transposto.

A Sra. Le Bachoys deu alguns passos com ar pensativo.

— Confesso que ele me impressiona... Ele me haveria transtornado, caso... Preferi deixá-lo para você. Há fogos

que não de vemos tentar desviar em nossa direção... Eu me conheço... A mim, uma vez só não teria bastado. E não é

certo que ele quisesse conceder-me mais do que uma... Eu teria definhado...

Meneou a cabeça rindo.

— Para ele, você é a mulher inesquecível. Disso ele não se há de curar nunca! E ele o sabe. É normal que um

homem como ele se defenda contra isso, mas você... você pode fazer tudo o que quiser... Até continuar a fazer-se

de tola... Não mudará mais nada... Bem-aventurada! Bem-aventurada é você!

Fitava Angélica com meiguice, e sob o olhar um pouco velado dos belos olhos azuis que brilhavam naquele

rosto feliz e rosado, Angélica perguntou-se se não tinha pela frente a mulher que poderia ter sido a sua única rival

em Quebec.

CAPÍTULO XXII

Os vários tipos de amor — As armas de Sabina — As primeiras velas

"Bem-aventurada! Bem-aventurada é você!", repetira a Sra. Le Bachoys a Angélica antes de deixá-la, depois de

dar-lhe uma bandinha amistosa com o leque de plumas de peru selvagem. "Bem-aventurada você, que recebeu

tudo!"

Por um recado da madre superiora das ursulinas, Angélica soube que queriam vê-la no convento. Seguiu para

lá, dando uma trégua à sua mágoa e imaginando que as freiras quisessem falar de Honorina, talvez dos

progressos da menina na leitura, e com certeza de suas tolices.

As meninas dançavam sob as macieiras em flor: — Alouette! Gentille alouette!...

De inicio a madre superiora lhe disse que ela e suas irmãs lamentavam não ter podido agradecer de viva voz a

Angélica por lhes haver salvado a vida.

— A clausura, senhora, às vezes é um sacrifício para nós, quando temos vontade de correr até nossos amigos

para lhes beijar as mãos.

Madre Madalena tivera a feliz inspiração de mandar chamá-la, para comunicar-lhe certas recomendações do

Senhor. Assim, poderiam cobri-la de bênçãos e garantir-lhe orações diárias, por ela e pelos seus.

Honorina, afirmou a superiora, era a criança preferida delas.

Não tinham dificuldade alguma com a menina, desde que lhe falassem ao coração.

Madre Madalena esperava-a por trás da grade, e dirigiu-lhe um sorriso de conivência.

— Eu não gostaria, cara senhora, de que pagasse caro demais pelos maus golpes que seu brio desfere contra o

Demónio. Ele se vinga sempre, fique sabendo. Os grandes favores que o céu nos concede não podem ser grandes

sem que sejamos obrigados a entregar a nosso insaciável inimigo um pedacinho de nós mesmos, a fim de acalmar-lhe

a voracidade. Assim lhe desviamos a atenção das coisas mais graves, e sempre notei que o preço desse óbolo é

mínimo

Desta vez Angélica não perguntou: "O que é que você está sabendo?" Entendeu que Madre Madalena adivinhara

que ela estava atravessando uma crise dolorosa.

Afirmou que em sua opinião o dízimo' que lhe cabia pagar ao Demónio por haver recebido a graça de salvar

Quebec não lhe parecia tão pequeno. Era difícil explicar isso a uma religiosa.

Para simplificar as coisas, confessou a Madre Madalena, certificada da discrição dela, que soubera recentemente de

uma infidelidade do marido.

— Infidelidade? Será que isso é sempre a prova de falta de amor, realmente? — indagou a madre, alçando as

sombrancelhas com ar ingénuo: — Não derrame tantas lágrimas. Seus amigos, seus filhos estão salvos, sua filhinha

está salva. Seu esposo bem-amado está salvo. Bendiga ao céu! Ao nível das felicidades terrenas, só a morte é

irreparável.

Decididamente todo mundo parecia se pôr de acordo para não ver os motivos de queixa de Angélica. Há pessoas

que não são feitas para inspirar piedade. Além do mais, ela não era a única a chorar em Quebec. Os mortos eram

inúmeros.

Entre as primeiras vítimas, estavam os ocupantes da barcaça que transportava os elementos do tabernáculo de

Santa Ana. Esburacada a machadadas, a embarcação afundara. Encontraram-se alguns pedaços, flutuando ao sabor

das ondas.

Degraus do altar, longos destroços de ouro com entrelaçamentos de trigo e vinha, ramos de folha de acanto, foram

avistados, seguindo a correnteza, por marinheiros que mudaram o curso a fim de alcança-los e trazê-los de volta a

Quebec. O domo e a cruz dançaram por muito tempo sobre a crista das ondas, até que foram encalhar na costa

norte da ilha de Orléans, quase na enseada de onde surgiram as canoas inimigas que arremeteram sobre a bareaça

em meio a gritos horríveis. Pareceu um sinal.

Sob o pequeno cabo, no ponto onde os gansos mais se concentravam, encontraram-se os dois relicários, que

sem dúvida tinham sido levados para lá pelas asas de seus anjos, pois-foram achados juntos. Assim, a obra não

seria desemparelhada. Finalmente, bem ao pé da nova capela, foram encalhar a custódia, adornada com o

pelicano eucarístico, a estátua de Santa Ana e, um pouco adiante, entre os caniços, o corpo do escultor,

trespassado de flechas.

Enterraram-no por ali mesmo, um pouco acima, perto do local miraculoso, à sombra dos rochedos espetados de

arbustos, moitas de uva-brava e pequenos pinheiros prateados de raízes leves. Dependendo da estação do ano, o

chamado dos gansos selvagens ou o canto do rio lhe embalaria o sono eterno. Com o correr dos séculos, a esses

sons se misturaria o bulício, sempre maior, das multidões de peregrinos, que viriam, em número cada vez maior e

mais fervoroso, ajoelhar-se naquele local e suspender, como ex-votos, nas paredes e nas abóbadas do santuário

muletas e naviozinhos.

Nas ursulinas, falaram a Angélica da morte, durante o inverno, da pequena Jacqueline, a indiazinha que o pai,

chefe montanhês, para ali levara no dia da primeira tempestade. Era difícil educar aquelas crianças da floresta.

Quando eram demasiado pequenas para fugir, estiolavam-se.

Outra morte ocorrida como que por descuido foi a do velho Loubette. Como morreu durante os dias da

incursão iroquesa, as pessoas ficaram a imaginar, horrorizadas, se o homem não teria morrido porque, mais uma

vez, no transtorno e na confusão gerais fora esquecido. Porém, lamentavam, o que o levara a ser enviado para a

Santa Casa? Quando se é entrevado... No entanto, o rosto sereno, as pálpebras cerradas, o sorriso matreiro que

ele conservava no canto dos lábios rijos tranquilizaram as consciências angustiadas. Morrera sem sofrer,

afirmava-se. Era evidente... Parecia adormecido. O cachimbo de pedra vermelha estava pousado a seu lado, bem

como a carta que continha seu testamento. Deixava tudo que possuía à Sra. de Peyrac — o cachimbo e o guarda-

louça de carvalho trabalhado a faca e grossa, da época em que os carvalhos da floresta americana ainda não per-

tenciam ao rei da França e os colonos podiam entalhar, sem incorrer em sanções, belos móveis para guardar sua

primitiva louça de madeira, de cabaças ou de casca de bétula.

Pedia à condessa que entregasse a tabaqueira de lata e diversas tiras de couro, saquinhos, cintos, amuletos

indígenas a um certo Beaupars, que passara o inverno com ele em Gaspésíe. Num co-dicilo malicioso, aposto

com a solicitação de só ser lido dois dias após a primeira leitura, o velho Loubette acrescentava que deixava a

herdeira, Angélica, livre para presentear, caso o desejasse, o Marquês de Ville-d'Avray com o cachimbo de pedra

vermelha.

Isso foi um bálsamo para o sofrimento do marquês e para a decepção que sentira durante dois dias. Fizera uma

cena com Angélica por causa do tal cachimbo, o que provava que começava a retomar o gosto pela vida. O

presente do cachimbo o trouxe de volta a si. Bateu-se um duelo com o Sr. Tardieu de la Vaudie-re, que lhe

impusera pesadas multas pelo fato de não ter muretas de proteção ao fogo no telhado de sua casa, "como se eu

precisasse disso, visto que não sou vizinho de paredes-meias de ninguém", e porque ele não procedera no prazo

estipulado ao calçamento da rua, diante de sua porta. O marquês achou aquilo a gota d'água que transborda o

copo. Foi ferido no braço.

— Eu mal me havia recomposto de minha luxação!

Houve outro duelo, previsto, aguardado, temido.

O cão alemão do Sr. de Chambly-Montauban e o glutão de Cantor de Peyrac toparam-se um dia cara a cara. O

assunto foi rápido. Encontrou-se a cabeça dó cão espetada na forquilha de um galho na Place d'Armes. Na outra

extremidade da Cidade Alta, o corpo decapitado e também içado nos galhos do olmo da encruzilhada — fato

bem raro — intrigou os cães do pequeno acampamento indígena que lhe haviam escapado às presas.

Quando a cidade ficou sabendo do fim que tivera o cão de Abade Dorin, que era muito corajoso e fora morto

por uma flechada iroquesa diante da igreja onde o seu dono rezava, enquanto o dogue do Sr. de Chambly-

Montauban sobrevivia e continuava a trucidar alegremente todo cão indígena com que topava, as pessoas não

deixaram de resmungar que "são sempre os melhores que se vão!"

Em segredo, regozijaram-se.

O Sr. de Chambly-Montauban criou caso. A sr. Le.Bachoys o repreendeu. Um cão era um cão, e o dogue

alemão dele era a mais odiosa criatura que havia. O apego que tinha pelo animal, divertindo-se com a ferocidade

do bicho, não era saudável, pois sequer conseguira transformá-lo num bom cão.

O glutão, o Diabo da mata, fizera justiça. Os próprios índios da cidade admitiam isso. A Sra. Le Bachoys

lembrou-o ainda de que era tempo de pensar em coisas sérias, ou seja, de declarar-se à sua filha mais velha e

pedi-la em casamento, pois já borboletea-ra o suficiente e devia aprender a fazer amor de modo conveniente, ao

invés de decepcionar nesse sentido suas inúmeras conquistas, conforme o comentário que corria.

Vale mencionar que todos esses acontecimentos se desenrolaram em cerca de três semanas.

Vindo do sol e dobrando o cabo Rouge, uma fotilha de canoas e as velas de barcos maiores fizeram pensar no

regresso do exército. Mas eram somente trifluvianos e montrealenses que chegavam com os seus gorros brancos

e azui|. Vinham do baixo Saint-Laurent, onde tinham sido esquecidos, isolados pelas ne-vascas.

Tudo o que fervilhava rio acima e que fora abafado, apagado pelo rigor do inverno, surgiu com estardalhaço,

como uma população de animais mansos a saírem das tocas e a farejar o sol.

As novidades esparramavam-se no cais como peixes descarregados de redes estourando de cheias, depois de

uma pesca abundante. Em Quebec talvez se pudesse pensar que todo mundo dormia para aquelas bandas, sob as

grandes nevascas. Mas qual! Muita coisa acontecera: nascimentos, mortes, casamentos, brigas, crimes,

desaparecimentos, ruínas, sucessos... As vozes se elevavam com a mesma animação das águas liberadas.'

O alarido corria, cascateava. Não eram novidades, nem relatos, nem comunicados, era um canto, um canto de

viajante do rio.

O Barão d'Arreboust retornou nesse primeiro comboio. Vinha desapontado e desesperado. Aquele inverno em

Montreal arrematara-se com um fracasso. Multiplicara esforços para avistar-se com a mulher, que vivia como reclusa,

ou seja, inteiramente emparedada numa cela, que só se comunicava com o mundo exterior por uma janelinha. As

religiosas dtí hospital de Joana Mance ocupavam-se da subsistência dela.

A Sra. d'Arreboust distribuíra uma grande parte de sua fortuna às boas obras e aos conventos.

O marido só pudera chegar perto da cela uma única vez, mal a vislumbrando, enquanto ela o censurava por nào

haver permanecido fiel ao sacrifício que haviam decidido realizar juntos, e por cometer uma má ação, vindo lembrar

a ela, com sua presença, o prazeres do mundo a que ela renunciara para melhor servir a Deus.

O timbre da voz que lhe chegara por aquela abertura diminuta lhe parecera enfraquecido e trémulo, e ele se

retirara mortalmente preocupado.

— Só lhe resta lidar com essa pequena infeliz — disse a Srta. d'Houredanne a Angélica, depois de haver recebido o

angustiado barão. — Trinta anos, encantadora e reclusa! Compreende isso? Foi o Padre d'Orgevai que enclausurou.

Era o mau génio dela. Era o mau génio de muita gente. Mas você quebrou o encanto. E graças a você as pessoas

encaram o amor com mais indulgência. Sonham com aventuras... uma aventurazinha, uma única vez. Você tem que ir

a Montreal um dia para ver Camila e retirá-la daquela toca.

— E você?

A Srta. d'Houredanne corou levemente e olhou Angélica com ar de culpa.

— O que quer dizer?

— E você, Cleo? Quando é que sairá dessa cama?

— Eu? Mas eu não tenho nenhum amor a me esperar à porta, como Camila d'Arreboust!

— E o intendente Carlon? Então não sabe que ele arde por você há anos? Foi o que me contaram. Em todo caso,

é patente aos olhos de todo mundo que ele não saberia passar sem sua companhia e que você é o sonho secreto dele.

— Ele só me fala da potassa e de estaleiro naval. E quando quero elevar o nível da conversa, brigamos, porque sou

jansenista e ele, galicano.

— Ele não ousa transpor a barreira das palavras comuns. Protege-se atrás delas a fim de ter um pretexto para

ficar perto de você, mesmo ao preço de uma briga.

— Gosto dos homens tímidos — disse a Sita. d'Houredanne, corando mais ainda.

Susçirou.

— E tarde demais, Angélica. Já não tenho trinta anos.

— Mas você é fascinante.

Angélica estendeu-lhe as duas mãos.

— Levante-se! Está fazendo um dia muito bonito. O sol brilha, e o intendente está no palácio. Será um passeio.

Lembre-se!

E rfaça-lhe a surpresa de uma visita...

Finalmente, militares e alguns huronianos trouxeram notícias do exército. Ocorrera o encontro com o restante

dos iroqueses. Agora se trabalhava no sentido de enterrar o machado de guerra. O tesouro dos iroqueses conteria

nove colares de wampum, dois de miçangas, ou seja, de pérolas e não de conchas, treze galhos de wampum, um dos

quais queria dizer: "que o lugar dos ossos dos abenakis seja respeitado", e outro significando: "que o invólucro dos

ossos deles também o "seja". Com respeito aos huronianos, ainda não se assumira compromisso algum.

Angélica recebeu uma missiva pessoal do marido. Desta vez abriu-a:

"Sou informado, Angélica, de que o favor do público a destina aos altares. Padroeira de uma cidade que salvou,

assim como Santa Genoveva fez com Paris. Eis uma coisa que nos permite avaliar, parece-me, a distância percorrida

desde que você desembarcou nessas mesmas praias, lançando seu desafio à Nova França. Hoje você triunfou sobre

todos os comentários maldosos e sua vitória é integral...".

Ele lhe prodigalizava todo tipo de palavras de ternura e falava de Utakê. Não previa um retorno possível antes de

duas semanas.

— Pois que fique por lá! Não quero mais vê-lo!

Não pôde deixar de corrigir-se.

— Oh, sim, que volte! Mas quanto mais tarde, melhor. Assim terei tempo de recompor o rosto.

O Sr. d'Arreboust lhe trouxera de Montreal uma carta da Srta. Bourgeoys. A religiosa transmitia a Angélica as

boas recordações que tinha dela, falava do inverno, alegrava-se por ter sido um "belo frio". Os alunos e as freiras

passavam bem. Ela pedira informações sobre aquela ex-aluna, a menininha de nome Maria Anjo, que se parecia

com Angélica de modo surpreendente. Dentro em breve conheceria a origem daquela família... Angélica, ini-

cialmente surpresa, ficou pensativa. A Srta. Bourgeoys parecia achar que tamanha semelhança só podia dever-se

a laços de parentesco.

Poucas pessoas de sua casa se exilaram na América, exceto o irmão Josselino, que desaparecera quando ela

contava oito ou dez anos, gritando bem alto que ia atrás deaventuras, e também um tio, se Angélica não se

enganava, mas os dois tinham partido na cola de um pastor protestante fanático, o que partira o coração do avô,

que dali em diante exigira que os nomes dos trânsfu-gas não fossem pronunciados na sua frente. Mentalmente

Angélica reviu os irmãos, as irmãs, o Castelo de Monteloup, a família numerosa e empobrecida, espalhada aos

quatro ventos: um, jesuíta, outro, enforcado, ela, do outro lado do mundo...

A Srta. Bourgeoys concluía assegurando-lhe o afeto que lhe devotava e que as unia a ambos em Jesus Cristo. E

escreveu:

"Embora prevenida contra você, saiba que a confiança que você me inspirou foi espontânea.

"Em vista de nossa existência tão' diferente na aparência e de metas tão contrárias, não me foi fácil, admito,

reconhecer que nossa vida se aquece à mesma chama que a tudo glorifica, arda ela por uma pessoa ou pela santa

majestade de Deus: o amor.

"Pois há vários tipos de amor no mundo: o amor aos estrangeiros, o amor aos inimigos, o amor aos pais... e

enfim o amor dos amantes... Sentimo-nos tocados de compaixão pelos estrangeiros quando sabemos que seu país

foi invadido e pilhado. Amamos os passantes, porque ganhamos alguma coisa com eles, os pobres, a quem

damos o supérfluo, os associados, porque perdê-los é prejudicial... os amigos, porque a conversa deles compraz e

é agradável... os pais, porque deles recebemos o bem ou porque tememos ser castigados por eles... Mas é

somente o amor dos amantes que penetra no coração de Deus e ao-qual nada é recusado. É verdade que

raramente se encontra esse amor. Mas é o amor autêntico, pois não conhece seus interesses nem suas

necessidades. Doença e saúde lhe são indiferentes, prosperidade ou adversidade, consolo ou secura, tudo lhe dá-

ríá mesma. E pela coisa amada ela dá a vida com prazer..."

Assim, todo mundo falava de amor, inclusive a Srta. Bourgeoys.

Bem no momento em que Angélica se acreditava destituída de amor para sempre.

A carta da devota mulher levou-lhe o desespero ao cúmulo. O amor dos amantes, para ela, era assunto

encerrado... Pela primeira vez na vida Angélica duvidava do poder do próprio encanto.

O Sr. de Chambly-Montauban anunciou o seu casamento com a filha mais velha dos Le Bachoys.

Cumprimentaram-no por isso, e a cada um ele respondia: — Sinx, a mãe é ótima.

Angélica encontrou-se com a Sra. Le Bachoys.

— Minha filha se esquecerá de Pont-Briand. Não teria sido feliz com ele.

Suspirou.

— Ah! Aquele Pont-Briand! Você fez mal em desdenhá-lo.

Angélica observou que não via por quê. Ele lhe desagradara imensamente.

— Você é demasiado eclética quanto à escolha de homens, minha cara. E verdade que aquele que tornou seu

amo a faz difícil. Ainda assim, não é o receio que a detém.

— Em Wapassu, as condições não eram as mesmas, nem em mim nem fora de mim.-Estávamos isolados, no

fundo da floresta. Aqui, em Quebec, estamos mais fortes.

— Quebec é Quebec. O vento sopra onde quer — disse a Sra. Le Bachoys —, e em Quebec costuma levar

nossas coifas por sobre os moinhos.

O vento soprava, os moinhos giravam, a coifa da Sra. Le Ba choys voava...

De golpe, assim como tinham surgido, as pétalas das macieiras caíam no chão.

Era verão. A relha do arado sulcava a terra. Começava a semeadura.

A ilha de Orléans, ao longe, apresentava uma displicência de cação encalhado, de crocodilo submerso, a vigiar

com um olho só, por trás da bruma de calor, enevoada como um sonho, e parecia desabitada, deserta, como

naquele primeiro dia em que Car-tier a avistara e a denominara ilha de Baco, devido às suas vinhas silvestres.

No Canadá havia somente duas estações. Oito meses de gelo e quatro de calor tórrido; ao cabo de cada um

desses dois extremos, dez dias de uma explosão de flores: a primavera, e dez dias de ondulações púrpura,

vermelhas, rosadas e douradas: o outono.

Fazia um calor sufocante. Angélica, caminhando absorta em seus pensamentos, viu-se de repente diante de

Sabina de Castel-Morgeat.

Fora a outra que a abordara.

— As obras em minha casa terminaram — disse a esposa do governador militar. — Você me acompanharia até

lá, para que eu possa fazer-lhe as honras da casa?

Angélica estava tão pouco preparada para o convite, que ficou sem ação, na impossibilidade de decidir o que

devia fazer.

— Remobiliei o salão. E dentro de alguns dias Ana-Francisco poderá instalar-se num quarto mais confortável,

contanto que você autorize a remoção dele, sem riscos, do Castelo Saint-Louis.

Sabina não estaria exagerando um pouco? Porque a incursão dos iroqueses as obrigara, contra a vontade, a

manter relações normais, estaria imaginando que o que fizera estava anulado e sem efeito?

— A Sra. Le Bachoys enviou-me um bilhete falando de você — disse Sabina.

— A propósito de quê? — inquiriu Angélica, na defensiva.

— Disse-me que lhe devemos tanto, que nos tornamos ingratos. Que andou perguntando a si mesma se você não

estaria precisando de auxílio e que me considerava a pessoa mais habilitada a fazer isso do modo mais eficaz. A

Sra. Le Bachoys ,é pessoa de uma delicadeza infinita e de modo algum mexeriqueira. Compreendi sua intenção.

Você não gostaria de que conversássemos um pouco?

A casa reconstruída dos Castel-Morgeat ficava a. alguma distância do prebostado, no alto de um jardim cujas

grades se abriam para a Grande Allée.

Do salão onde Sabina introduziu Angélica, descortinava-se uma ampla vista, mais bela ainda, se possível, do que do

Castelo Saint-Louis. O sol entrava e fazia brilhar alegremente a madeira dos móyeis que a Sra. de Castel-Morgeat

finalmente pudera reunir novamente. Angélica não avistou a pequena taça de ouro e esmeralda.

— O que você tem a dizer-me? — perguntou com frieza.

— Talvez você me ache pretensiosa se lhe disser que a trouxe aqui para falar de mim. Mas é o que farei. Pois

creio que é isso o que pode dar-lhe um quadro mais justo do que a magoou e também contribuir para livrá-la de

tanta inquietação e tranqiilizá-la.

— Para você é fácil falar — esbravejou Angélica, amarga.

Viu que Sabina de Castel-Morgeat conteve o riso, para logo exclamar:

— Ora, Angélica! Será possível! Você! Você!

— Você vai dizer, como a Sra. Le Bachoys: "Você, uma sedutora?"

— Mas é claro! Não conhece suas armas? Quem pode entrar em combate com uma mulher que possui sua

beleza?

— A beleza não é tudo — disse Angélica, tocando o rosto com ar infeliz.

— Sem dúvida. Mas costuma ser muito. Não seja ingrata para com a natureza, que, ao-dotá-la de tantas graças no

berço, lhe-poupou todos os trabalhos e esforços para agradar a que são forçadas suas irmãs menos favorecidas.

— Você não tem de que se queixar nesse sentido, já lhe disse várias vezes.

— Obrigada. No entanto, apesar de sua bondade e apesar de seu desânimo passageiro, nenhuma de nós alimenta

ilusões: você levará a palma, seja qual for a partida que resolver disputar. Como mulher, você possui a arma

fundamental... Angélica, perdoe-me por insistir, mas você está realmente tão magoada assim quanto parece, ou

está fazendo um pouco de teatro?

Angélica sentiu lágrimas inoportunas lhe marejarem os olhos.

— Estou muito infeliz! — afirmou.

Diante do tom pueril da afirmativa, a Sra. de Castel-Morgeat esboçou um sorriso, e Angélica estremeceu. Se

Sabina se pusesse a rir e a sorrir, haveria de adquirir encanto em demasia. E se ainda por cima Angélica lhe

deixasse a vantagem da grandeza de alma e do caráter amável, junto com a vantagem de sua origem tolosana, aí

sim é que ela poderia tornar-se uma rival inquietante. Mas nesse caso Angélica só teria a si mesma a censurar,

pois, aferrando-se a uma atitude magoada, estaria "cavando a própria sepultura", como dizia a Polaca. Ainda

havia tempo...

— Você está pagando o preço de suas fadigas e emoções — disse Sabina brandamente. — Você se refará.

Não quer sentar-se?

Angélica puxou uma poltrona.

— Então? — disse, sentando-se. — Escuto-lhe. Fale-me de você...

— Angélica, quando, há alguns dias, vi meu filho renascer e suas palavras me confirmaram que ele estava

salvo, você fez cessar o pesadelo em que eu vivia desde o instante em que o trouxeram, moribundo. Soube

então que estava recebendo do céu tudo o que eu podia desejar de melhor nesta vida. Como essa vida agora me

pareceu simples, depois de precisar antever a possibilidade de levá-la adiante, por anos e anos, com o punhal da

perda de meu filho, meu único filho, cravado no coração, a perspectiva de sofrer esse vazio que não se pode

preencher, uma ausência irremediável que nos atira para sempre para o lado da morte, pois com um filho

também desce ao túmulo um pouco da gente mesma. Oh, claro" que não ignoro que será somente durante a

convalescença que o terei assim menininho, só meu. Há de curar-se e partir. Mas não tem importância, pois sei

que um dia posso ouvir-lhe os passos ressoando outra vez, vê-lo aparecer à minha frente, vivo. Como a vida me

pareceu bela e fácil de viver! Saberei acalmar as exigências de minha imaginação. Já não reclamarei dela mais do

que ela puder me dar. Sou feliz, Angélica. E não posso suportar a ideia de que, por um contfagolpe injusto e que

não deveria ter acontecido, pois você não deveria ter sabido nunca, Angélica, você esteja sofrendo, você a quem

tanto devemos.

Sabina cruzava e descruzava os dedos. O que tinha a dizer não era fácil, mas resolvera ir. até o final.

— É preciso que, na medida do possível, você saiba o que aconteceu, a fim de que não se exalte em imaginações

falsas. É impensável que o caso tenha transpirado e chegado até você. Só pode ter acontecido por acaso e de modo

irresponsável.

"Se ela soubesse a quem eu devo a boa notícia...", pensou Angélica. Mas contraiu os lábios e não disse nada.

— Os pormenores do que precedeu minha incursão a Mon-tigny se perdem num nevoeiro confuso. Só sei que eu

estava enlouquecida, a ponto de perder a razão, e não posso deixar de pensar que ele me salvou a vida, agindo

conforme agiu. É bem humilhante para uma mulher reconhecer isso, mas no gesto dele houve uma grande dose de

bondade...

— Bondade que pouco se incomodou comigo.

— Você é muito forte, Angélica, e eu estava fraca e perdida... Calo-me, porque vejo como lhe desagrada o que

estou dizendo... Mas gostaria de lhe expor meu pensamento sobre esse ponto.

"Seja como for, é sempre torturante", pensou Angélica, lembrando os conselhos da Sra. Le Bachoys.

— Continue — disse alto.

— Você é muito forte, Angélica. Não sei se sempre foi assim. Pode ser que só tenha atingido esse estado de

repente e há pouco tempo... Mas eu sentia demais que você era a mais forte. E ele também. Talvez ele tivesse

manifestado mais escrúpulos, caso não estivesse certo de que você se havia tornado fortíssima... Podia-se esperar

que você nunca soubesse de nada. No entanto, ele correu o risco, porque confiava em você. Ele a compreende

em tudo, aceita-a... a ponto de ser seduzido pelo,que outras pessoas poderiam chamar de... seus defeitos. Uma

liberalidade que você não pratica com tanta largueza em relação a ele... ainda que com certeza não o amasse

tanto caso ele fosse outro... e menos ousado...

Vendo que suas palavras causavam um verdadeiro suplício a Angélica, Sabina de Castel-Morgeat calou-se.

— Não é fácil falar — continuou, após uma pausa. — As palavras que empregamos podem não se aplicar às

mesmas evidências. E creio que se não desejamos tombar na canhestrice,

estragando e envenenando tudo, é preferível calar... Bastaria entender, admitir que por vezes certas coisas

acontecem e são vividas em outro plano, o que lhes extrai a importância e o significado comuns, como se o fato

desaparecesse, entende? Acontece de nos vermos diante de precipícios mortais e na impossibilidade de transpô-

los a tempo. Então o fato desaparece. E para nos salvar, pode ser que um deus, apiedado de nossas

enfermidades, nos oculte momentaneamente a profundeza do abismo. Não sei se me exprimo bem, não sou

instruída.

"Não é instruída...", pensou Angélica. "Mas é inteligente e intuitiva."

— Devemos ter a humildade de não querer tentar seguir sempre passo a passo aquilo que nos foi indicado

como a perfeição e que confundimos com a vontade de Deus — prosseguia Sabina. — As vezes Deus é mais

misericordioso com nossa consciência do que nós mesmos... mais terno com nosso coração do que nós

mesmos... Pobres criaturas que somos, frágeis e entregues aos ardis do Maligno, que chega ao ponto de servir-

se de nossa disposição para o Bem para nos perder; Na sua inteligência perversa, ele adivinha como o amor, às

vezes, é uma força que pode transformar, expandir e enaltecer as pessoas, e se empenha no sentido de nos

desviar do amor. Não ignora que até o amor carnal, pretexto de tantos crimes, também pode ser um instrumen

to de salvação.

Interrompesse.

— Muito bem! Não se fala mais nisso!

Começou a rir.

— Correríamos o risco de reacender a disputa da Aquitânia. Seus projetos?... O Sr. de Peyrac e você pensam

retornar à França?

— Como saber? Vai depender da decisão do rei a nosso respeito, e é possível prever essa decisão. O Sr. de

Frontefiac insistiu no interesse que a Nova França teria em manter boas relações conosco na América. O rei

pode concordar, assim como pode nos declarar guerra. E há também os litígios de nosso passado, de um e de

outro.

— Comenta-se que o rçi a amou. Ele pode alegrar-se com seu retorno.

— Também poderia alegrar-se com minha morte. Nada é mais incerto do que o que nos aguarda. Os correios

que chegam tanto podem nos cumular com as graças do rei, quanto podem ordenar nossa detenção imediata.

Veremos. E você, quais são suas intenções?

— Eu gostaria de encorajar Ana-Francisco a retornar à França e pôr-se a serviço do rei. Essas loucas correrias

pelas florestas, onde ele enfrenta tantos riscos, deixam-me orgulhosa dele, mas me atormentam. Ele não

amadurece. Caso se iniciasse na carreira das armas, poderia pleitear um posto de oficial num dos corpos da

guarda da Casa do Rei, que servem em Versalhes. Quanto a mim, o Sr. de Castel-Morgeat me deixa livre para

decidir. Eu ficaria de bom grado no Canadá. Afeiçoei-me à sociedade colonial, e gostaria de dar

prosseguimento às minhas obras, mas, desta vez, sem aquele desejo de agradar ou o medo de desagradar que

me deixavam tão sensível à menor crítica ou à menor imperfeição por parte daqueles a quem eu acudia. Eu

gostava deles, mas gostava mal, porque riS© ig&stava o suficiente. Também me sinto tentada a rever nossas

terras. Temos belas casas numa região muito árida, mas onde o sol brilha o ano inteiro, e em Narbonne pos-

suímos um belo palacete onde se pode reunir uma sociedade se-leta.

— Você poderia reinar ali como aquelas princesas de Aquitânia, protetoras das artes e das letras, e atraindo o

amor de jovens poetas, despertando grandes paixões. Sabina meneou a cabeça, rindo.

— Não! Sou bem-comportada... Talvez até demais, embora nem sempre pareça. Mas sei que se tivesse nas

veias o sangue de minha tia Carmencita, eu não teria lutado só através de rodeios por esse amor que você me

"roubou". Não desejo nada além do que possuo agora. Descobri em meu marido um amante que me convém, de

modo que minha necessidade de virtude e de aprovação alheia se vê satisfeita. Sou feliz. O mundo do amor já

não está fechado para mim. Atrás de mim, tenho uma longa vida com meu marido, comum, ainda que

tumultuada. A frente, tenho para compensar, com ele, o tempo perdido num domínio que me era desconhecido

e a que eu me esquivara voluntariamente. Sinto que me tornei uma mulher autêntica, melhor, porque mais viva.

Sou feliz.

Ouvindo-a, Angélica sentia aumentar sua inquietação. A afirmação da personalidade de Sabina de Castel-

Morgeat, revelando-se interessante, correta e sensível, ameaçava-a.

Adivinhando-lhe os sentimentos pela expressão do rosto e desejosa de impedi-los e dissipá-los, pois, fiando-

se na própria serenidade, julgava-os absurdos, Sabina procurou tranqúilizá-la de outro modo.

— Você acreditará, Angélica, se eu lhe afirmar que tomei consciência da tolice desse antigo sonho de amor,

sobre o qual tolamente fundamentei minha existência? Atravessei provações demais nos últimos tempos. Se

isso pode tranqiiilizá-la, Angélica, acreditará, se eu lhe declarar que esse amor se dissipou de todo de meu

coração? Conservo muita estima e amizade pelo Sr. de Peyrac, mas, fique tranquila, já não o amo.

— Você está enganada e não creio em você.

Sabina encarou-a, pasmada, depois cai^ííarrisada. Decididamente, se ela começasse a mostrar-se alegre e

risonha, Quebec ganharia mais uma grande mulher de sociedade.

— Angélica, você é admirável. Pois bem, é verdade, adivinhou corretamente. É quase impossível arrancar do

coração um amor assim, sobretudo quando aquele que no-lo inspira não só não desmereceu em nada a imagem

que fazíamos dele, como, pelo contrário, reforçou ainda mais, pelos seus méritos, a afeição que lhe tínhamos. Eu

só queria dizer, e nisso acredite-me,- que hoje m& sinto capaz de escapar à perseguição, à tirania desse sentimento,

que adquiri a serenidade e a força para lhe destinar um lugar secreto em mim, e que não exigirei nada que esteja

fora dele. O que significa que você não tem nada a temer de mim, Angélica, e que já pode ignorar as apreensõéá

que a corroem e que são ridículas e injustas. Pois percebo a reação que acaba de ter. Você é a primeira a indignar-

se ante a ideia de que se possa não amá-lo. Você mesma admite que é difícil impedir a imaginação feminina de

desenfrear-se quando as mulheres o vêem. Por isso, saiba ser mais serena e mostre mais indulgência para com

aquelas que, menos felizes do que você, não puderam ser a eleita desse grande sedutor... e que sabem que jamais

poderão sê-lo. Dito isso... acrescentarei que entendo que você esteja um pouco receosa, Angélica. Ele é uma criatura

muito enigmática.

— O Padre de Maubeuge o acha simples e sem mistério.

— Para o Padre de Maubeuge, possivelmente! São ambos do mesmo naipe. Mas para nós, mulheres... Vê-la

temerosa do meu débil poder de sedução, você, que nasceu com esse dom irresistível de dominar os corações e que

eu a invejava, não deixa de me lisonjear. No entanto, não abusarei dessa revanche. Não quero vê-la infeliz e dar-

lhe-ei uma grande prova de amizade. Se prometer que esquecerá, que nunca retornará com uma palavra, uma

alusão, um pensamento até, a isto que tanto a feriu, farei de minha parte uma promessa que, aposto, há de

acalmar-lhe esses alarmes bem vãos. Seja qual for a decisão do rei a seu respeito, comprometo-me a escolher um

caminho que me distancie do seu. Se, por um destino injusto, Sua Majestade continuar cego às suas qualidades e

recusar-lhes o perdão, obrigando os a permanecer no Novo Mundo, farei o Sr. de Castel-Morgeat entender que desejo

retornar à França. Se, por outro lado, conforme espero, sua reabilitação for integral e embarcarem, felizes, para o

Velho Mundo, encorajarei meu marido e ficaremos no Canadá... Saberei dobrar-me ao que for escolhido e me

adaptarei, sofrendo somente com um único e cruel sacrifício: o de nunca mais revê-los, nem a um nem a outro.

Mas saberei que, se renuncio a sua amizade, será para guardá-la melhor em seu coração, Angélica.

— Obrigada — disse Angélica, com a voz embargada. — Você é muito generosa.

— Contanto que você também o seja. Lembre-se do que exijo de você. O esquecimento puro e simples desta

história, mesmo na presença dele, e, naturalmente, o abandono das reflexões melancólicas e infundadas com

que obstrui seu espírito nesse momento. Não se diminua com mesquinharias indignas de você, com ciúmes ou

receios sem propósito. Continue sendo você mesma, peço-lhe. Continue sendo aquela de quem necessitamos.

Continue você mesma, Angélica.

— E o que significa ser Angélica, afinal?

— Ninguém sabe... só que sem ela o sol se extinguiria...

Angélica não respondeu. Foi até a janela e olhou a paisagem

com que enchera os olhos tantas vezes, a contemplar as mudanças sutis que não paiavam de ocorrer ali, como

se, ao sabor das linhas moventes, das cores, dos reflexos e das luzes, das passagens de escuro a claro, de

tempestade a céu puro, ela fosse receber as respostas a que sua alma aspirava.

"A sua frente... sempre... a vida..."

Estremeceu.

— Sabina! — exclamou, com a voz alterada. — Venha, venha, depressa!... Acho que...

A Sra. de Castel-Morgeat acorreu.

— Olhe! Lá!

Surgindo do azul claro da bruma que esfumava ao longe os contornos, uma asa branca de ave palpitava,

enfunada, depois outra, e mais outra, avançando, crescendo pelo centro do rio, com uma •seave, dançante e

lenta suavidade.

— Os navios... — disse a Sra. de Castel-Morgeat, em surdina. — Os navios da França! Os navios da França...

Da cidade subia um rumor, pois também de outros observatórios as velas tinham sido avistadas. Angélica

segurou o braço de Sabina a seu lado.

— E se trouxerem nossa condenação?

— Então os defenderemos — exclamou Sabina de Castel-Morgeat —, nós todos os defenderemos...

Caso necessário, estava disposta a disparar o canhão mais uma vez.

A CARTA DO REI

CAPÍTULO XXIII

A bagagem de emoções dos navios da França

Angélica correu para casa e ali encontrou reunidos os principais oficiais comandantes dos navios do Sr. de

Peyrac: Erikson, Vanneau, Cantor... cada um acompanhado de seis homens, todos vestidos sem ostentação, mas

armados de mosquetes, o que, na cidade que continuava em estado de alerta desde a recente visita dos iroqueses,

não poderia passar por provocação.

— São ordens do Sr. de Peyrac para o caso de os primeiros correios da França chegarem em sua ausência —

lembrou Bars-sempuy, que apareceu logo depois.

A guarda da casa e do solar de Montigny devia ser reforçada. A guarnição dos fortins construídos junto ao rio

Saint-Charles, no cabo Rouge e em diferentes pontos atrás da vila, tinha sido dobrada e colocada em alerta. O Sr.

de Barssempuy avisou a Sra. de Peyrac, pedindo-lhe que o desculpasse, de que ela e os filhos já não deveriam

deslocar-se sem escolta.

"Precauções inúteis, estou convencido", acrescentara o conde, "mas que é preferível observar."

Angélica deixou-os tomar todas as providências que quisessem. As crianças, que tinham acorrido de todas as

direções — Hono-rina, Querubim e Marcelino —, pulavam de alegria e impaciência. Susana lamentava não poder

vestir os quatro meninos com as roupas de domingo, desaparecidas no incêndio. Em Quebec todo mundo vestia-se

da melhor maneira quando chegava o primeiro navio, e isso se tornara quase uma tradição.

Inútil vaidade. Ao chegar aos cais, apinhados de gente, Angélica percebeu que poderia estar enfeitada como um

relicário e locomover-se com um arsenal inteiro, sem chamar a atenção. Ninguém reparava em ninguém.

O primeiro navio acabava de lançar âncora na enseada.

E os flancos da embarcação começavam a vomitar seu conteúdo, verdadeiro magma de homens, animais,

bagagens e mercadorias, que o mar das Trevas embalara longos dias,' na solidão das águas que recobriam a terra

desaparecida de vista. ' Impelidas a remo, as chalupas derramavam nas margens de Que-bec o contingente habitual

de soldados embrutecidos ou zombeteiros, em seus uniformes desalinhados, de armas na mão; imigrantes

macilentos e desnorteados; clérigos de preto, solidamente agrupados; viajantes estafados; viajantes risonhos, que re-

tornavam e que já a duas toesas da margem começavam a gritar que se haviam fartado de Paris e de suas ruas

fedorentas e dos funcionários rabugentos, e que não havia nada como a boa terra do Canadá; famílias esperadas

pelos parentes: pais, mães vindo ao encontro de filhos já estabelecidos e que choravam ao descobrir os netos na

praia, a fazer-lhes sinais de boas-vindas; santas mulheres recatadas, miraculosamente arrumadas e limpas, com a

coifa branca engomada, como sempre se viam desembarcando dos navios mais insalubres; bebés nascidos no mar;

doentes de gengivas sangrando — escorbuto — ou descarnados pela subnutrição, carregados em macas

improvisadas ou pelos braços e pés e que eram largados diretamente no chão. Homens de negócios aguardados,

seguidos de um criado e um secretário; negociantes, mercadores, acionistas e diretores da companhia que lidava

com as peles; algumas caras esquálidas, que, misturando-se aos tripulantes, tentavam insinuar-se por entre os

imigrantes, para logo serem alcançados pelos esbirros de Garreau d'Entre-mont ou pelos arqueiros de

Carbonnei, a postos. Por último, reconhecidos de longe, cintilando de dourados, e de penachos ao vento, os grão-

senhores, os oficiais, os emissários do rei e dos ministros, trazendo a correspondência diplomática e administrativa.

Barcas e balsas traziam cavalos a relinchar, cabras a balir, porcos a berrar, como se já não houvesse porcos que

bastassem no Canadá e "que deviam ter sido dados aos passageiros para que os comessem no mar, ao invés de

nos desembarcarem gente moribunda!"

Os cabos começavam a vociferar e a alinhar seus soldados. Acabou o enjoo, tratantes! Sentido!

Os filhos dos imigrantes também se reuniam, apontando uns aos outros os primeiros índios que avistavam.

A população de Quebec apagava-se, desaparecia, transformava-se num corpo novo, infiltrando-se,

dispersando-se e mesclando-se aos recém-chegados, até não haver mais do que uma única multidão agitada,

tagarelante, a contar, a queixar-se, a perder-se em efusões, a reclamar aos berros pela correspondência.

E pela primeira vez a Srta. d'Houredanne encontrava-se no porto e recebia das mãos do capitão a caixinha

contendo as cartas escritas pela sua amiga, a Bela Herborista, viúva do rei da Polónia.

Amigos que, na véspera, em Quebec, teriam parado longamente para discorrer entre si sobre o tempo ameno,

ignoravam-se. As pessoas cruzavam-se, recruzavam-se e tornavam a cruzar-se sem se ver. Em várias ocasiões

Angélica topou com o Sr. de Bardag-ne, com Ville-d'Avray, com Vivonne, sem que de parte a parte houvesse

mais do que a troca de um olhar rápido e indiferente.

Foi chamada por um homem de aspecto agradável, mas que ela não reconheceu, pois não esperava vê-lo

desembarcar de um navio procedente da França. Só dois dias depois saberia que se tratava do Barão de Saint-

Castine, seu vizinho na costa do Maine, que embarcara durante uma escala no golfo Saint-Laurent e que vinha

informar-se sobre seu baú de escalpos ingleses.

Viu o Duque de Vivonne conversar longamente em voz baixa com um homem elegante, que devia estar a

informá-lo sobre as acusações e os processos levantados e iniciados contra ele, e se podia esperar que fossem

definitivamente abafados e com eles, talvez, na mesma ocasião, sufocado o denunciante. Vivonne parecia

satisfeito, aprumava-se e readquiria o porte arrogante e aquela exasperante mania dos cortesãos de sempre

falarem somente a uma pessoa, mal movendo os lábios e lançando o tempo todo olhares desconfiados para um lado

e outro, como se fosse de importância capital que suas palavras não fossem surpreendidas por absolutamente

ninguém.

Levou consigo o indivíduo, que foi seguido de inúmeros domésticos a carregar bagagens. O duque continuava

com o braço na tipóia, pois o ferimento cicatrizava mal, e coxeava ligeiramente.

Ville-d'Avray também mancava e trazia um braço na tipóia, sequela do duelo. Isso não o impedia de correr

por toda a parte.

Angélica avistou Berengária Amada de la Vaudiere, que soluçava, derreada sobre um fardo e apoiada a uma

mala. A carta que acabava de abrir anunciava-lhe já nas primeiras linhas que sua mãe morrera.

— Mas leia! Leia tudo! — intimavam-lhe Eufrosina Delpech e a Sra. de Mercourville.

— Mas ela morreu — gemia Berengária.

— Mas você saberá de quê! Poderá servir-lhe de consolo que ela tenha tido um fim feliz.

A Sra. de la Vaudiere conteve-se, leu tudo e caiu desmaiada. O pai também morrera.

Sentados sobre a tampa da mala, dois negrinhos, com as pernas balançando, a cara ainda cinzenta de mal-estar

sob os penachos dos turbantes, de libré de pajem de cetim rosa um pouco amarrotado e sapatos com fivelas de

prata, esbugalhavam os olhos, assustados. Um homem com ar de administrador de grande propriedade procurava

por toda parte o Sr. de Ville-d'Avray.

A Duquesa de Pontarville, informou ao marquês quando o achou, enviava-lhe dois meninos mouros, conforme

ele lhe pedira, para o serviço da sua-casa. Em troca, pedia-lhé que olhasse, no Canadá, pelos negócios do homem que

os acompanhara e que obtivesse, para ela, ações da companhia que detinha o monopólio das peles.

— Mas estou de regresso à França! — exclamou Ville-d'Avray. — Acabo de perder um ente querido por culpa

dos iroqueses, cavalheiro... Como quer que eu permaneça neste país atroz? Se tem coração, entenderá.

— Sim, senhor.

— Então, o que é que vou fazer com esses pajens?

— E eu, senhor, o que faço com eles? Eu embarco em seguida.

A agitação da chegada era multiplicada pela presença dos que queriam partir já no primeiro navio e que se

haviam instalado no cais com toda a bagagem a fim de embarcarem e garantirem lugares assim que a nau

estivesse vazia.

Entre outros, ali estavam o capelista João Prunelle e a mulher, resolutamente ladeando a filha, que confiavam a

um casal amigo, depois de decidirem mandá-la para a França, para o convento onde vivia uma tia religiosa, onde

ela aprenderia a não se comportar como índia, recebendo, à noite', jovenzinhos demasiado ágeis na sua água-

furtada.

O intendente Carlon, rodeado dos seus amanuenses, ocupava-se, cego e surdo a tudo. Selecionava sacos, punha de

lado envelopes lacrados, pacotes, rolos de pergaminho, estojos. Surgiu um atrito entre ele e o secretário do Sr. de

Frontenac, que se recusava a lhe entregar duas cartas, pretextando que eram expressamente destinadas ao Sr. de

Frontenac e que estava sublinhado — em nome do rei — que as tais cartas deviam ser entregues em mãos, que

somente o governador deveria romper o lacre e tomar conhecimento delas em primeiríssimo lugar, antes de

qualquer outra informação.

— No que tange a guardá-las, enquanto se espera pelo regresso do Sr. de Frontenac, minhas mãos valem tanto

quanto as suas — dizia Carlon, furioso. — Sou o intendente da Nova França, portanto, habilitado a receber as

cartas da mais alta importância na ausência do governador e delas tomar conhecimento.

Um dos recém-chegados, que parecia representar a autoridade máxima da delegação que transportava os

despachos reais, aproximou-se.

— Sei de que se trata. É uma questão delicada, de que Sua Majestade me disse duas palavras a fim de que suas

vontades sejam respeitadas. Sua Majestade faz absoluta questão de que seja o Sr. de Frontenac a romper o lacre

destas cartas, o que nao implica desconfiança alguma em relação ao senhor intendente^nem a intenção de

mantê-lo à parte. Mas o caso foi tratado pessoalmente entre Sua Majestade e o"Sr. de Frontenac, e o rei deseja

que seja concluído pelos cuidados do governador, no instante mesmo em que ele comece a abrir os despachos

de Versalhes. É bem aborrecido que Sua Excelência se encontre em campanha militar, bem como o gentil-

homem a quem estas cartas concernem, o Sr. de Peyrac. Sua Majestade estava impacientíssimo! Mais um pouco

e eu precisaria ter asas como uma gaivota, para chegar aqui mais depressa!

Angélica, que ia e vinha e começava a se sentir desapontada por não haver distinguido nenhum rosto

conhecido entre os desembarcados — "Mas a quem estou esperando, afinal?" — e por não ter sido procurada

para a entrega de correspondência alguma — estava convencida de que Desgrez se manifestaria, no mínimo

para acusar o recebimento da carta que ela lhe enviara —, ouviu pronunciarem o nome Peyrac e se aproximou

do grupo. João Carlon fez um gesto na sua direção.

— Pois, justamente, aquiístá a Sra. de Peyrac. Permita, senhora, que lhe apresente o Sr. de La Vandrie,

conselheiro de Estado junto ao Conselho de Negócios e Despachos, mensageiro excepcional do rei ao Grão-

Conselho da Nova França.

O Sr. de La Vandrie tirou de sobre a peruca seu chapéu de grandes plumas e fez uma profunda saudação de

corte, as pernas arqueadas, acompanhando sua reverência de um triplo e caprichado circuito de ida e volta de

seu penacho. Entretanto, após executar dois novos mergulhos, não disse palavra e endireitou-se com ar afetado.

Não lhe faltaria uma certa deferência para com as damas, apesar de seu alto posto? Ou não lhe agradavam

aquelas que se imiscuíam nos assuntos sérios? Sublinhou-se que era ao Sr. De Peyrac que ele procurava, e que

sua mulher não podia, evidentemente, interessá-lo, e voltando-se para o intendente e o secretário, disse:

— Tenho também que fazer chegar até esse cavalheiro uma encomenda — e tirou de uma sacola dois grossos

envelopes, mais pacotes do que cartas.

— O Sr. de Frontenac deve entregá-los a ele pessoalmente. Passo a suas mãos esse correspondência, senhor

intendente, encarregando-o de cuidar dela como se fosse a menina de seus olhos, respeitando, é claro, as

vontades de Sua Majestade naquilo que diz respeito à sua entrega, sua leitura etc. E sendo dada a importância

que o rei lhes atribui, o lugar desses documentos é certamente suas mãos.

O secretário retirou-se, furioso. Estava habituado à onipotência que lhe conferia seu posto junto à mais alta

personalidade de Quebec e da Nova França, o governador. E ali estava! Bastava que chegasse aquela súcia de

Versalhes para que o tratassem como a um criado. .

Apesar das tempestades enfrentadas, dos alarmes contra piratas e icebergs, da ameaça de calmarias, que tinha

constituído o pão cotidiano dos sessenta dias de viagem, o Sr. de La Vandrie dava a impressão de chegar direto

de Versalhes. Mais! Estava saindo do próprio palácio, do gabinete do rei.

Para dizer tudo, ele trazia em si o reflexo da pessoa próxima ao rei e da confiança que recebia do monarca, a

ponto de parecer salpicado como que de ouro em pó, impalpável, que ele, naturalmente, não espanara. Era um

belo homem, ereto e majestoso. A sobrancelha mesclada com uma ponta ínfima de excentricidade, que

caracteriza o homem de corte, assentava-lhe. Sub-repticiamente, notavam-se na apresentação dele e até na

afetação de sua linguagem os detalhes inusitados que dariam o tom da nova moda.

— As perucas não estão mais curtas?

— O chapéu de castor é menor... Mas as plumas de avestruz, mais volumosas.

Os folhos da gravata, até então "à borboleta", assumiam as proporções de "asas de moinho". Os saltos

vermelhos estavam mais altos. As abas da casaca, mais rodadas.

Olhava-se de soslaio na direção dele. E ninguém estava completamente tranquilo depois daquele inverno

diferente dos outros, pois com certeza seria a ele que "o espião do rei", o invisível, o insuspeito espião, que se

sabia existir, mas que nunca se conseguira desmascarar, faria seu relatório. E como se sabia que dali em diante

toda palavra pronunciada podia prolongar o próprio eco até a antecâmara do rei, reserva e desconfiança

propagavam-se como um vendaval sobre mar tranquilo, anuviando os rostos. Sentia-se que pela porta a"berta se

escancarava o "além", monárquico, despótico, mas dispensador de privilégios... Cochichos e comentários

corriam à toda. Era a primeira vez, nctava-se, que, na pessoa do Sr. de La Vandrie, o Canadá recebia um dos

trinta conselheiros de Estado ou secretários de Estado. Passava-se adiante a informação de que ele também era

íntimo do ministro da Guerra, Louvois, que lhe transferira a execução de suas funções como superintendente

dos Correios.

Também nunca acontecera antes de, escoltando o mensageiro real e administrativo, vir um oficial pertencente

àquela gloriosa criação de Luís XIV, que lhe dedicava toda a atenção: a "Casa do Rei", pavor da Europa nos

campos de batalha. E ficou-se sabendo que se tratava de um oficial escolhido de uma das três companheiras

francesas da guarda pessoal, as mais próximas do rei, acompanhado de dois anspeçadas de alabardas curtas e

cerca de doze subalternos.

Era coisa bem diferente da escória militar que costumavam enviar-lhes a título de soldados — grupos de

bêbados recolhidos nas tabernas.

Estes homens, todo dia, viam Sua Majestade passar, ouviam-lhe a voz, observavam-lhe os gestos e o trajar,

pois se tinham que permanecer mudos e duros como estacas, nem por isso deixavam de ter olhos.

A gente de Quebec parava e fazia roda para admirar seus uniformes.

Deviam crer que o rei começava a interessar-se por sua longínqua colónia, para enviar-lhe assim todo aquele

belo contingente?

Angélica não estava mais satisfeita do que o secretário de Fron-tenac com aquele Sr. de La Vandrie. Em que

devia crer? O comportamento dele para com uma mulher, quase grosseiro, seria inconsciente ou intencional?

De que saberia ou suspeitaria ele, que o deixava mudo e empertigado diante dela? De nada, talvez? f)e muito?

Era evidente que todos aqueles cavalheiros incumbidos de missivas ultra-secretas, que decidiam, determinavam

a sorte, elevavam ou rebaixavam aqueles a quem eram destinadas, conheciam-lhes mais ou menos o conteúdo.

Assim, Bardagne não demorou a ser informado de que sua inepta carta, despachada em novembro pelo

Maribelle, produzira frutos amargos. Um jovem funcionário do gabinete do Sr. Colbert, que pedira que

Bardagne fosse vê-lo e com quem se encontrou numa esquina, quando subia na carruagem para se dirigir ao pa-

lácio do intendente, não esperou para estarem em local mais digno e confortável para dar a entender a Bardagne

a desgraça em que incorrera. Assim que o Sr. de Bardagne se identificou, o outro lhe comunicou que estava

destituído de suas funções, mostrou-lhe os papéis que confirmavam isso, disse-lhe que já não tinha que se

envolver em nada. Falou-lhe naquele tom entre desdenhoso e apiedado que os pestilentos do poder inspiram,

aqueles que, abandonados pela sorte, revelam-se culpados de haverem apostados na carta errada. Comunicou-

lhe ainda que uma parte dos custos da viagem de regresso de Bardagne correria por sua própria conta.

— Pouco se me dá — respondeu Bardagne.

O outro deu um sorriso irónico.

— Oh! Será boa política de sua parte mostrar-se assim desdenhoso em relação às bondades de Sua Majestade,

quando poderia estar retornando num fundo de porão ou mesmo a ferros? Por seu comentário entendo os

rigores de que tem sido alvo e cujos motivos eu não conseguia explicar a mim mesmo na íntegra. Saiba que

recebi a ordem de coletar informações acerca de seu comportamento como emissário do rei na Nova França. O

que eu disser poderá agravar ou aliviar seu caso. E mal desembarco em Quebec e já me informam que você

frequenta diariamente, quase dia e noite, uma casa mal-afamada.

— Uma casa mal-afamada? — repetiu Bardagne, espantado.

— O albergue Ao Navio de França — disse o funcionário, depois de dar uma olhada num papel.

— Mas, senhor — exclamou Bardagne —, eu ia lá porque me encontrava com amigos!

— Perfeito! Você é que o disse — casquinou o outro..

Nicolau de Bardagne abriu a boca para defender-se. Mas, prestes a explicar que a amizade que a nobre Sra. de

Peyrac nutria pela proprietária do local, bem como diversos incidentes entre os quais o acidente do Marquês de

Ville-d'Avray, haviam causado o êxodo de uma parte da sociedade mais aristocrática da Cidade Alta para

aquele albergue dito "mal-falado" na Cidade Baixa, frequentado durante o inverno todo por grandes nomes, e

dos melhores, inclusive pelo tenente de polícia, o Sr. Garreau d'En-tremont, conteve-se. Deu de ombros,

furioso. Como fazer aquele mariola compreender, aquele fedelho ainda pálido do enjoo de mar e que iniciava a

carreira imaginando que serviria ao rei melhor do que todos os outros antes dele, como fazê-lo perceber o modo

como circulava o sangue de Quebec, da Cidade Baixa à Cidade Alta e da Cidade Alta à Cidade Baixa, durante a

interminável estação dos gelos? Como tornar acessível a ele o que se podia viver naquele receptáculo de

efervescências que era o albergue, as discussões dos acadianos, os olhos verdes de Angélica do outro lado da

mesa, através da fumaça dos cachimbos, Janine Gonfarel mexendo suas sopas, o Marquês de Ville-d'Avray e o

belo Alexandre...

Era indescritível e inexplicável. E aquele pretensioso à sua frente não era digno sequer de que se lhe desse

uma ideia disso.

Ele fedia aos escritórios dos grandes amanuenses, os Le Tellier, Colbert e companhia, o braço legal do rei.

Transpirava o ranço das intrigas ansiosas deles, seus cálculos meticulosos e acrobáticos, a sua auto-suficiência

de burgueses laboriosos com cheiro de tinta e ruído de plumas rangentes. O fato de já se haver informado sobre

os hábitos de Bardagne comprovava-lhe o ca-ráter bisbilhoteiro. Devia ter recolhido suas informações junto ao

"espião do rei", que, pelos resultados revelados, sem dúvida devia ser um daqueles devotos embolorados do

Santíssimo Sacramento, ávidos de roer pela base a reputação dos semelhantes.

No decorrer de sua carreira, Nicolau de Bardagne aprendera que não se deve atribuir importância

desmesurada a essas intrigas de sacristia dos espiões.

Avaliou o adversário e achou-o mesquinho. Era visível que o homem estava em sua primeira missão. Inflava-

se todo, acostumado que estava a assentar sua importância na de protetores hoje bem distantes. Caso o

maltratassem, poderia protestar: "Comunicarei isso ao Sr. Colbert". Não seria no dia seguinte.

— Meu caro, pouco me importam as decisões que me traz — disse Bardagne, metendo os documentos no

bolso da casaca. — É sua conduta que me importa. Você carece de tato e de prudência, esquecendo que acaba

de atravessar o oceano e que está bem longe de seus protetores. E duvido que tenha nessa sacola que segura

cartas que lhe garantam acolhida sem reservas por parte dos notáveis deste país. Só o incumbiram de algumas

pequenas tarefas sem brilho, como a de comunicar a um homem como eu, que não o ignorava, o desfavor em

que incorreu, infortúnio, aliás, que você não deixará de conhecer um dia, pois esse movimento de idas e vindas

é tão regular quanto o das marés para quem serve ao poder. Eu lhe teria apreciado se tivesse sabido esperar que

estivéssemos de volta a território seu para me manifestardes seu desdém. Você tem muito a aprender. E

começará por julgar a influência que tem na Nova França comigo para recebê-lo e zelar por seu conforto, mas

saiba que providenciarei para que não encontre nem casa nem comida!

Afastou-se sem se despedir e começou a subir pela encosta da montanha. Primeiro falaria com a Sra.

d'Houredanne, que faria Carlon entender que não devia receber aquele sujeitinho de mínima importância nem

em suas dependências de criados: que o funcionário do rei ficasse na rua!

De vez em quando, durante a ascensão, Nicolau de Bardagne parava e se virava, contemplando o horizonte.

Estava se acalmando.

O verão chegava, cheio de pássaros a voar, caça nas florestas, peixes nos rios.

Pôs-se a pensar em sua propriedade do Berry, onde a vida seria Riais suave, mais comedida. Os belos livros,

uma vizinhança amável, um lugar para sonhar, meditar, lembrar das dores e esperanças, das alegrias ilusórias e

das alegrias inefáveis. "Adeus!", dizia consigo. "Adeus, minha bela criada! Adeus, meu amor!, Adeus, QuebecL." Chegava até ele o rumor da multidão que se aglomerava li embaixo, nas margens do rio. E, sozinho, a subir rumo à "Cidade Alta, Bardagne não conseguiu reter as lágrimas.

CAPITULO XXIV

A palavra do Sol enfim revela-se do destino dos Condes de Peyrac

A noite ia avançada e a gente do Gouldsboro; agrupada em torno de Angélica, discutia na pequena casa.

Ela comentava a atitude do Sr. de La Vandrie ao ser-lhe apresentado, e procurava interpretá-la. Ele não se

mostrara amável nem solícito, mas cortês e respeitoso. Donde se podia deduzir que o rei não fora drástico com

eles. Enquanto esperavam, falavam no vazio.

O grande envelope estava ali, em Quebec, nas mãos de João Carlon, pesado de uma decisão que somente a

voz de Frontenac podia transmitir-lhes.

Quais seriam as ordens que os aguardavam? Severidade do rei? Clemência do rei?

Acabaram encerrando as especulações com um projeto de despachar um homem ao encontro do Sr: de Peyrac

para avisá-lo da chegada dos navios e de que havia uma resposta do rei a determinar-íhe o destino.

Depois de breve repouso, Angélica foi despertada por chamados. Tinham-se avistado as primeiras canoas do

exército, trazendo o Sr. de Frontenac.

No porto, o tumulto era ainda maior do que na véspera. Os recém-chegados falavam de iroqueses, de guerra e

depawas, conselhos de guerra. Cheiravam a floresta e a gordura de urso, pois à beira dos riachos já era preciso

defender-se contra os mosquitos. A gente de Quebec, por seu lado, não pensava em outra coisa senão nas notícias

dá França. Os iroqueses estavam esquecidos.

— Alguém viu o Sr. de Peyrac?

Ninguém lhe sabia responder. Tudo o que sabiam era que ele não desembarcara com o Sr. de Frontenac. Pois o Sr.

de Frontenac já estava lá em cima, no Castelo Saint-Louis, abrindo as missivas da França.

Angélica foi tomada de pânico. Pouco antes temera aparecer diante do marido, mas o fato de que ele não fazia

parte daquele comboio, a possibilidade de que tivesse prolongado o encontro com Utakê pelo prazer de conversar

ou, pior ainda, que tivesse resolvido, já que se encontrava a um quarto do caminho, descer até Wapassu, causou-lhe

uma decepção cruel. Sentia-se próxima ao desespero. Queria vê-lo, somente vê-lo. O resto não lhe importava.

Tanto fazia a resposta do rei ou o que acontecera entre eles recentemente ou há séculos. Queria revê-lo. Sem ele a

vida já não era a mesma, e nada do que acontecesse, por mais agradável e incomparável que fosse, valia a pena

sem ele.

Seguida de sua escolta, Angélica subiu até a Cidade Alta e se dirigiu diretamente ao Castelo Saint-Louis. Já na

entrada topou com Frontenac, que se precipitou na direçãa dela, iluminado, de braços levantados.

— Ah, minha cara, cara amiga! Chegou bem na hora!... Ah!

Como lhe transmitir minha alegria... Este é o mais belo dia de minha vida.

Com uma mão, apertava as duas mãos de Angélica, quase esmagando-as; com a outra, brandia no ar um maço

de pergaminhos.

Não perdera tempo em tirar as botas nem em se refrescar antes de abrir os lacres da correspondência real, de

modo que era com a tez queimada de sol, suando e irradiante sob a peruca meio de través, que manifestava uma

exuberância e um júbilo juvenis.

— O rei! — repetia. — O rei...

— E então?

— Cobre-me de louros... Ah! Finalmente! Por uma vez! É mais do que eu podia esperar! Acredite se quiser. Numa

carta em que cada termo me toca, Sua Majestade me repete que há muito tempo não tem um servidor tão devotado

quanto eu e que saiba tão bem, apesar da distância e da pouca orientação de que posso dispor, visto que me

encontro longe do sol para me, amparar o julgamento, adivinhar em que direção conduzir minha política a fim

de ser-lhe o mais agradável possível. Tive que reler duas vezes a carta para crer. Ufa, que alívio! Confesso que

até o último instante eu tremia, incapaz de decidir se eu seria demitido ou não pela iniciativa que tomei ao

acolher meu amigo, o Conde de Peyrac. Interrompeu-se e pareceu descobri-la de repente.

— Você está aqui! Otimo! Não precisarei mandar buscá-la. Alguns membros do Grão-Conselho, entre os

quais o senhor intendente, me aguardavam no Castelo Saint-Louis. Mandei convocar os demais. Estão todos lá.

Quero proceder imediatamente à leitura da carta do rei... Não, não à de que acabo de falar-lhe, a que trata de

mim... A que concerne ao Sr. de Peyrac... Lerei a minha depois, naturalmente. Mas está estipulado que tudo o

que se refira às decisões tomadas pelo rei acerca de meu caro amigo Peyrac deva ser lido na presença do

Conselho. Agora só aguardamos o conde, seu esposo. Ah! Ei-lo que chega!

Joffrey de Peyrac acabava de surgir à soleira, cercado de toda a sua guarda: os espanhóis, Kuassi-Ba, os

oficiais de sua frota, um pelotão de marujos de uniforme branco.

— Venha! — gritou Frontenac, chamando a todos com um gesto largo. — Venha, meu caro amigo, a hora de

glória soou.

Angélica pensou que jamais sè acostumaria com aqueles reencontros públicos e mundanos, que a obrigavam à

moderação quando a vontade que tinha era de correr como uma apaixonada e pendurar-se ao pescoço do

marido. Nessas ocasiões, sentia-se imobilizada a ponto de quase parecer hostil, pois o que acontecia não lhe

parecia verdadeiro: só conseguia acreditar apertando-o entre os braços.

— Um feliz acaso me permite encontrá-la afinal — disse-lhe Peyrac, aproximando-se dela e beijando-lhe a

mão. — Minha querida — acrescentou, vendo o olhar fixo que ela lhe dirigia, como se não o reconhecesse —,

não esperava que eu regressasse com o senhor governador ou devo compreender, dolorosamente, que ver-me

lhe causa uma penosa surpresa?

— Não! Não! —protestou ela. — Por que seria assim? É a surpresa e a alegria de vê-lo, quando ninguém sabia

dizer-me onde você estava. Receei que tivesse partido para Wapassu.

— Louca imaginação! Quando será que você se convencerá de que me pesa estar longe de você e que nunca

prolongo por prazer os dias que me separam de você? Desembarquei no cabo Rou-ge, sob o forte, perto do qual nossos

navios estão ancorados. Achei mais fácil vir por lá para ir ter com você em sua casa na "Cidade Alta, do que atracar

em Quebec e atravessar a cidade, onde eu seria retido a cada passo... Mas disseram-me que você já estava no porto,

depois que a tinham visto no Castelo Saint-Louis, aonde o Sr. de Frontenac me mandava chamar aos gritos.

— Mas o que você está fazendo? O que estão fazendo? — apressou-os o governador. —"Não estão impacientes

para ouvir a leitura destes documentos que determinam seu destino?

Joffrey passou a mão pela cintura de Angélica e entraram juntos na sala do Conselho, que estava cheia de gente.

O Sr. de La Vandrie encontrava-se presente, rodeado de sua comitiva, e os trajes de corte contrastavam com a

casaca empoeirada de Frontenac.

O diligente governador nem se dava conta disso. Tinha à frente uma pilha de papéis e pergaminhos, rolos

desenrolados, envelopes abertos, numa mistura de fitas de diferentes cores, e "lacs", que ajudavam a romper os

lacres de cera, cujos pedaços tinham voado pelo chão, sob o vigor de um punho impaciente.

— Ajude-me, imbecil! — disse ele ao secretário, que o olhava, confuso. — Tire isto tudo daqui! Não, esta não...

É a carta do rei. Não se dá conta de que lerei um documento que tem mais importância e que terá mais

repercussão na história do que um tratado de paz com a Inglaterra... e sabe por quê? Porque jamais a grandeza, a

magnanimidade, o espírito de justiça e medida de nosso rei aparecerão de modo mais patente.

Pediu a Joffrey e Angélica que se postassem à sua frente, na outra extremidade da grande mesa a que ele

presidia.

Seu criado, que não o vira recobrar o fôlego desde que chegara ao castelo, quis servir-lhe um copo de vinho, mas

ele o afastou.

— Não! Beberemos depois... Mas então beberemos bem!

Perguntou o que esperavam.

Esperava-se pelo bispo, que não se tinha certeza de alcançar, pois ele fora dizer missa em Château-Richier.

— Tanto pior para o bispo.

Alguns conselheiros protestaram.

— Tanto pior para o bispo — trovejou Frontenac. — Mais tarde voltarei a fazer uma leitura solene, diante de

todo o Conselho e com todo o protocolo. Mas é impossível esperar mais. Sua Majestade exigiu: uma

proclamação, alto e bom som, assim que os lacres sejam partidos. Compraz ao rei, como a nós, que sejamos

informados sem demora da alegria que ele sente ao reencontrar em seu reino um homem de grande mérito, e

das honras com que deseja cumulá-lo, bem como à sua família: o Sr. Conde de Peyrac, nosso grande vizinho

fronteiriço na América, nosso hóspede em Quebec durante o inverno, a quem devemos, bem como à Sra. de

Peyrac, mil benefícios e a quem deveríamos, no mínimo, ter permitido, neste dia, servir a Sua Majestade segun-

do sua vontade e prazer.

"Nós, Luís, pela graça de Deus, rei da França e de Navarra, a todos os presentes e vindouros, saudações..."

Pelo timbre de Frontenac, a voz do rei fazia-se ouvir. Vinda de tão longe, possuía naquela sala do Castelo

Saint-Louis, sobre o rochedo selvagem, a ressonância ao mesmo tempo solene e impressionante que atribuímos

à dos deuses pronunciando seus oráculos através das nuvens.

Dentre todos os presentes, Joffrey era o único que não parecia perturbado a ponto de se ver um pouco

desnorteado por uma emoção intensa, por um pesar quase religioso.

Angélica, que lhe segurava a mão, não a sentia tremer nem fremir. No entanto, o que ouviam era

inacreditável.

O rei lhe devolvia tudo. Reconhecia os direitos do conde, seus títulos. Só aludia ao processo como a uma ação

iníqua, suscitada por invejosos e conduzida por incompetentes, à qual, na época, sendo demasiado jovem, ele

não pudera dispensar o exame necessário.

Regozijava-se de que a presença do Sr. de Peyrac no Novo Mundo lhe fornecesse afinal a ocasião de reparar

os danos causados a um dos maiores gr-ãos-sennores do reino, de quem nunca tivera nada a reclamar.

Seguiam-se os pormenores de todos os favores e bens que lhe concedia.

Um longo parágrafo era dedicado à posição do Conde de Pey-rac na América, e também aí o rei manifestava

satisfação pelos serviços e a presença dele. De passagem, o Sr. de Frontenac e os membros do Grão-Conselho,

expressamente citados; recebiam sua parte de cumprimentos e felicitações.

Terminando a leitura dessa epístola memorável, a voz de Frontenac tremia. Deixou cair os pergaminhos e se

encaminhou até Joffrey de Peyrac.

— Meu irmão e conterrâneo — disse —, você ganhou! — E abriu os braços para ele.

Na carta, o rei não falara dela. Nada além de algumas passagens em que notificava quê o Conde e a Condessa de

Peyrac eram aguardados em Versalhes, seriam ambos recebidos com a maior satisfação pelo soberano, etc.

Junto com a carta vinham inúmeros anexos, todos destinados a Peyrac, que se fechou com Frontenac para

examiná-los, ratificá-los e deles tomar posse.

Angélica esperou-o passeando no terraço. Refletia na atitude do rei, certamente desejada, mas que, ao mesmo

tempo que a tranquilizava, não lhe parecia normal. Mesmo levando em conta que o policial Desgrez, personagem

muito influente, pois era o braço direito do Sr. de La Reynie, tratara de "protegê-los" junto ao rei, ele certamente

obtivera do soberano muito mais do que o casal tinha o direito de esperar.

Quanto ao rei, sabia quem ela era, mas afetava só considerá-la doravante como a Condessa de Peyrac. Angélica

entendeu que ele resolvera apagar o pesado litígio da Rebelde do Poitou. Era mais simples assim.

Tinha vontade de apertar Joffrey nos braços e lhe dizer: "Finalmente! Finalmente! Meu caro príncipe! Fizeram-

lhe justiça!"

Mas era uma glória demasiado súbita e esmagadora, uma felicidade demasiado intensa. Ela a assimilava aos

poucos.

A notícia de que tinham sido reconhecidos pelo rei correu e os cumprimentos foram pródigos. Todo mundo os

felicitava. Não se tratava de adulação. Mas os que tinham tido a coragem de colocar-se do lado deles permitiam-se

pavonear-se, felizes por se sentirem entre os eleitos e merecendo isso. Tinham que falar, contar, perguntar...

O Sr. de Frontenac foi aclamado quando saiu acompanhado do Sr. de La Vandrie e de sua bela escolta. Os

recém-chegados achavam a cidade agradável. O que é que haviam temido daquele país de "selvagens"? Eram

suntuosamente recebidos e não podiam dar dois passos na rua sem serem aplaudidos como príncipes reais.

Somente um se queixava. Aquele sobre quem Bardagne lançara o anátema. Ele conseguiu aproximar-se do Sr. de

Frontenac para protestar. Não conseguira encontrar um canto para se hospedar, exceto o telhado de um mísero

alpendre, que lhe fora cedido sem maiores cerimónias pelo representante de uma companhia comercial que devia

obrigações ao Sr. Colbert. Ele devia seus dissabores ao Sr. de Bardagne, em torno de quem a cidade se fechara,

unida.

Frontenac, que em meio à alegria geral tinha outras coisas com que se ocupar, ouviu-o, distraído, e retrucou,

áspero:

— Vocês, da roda do Sr. Colbert, nunca estão contentes! Onde é que ele recruta seus jovens amanuenses? Será

que hoje em dia os filhos de magistrados e de burgueses são mais mimados do que os filhos de duques? Estes logo

se habituam a sofrer desconforto para servir ao rei. O Canadá é um país rude, cavalheiro. Eu recomendaria ao nosso

ministro das Colónias que no futuro não nos envie mariquinhas!

Assim, fazer de Nicolau de Bardagne, funcionário afável e consciencioso, um homem acerbo, vingativo è quase

rebelde, mas que, depois de atravessar os tormentos do inverno, fizera-se estimar por todos em Quebec, não foi

uma das metamorfoses menores, suscitadas pelo ar do Canadá.

A tarde, na presença do bispo e dos dois filhos, Florimond e Cantor, fez-se nova leitura solene da carta do rei.

Angélica não compareceu. Naquele momento se encontrava no convento das ursulinas, na biblioteca de belos

instrumentos científicos e grandes livros abertos sobre leitoris.

O Padre de Mauberge mandara chamá-la com urgência, para uma entrevista rápida — frisou.

— Não quero, senhora — disse, com aquele rosto de mandarim chinês onde pairava uma expressão que se

poderia qualificar de sorridente —, não quero privá-la da alegria de seus amigos, mas sabendo que os próximos

dias passarão.com uma rapidez de relâmpago, eu quis, enquanto ainda há tempo, aproveitar alguns minutos

para, inicialmente, assegurá-la de minha grande alegria em Jesus Cristo pela feliz conclusão de suas

tribulações, suas e de seu esposo. Não é preciso que eu me estenda acerca de meus sentimentos. A longa

amizade que me liga ao Sr. de Peyrac me permite, mais do que a qualquer outro, avaliar o quanto de

providencial tem tudo o que lhes acontece hoje, ainda que merecido pela paciência e pela coragem com que um

e outro suportaram fortunas adversas. Dito isto, eis-nos prestes a nos separar...

Passou-se o resto do dia a trocar relatos sobre a guerra iroque-sa, projetos de retorno, evocações do Palácio da

Gaia Ciência, cujas muralhas rosadas seriam reconstruídas, a importância dos colares de wampum que o chefe

das Cinco Nações levara para suas aldeias das Casas Compridas. Não se parou de pular do Novo para o Velho

Mundo, e em mais de um% ocasião Utakê foi mencionado como se estivesse sentado ao lado de Luís XIV, coi-

sa que, de resto, o chefe indígena teria considerado bem normal: o rei é boníssimo! Utakê mostrou-se clemente!

Sua Majestade sabe dar ouvidos aos conselhos da sabedoria... O selvagem quis dar ouvidos a nós.

Todos queriam ver Joffrey e Angélica.

Convidados a todas as casas, atenderam a alguns amigos, depois fizeram um convite generalizado para uma

recepção no solar de Montigny. Desta vez a Polaca compareceu, com Gonfarel.

Era bem tarde quando puderam fechar a porta sobre a intimidade da casinha a que Joffrey se declarava

impaciente de retornar, pois era só ali, repetiu, que Angélica lhe pertencia."Ela quis falar, mas ele a

interrompeu.

— Já falamos o suficiente — disse, tomando-a nos braços. — Oh, Senhor! Será essa a existência mundana

que nos está prometida do outro lado do oceano?

— Não tema nada, saberei defender-me.

— E logo de início restabelecerei no Palácio da Gaia Ciência um saudável equilíbrio entre trabalhos e

divertimentos, que devem saciar as aspirações do ser humano ,quando ele se vê afinal, por algum tempo, por breve

que seja, protegido contra os perigos e a necessidade. Vou voltar atrás o relógio do prazer e, para tal, inverterei as

horas. Designarei a noite para festejar entre amigos, dançar, cantar, encantar-nos com música e belos discursos, e o

dia para amar... no silêncio das tardes quentes, quando tudo repousa, enquanto o sol arde e fosforeia tanto quanto

os corações e os corpos... Assim, com a mais bela das mulheres, darei continuidade à defesa do amor...

A cidade prosseguiu agitada a noite inteira. E foi de noite que um quarto navio, procedente de Honfieur, lançou

âncora.

CAPITULO XXV

Um doce, ardoroso chamado

—Ontem à noite desembarcou um homem idoso desse navio de Honfleur — disse Susana, enquanto ia

colocando no caldeirão os ingredientes da sopa. — Tenho certeza de que vem à sua procura, senhora.

E continuou:

— Ninguém sabe quem ele é. Nenhuma família o procurou nem o conhece. E ele não disse se prosseguiria

para Trois-Rivieres ou para Montreal. Veste-se com simplicidade e severidade. Já esteve lá no albergue Ao

Navio de França.

— Como você sabe que vem à minha procura?

— Eu o sinto.

Angélica pensou em Desgrez. Por vezes, durante o inverno, imaginara o empreendedor Desgrez a chegar nos

navios da primavera. Depois de receber a carta dela e sabendo onde encontrá-la, não temeria embarcar para ir-

lhe ao encontro. A gente se explica melhor de viva voz do que por carta, sobretudo quando se trata de segredos

perigosos, de crimes e conspirações contra o rei. Susana dissera "um homem idoso", mas para uma jovem como

a pequena canadense, um homem de quarenta anos, por menos grisalhas que já tenha as têmporas, poderia ser

designado como velho.

Tentou fazer com que Susana o descrevesse.

— É alto? Robusto? De ombros quadrados?

— Não, eu disse que é velho. Baixo... mas porque é arqueado pela idade. Deve ter sido alto e esbelto. Ele tem

um ar... — hesitou — não sei... de um homem da lei, acho...

"Baumier", pensou Angélica, com o coração acelerado. "O que há de mais parecido com um homem da lei do

que um policial fuinha?"

— Esteve no albergue Ao Navio de França, onde não havia um buraco sequer para acomodar fosse quem

fosse. Mas a Sra. Gonfarel deu um jeito, porque gostou dele.

Não era o policial Baumier. A Polaca o teria farejado e não teria gostado dele. E depois, o que Baumier viria

fazer aqui?

— O que a leva a dizer que ele veio por minha causa?

— Imagino... e acho que a Sra. Gonfarel teve a mesma ideia. São coisas que a gente sente...

Angélica sorriu. Não fazia pouco-caso da intuição daquelas senhoras. Mas parecia-lhe pouco provável que

alguém vindo da França, além do mensageiro do rei, o fizesse por causa deles, sobretudo por causa dela,

conforme Susana parecia insinuar.

No entanto, postou-se diante do espelho.

"Preciso me pôr bonita."

Ajeitou o cabelo, examinou o rosto. Os discursos de Berengá-ria sobre a velhice não deixaram de causar-lhe

uma pontadazi-nha no coração, inevitável a toda mulher que vê o tempo passar. "Você ficará parecida com uma

fada!", dissera ela. Que seja! Mas o mais tarde possível. Angélica sorriu, porque tudo o que o reflexo do

espelho lhe devolvia era a garantia de que ela se encontrava no zénite de sua beleza ainda intacta, somente mais

depurada, com uma expressão mais serena. Havia apenas seus cabelos brancos, mas ela os tinha havia muitos

anos, e qualquer pessoa que a conhecesse, mesmo na corte, não se surpreendia com eles.

Susana, do patamar do primeiro andar, aonde subira para varrer os quartos, chamou-a a meia voz:

— Senhora! Senhora! Lá está ele! Vem subindo a rua...

Angélica foi até a janela aberta.

— Estais vendo aquele velho de preto que traz uma sacola de tapeçaria na mão e um rolo embaixo do braço?

Angélica debruçou-se. Não pronunciou palavra, mas Susana, ao seu lado, sentiu-a estremecer. Ao cabo de um

instante, virou-se, precipitou-se escada abaixo e foi abrir a porta da rua.

O ancião de cabelos brancos sob o chapéu redondo, num casaco escuro cuja gola só deixava vislumbrar de

claro um peitilho simples, sem adornos, caminhava de olhos no chão, pois de fato era ligeiramente curvado, o

que não o impedia de subir péla rua a passo ligeiro, apesar da incomoda sacola de viagem e do grande rolo

envolto em tela engomada que trazia embaixo do outro braço.

Pouco antes de chegar à altura da casa da Srta. d'Hõuredanne, levantou a cabeça a fim de procurar com o

olhar a morada que lhe haviam indicado. E viu Angélica no meio da rua, à sua espera. Atrás dela, o grande

olmo banhado de sol compunha-lhe uma auréola de verdor.

O velho estacou. Não exclamou consigo conforme fizera o velho Simeão: "Chamai-me de volta para vós,

Senhor, pois vi brilhar este dia e só me resta morrer". Mas, assim como o sacerdote do templo, entendeu que

aguardara e aguardara por aquele dia, conservando a certeza secreta de que não poderia morrer sem saber que

fim levara ela e sem revê-la.

Ela não mudara. Conservava aquela expressão de retidão e gentileza que atraía os corações, e ele teve uma

sensação de orgulho e de vitória ao descobri-la ainda mais bela:

E contra a sua vontade, pois era homem austero e rígido, um sorriso lhe repuxou os lábios enrugados.

Angélica desceu até ele, de mãos estendidas.

— Saúdo-o, Sr. Molines. Seja bem-vindo à Nova França.

— Molines — disse ela —, eu jamais teria imaginado que o re-veria no Canadá... Que loucura! Como ousou

empreender uma viagem tão penosa na sua idade?

— Desde que comecei a me interessar pelos negócios de seu pai e que você tinha uns oito anos de idade —

disse o intendente Molines —, você sempre pensou que eu era muito velho. Ora, uns dez anos depois, quando,

tratei de seu casamento com o Sr. de Peyrac, estava me aproximando dos cinquenta, e hoje ainda não tenho

setenta e cinco anos...

— Assim passa o tempo — disse Angélica, rindo. — Uma menininha que levanta o nariz para olhar um

senhor alto e severo considera-o muito velho. E depois, pouco a pouco, com o correr da vida, é ela que o

alcança.

Angélica fizera-o sentar-se no salão, perto do fogão de louça, agora apagado.

Estava em pé na frente dele, absurdamente feliz e não podendo crer nos próprios olhos, revivendo aquela

sensação mesclada de respeito e culpabilidade que sempre sentira diante do douto intendente. Respeito, pela

competência dele, e culpabilidade, porque toda vez que tivera que lidar com ele fora para que ele a obrigasse a

fazer algo difícil, que ela não tinha vontade 'de executar. E, por meio de argumentos, ele conseguia convencê-la

e fazê-la dizer sim por si mesma, coisa que a deixava irritada, desesperada e admirada diante da habilidade do

intendente.

Era sua infância, a adolescência, o casamento em Toulouse, o segundo casamento com Filipe du Plessis-

Belliere, de quem Mo-lines fora intendente, que lhe surgiam pela frente com a presença do velho empregado,

que, depois de pousar cuidadosamente contra a parede o rolo que trazia, abria a sacola de tapeçaria, pousada a

seus pés, e extraía um envelope branco lacrado.

Aprumou-se, lançou-lhe um breve olhar, que a fez estremecer, tanto ele ressuscitava para ela uma época que

já não passava de um sonho, e estendeu-lhe a carta.

— Tenho esta carta para lhe entregar, da parte do rei.

— Do rei! — repetiu Angélica.

— Sente-se — disse Molines, apontando-lhe uma poltrona à sua frente.

Ela obedeceu, maquinalmente, segurando a carta de sinete grosso, onde reconhecia o contra-selo de Luís

XIV, com os anjos da Glória e da Fortuna, sustentando o escudo com três flores-de-lis, encimado por uma

coroa e uma cruz.

— Abra...

Ela puxou a fita e rompeu o lacre.

Estava impressionada com a ideia de que o rei tocara naquela carta. Fora a mão dele que, depois de escrever,

lacrara a missiva. Ele quisera estar sozinho em seu gabinete de tapeçarias azuis e douradas, que ela conhecia

tão bem, e virara pessoalmente o bastão de cera sobre a chama.

Desdobrou a. folha. Viu a assinatura: "Luís". As palavras eram poucas:

"Para você, minha bela amiga, criei maravilhas. ----, Luís".

Ficou ali, segurando por duas pontas, a superior e a inferior, a folha branca, que lhe tremia entre os dedos,

para mantê-la aberta à sua frente.

"Para você, minha bela amiga, criei maravilhas."

De repente teve um sobressalto.

— MolinesL. E esta data? Há um erro. E de quase seis anos atrás.

— De fato, o rei lhe escreveu essa carta há seis anos. Eu a trazia a Você depois de ter estado em Versalhes e

entregado a Sua Majestade sua carta de submissão. Naquela carta, lembra?, você lhe pedia graça, prometendo-

lhe retornar à corte com a condição de que ele livrasse sua província e suas terras da soldadesca que ia humilhá-

la até sob seu teto, em seu castelo do Poitou, o Plessis.

Você estava prisioneira e maltratada, e comuniquei isso ao rei, respondendo às perguntas que ele me fazia. O

rei logo deu ordens e, por meu intermédio, enviou-lhe a carta que você tem hoje entre as mãos. Estava pronto a

fazer todas as concessões para revê-la. Mas, quando cheguei ao Plessis, você sabe com que espe-táculo topei:

ruínas fumegantes, o herdeiro do domínio, Carlos Henrique, morto, e você, desaparecida. Assim que pude,

retornei a Versalhes, para devolver ao rei a carta então inútil e que eu não podia entregar-lhe, visto que não

sabia onde você estava. "Ela empunhou armas contra mim", disse Sua Majestade, com a voz alterada. "Já não

posso fazer nada para conter meu braço justiceiro contra ela... Essa mulher deve ser derrotada... Acaba-se de

colocar4he^a cabeça a prémio..." — Molines continuou: — O rei colocou numa gaveta de seu armário secreto a

missiva inutilizada. No entanto, antes que eu me afastasse, fez-me prometer que continuaria sendo

intermediário entre você e ele, no caso de a ocasião apresentar-se. Assim, os anos se passaram no tumulto das

armas, de grandes misérias, grandes tormentas... Agora a província está apaziguada... mandei reconstruir o Castelo

do Ples-sis e meus negócios prosperam. Hei de dar-lhe todos os pormenores oportunamente, mas saiba desde já

que, por ordem do rei, o domínio retornará a você, junto com a licença de transmiti-lo por herança a um de seus

filhos. — Depois de uma pausa, continuou: — Então, passaram-se os anos. Depois de esmagada a revolta, fez-se

silêncio sobre sua pessoa. Em várias ocasiões tentei reencontrar sua pista, mas todos os rastos cessavam

bruscamente. Ninguém sabia dizer se você estava viva ou morta. Eu desconfiava que Sua Majestade, por seu lado,

procedia a investigações próprias, mas como eu não tivesse nada a comunicar-lhe, mantinha-me numa reserva

prudente. Vale mencionar, porém, que os dragões do rei, incumbidos de fazer as pessoas de religião protestante

abjurar sob violência, foram retirados dos campos, o que permitiu um reerguimento mais rápido das regiões

arruinadas pela guerra.

— Minha revolta, então, só acarretou consequências desastrosas para minha pobre província?

— Não... Certamente. Ela deveu a você poder respirar e escapar à perseguição religiosa. O rei ficou de olho no

Poitou como se esperasse que a calma da região fosse fazer com que você saísse do bosque... Afinal, em meados de

janeiro deste ano, recebi um chamado de Sua Majestade, pedindo-me que seguisse para Versalhes com toda a

urgência.

— E você montou em sua mula, como antigamente?

— Em outra mula, mas igualmente corajosa... Não! Desta vez Sua Majestade me enviou uma carruagem, a fim de

que eu chegasse o mais rápido possível. Assim que cheguei, ainda em trajes de viagem, fui introduzido no gabinete

particular do rei. Logo à entrada percebi como que uma luz inusitada nas feições dele. "Sei onde ela está", disse-

me ele, "está no Canadá..." — Molines continuou: — Tive a impressão de compreender que a notícia lhe fora dada

por seus serviços policiais, mais certarHente por aquele Francisco Desgrez, que você conhece. O rei não se preocupou

em saber como fora que aquele hábil assessor do Sr. de La Rey-nie obtivera a informação. Finalmente estava

sabendo que você vivia e que poderia revê-la, o que ao longo dos anos se transformara na obsessão dele. Retirou da

gaveta onde a colocara a carta que continuava lacrada: "Nada mudou no que eu tinha a comunicar-lhe então..."

Minha missão era partir ao seu encontro no primeiro navio que zarpasse para a América. Devia entregar-lhe a

carta secretamente. Então, fiz meus preparativos. Preferi não embarcar no navio que trazia o correio oficial, re-

ceando que os oficiais õu funcionários incumbidos dele me reconhecessem, depois de me haverem encontrado nos

corredores do palácio, em Versalhes. Fui embarcar em Honfleur. Meu navio atrasou-se um pouco por causa de um

iceberg que nos forçou a desviar-nos da rota para evitá-lo.

— Mas... — disse Angélica, cujos sentimentos se atropelavam — confesso-lhe que... há uma coisa que me choca

nisso tudo... sinto-me tocada com o fato de o rei conservar por mim uma paixão tão fiel, mas ele não parece

lembrar-se de que sou casada... casada com o Sr. de Peyrac... Parece seguro de que logo lhe cairei nos braços... Por

quem ele se toma?

— Toma-se pelo rei, Angélica — respondeu Molines, mansamente.

— O que ele pensa que sou, afinal? Dentre todos os seus súditos, fui eu que lhe desferi os golpes mais duros... e

que talvez não sejam os últimos...

Dizendo isso, ela pensava menos em stia rebelião do que na carta que enviara a Desgrez e por meio da qual o rei

um dia seria informado de que sua amante bem-amada, a bela Atenaís de Mon-tespan, era uma criminosa e uma

feiticeira.

— Ele deveria desconfiar de mim... Então não sabe de que sou capaz?

— Ele sabe... Mas também por isso você representa no coração dele uma dor e um deleite a que ele não quer,

não pode renunciar. Então, no tormento de não ter podido dobrá-la, renasce-lhe a esperança de poder aprisioná-

la... Ele quer cumulá-la de atrações. Devolve-lhe as terras, os títulos, concede todos os perdões a você e a seu

marido, na única esperança de que por isso você pense nele com um pouco mais de indulgência e, no mínimo, com

gratidão; na esperança de que mesmo à distância consiga trazer-lhe um sorriso aos lábios, substituir um pouco no

seu coração o rancor que nutre por um pouco de amizade por ele. Se o tivesse visto há quase seis anos, quando

fui a Versalhes pela primeira vez para levar-lhe sua carta de rendição, quando ele imaginava que em breve você

estaria perto dele, entenderia a que ponto você representa para ele, soberano, senhor de tudo... Como direi...

Sim, é isso!... Representava... a salvação. E enquanto salpicava de areia a carta que você tem entre as mãos, ele

me repetia, como um homem muito jovem e apaixonado, dominado pela ansiedade. "Você lhe dirá, Molines,

você lhe dirá, não é, como Versalhes está bonito!"

Angélica sentiu a garganta apertar-se com essa evocação.

Como ele reinava havia muito tempo, era fácil esquecer que aquele soberano, esmagado por uma glória e

encargos à imagem do seu pesado manto de corte de veludo azul, bordado de flores-de-lis e ouro, com gola e

forro de arminho e vários metros de cauda, e a peruca alta a realçar-lhe a majestade, ainda não tinha quarenta

anos. Ele só voltaria a ser jovem se ela regressasse.

— Versalhes está muito bonito, não é? — indagou a Molines.

— Sua Majestade recebeu-me em seu gabinete. E não sou muito entendido em detalhes, mas... de fato,

Versalhes está belíssimo.

"Para você, minha bela amiga, criei maravilhas" O Duque de Vivonne fizera-a entender isso. Nos últimos

anos, a ideia, a imagem de Angélica, estavam diante dos olhos do rei enquanto ele encomendava estátuas de

mármore a Coysevox, telas e afrescos a Le Brun, e com Le Nôtre examinava o traçado dos jardins, as milhares

de flores dos canteiros.

— Por que, meu Deus, ele continua a me amar?

— Eis uma pergunta que me parece ociosa, Angélica... Mais ainda quando se está em sua presença. Então não

se tem dificuldade alguma em reconhecer a constância 'dcfra cr3mo das mais naturais.

— Molines, você faz cumprimentos melhor do que um janota da corte! Antigamente você não tinha esses

talentos!

— É verdade! Mas, com a idade, permito-me adornar com algumas fantasias a compleição austera de meu

espírito...

— Caro Molines!.... — disse ela, fitando-o com ternura.

Molines desviou os olhos. Deixar-se enternecer por um olhar nunca estivera entre seus hábitos. Aliás, nunca

estivera entre seus hábitos deixar-se enternecer fosse pelo que fosse.

Mas còm a idade, conforme acabava de dizer, ocorria-lhe conceder algumas fantasias ao coração.

— Não se diz que o rei tem uma nova amante? — continuou Angélica. — A Marquesa de Maintenon?

Molines deu uma risadinha.

— Foi o sofrimento que lhe causaram sua rebelião e sua ausência que o incitou a voltar-se para os encantos

discretos dessa dama, com quem a libertinagem está fora de cogitação. Ela é séria ainda que muito bonita, e é a

agradável governanta dos filhos do rei. Ele repousa perto dela. A marquesa a conheceu outrora, e ele tenta obter

por'seu intermédio algumas histórias a seu respeito. No entanto, apesar das satisfações dessa ligação inteiramente

platónica e que para ele constitui um oásis de paz na sua vida estafante, demasiado regrada, sempre em

representação, como um deus exposto, um ator nos tablados de feira, eu não me preocuparia muito com a Sra. de

Maintenon se voltasse à corte.

Depois de proferir esse pequeno discurso, Molines recolocou seus papéis na sacola, retendo nas mãos apenas um,

que consultou sem necessidade de pôr os óculos.

— Muito bem — disse. — Depois de vê-la, devo pedir uma audiência ao senhor governador e entregar-lhe em

particular algumas mensagens pessoais acerca da satisfação de Sua Majestade com a habilidade com que ele conduziu

essa "aproximação" com o Sr. de Peyrac, que se impunha para a Nova França, e pela amabilidade da acolhida que

lhes concedeu. Numa palavra, o Sr. de Frontenac apostou na carta certa.

— Fico feliz poi ele.

— Quanto a você, indique-me. imediatamente as pessoas que deseja sejam afastada.; de seu caminho e do de sua

família, do Sr. de Peyrac e de sua casa, como da sua, e mesmo de seus amigos — está escrito aqui —, pessoas

perigosas que tenham procurado prejudicá-los ou que ainda o tentem, a fim de que sejam imediatamente impedidas

de fazê-lo por decisão do governador, independentemente de quaisquer consultas ao conselho, por detenção e

mesmo condenação, caso o delito assim o exija, não obstante quaisquer considerações de Estado, particulares,

funcionais ou eclesiásticas. Diga-me os nomes, e os seus inimigos serão castigados imediatamente.

— Você tem esse poder?

— O rei outorgou-mo.

— A você, um protestante?

— Quando se trata de eficácia, nosso rei não olha muito de perto a posição nem a religião da pessoa que lhe

parece mais apta a melhor servi-lo. Em circunstâncias dolorosas que lhe falam mais de perto, ou quase, do que o

próprio cetro, visto que Tse trata de você, ele me avaliou. Sabe que lhe sou dedicado e o mais capaz de defender-lhe

a causa junto de você, -pois entendeu que você me dava ouvidos, como a um pai que sabe falar a um filho difícil

numa língua que lhe é acessível. Chegou a dizer-me: "Sr. Molines, essa jovem é a mais insubmissa com que lidei

em todo o meu reinado. No entanto, não é o que chamam de obstinada. Ainda assim, as razões pelas quais ela se

ergue contra mim me são obscuras. Somente você pode convencê-la da sinceridade da minha paixão. E fazê-la

entender bem que meu favor a porá definitivamente, a ela e aos seus, ao abrigo do infortúnio e da adversidade.

Caso ela não deseje conceder-me mais, saberei contentar-me com a simples felicidade de vê-la, vê-la aparecer,

saber que ela virá, esperar todo dia pelo prazer que sua beleza sempre surpreendente suscita a cada ocasião, beleza

que ela realça pelo gosto imprevisível e sempre "perfeito dos seus adornos, contentar-me somente em levá-la pelos

meus jardins, conversar com ela às vezes sobre todos os assuntos, política, guerra, ou comércio, pois sua

inteligência é grande, seu julgamento, dos mais finos, contentar-me em ouvir-lhe o riso, uma réplica proferida em

sua voz harmoniosa. Você lhe dirá isso, Molines, e convencê-la-á". Foi essa a linguagem usada por Sua Majestade.

— Molines continuou: — Ora, você me perguntou, Angélica, como é que eu, huguenote, e modesto intendente

provinciano, tenho o poder de intimar o governador da Nova França a que prenda ou demita todas as pessoas

que me designe. E porque é a você, Angélica, que esse poder é delegado. Sua Majestade deseja que entenda que a

onipotência, mesmo superior à sua, encontra-se agora em suas mãos."

Angélica passou várias vezes a ponta dos dedos pela testa, afastando o cabelo, como se tivesse a necessidade de

afastar uma cortina a fim de enxergar com clareza.

Sentia-se um pouco assoberbada por aquela alavafiche de atenções. Levantou-se e deu alguns passos de cá para lá,

apertando as mãos uma contra a outra.

— Molines! Molines! O que devo fazer?

— Só você sabe, Angélica. Somente você é dona de seu destino.

— Molines, você sempre me aconselhou, e, revendo-o, recupero a confiança que me inspirava. Tenho fé em

você porque creio... que temos o mesmo tipo de consciência. Molines, o que devo fazer?

Mas o intendente tornou a esquivar-se com um meio sorriso.

— Penso que me ouviu muito bem, Angélica, quando lhe digo que somente você pode decidir. Pois spmente

você sabe o que deseja fazer de sua vida, o que conta a seus olhos, os obje-tivos que lhe são caros, e o que está

disposta a sacrificar para atingi-los. Já não é criança, e seus duros combates como capitão de guerra ensinaram-lhe

a arte da estratégia, que consiste sobretudo em projetar antecipadamente, na imaginação, os elementos * de uma

batalha, os obstáculos previsíveis, prever o pior a fim de prevenir-se contra ele, e também avaliar o ganho dessa

batalha, para saber se é indispensável travá-la ou se deve, caso se revele que o preço a pagar é demasiado caro,

evitá-la em tempo. Também não se pode esquecer que só descobrimos certas possibilidades no local, que o acaso é

um indivíduo galhofeiro que gosta de imiscuir-se em nossos empreendimentos, e que às vezes não é mau

submetermo-nos a ele, coisa a que se chama correr riscos.

— Contanto que não se trate de utopia.

Será que ela conseguiria dobrar-se à vida da corte, cintilante e soberba, mas que exigia todas as forças, uma

atenção de instante a instante? Exigiria cada instante da vida deles. Angélica visualizou o encontro em Versalhes, o

olhar do rei fito nela, a corte inteira em suspenso. Onde estaria Joffrey? Joffrey em pé diante do rei, que a desejava!

A sensação que teve foi de vazio, como se mais uma vez, pela intolerância do monarca, Joffrey fosse apagado e

rejeitado, desaparecesse...

— Molines, você, que conhece a ambos, imagina o Sr. de Peyrac diante do rei? Um homem como meu marido,

que escapou a tudo por si mesmo, lutando com afinco, mas com as próprias armas, jamais querendo suplicar,

aviltar-se, sempre conseguindo retornar ao topo, por mais baixo que houvesse caído. Ele, diante do rei!

— Um rei que disse: "Parece-me que me tiram a glória quando podem tê-la sem mim!"

Angélica estremeceu.

— Entendo — disse. — O rei mudou.

A função pervertia o homem. Apesar do espírito de justiça, do gosto pelo bem e da grandeza de caráter genuína

que havia naquele príncipe, ele se tornara um rei todo-poderoso, e já não podia inclinar-se. Fizera isso outrora,

quado era um jovem transtornado pelo fervor de um grande amor, o amor que, aos vinte anos, dedicara à adorável

sobrinha do Cardeal Mazarino, Maria Mancini. O impiedoso ministro destruíra isso. O cardeal não fazia questão

de ver a própria sobrinha alçar-se, atónita, ao píncaro das honrarias, e exilara-a rapidamente. Para Mazarino, que

protegera a minoridade do reizinho, o monarca estava destinado a tornar-se um grande rei, e, por razões de

Estado, devia desposar uma princesa de sangue real, a fim de consolidar as alianças do reino.

Em lágrimas, o jovem Luís se inclinara diante das razões de Estado.

Agora, não.

Novamente presa de um amor que parecia transformar todo o cinzento e o peso da vida em ouro puro, ele não

podia renunciar, pois perdera o hábito da renúncia.

Perdera até a noção da renúncia. Queria que os seres se dobrassem, com uma vontade que não admitia exceções

e cujo rigor não podia ser questionado. Ele era como um leme travado numa única direção.

Depois de fazer o que considerava concessões, e isso até o limite do'que não lhe custava nada, ou custava pouco,

estimava que agora cabia aos outros encontrar a solução para conflitos insolúveis e aplainar os obstáculos erguidos

contra o seu prazer. Que os outros abolissem totalmente a própria vontade ou seus desejos mais legítimos.

Caso lhe dissessem que ele agia com tirania, ter-se-ia surpreendido.

Em nada ele via outra saída. Pois estava convencido de que quando exigia ou decidia algo, era para o bem e para o

melhor.

Pois não acabava de declarar-se rei "por direito divino", ou seja, designado por Deus, como os profetas outrora,

para conduzir os povos e por isso devendo ser ouvido, visto que de seus . lábios se pronunciavam as vontades de

um criador justo e bom?

— Molines — murmurou eia —, o rei ainda pode ser salvo?

O velho intendente levantou uma sobrancelha e não respondeu.

E Honorina, o que seria dela? Angélica víu-a brincando perto da lareira e aproximou-se.

A criança levantou-se e viu-a chegar pefto. Angélica segurou-Ihe as mãos. A decoração era simples. A pedra da

lareira estava morna. As brasas cochichavam sob o caldeirão. Os utensílios brilhavam sob a cornija.

O que faria de Honorina? Honorina, de coração terno, que, a exemplo dos cavaleiros de antigamente, sonhava

ém aniquilar os maus e sofria com a própria fraqueza.

Mas Angélica estava ali, entendendo e emprestando-lhe sua força, sem recear enfrentar a tempestade para cortar a

corrente de um pobre cão para arrancá-lo ao martírio. A gente nunca esquece uma mãe capaz das coisas que os

adultos sempre recusam às crianças.

Olharam-se, de mãos dadas, olhos nos olhos, e selaram sua aliança de mulheres. O velho Molines, observando-as de

longe, alegrou-se por estar ali e de ter sabido ignorar os importunos e as aves aziagas que lhe predisseram

naufrágio ou captura pelos piratas. A família o segurara pelas abas da casaca: "Na sua idade, você está louco!

Atravessar o oceano!" A filha, o genro, o filho, a nora e toda a fieira de crianças e a velha governanta, que continua-

ra a cuidar-lhe da casa depois da morte da _ esposa. Molines respondera: "Serviço do rei!"

Setenta e cinco anos é uma idade para começar tudo. Não há escolha: ou se desce para o túmulo ou se nasce de

novo...

Angélica voltou para junto dele, com a menina.

— Apresento-lhe minha filha, Honorina de Peyrac.

Sentou-se novamente perto dele e manteve os olhos baixos, acariciando os longos cabelos acobreados que

escapavam da touca verde bordada.

Molines, sem dizer palavra, avaliava a idade da criança. De queixo na mão e um cotovelo apoiado aos joelhos

da mãe, Honorina estudava Molines com sagacidade.

— Tenho um arco e flechas.

— Felicito-a, senhorita.

— Meu pai é um grande chefe de guerra.

— Sua mãe também o foi. Fui testemunha das façanhas dela.

— Eu sei — disse Honorina, com um sorriso cúmplice. E apoiou a face contra o braço de Angélica. Desde o

salvamento do cão, ocorrera uma transformação na menina.

— Que resposta lhe dar, Molines? — murmurou Angélica, estreitando a menina contra si. — Ontem eu estava

louca de alegria. Fazíamos projetos de regresso. Agora não sei mais. Parece-me que nos atraem para uma cilada.

Perdoe-me se pareço hesitar. Você fez uma viagem longuíssima e censuro-me por pensar que poderia retornar com

a sensação de que fracassou em sua missão.

— Nesse escrúpulo reconheço-lhè a gentileza natural. Mas não se atormente por minha causa, Angélica. Digo-lhe

que esta missão do outro lado dos mares veio-me a calhar para facilitar meus projetos. Permitiu-me empreender

esta primeira travessia às expensas de Sua Majestade, e não haverá outra. Assim que os navios zarpem para a

Europa, considerarei minha missão concluída e começarei a procurar um lugar onde instalar-me no Novo Mundo.

Angélica arregalou os olhos.

— Você quer ficar na América, você, Molines? Mas não acaba de dizer-me que o Poitou está muito pacato e que

seus negócios prosperam.

— Prosperam, de fato... E eu até poderia dizer que devido a esse estranho jogo das circunstâncias, que nunca

podemos prever, nunca estivessem mais prósperos. No entanto, sou de religião protestante, e o rei vai revogar o

Edito de Nantes...

CAPITULO XXVI

A decisão de Angélica

— Revogar o Edito de Nantes! — exclamou Angélica. — O edito que deu aos protestantes a liberdade de praticar sua

religião, assim como os católicos, com os mesmos direitos de cidadania? Impossível! O rei Henrique IV, o avô de

nosso soberano atual, promulgou-o para que todos os franceses, huguenotes ou católicos, fossem súditos iguais de

um único rei!

— O edito será revogado — repetiu Molines. — Os jesuítas souberam convencer o rei de que já não há protestantes

na França, porque foram todos convertidos.

— Mas não se revoga um edito como este! É um crime. E o Parlamento, por mais submetido que esteja ao rei e

mesmo à maioria católica, não pode inclinar-se.

— Talvez isso não ocorra com facilidade, nem amanhã, mas será feito. Então os franceses de Religião Reformada

se tornarão piores do que pestilentos ou leprosos em seu próprio país. Serão arruinados, pois perderão a

autorização para exercer o comércio. Os filhos deles serão bastardos, pois os pastores já não poderão ser

funcionários estatais para o registro de nascimentos ou casamentos.

— É impossível! — exclamou Angélica de novo. — O rei não pode fazer isso!... Não pode fazer isso ao avô!

Esta exclamação tão feminina arrancou um sorriso a Molines.

— Sim! — ecoou a vozinha de Honorina. — Se ele fizer isso ao avô dele, eu o mato...

O velho homem meneou a cabeça. Que importância tinha a ternura das mulheres, pensou, e seu sentido de honra

e lealdade, frequentemente tachado de loucura...

O rei Luís XIV. trairia o avô, Henrique IV. O melhor rei que a França já coroara.

Um rei humano, antes de tudo, preocupado corri paz e reconciliação, e que promulgara o Edito de Nantes com o

fito de cessar o derramamento de sangue das guerras religiosa^. Mas o fanatismo e o desejo de violência

prevaleceriam sobre sua sabedoria. O punhal de Ravaillac, que se dizia guiado pelos jesuítas, varara-lhe o coração.

E o edito só seria aplicado, bem ou mal, durante menos de noventa anos. A França recomeçaria a esvaziar-se de seu

sangue. Novamente se veria gente banida a refugiar-se nas florestas, a insinuar-se sob os espinheiros das fronteiras

ou a embarcar em praias perdidas, a fim de ir oferecer a nações vizinhas ou terras longínquas sua força viva, seus

talentos e o futuro de seus filhos por nascer.

— Estou velho — disse Molines —-, mas a vida ainda me apresenta encantos e interesse. Posso viver os anos que

me restam de modo ativo e proveitoso, e não quero consagrar minhas últimas forças a apodrecer na prisão ou a

receber bastonadas e pontapés, enquanto me berram aos ouvidos: Abjura!... Ou então a remar nas galés, onde

minha pobre carcaça não duraria muito... Não quero principalmente a vida que se anuncia para os franceses

reformados em sua própria pátria e, portanto, para meus filhos e netos. Eles terão que passar a vida inteira

miseráveis, oprimidos, perseguidos, seja no desconforto de uma consciência aviltada pela abjuração, seja pela

necessidade de enfrentar os perigos de um exílio que se tornará quase impossível, pois as fronteiras serão fechadas e

vigiadas. Já hoje em dia todo francês reformado que seja pego a caminho de Genebra é detido e atirado na prisão,

sem outra forma de processo.

Como antigamente, Molines se ocupava dela e de seus irmãos e irmãs como se fossem todos pupilos dele, e

Angélica sempre esquecia que também ele tinha filhos, uma família. Lembrou-se de um menino e de uma menina,

huguenotezinhos um tanto pálidos, bastante enfadonhos, com quem não se podia brincar de nada divertido.

— Meus filhos tentam convencer-me de que sou um velho pessimista, que a injustiça não triunfará e que, seja

como for, eles saberão safar-se. Tolices! O afinco com que se iniciou a investida é demasiado intenso, os

espíritos estão influenciados demais para que possa haver um retrocesso. Assim, dei minhas ordens, pois ainda

estou vivo e continuo sendo b chefe da família. Os salvo-condutos do rei e o amparo que ele me concede

momentaneamente permitiram-me efetuar certas transações de transferência, através da Holanda. Minha gente

deverá empenhar-se no sentido de chegar a La Rochelle, em grupos diferentes e a pretexto de visitas familiares.

— La Rochelle? Isso é prudente? É uma cidade onde os hugue-notes são muito vigiados.

— Depende da época. Atualmente reina ali a confusão. Durante alguns anos houve lá um grupo de

conversores zelosos que tornou a vida insuportável para os meus correligionários. Depois, de repente,

abandonaram-nos à própria sorte e os jesuítas da cidade receberam ordem de só se ocuparem de seus alunos nos

colégios ou de seus penitentes. É uma oportunidade que não se pode desperdiçar. Por outro lado, os embarques

acontecem em portos de Brouage ou de Sables-d'01onne, ao norte de La Rochelle, cujos burgos conservam

uma maioria protestante. Pode ser que, procedendo da Holanda, um navio lance âncora num ou noutro desses

pequenos portos, onde nossas famílias poderão embarcar com mais facilidade.

— Para que local da América você pretende que eles venham? A Nova França também está fechada para

vocês. As leis contra os protestantes se aplicam com mais severidade aqui do que na França, se isso é possível.

Monsenhor de Lavai é muito rigoroso nesse ponto, assim como, de modo geral, todos os integrantes do Grão-

Conselho. Já aconteceu de marinheiros protestantes de certas tripulações serem proibidos de desembarcar.

— Não ignoro essas afrontas. É por isso que me alegro com o salvo-conduto real, que me permite passear

livremente, pela primeira e última vez, pelas ruas desta encantadora capital de nossa colónia na América.

— Infelizmente, aqui, os protestantes não têm chance alguma. Acontece de suspeitarem que os imigrantes

recém-chegados, sobretudo entre os jovens solteiros, que parecem haver embarca do para fugir de alguma

coisa, pertencem à Religião Reformada. Quando se convencem disso, é abjuração imediata ou pelourinho,

prisão e regresso à França no primeiro navio, no fundo,dos porões. A maioria se enfia pela mata e segue para a

Nova Inglaterra.

— É o que pretendo fazer, mas sem me enfiar pela mata. Estabeleci correspondência com protestantes

franceses de Nova York. Essa cidade, que foi holandesa, é aberta a todas as religiões. Assim que eu conclua a

minha missão com você, embarcarei. Informei-me acerca de um possível itinerário. Farei que me de-

sembarquem na costa leste do Canadá, e de lá, passando de navio a navio, acabarei contornando a Nova

Escócia e alcançando Massachusetts e, por terra, Nova York.

— A viagem é longa e penosa, Molines, por regiões quase desertas. Conhecemo-las bem, porque é aí que

temos nossos estabelecimentos. Espere pela nossa partida para Gouldsboro, nosso porto às margens do Maine.

Havemos de levá-lo conosco. Lá você encontrará correligionários seus de La Rochelle, que expandem uma

ativa cidade comercial. Em seguida um de nossos navios poderá conduzi-lo até Boston ou Nova York.

Angélica deu-se conta de que, falando assim sem refletir, acabava de dar a Molines sua resposta acerca de stia

decisão de não retornar à França.

CAPÍTULO XXVII

Ecos do passado

Ela então ficou alguns instantes indecisa, como que ausente, usando de toda a sua força de vontade para não

trair a própria perturbação, para não exprimir alto a nostalgia que a dilacerava de repente.

"Você nunca mais reverá o reino! Não reverá as belezas de Versalhes, os campos de sua infância, o Castelo do

Plessis-Belliere a refletir-se no lago.. Não, é impossível, Joffrey tem que retornar para tomar posse de seu feudo...

E o rei nos espera, não há de tolerar que respondamos com desdém a favores tão abundantes... Oh! Molines, o que

devo fazer?"

Continha-se para não repetir em voz alta a interrogação angustiada a que ele já respondera. E também ela dera a

sua resposta. Não acabara de dizer: "Nós o levaremos a Nova York quando regressarmos a nossos estabelecimentos

em Gouldsboro", sancionando a decisão que tomara interiormente? Mas isso queria dizer: "Adeus! Adeus para

sempre, nossa França... Oh! Molines, o que devo fazer?"

O intendente Molines não parecia preocupar-se com a tempestade que se desencadeava no coração de Angélica.

Mais uma vez abrira a sua grande sacola de tapeçaria, colocada a seus pés, e, inclinado, explorava-lhe o conteúdo

com método.

— O que procura na sua sacola? — indagou Honorina, que lhe acompanhava os movimentos com o maior

interesse. A menina sempre sentira uma simpatia espontânea pelos velhos, e não havia nada de surpreendente em

que Molines, com sua autoridade puritana, sua sabedoria não despida de astúcia, seus modos um pouco

compassados, deferentes, agradasse a ela.

— Procuro um objeto que trouxe para sua mãe, senhorita —respondeu ele —, e aposto como você também

gostará dele.

Aprumou-se, segurando uma coisa cuidadosamente envolta em tela engomada bem costurada, e quando

cortou os cordéis que atavam o volume com a lâmina de uma faquinha, ainda havia duas peles macias a

desenrolar. Afinal, estendeu a Angélica o objeto, um cofrinho oblongo, de tampa arredondada.

— Oh! — exclamou Angélica. — Minha caixa de tesouros!

Pousou-a sobre os joelhos, reconhecendo-lhe o couro lavrado,

a chavezinha dourada. Molines explicou que, regressando ao Castelo do Plessis e topando somente com

ruínas fumegantes, encontrara, porém, uma ala quase intacta, a ala onde, felizmente, ficava o quarto da castelã.

Houvera por bem, então, enquanto não se procedia à restauração do castelo, retirar dali alguns obje-tos e

móveis, que guardava em sua própria casa. Entre os objetos salvos, incluíam-se aqueles dois, disse ele,

mostrando também o rolo apoiado à parede. Ele sabia que ambas as coisas só tinham para ela valor de

recordação, mas por essa mesma razão quisera trazer-lhos assim que lhe fora possível vir ao seu encontro na

América.

— Minha caixa de tesouros!

Sob os olhos brilhantes de cobiça de Honorina, Angélica levantou a tampa. Os objetos estavam ali, marcos de

sua vida. Entre a pluma do Poeta Pobre e o punhal de Rodoguno, o Egípcio, viu a turquesa de Bei Bakhtiari e,

ao lado, um seixo enegrecido, que era um pedaço daquela "múmia" do velho Savary. Talvez fosse por causa

daquele resíduo de solidificações minerais do licor sagrado dos persas, a "múmia", que se desprendesse da cai-

xinha um odor antigo, um leve odor de morte. Os objetos a enterneceramYmas quando os pegou e olhou um a

um, sentiu-os como que aliviados de seu conteúdo doloroso. O que eles evocavam já não lhe inspirava remorso,

pesares nem sofrimento. Por mais dramáticas ou magníficas que fossem, as imagens que eles lhe despertavam

na memória só a tocavam como o lembrete de uma vida que cessara de fazê-la sofrer, para transformar-se

simplesmente naquilo que eram, ou seja: sua vida passada. Sua vida passada, com suas felicidades e

infelicidades, mas passada.

E se o passado acabava de perder um pouco do encanto tão misterioso, as forças de Angélica,

desembaraçadas como que de um fardo pesado, pareceram-lhe mais novas para o presente.

"Está vendo", pareciam dizer os objetos, na sua dócil materialidade, "tudo se ajeita, a gente sobrevive, e nada

nunca foi tão terrível, tão insuperável quanto se acreditou na hora."

— Obrigada, Molines — disse com um sorriso.

Alegrava-se por poder mostrar a célebre caixa de tesouros a

Honorina. Aquela caixinha mítica, finalmente recuperada, ela daria de presente à menina, que se veria nas

nuvens de contentamento, acreditando que atingira o auge de tudo o que podia esperar de melhor da vida, e por

toda parte haveria de levar os dois cofrinhos consigo, um embaixo de cada braço, o da mãe e o seu.

— E isso? — perguntou Angélica, intrigada, vendo Molines pegar o rolo e cortar as amarras para retirar o

invólucro. Era a tela de um quadro, que o velho intendente desenrolou e depois, levantando-se, foi apoiar à

beira de um consolo, para que o vissem de longe.

Destacando-se com seu colorido vivo na penumbra do salão, Angélica reconheceu o quadro que encomendara

a seu irmão Gon-tran, o pintor, quando morava em Paris, e que era o retrato de seus três filhos. Estavam ali

Florimond, vestido de vermelho, com dez a doze anos; Cantor, que Gontran pintara de memória, pois na época

o menino, que acompanhara como pajem o Duque de Vivonne nas galeras do rei, estava desaparecido no

Mediterrâneo; e, entre eles, Garlos Henrique, o filho que ela tivera de Filipe du Plessis-Beliere. Em pé sobre um

quadrado de tapeçaria, o bebe de dois anos, com sua bata branca, os cachos louros escapando da touca bordada,

estendia os bracinhos a fim de roçar com os dedos rechonchudos e como que para certificasse da presença

deles, os meios irmãos, que lhe sorriam gentilmente. Carlos Henrique, a criança que morrera com quatro anos

de idade, degolada pelos soldados do rei.

Angélica dizia consigo que o amara menos do que aos outros filhos, isto é, que não tivera tempo de ocupar-se

dele. Naquela época ela era solicitada, monopolizada pelo rei e pelas festas na corte, e a criança vivia na

província, no Castelo do Plessis-Belliere, com a ama Bárbara. Mais tarde, quando voltou para lá; exilada, os

perseguidos do Poitou vinham bater-lhe à porta, e a presença da criança constituía um receio suplementar.

Lembrava-lhe o casamento que ela fizera para içar-se à corte, enquanto seu primeiro marido, seu único amor,

vivia solto pelo mundo, sem que ela soubesse.

Pela fragilidade, a criança lhe lembrava sua própria fragilidade, dela, que atraíra a cólera do rei e que era

responsável pelas infelicidades que se acumulariam sobre aquela cabeça inocente.

"Cuidado com o cisne, meu bem!" Fora num dia em que, de uma janela do castelo, ela-o vira diante do lago.

Olhava um cisne qúe avançava na sua direção, e a bela ave tinha uma atitude ameaçadora. Angélica correra

escada abaixo. Correra, correra, receando que o animal se atirasse sobre a criança e a arrastasse para a água.

"Cuidado com o cisne, meu bem!"

Pegara a mãozinha redonda do garotinho e o afastara do lago. Subiram juntos de volta ao castelo. Ela falava,

fazendo-lhe recomendações de prudência, e ele respondia,^, numa voz flauteada, saltitando ao seu lado:

— Sim, minha mãe! Sim, minha mãe!

Naquele dia sentira que ele era realmente seu filho. Entrara-lhe no coração, e ela entendera que, se ao olhá-lo

costumava sentir uma dolorida emoção, era porque temia por ele, filho de Filipe, e porque no fundo de si

mesma se sentia oprimida pela tristeza do destino dele.

Então, escrevera ao rei, rendera-se, mostrara-se disposta a tudo, dissera-lhe, contanto que a salvasse da trágica

situação em que se encontrava, entregue, com os filhos, aos abusos do exército em sua província perseguida. E

entregara a carta a Molines, que montara na mula e partira para Paris, apesar da insegurança das estradas,

levando a mensagem a Versalhes...

Na noite seguinte, porém, ocorrera o drama. Os dragões do gordo e terrível Montadour penetraram no Castelo

do Plessis-Belliere, matando, violando, incendiando... O pequeno Carlos Henrique fora morto, com a garganta

rasgada, nos braços da ama.

Não, nem tudo dera certo. A vida não concede nada sem cobrar seu tributo. Houvera uma criança morta, afinal

de contas, pensou Angélica, "um ferimento incurável que me pertence em particular, e que não se pode confiar a

ninguém. E confiá-lo não atenuaria nada. A criança me pertencia... Em que se haveria tornado, menininho, se não

o houvessem degolado?"

Era também à criança de bata branca que Molines contemplava.

— Quis trazer-lhe este quadro — disse —, pois é a única imagem que possuímos do último Du Plessis-Belliere,

descendente do ramo originado de Eudes III, companheiro de São Luís. Eu não podia deixá-lo para trás.

Entreolharam-se. Calaram-se.

— Bem vê, Molines — disse ela, afinal —, bem vê que não posso ir ao encontro do rei. É impossível! Como, para

você, abjurar... Alguém deu uma tossidinha perto deles.

— Achei que talvez o honorável ancião gostasse de que lhe servissem uma bebida — disse Susana. — Este nosso

país dá muita sede...

Como que saindo de um sonho, eles fitaram a jovem da Nova França, afável e sorridente diante deles. Susana

esboçou uma pequena reverência.

— Oh! Tem razão — exclamou Angélica. — Molines, recebo-o bem mal. Fiquei tão atordoada ao vê-lo! Esqueço as

fadigas que acabou de suportar e que estamos no Canadá e não no Plessis ou em Monteloup, a dois passos de

sua casa.

— Sirvo-lhe vinho? — propôs Susana. — Aguardente de cidra de Banistere ou cerveja da cervejaria do Sr.

Carlon?

— Nada disso! — recusou o viajante. — Prefiro viver bem de saúde. Se tiver uma boa sidra de maçã, bem

misturada com água, será peneiro.

Susana desceu à adega para buscar um púcaro da bebida, a que também chamavam de "caldo".

Eles continuaram a olhar o quadro das três crianças, pintado por Gontran de Sancé de Monteloup, irmão de

Angélica.

— Seu irmão era um grande artista — continuou Molines, numa voz que permanecera muito clara, somente um

pouco mais seca e abafada. — Foi um acaso estranho e desafortunado que o fez nascer numa família nobre e

destinado às armas e ao serviço do rei, e não a misturar cores como um artesão. Tivesse sido meu filho, poderia ter

feito uma carreira ascendente. Ter-se-ia tornado um dos assistentes do Sr. Le Brun, que também era filho de

artesão. Mas seu pai, o barão, era pobre, e seu irmão, revoltado. Pertencendo a essa alta linhagem que remonta aos

primeiros reis capetíngios da Ue-de-France, foi forçado a descer, e desceu ao ponto mais baixo. Envolveu-se com a

escória e acabou enforcado. Molines balançou a cabeça várias vezes.

— Ah! Não eram gente fácil, vocês todos, por mais numerosos que fossem. Os filhos de Sancé de Monteloup, do

Barão Armando e da meiga Adelina. Um casal simples. Mas puseram no mundo uma ninhada de lobinhos ávidos.

Havia de tudo em seu bando: potros selvagens, ursos intolerantes, éguas indomáveis... Acontece de, ao longo dos

séculos e gerações, a quintessência de uma raça, de suas forças e singularidades, reunir-se numa única família. Vocês

eram todos diferentes, mas semelhantes em alguns pontos. Foi por isso que os observei crescer, com interesse, di-

vertimento e admiração.

— Você classifica Gontran entre os ursos intolerantes?

— Sim... mas visitado pelos deuses e capaz de transmitir em imagens os sonhos sempre imprecisos dos mortais.

Acho que foi por isso que, diante do cavalete ou empoleirado nos andaimes, enquanto pintava os tetos de

Versalhes entre seus companheiros operários, ele soube ser um homem feliz.

— E josselino, nosso irmão mais velho? Também ele era um urso intolerante! Aos dezessete anos, fugiu para a

América...

— Sim, e o desaparecimento dele não deixa de suscitar complicação na sucessão para seu irmão Dionísio, que

assumiu as propriedades. Pois Josselino era o herdeiro por direito de primogenitura, e nunca se anunciou a morte

dele. E por isso que também o incluo em meus projetos no Novo Mundo: quero encontrar-lhe a pista. Soube que

não pôde permanecer entre os adeptos do Pastor Rochefort, pois, sendo católico, não tinha lugar entre eles.

Tampouco nós, os huguenotes, somos ternos com nossos adversários... Talvez o reencontremos, ou à sua descen-

dência, na Nova França.

— Tenho algumas ideias a esse respeito — disse Angélica. — Mas falaremos disso mais tarde. No momento,

há muita coisa a resolver. Estou completamente atordoada.

Susana retornou para lhes servir a bebida, que eles tomaram em silêncio, enquanto o sol entrava pela porta

aberta.

CAPITULO XXVIII

O bilhete de Desgrez

—É tudo? — perguntou Angélica, olhando desconfiada para a sacola inesgotável da qual o intendente Molines,

como um mágico do Pont-Neuf, acabava de extrair para ela o melhor e o pior, o poder e a condenação, a infância, a

rebelião, os remanescentes de sua vida, as catástrofes da história em marcha, o retrato de uma criança morta, a

recordação de um irmão enforcado e de outro talvez vivo e, como ela, no Novo Mundo.

Apesar da abundância e da variedade de suas- entregas, Molines não parecia haver terminado, e desta vez exibiu

outra carta, mais modesta de aspecto, sucedendo-lhe nas mãos à do rei.

— Deste bilhete para você, quem me encarregou foi o Sr. Desgrez, que apesar do título sem pretensão não é nada

menos do que adjunto do Sr. de La Reynie. Pediu-me que o entregasse a você.

Angélica conteve um impulso de prazer ao ver aquela carta e se afastou um pouco para lê-la. Não se enganara ao

imaginar que Desgrez se manifestaria.

No entanto, as linhas do policial a desapontaram. Em tom protocolar e rígido, comunicava à Sra. de Peyrac que

recebera as ordens que ela lhe enviara, que se apressara a transmiti-las ao rei e que esperava estivesse satisfeita

com a solicitude com que lhe servira a causa. Na correspondência oficial, que lhe levava notícias das mais felizes e

que, ele sabia, chegaria ao mesmo tempo que aquelas linhas, ela poderia ver o feliz resultado de sua solicitude.

Concluía assegurando-lhe sua respeitosa dedicação, que permaneceria fiel e integral, e reiterava que se incumbia de

testemunhar a alegria de Sua Majestade com a ideia de que em breve a reveria, alegria de que ele, enquanto zeloso

servidor de um senhor pródigo em generosidade, regozijava-se por ter sido o instigador, etc...

Angélica franziu o cenho ligeiramente. Estava decepcionada... Naquelas frases rebuscadas, até teria sentido um

ranço de repugnante bajulação, caso o exagero e a redundância das fórmulas não a fizessem suspeitar de que com

isso o Desgrez autêntico encontrara um meio de esconder-se, deixando "o rabo de fora"... Após um momento de

reflexão, reconheceu que não podia esperar outra carta de um funcionário de alta posição, que servira de interme-

diário entre o rei e a mulher que, "do exterior", era preciso considerar como uma das favoritas do rei, que depois

de se mostrar se não volúvel, pelo menos andarilha, retornava ao redil real.

Ela mesma, quando escrevera a ele, não o fizera em termos velados, valendo-se de alusões, já que era impossível

exprimir-se francamente?

Entendeu então que a vida passa, que a roda gira, que as amizades se desenvolvem ou morrem ao sabor da sorte.

O rei mudava e se tornava mais irredutível. Desgrez mudava e se tornava mais inabordável. Era como se os

corações fogosos de outrora se recobrissem aos poucos, à imagem de certos elementos vivos do mar, por etapas, de

camadas opacas e pedregosas, que os tornavam mais pesados, menos transparentes. Podia imaginar que,

encontrando Desgrez em Versalhes, ele lhe apresentaria a mesma face rígida que se adivinhava por trás das

palavras da carta. Caso restasse nele algo do antigo Desgrez, talvez arriscasse dirigir-lhe sub-repticiamente uma

piscadela, supondo-se que ficassem a sós por um instante, longe do facho de mil olhares do rei, dos cortesãos, dos

criados, dos pajens, dos guardas...

Molines estendeu o copo a Susana, que se aproximava com o jarro na mão.

— Mais bebida, minha filha. Ela me convém à maravilha.

— Comeria algo, senhor? — perguntou ela. — Vejo que trata de assuntos importantes sem interrupção. Deve

estar cansado.

— Qual nada! O trabalho sempre me sustentou tanto quanto uma refeição. De resto, minha anfitriã no albergue

do porto honrou-me esta manhã com uma sopa de favas e presuntos diversos a que não tive o heroísmo suficiente

de resistir. Sobretudo depois do biscoito do navio, regado a sidra podre, refeições assim pantagruélicas nos

convencem de que, se aqui se desembarca na América, também se reencontra a doce França no que ela tem de

melhor: o conteúdo de suas panelas.

— Ficará conosco, senhor? — indagou a jovem canadense. — O ar do Canadá é muito bom, e as águas, tão

milagrosas, que a gente vive até os cem anos!

O ancião de cabeça branca, que ela sentia ativo e diligente, agradava-lhe.

— Não — fez Molines, balançando a cabeça —, e creia, minha jovem, que lamento, mas não posso instalar-me na

Nova França...

— E por que não?

Ele sorriu, um pouco amargo.

— Porque trago a marca do pecado original!

Enquanto Angélica dobrava lentamente a carta de Desgrez, Molines retirou da inesgotável sacola uma prancheta

com um orifício no canto direito, em que ele enfiou um frasco de tinta. Desenroscou a tampa e pousou a

escrivaninha portátil sobre os joelhos. Num estojo de madeira, pegou uma pena de ganso cuidadosamente talhada.

Mergulhou-a na tinta e a ergueu no ar pronto para escrever.

— Esqueçamos o pecado original — disse. — Por ora, estou no Canadá, longe de todos os controles e munido

de salvo-condutos assinados pelo próprio rei, que me tornam intocável e que obrigam os mais elevados desses

funcionários papistas a se curvar diante do meu jeito sombrio de calvinista. E você é a todo-poderosa bem-amada

de um soberano que aprendeu a fazer-se obedecer. Aproveitemo-nos disso, minha cara.

Deu um sorriso astuto, que exibia quando pensava em alguma peça a pregar em alguém sob o amparo da lei, lei

que seria obrigada a ratificá-la.

— As liberalidades de Sua Majestade permanecem em vigor até nova ordem. E não será em breve que essa ordem

chegará a nós. De-me os nomes de seus inimigos, Angélica. Em algumas horas podem ser suspensos de suas funções,

detidos, atirados na prisão...

Angélica sentiu que fora pega desprevinida.

Algumas semanas antes ela talvez pudesse citar Saint-Edme e Blessart, a fim de que fossem impossibilitados de

causar-lhe danos e mandados de volta à França sob vigilância, junto com um pedido de encarceramento, assim que

chegassem. Mas os dois estavam mortos, e ela adivinhava que Vivonne, sob seu nome falso, pretendia negociar seu

retorno à corte na esteira da proteçào concedida aos Peyrac. Garreau d'Entremont? Era um bom e honesto policial.

Ele encerraria o processo Varange.

Berengária Amada de La Vaudiere e seu minucioso marido? Tinha realmente de que se vingar deles?

O jesuíta, que lhes declarara guerra, desaparecera no fundo das florestas, e a conspiração dele para prejudicá-los em

Quebec fora frustrada.

"Quebec! Cidadezinha querida. Só você me restará, para que eu possa vir respirar o ar da França..."

Meneou a cabeça.

— Não tenho ninguém a citar-lhe, Molines. Aqui só temos amigos...

CAPITULO XXIX

A piscadela maliciosa — A sorte de Berengária

— Muito bem! — exclamou Molines, pesaroso.

Fechou o estojo, o tinteiro e, depois de metê-los na sacola, fechou-a também. Em seguida se pôs a vasculhar nos

bolsos do colete da casaca.

— Ah, aqui está! Mais uma mensagem! Não sei se lhe diz respeito.

Mostrou-lhe um pedaço de papel amarrotado e sujo.

— No momento em que, no cais de Honfleur, eu me preparava para embarcar em meu navio, um pobre-diabo

me tocou o braço e disse: "Sei para onde vai, avô. Quando a encontrar, entregue esta mensagem à Marquesa dos

Anjos". Ao primeiro instante, pensei nas inconveniências de um bêbado ou mendigo. Mas a palavra "marquesa",

seguida de "anjos", não sei por que me fizeram pensar que talvez houvesse uma correlação com sua pessoa. Sua

vida foi muito misteriosa, e não posso gabar-me de conhecer-lhe todos os detalhes.

— Você fez bem.

Angélica estendeu a mão e pegou o bilhete. A letra lhe era desconhecida. Não havia assinatura. Leu:

"Verde e murmurante

sob a ponte Notre-Dame

corre o Sena.

Atraía-te naquela manhã.

Flores e jardins era o que

ali vias brilhar.

A luz dele olvidavas

quão negro e malcheiroso

é o lodo dos rios.

Para as tuas misérias liquidar

com esse leito sonhavas.

Cheguei e nos braços tomei-te.

Mas lembra.

E conhece-te.

Pois para desse leito te poupar

Nem sempre lá hei de estar".

Era no estilo das canções que o Poeta Pobre compunha "a vinte centavos a dúzia" e que o pai Hulurot e a mãe

Hulurette berravam pelas esquinas, chorando e acompanhados de um violino.

Se não soubesse que o poeta do submundo de Paris estava morto havia muito tempo, enforcado, seria capaz

de jurar que o texto vinha dele. Mas, se não era dele, com certeza era de um frangiu, um companheiro do Pátio

dos Milagres, alguém que podia saber ao mesmo tempo seu apelido, Marquesa dos Anjos, e o que Mo-lines ia

fazer no Canadá.

O nome do remetente estava oculto por trás da recordação evocada, que somente ele e ela conheciam. Quem

podia ser? Quem chegara e a tomara nos braços... para fazê-la olvidar... as misérias... que lhe davam vontade de

morrer e de entregar-se ao sabor do Sena, "verde e murmurante"... Na ponte Notre-Dame... Uma ponte que

atravessava por uma. ruela estreita, entre duas fileiras de casas com empenas. Quem morava na ponte Notre-

Dame?

O nome lhe veio num clarão: Desgrez!

Um dia, da janela de seu quarto, ela olhara o Sena, pensando em morrer. E ele chegara. E, à sua moda,

devolvera-lhe o gosto pela vida, aquele policial do Diabo.

Sorriu.

Na carta oficial, assinada e que podia ser interceptada por espiões, ele só expressara lugares-comuns. Aquelas

frase anodinas não o comprometiam em nada, simplesmente mostravam que ele conhecia a Sra. de Peyrac. Mas

o bilhete anónimo era a piscadela do amigo.

Mas um aviso também. E a prova de que ele se movia por entre uma rede de suspeitas e ciladas que o

obrigava aos recursos mais arriscados para alcançá-la e transmitir-lhe seu aviso.

Ora, o aviso era... que havia perigo para ela, caso retornasse.

Na outra carta, ele se mostrava solícito, alegrava-se corno breve regresso da Sra. de Peyrac.

No bilhete, lembrava-lhe que ela bem poderia acabar os próprios dias no fundo do Sena... Um modo de dizer

que a vida dela estava ameaçada.

Mas ele lhe entendia a tentação.

"Flores e jardins era o que ali vias brilhar... e olvidavas quão negro e malcheiroso é o lodo dos rios..."

Um aviso! Cabia a ela levá-lo em conta. Podia voltar, mas enfrentando riscos e perigos.

Não lhe dizia: "Desconfia!", mas: "Conhece-te".

Queria dizer: "Se você é forte, se pouco se importa voltar a mergulhar em negras e glaciais vilanias; se sua

armadura hoje é de um metal tão bem-temperado que nenhum dos golpes que desferirão contra você poderá

atingi-la nem levá-la ao desespero e ao pesar, como naquele dia em que estava prestes a atirar-se no Sena para

dar cabo da vida; se, entre jardins e flores que ocultam tantas intrigas e perigos, você se sente feita para viver a

glória que a espera, sem ter outra coisa a perder senão a vida, e está disposta a isso para se ver no auge, na aura

do rei, então volte! Mas saiba que estará sozinha, pois eu, Desgrez, nem sempre estarei lá..."

Queria que ela entendesse que ele não passava de um policial a avançar pelos subterrâneos lodosos do crime,

onde sua vida e seus planos enfrentavam riscos o tempo todo, que ele vivia ameaçado tanto pelos punhais dos

malandros a quem dava caça, quanto pelo veneno das feiticeiras a quem desmascarava, e, na melhor das

hipóteses, pela desgraça e o afastamento obtidos pelas intrigas dos grandes a quem ele começava a inquietar.

Em suma: queria fazê-la entender que agora poderia defendê-la ainda menos do que antigamente. Encontrava-

se numa posição demasiado frágil. Era vigiado demais, forte demais e temido demais. E poderia permitir-se,

diante do rei, sequer aquela piscadela de amizade antiga? Ou um breve encontro numa esquina escura, com o

manto cor de muralha sobre o rosto; ela de máscara, para se dizerem: "Salve, Marquesa dos Anjos!", "Salve, ra-

bugento do Diabo..."? Tudo isso estava acabado. Ele se aproximava dos "intocáveis". Ia apanhar em sua rede a

deusa do Olimpo, Atenaís...

Quanto a Angélica, não nutria ilusões. O rei não renunciaria à conquista. Passadas as primeiras alegrias e

efusões do regresso, recomeçariam as escaramuças. Logo o rei saberia que não era amado conforme pensava

ser. O sofrimento o exasperaria. O ciúme, a inveja do rival, sempre detestado: Joffrey de Peyrac.

E recomeçaria tudo.

E seria tarde demais para correr para as margens e estender os braços para o mar, suplicando baixinho: "Leve-

me! Leve-me!"

Não valia a pena ter sofrido tanto para ganhar a liberdade.

Quando parou de dialogar mentalmente com o policial Desgrez e, levantando os olhos, retirou-se da casa na

ponte Notre-Dame e das ruelas tenebrosas de Paris, onde ressoavam o eco das espadas entrechocadas e os gritos

de agonia; quando parou de ver o Sena correndo "verde e murmurante" e de respirar as emanações de seu lodo

nauseabundo, cheirando ao pecado dos homens, viu que o intendente Molines partira. Anunciara que ia visitar o

governador.

A refeição do meio-dia pareceu concorrida e animada. Mas, exceto pelas crianças, Angélica não prestou

atenção a nenhum dos presentes.

Apesar da insistência de Susana, não conseguiu engolir nada, o que lhe provou que ela mudara

profundamente, pois outrora as emoções lhe davam fome. Subiu para o quarto, sentou-se diante da mesinha e

escreveu: "Meu amor, preciso conversar com você, preciso vê-lo. Já não sei o que fazer. Irei aonde você for.

Ficarei onde você ficar. Você é meu único amor..."

Mas rasgou a carta, temendo que Joffrey a achasse tão louca quanto sibilina. Escreveu outro bilhete para

ele:"Pode receber-me à tarde?", que mandou entregar no solar de Montigny.

Pouco depois Kuassi-Ba apareceu com uma carta lacrada que continha a resposta do conde. Em termos

intencionalmente solenes, avisava a Condessa de Peyrac que a receberia de bom grado em seu solar de

Montigny ao final da tarde, entre o fim das vésperas e o. começo do salut, ou seja, de cinco a seis horas.

Afetava, na resposta, o mesmo tom empolado que ela usara.

"Ele está brincando", pensou ela, amarrotando o papel. "Se soubesse a que ponto isso tudo é grave... Não vejo

saída."

Retomando a mensagem, pousou os lábios no papel. "Eu o adoro!" Não queria pesar sobre a vida dele,

mostrar-se desamparada no momento em que, forte e vencedor após uma luta tenaz e longa, ele finalmente

alcançava a meta. Preferiria calar-se, retornar às primeiras ilusões da véspera. Mas a visita de Molines

obrigava-a a encarar a realidade de um futuro que ela entrevia com toda a clareza por entre as armadilhas da

aceitação e as consequências desastrosas da recusa.

Um leve ruído lá fora fê-la erguer os olhos. Apesar do sol, estava chovendo, e através da renda verde das

folhagens surgiam reflexos prismáticos em tons de nácar e pérola.

Angélica esperou pela hora do encontro, girando entre os dedos uma moeda de ouro muito antiga, do reinado

de Bela III da Hungria, que encontrara no fundo da caixinha de tesouros. Quem lhe dera a moeda fora o

príncipe rebelde Racoczi, que um dia lhe dissera: "Você tem a cabeça do arcanjo vingador, incorruptível,

aquele que empunha o gládio da justiça e decepa os elos viscosos das concessões. Seu olhar trespassa. As

pessoas sentem-se nuas à sua frente. Não haverá prisão profunda o suficiente para extinguir essa luz. Cuidado!"

Bateram na porta. Era Berengária, aos soluços.

— Não arruine nossa vida!

— Mas... essa ideia nunca me ocorreu.

— Agora você pode fazê-lo. O Conde de Peyrac e você têm todos os poderes agora.

— Quem lhe disse isso?

— Está correndo o boato.

— Exageros. Tudo o que há é que a política do Sr. de Fronte-nac foi aprovada pelo rei e que ele deseja ver-

nos em Versalhes.

— Dizem muito mais do que isso — murmurou Berengária.

Balançou a cabeça, respondendo a reflexões pessoais que ela devia ter remoído, amargurada.

— Eu tinha razão quando achava que o Conde de Peyrac triunfaria. Tenho intuição para essas coisas. Ah,

como o detesto!

— Por quê?

— Ele me desdenhou.

— E você não poupou esforços...

— Ele me fez sofrer de verdade, com sua indiferença.

— Você não estará querendo que eu a lamente, não é?

— Somente você conta para ele.

— Devo lamentar isso?

Percebendo afinal a nuança irónica, Berengária levantou os olhos do lenço.

— Estranho! — disse. — Vocês dois são tão notáveis, que é difícil considerá-los marido e mulher... Vocês

são unidos, mas por vínculos diferentes dos do contrato conjugal. Sente-se que são cúmplices, amigos, amantes.

É diferente. E outra coisa. Eu esquecia o tempo todo que ele era seu esposo.

— Eu gostaria de que você se lembrasse com mais frequência. Seu jogo me desagradou algumas vezes.

— Era jogo? Ou será que me deixei envolver quase que de imediato? Eu não conseguia imaginar que pudesse

existir um homem como ele, um autêntico homem. Comportei-me como uma tola ofuscada, mas no final das

contas ele falou comigo, não foi? E quando me falava, dirigia-se a mim? Via-me?

— Não duvide! É um homem galante.

— Então terei pelo menos isso — disse a jovem, tristemente. — Mas fui louca. Devia ter entendido que perto

de você eu não tinha chance alguma. Em todas as circunstâncias você permanece bela e radiosa. Eu, dentro de

seis anos, parecerei uma ameixa seca. O frio me é prejudicial...

— Não há por que se atormentar com o aspecto que terá dentro de seis anos.

— Estou com vinte e oito anos. Se ainda não se conseguiu fazer com que falem da gente, é tarde para ter

esperanças de brilhar um dia. No entanto, como eu gostaria de conhecer, ainda que por pouco tempo, a

soberania da celebridade! Caminhar sob o fogo dos olhares que nos fazem existir! A admiração, o ciúme, a

inveja, talvez o ódio, mas não são deliciosos esses desejos que crepitam à nossa volta como um fogo, e que nos

dizem que somos bela, viva, rica, toda essa glória em torno de nossa pessoa, única? E que você conheceu, isso se

sente, e é por isso que você continua atraindo e seduzindo. Nós, mulheres, não temos necessidade de conhecer

isso pelo menos uma vez-na vida?

— Sim, tem razão. Berengária fungou, surpresa.

— Tenho razão?

— Claro, minha cara criança.

— Oh, não se faça de matrona, não lhe assenta de modo algum. Você, que domina o mundo, pode permitir-se

desprezar esses sonhos que me são inacessíveis.

— Não jogue mal seu jogo, e dou-lhe minha aprovação se quer prosseguir nesse caminho. Toda mulher, de fato,

precisa ter êxito nesse jogo um dia. Mas, no que concerne aos homens, gostaria de fazer-lhe um comentário. E de

surpreender que você seja invejosa, pois tem um marido jovem, belo, bem-feito... disposto a fazer carreira.

— Ele é enfadonho.

— Não tanto quanto você quer crer, a fim de fkar com a consciência tranquila... Na verdade, ele até é... bem

divertido, à sua maneira... Agradará em altos círculos. Por que vocês ambos não solicitam cargos que lhes façam

gravitar em torno do trono? As pessoas engenhosas são bem-vindas nessa roda... e as mulheres bonitas também.

— Precisa-se ter fortuna.

— Disseram-me que seus pais morreram. Você não tem sua parte da herança a receber?

Berengária Amada secou as lágrimas e começou a pensar no assunto.

— Você nos recomendaria?

— Na medida de nossa influência. Mas não conte demasiado com isso. Confie sobretudo em seus encantos e em

suas ambições. Você tem berço e agradará sem esforço. Ainda assim, poderei dar-lhe uma carta para uma velha

amiga, a Sra. de Maintenon, que é governanta dos jovens príncipes reais.

— Faria isso por mim?

— Sim! E agora pare de pensar em mim, no que sou e no que você não é. Avise seu marido e prepare a

bagagem. E não esqueça: é à porta da Sra. de Maintenon que você deve bater.

CAPÍTULO XXX

"O que você quer, Angélica?"

A chuva atravessada de sol ainda caía quando ela chegou ao solar de Montigny.

Ao penetrar no apartamento de Joffrey, atirou para trás o grande capuz do manto, e seus cabelos perolados de

umidade, as faces molhadas, acentuaram o efeito de frescor e vivacidade que emanava de sua pessoa.

Sem saber por quê, pareceu-lhe incrível topar com Joffrey de Peyrac ali à sua espera.

— Ah, como ansiava por vê-lo! — exclamou ela. — Contei os minutos que me separavam deste encontro!

— E por que não o antecipou?

— Sabia que você estava muito ocupado e solicitado por mil tarefas, agora que...

— Que inibição súbita foi essa que a acometeu?

— Queria ter certeza de que o encontraria.

— Que novidade! Que eu saiba, nunca antes você teve dificuldade- para me encontrar pela cidade ou para me

achar, onde quer que eu estivesse, no momento em que desejasse isso...

— Eu também queria ter certeza de que você disporia de uma hora para mim.

— Que significa essa linguagem? Tornei-me um ministro para você, em cuja antecâmara você tem que fazer

fila? Graças a Deus ainda não chegamos a esse ponto! Angélica caiu na risada.

— Sim, graças a Deus! Ainda não-estamos'em Versalhes.

E o olhar encheu-se com a imagem dele. Graças a Deus! Ele ainda era dela. Ainda podia preservá-lo, retê-lo.

A luz suave do sol que entrava pela janela, filtrada pelas folhagens, dava doçura à jovialidade de seu rosto

moreno, à alegria mordaz de seu olhar caloroso.

Naquele halo irradiante, ela o imaginou, como na visão que a assombrava desde a manhã, no momento em

que ele estaria diante do rei, por entre o cintilar dos espelhos, dos ouros e mármores daquele palácio construído

para a glória de Luís XIV, e sob os olhos daquela corte imbecil.

Num impulso, correu para ele, rodeando-o com os braços.

— Oh, meu querido! Meu querido! Não, nunca! E impossível! Meu amor!

Enfiou o rosto nas dobras da roupa dele e estreitou-o como se se agarrasse ao único pilar inabalável a

permanecer sólido enquanto a terra tremia, a única árvore desenraizável na tempestade, a única bóia no mar

enfurecido. Refugiava-se contra o coração dele, na obscuridade do bem-estar e do odor tépido e familiar que

emanava dele, seu perfume de homem, que o descrevia de modo sutil mas imperioso e vivo, e inebriava-se

como com os mais capitosos perfumes do Oriente, que turvam o espírito e os sentidos. Entre os braços dele, o

que respirava era todo o encanto de sua vida comum, de seus abraços maravilhosos e da felicidade e dos

sofrimentos que conhecera por causa dele, e que a atordoavam e a faziam desfalecer, aniquilando-lhe o pensa-

mento.

Ele a apertou mais firmemente contra si, como que pa^a^mpará-la e convencer-se de que ela estava ali,

refugiada nele. Angélica sentiu que o rosto dele se inclinava e que ele pousava a face contra seus cabelos.

— Então — disse ele —, o rei não desiste?

— Não desiste — exclamou ela, desesperada. — Ele me quer! Quer a mim!... Não desiste e não desistirá

nunca...

— Será que confesso que o entendo e que no seu lugar faria o mesmo?

Angélica soltou um gemido consternado.

— Mas tudo isso é muito sério, Joffrey. Não há de que gracejar.

— Quanto a mim, não vejo aonde está a tragédia.

— Mas você não entende? Ele exigirá que eu viva em Versalhes, que eu esteja presente o tempo todo, que

assista a todas as cerimónias e que lhe dê minha opinião em tudo, que eu seja a mais bela, a mais ataviada, a

mais invejada, admirada...

— E essas perspectivas de uma soberania sem igual não a encantaram?

— Já provei desses encantos! Na verdade, eu voltaria a Versalhes com alegria, pois não se pode imaginar nada de

mais belo, sedutor, encantador, sim, do que o que esse rei, filho do sol, soube criar para o prazer dos olhos, a

volúpia de viver, para oferecer aos que o cercam o que há de mais refinado e mais novo na expressão das artes e

das festas. Mas terei que pagar demasiado caro pelo gozo desses prazeres. O rei me cobrirá de presentes e

favores, de honrarias e privilégios, a ponto de não me deixar respirar...

— Nem de poder correr para onde lhe dê vontade, entendo... Mas você não estará carregando nas tintas? O rei,

prudente como é agora, não poderia contentar-se em vê-la, aceitar que você seja apenas um dos adornos de sua

corte, sem outras exigências?

— Não! Não creio. Conheço o rei. A constituição e o orgulho dele não o tornam um apaixonado que se

contente com sorrisos, lisonjas e esquivadelas. De resto, tenho muita estima pelo reinara jogai- com ele esse

jogo desonesto... e perigoso. Eu não seria hábil nisso... Logo ele saberia que não é amado conforme deseja, rão

poderia suportar... e tudo recomeçaria...

— No entanto — disse Peyrac, com ar pensativo —, pressinto que ao longo dos anos a paixão do rei se tornou de

natureza tão ávida e transcendente, que ele deve estar disposto a todas as concessões simplesmente para revê-la. E

talvez revê-la somente uma vez.

— Ele deve imaginar isso... mas sei que se ilude... E uma vez que a armadilha se feche sobre nósv ele há de

querer sempre mais.

De súbito ela se afastou do marido, assustada. "

— Devo compreender que você está disposto a entregar-me ao rei com o coração em paz? Ah, você já não me

ama! Eu sabia. Pois bem, vá embora! Vá! Vá retomar seus feudos. Não o acompanharei...

Depois se atirou aos braços dele, apertando-o de novo.

— Não! Não! Eu não poderei... Aonde você for, irei junto... Onde você ficar, ficarei... aconteça o que

acontecer... Mas não quero viver sem você.

Joffrey de Peyrac fechou os braços à volta dela.

— Não trema assim, meu amor — disse. — Quis provar seu apego a mim... Os deuses, então, não me foram

desfavoráveis até o fim, pois, dando-me um rival mais feliz do que eu em tudo, marcaram-no com uma

desgraça irrecorrível: ele não lhe agrada. A fagulha misteriosa arde ou não arde. Todo o ouro do mundo não

pode comprá-la. O rei, hoje, é sincero. No momento, ele se acredita mais capaz de abnegação do que se

mostrará quando você estiver à sua frente. E você tem razão de não se iludir... e de prever os perigos que

decorrerão dessas disposições ambíguas.

— Mas o que vamos fazer?

— Tudo depende de sua vontade, minha cara. E fique certa de que nada lhe forçará a vontade. Ficar? Partir?

Você é livre para decidir. E sua decisão será a que me convirá, pois considerarei seu julgamento como o sinal

do que é justo, equânime, prudente e feliz. Assim fazem os guerreiros iroqueses, quando o conselho de

mulheres decide pela guerra ou ± pela paz, ou acerca de irem de um lugar para o outro, abandonarem uma

aldeia para construir uma nova, separação entre famílias, entre tribos, a época de repousar ou de viajar... todas

as decisões são aceitas pelo homem, pois a mulher está ligada aos astros e às forças telúricas, e por isso é

"avisada", mais do que o bravo, que nasceu para combater... E verdade que desconfio de que essas senhoras às-

vezes se aproveitam da docilidade de seus guerreiros para contentarem uma vontade de se porem em

movimento, uma necessidade de visitar amigos distantes, ou essa curiosidade irresistível que nos impele a ir ver

se o milho não cresce mais dourado do outro lado daquela montanha... Mas esses caprichos com certeza fazem o

encanto das mulheres.

— E... e você? — balbuciou ela. — Suas intenções? Seus projetos?

— Dependem de seu bel-prazer.

— E se eu quiser retornar a Versalhes?

— Acompanhá-la ei...

— Apesar de todos os perigos?

— Apesar de todos os perigos...

— E o tédio dessa vida tão pouco feita para você?

— Você é que é feita para mim e nunca me entedia. Ouça... Ninguém pode acusar-me de haver desperdiçado

meus talentos, de não tê-los feito frutificar. Travei todas as lutas e concedi-me todas as satisfações com que um

homem pode sonhar. Se hoje a satisfação de vê-la, viver ao seu lado, tê-la perto de mim para a felicidade dos

meus dias e noites domina as demais, não me privarei dela.

Segurou o rosto dela entre as mãos.

— Aonde você for, irei! Onde você ficar, ficarei!

— Você está louco! Homem algum pode usar uma linguagem dessas.

— Por quê? Em nome de que tolice? Não satisfiz inúmeras vezes as concessões que a servidão de amo impõe? A

vida recomeça incessantemente. Mas também sei que ela não é infinita... Abre-se uma nova página para nós...

Não é um direito meu só querer vivê-la com você, sem perder um instante de você?

Ela o fitava com ar incrédulo, quase esgazeado.

— Cabe a você decidir — repetiu ele. — Pronuncie-se, Angélica!

Angélica teve bruscamente a impressão de que no fundo de si mesma uma porta se abria, como que empurrada

por um vendaval fresco e cheio de sol. Nessa claridade, enxergou o que desejava. Joffrey insistiu.

— Falei! O que você quer, Angélica?

CAPÍTULO XXXI

O destino daquele lado do oceano

— Fiquemos na América — disse ela. — Temos amigos aqui, gente que precisa de nós, que precisa de sua ciência e

de sua boa vontade. Quando eu sentir muita saudade da França, virei a Que-bec, e a Sita. d'Houredanne lerá para mim

os últimos mexericos de Versalhes. E também temos que ir a Salem, a Nova York e a Oran-ge. Pois Utakê me aguarda

nas Cinco Nações. Sei que me espera para me mostrar o vale dos Cinco Lagos. Como foi que pude esquecer por um

único instante a esperança daquele pobre índio?

— Iremos.

— E depois, eu gostaria de que tivéssemos outro filho.

— Teremos!

Compreendendo então que o que acabava de dizer selava o destino de ambos daquele lado do oceano, Angélica

fechou os olhos e abandonou-se nos braços dele, quase desfalecendo, sem entender se a onda que a erguia e

carregava provinha de uma sensação cruel ou deliciosa. Novamente a Europa se distanciava, como uma balsa grande e

pesada, por entre névoas densas, que ela sentia hostis, insalubres.

Pensou, com um sentimento de vitória: "Assim, ele não irá a Praga!" E aos poucos tornou-se-lhe claro o

significado do que acabava de acontecer.

O homem a quem estreitava nos braços jogara numa balança com desenvoltura tudo o que lhe constituía a vida, tudo

o que podia tentá-lo, parecer-lhe desejável, num sentido ou noutro, promissor.

Não se desinteressava de suas obras. Estava disposto a dar-lhes prosseguimento, onde quer que estivesse, mas

proclamava que a única coisa que contava para que ele decidisse acerca do caminho a tomar seria o que ela,

Angélica, decidisse, porque para ele somente ela contava.

Angélica ouviu-se rir, um riso cascateante, tão alegre e espontâneo, que chegou a surpreendê-la.

— Estou louca, rindo assim. O que acontece comigo?

— E o riso da felicidade — disse ele. Inclinou-se e examinou-a, com uma ternura infinita.

— Gosto tanto de ouvi-la rir... Durante muito tempo isso foi muito raro.. Depois, aqui, é cada vez mais frequente eu

vê-la alegre... Mas esse riso, é a primeira vez que o ouço... É o riso da alegria de amar, da alegria de ser. Jorra

irresistível, quase a contragosto. Significa que, dentro de você, alguém quase desconhecido acaba de receber uma

resposta de amor, aguardada sem esperança, uma certeza de que duvidava, e que lhe provoca... Uma libertação.

— Sim, é verdade. Tenho que conter-me para não rir a ponto de perder o fôlego.

— E o riso das mulheres quando levantam vôo.

— Ah! Você sabe demais acerca de mulheres!

— E que as tenho todas numa só: você!

Uma libertação... Oh! Maravilha! Mas que somente ele e ela podiam entender.

— Oh, Joffréy, estamos loucos! Rimos, e no entanto não acabamos de desencadear a cólera do rei sobre nós?

— A cólera do Olimpo, você quer dizer, como aqueles amantes demasiado carnais e demasiado absortos um no

outro, que, na adoração mútua, esquecem a adoração que devem aos deuses, abandonados lá em cima nas suas

nuvens, amantes imprudentes que atraem sobre si raios vingadores.

— Joffrey, estou com medo. É verdade, sinto-me desvairada de felicidade e como que ébria, mas não posso

deixar de avaliar as consequências de nosso gesto. É fácil dizer que renunciamos, que não reveremos o reino da

França, não retornaremos ao país de nossa infância e de nossa juventude, não reconstruiremos nossas casas em ruínas

e seremos felizes um com o outro. Mas o rei nos aguarda. Cumulou-nos de favores. Podemos esquivar-nos, depois de

termos sido objeto de uma reabilitação tão estrondosa? Ele não duvida um instante sequer de que atenderemos a

seu chamado, no mínimo para agradecer-lhe e manifestar-lhe nosso reconhecimento. Notei que não se exige

nenhuma cerimonia de vassalagem de sua parte... nem da minha, mas ele espera que o Conde de Peyrac vá

retomar posse de seus bens, e eu, de minha renda. Para nos reinstituir em nossos direitos, um sem-número de

papéis deve ter sido exumado, examinado, assinado, contra-assinado, uma quantidade de leis devem ter sido

proferidas, contornadas, e o foram, porque o rei assim exigia. Como é que ele vai suportar nossa rebeldia? Desde

hoje de manhã que reviro esse dilema na cabeça, inutilmente. Talvez mais ainda do que a não nos ser, ele será

sensível à afronta que lhe infligiremos, fazendo pouco-caso de sua generosidade e de sua clemência. E como es-

capar às manifestações incalculáveis de seu rancor, ainda que seja somente para conservar viáveis, aqui na América

nossas alianças e o fruto dos nossos labores?

Desta vez Joffrey não pareceu tomar as observações dela com superficialidade.

Separaram-se, e ela foi sentar-se numa das grandes poltronas, enquanto ele refletia, caminhando de um lado para

o outro.

— De fato! — aquiesceu. — Não se recusa do perdão de um rei, não se faz pouco-caso de sua magnanimidade. Não

se considera como negligenciáveis o tempo e os cuidados que ele dedicou ao exame de nosso caso sem ofendê-lo

gravemente. Também pensei nisso. Como não responder ao convite, perguntei a mim mesmo, e não feri-lo com a

recusa de seus favores? Acrescenta-se a isso um debate inextricável, pois se desdenhamos o que ele nos devolve,

deixaremos bens abandonados, cargos desocupados, uma desordem a que não se pode remediar rapidamente e pela qual

o rei será responsabilizado... A cólera dele é inevitável... A menos que...

Foi até a janela, debruçou-se, como se espiasse alguém. E voltou.

— Pensei nisso e creio haver concebido um plano que, ao mesmo tempo que nos reserva nossa liberdade, poupará

seu amor-próprio de soberano. Alguém vai trazer-me a solução.

Debruçando-se à janela, soltou uma exclamação satisfeita.

— Ei-lo aqui!

CAPÍTULO XXXII

O mensageiro do futuro

Poucos instantes depois, um passo firme ressoou nas lajes do vestíbulo. Pernas ágeis escalaram os degraus da

escada, a porta abriu-se com um impulso e à soleira surgiu Florimond.

— Mandou chamar-me, meu pai?

Joffrey de Peyrac sorriu-lhe. Foi ao encontro do filho e postou-se diante dele, examinando a fisionomia franca

e corajosa do rapaz que nos últimos anos o assistira em seus trabalhos e expedições.

— Meu filho, o rei da França nos devolveu nossos títulos, terras e fortuna. Não direi a glória, pois nossa

glória, nós a ganhamos nas estradas do mundo. Quanto às honrarias... Confesso-lhe que as honrarias e os cargos

que me aguardam em Versalhes não me parecem convir a um cavalheiro de aventuras, acostumado a dever sua

fortuna somente a si próprio e a não conhecer amo. O homem que me tornei... O sucesso dos trabalhos que

empreendo por gosto compensa para mim as mais lisonjeiras manifestações de deferência. Gosto de que meu

renome advenha de meu próprio valor e não do valor daquele que me protege. Por outro lado, acredito que o

zelo e o ardor de uma vida que começa se acomodariam muito bem com as mesmas honrarias e cargos. A

versatilidade convém à juventude, quando esta tem a inteligência de reconhecer que tem tudo por aprender.

Você é meu herdeiro. Provou sua valentia em inúmeras ocasiões. A experiência lhe permitiu adquirir a

sabedoria a que aludi, saber calar e falar na hora certa. — O conde continuou: — Não há necessidade alguma

de esperar pela minha morte para que desfrute sua herança e receba a responsabilidade do título e do feudo.

Basta que eu os coloque voluntariamente entre suas mãos. Foi o que fiz, nestas páginas que aqui você vê,

abdicando em seu favor de tudo o que possuo na França. Você está muito mais habilitado do que eu, hoje, para

ocupar junto ao rei os cargos que cabem a um grande do reino. Embarcará num dos próximos navios que

zarparem. O Sr. de Saint-Castine, que retorna à França para também receber uma herança em Béarn, lhe servirá

de mentor. Pedi a seu irmão Cantor que lhe faça companhia pelo menos durante o primeiro ano. Vocês se

ajudarão mutuamente. Escolha também alguns companheiros entre os jovens de sua roda, a fim de compor sua

casa. Na França, tenho amigos tão fiéis quanto secretos, financistas, negociantes, que, avisados, porão à sua

disposição, assim que chegar, carruagens, cavalos, criados, e bolsa bem-fornida. — Então concluiu: — Levará

uma vida alegre, senhor. Mas antes de mais nada irá apresentar-se em Versalhes, para prestar homenagem ao

rei.

E, diante do rosto estupefato de Florimond, riu.

— E tempo de viver aquilo para que nasceu, jovem senhor! Seu aprendizado foi rude, mas você não

recalcitrou em forjar suas armas de fogo da adversidade. Sondou o coração cruel dos homens e, graças à

experiência, adquiriu uma fé justificada no êxito de seus desígnios e uma prudência que lhe poupará de

conceber intentos isensatos, quiméricos ou maus. Alegro-me de poder munir sua juventude com meios que

permitirão às suas forças novas mostrar de que são capazes. Sua alta linhagem e sua riqueza aumentarão o

crédito que sua boa aparência lhe atrai. Serão inúmeras as borboletas a vir debater-se à volta de uma chama tão

bela. Entre elas você saberá escolher seus amigos e amores. Pois também me alegro de pôr à disposição de sua

juventude a liberdade para gozar das belezas e dos prazeres da vida. Prazeres que você é o único a saber quais

lhe convêm e o encantam mais. Prazeres dos sentidos? do espírito? da atividade filantrópica? Inútil lembrar-lhe

que do prazer dos "belos duelos" só deve dispor com circunspecção, e consagrar ao jogo somente o que a moda

da corte exija... Pois, não se iluda, meu jovem, suas responsabilidades serão pesadas. A restauração de seus

domínios, a renovação do Lan-guedoc, o papel de embaixador do Novo Mundo, a que nunca abandonará, a fim

de que os esforços que desenvolvemos aqui no Canadá, e em nossos territórios, não fiquem à mercê de uma

política diferente. E, finalmente, a tarefa mais delicada e difícil, mas que convirá à sua reputação naquilo em

que ela deve fazer-se conhecer e crescer: restituir alegria a essa corte cujo rei, ainda jovem, deixa-se anuviar

pelo peso da etiqueta e pelas admoestações de seus jesuítas. Informei-me. O Sr. de Saint-Aignan cumpriu seu

tempo como mestre dos Prazeres do Rei. Assim que você desembarcar, faça por obter esse cargo. Não hesite

em usar intriga nem em distribuir ouro a mancheias para consegui-lo, pois você tem todas as qualidades para

exercê-lo. Haverá de brilhar tanto, que o rei, que se preocupa com seus divertimentos e com a beleza dos

divertimentos que oferece aos cortesãos, não poderá passar sem você. Viverá na corte. Será lá o campo de

batalha de seus primeiros combates... — Mas discutiremos com mais calma esses detalhes e seus projetos. Eis

os pergaminhos que o fazem Conde de Peyrac de Morens d'Irristru e de outros lugares. A partir de amanhã, por

ato do senhor governador, que representa Sua Majestade, estas decisões serão ratificadas e você entrará

legalmente na posse de seus títulos.

O discurso, que o conde desenvolvera intencionalmente, dera tempo ao adolescente para recompor-se e tomar

consciência do que o pai lhe anunciava e, pouco a pouco, de toda a mudança de vida que lhe acarretaria. Fremia

como um navio cujas velas o vento vai inflar e que retesa a corda da âncora. Entendia que ia retornar ao reino

da França, jovem gentil-homem cheio de glória, que ia rever a corte, de que conhecia engrenagens e recursos e

cuja existência cintilante lhe agradava, e que poderia caminhar entre seus pares sem temer desprezo nem

dúvida.

A alegria iluminava-lhe as feições.

Pôs um joelho em terra para receber o pergaminho que o pai lhe estendia e disse, com fervor:

— Obrigado, meu pai! Você me dá a vida pela segunda vez. Não lhe desapontarei as esperanças.

Depois, ao se levantar, seu olhar dirigiu-se para a mãe. Sorriu-lhe com aquela espontaneidade infantil que

ainda têm os seres muitos jovens, para quem o rosto da mãe permanece sempre aureolado da mesma luz. Mas

quase nà mesma hora o rosto se lhe anuviou e a expressão radiosa foi substituída por outra majs grave. Depois

de pousar os documentos sobre a mesa e meditar um pouco, retprnou para junto do conde.

— Falemos com franqueza! Você me dá a vida, meu pai. Mas talvez também me envie para a morte. O rei a

quem servimos é intratável. Ora, não é a mim que ele espera. Preparando-se para receber o Conde e a Condessa

de Peyrac, ele pode considerar-se insultado pela substituição e voltar atrás em suas promessas.

— Não voltará atrás — afirmou Peyrac. — Não se desdirá, sobretudo em relação a você, um novo súdito. O

que ele talvez estivesse pronto a retomar de mim, ao menor motivo de descontentamento que eu lhe desse, a

você, vassalo dócil e submisso, ele deixará. Não seria com prazer que o rei me reveria. Eu lhe lembro gestos de

autoridade excessiva que hoje, em situação semelhante, ele evitaria. Já não sente necessidade de comportar-se

como fez no começo de seu reinado, quando se sentia fraco e temia o poderio dos grandes. Ora, nunca

gostamos de ver surgir o fantasma daquilo que, com a perspectiva do tempo e o malogro das ciladas, parece um

erro ou uma injustiça quase uma má ação que cometemos. O novo Conde de Peyrac lhe permitirá ser coerente

com sua generosidade.

— E se me mandar prender?

Florimond já se via na Bastilha.

— Não — tranqiiilizou-o Peyrac. — O rei já não pode permitir-se a essas impulsividades. Um povo inteiro o

observa... O que você teme, explorador de florestas? Você se fará anunciar, avançará pelo meio da corte, belo e

magnífico, seguido de teu irmão e dos jovens de sua casa, todos magnificamente vestidos, de espada pendendo

à ilharga, e de alguns gentis-homens, filhos mais novos de boas famílias, cujos serviços você contratará e que

envergarão as cores de sua libré. A sua passagem um murmúrio de admiração e lisonja se erguerá, e antes

mesmo de você ter chegado diante de Sua Majestade, a maioria dos presentes já estará a alegrar-se com seu

regresso à corte. Você há de inclinar-se diante do rei e lhe entregará esta missiva, que lhe transmite a minha

resposta. O teor é mais ou menos este, de modo resumido:

"Sire, tocado pelos efeitos de sua generosidade, acreditei não poder fazer melhor para provar-lhe minha

gratidão do que enviar-lhe meu filho. Nele lhe envio a juventude, Sire, em lugar de um homem que outrora teria

de bom grado dispensado as próprias forças a seu serviço, mas que foi forçado a dispersá-las pelos caminhos da

adversidade em tarefas que o tornam pouco apto a cumprir, hoje, junto a Vossa Majestade, os deveres de um

homem de corte. Em compensação, corre sangue novo nas veias do Conde Florimond de Peyrac. Este já

aprendeu, em sua corte, a conhecer, amar e admirar seu soberano. Considera-se o mais humilde e penhorado de

seus súditos, e nele terá um gentil-homem de boa raça, desejoso de agradá-lo, feliz por viver sob sua irradiação

e apto a servir-lhe com devotamento, habilidade e prontidão..."

— O rei se deixará lograr?

— O rei nunca se deixa lograr... Mas... é diplomata. Aqui na América, conservo a possibilidade de tornar-me

um inimigo da Nova França, caso me considerem como tal, a mim ou ao meu filho. Enquanto em caso contrário

coloco entre as mãos dele, através das suas, uma província dócil, o Languedoc, e a seu serviço um auxílio

financeiro no Velho e no Novo Mundo. Ele não dirá nada... Reconhecerá o gesto... e pesará a vantagem que

pode extrair disso na qualidade de rei da França. Quando o vir, saberá de imediato que prefere esse Conde de

Peyrac ao outro.

— Que seja! — concedeu Florimond. — Admitamos que, passado o primeiro momento de surpresa, e depois

de tomar conhecimento de sua carta, o rei se satisfaça e até se alegre de me ver à sua frente em seu lugar. Na

verdade, o rei não me inspira receio algum. Ele e eu temos recordações comuns. Fui pajem em sua corte. E em

quantas festas não permaneci a seu lado, quase a servir somente a ele, não hesitando em lançar-lhe uma

reflexão que o divertia, pois ele gosta de que o distraiam e aprecia a ousadia dos jovens pajens, contanto que

aliada ao respeito e à rapidez no serviço. No acampamento de Tabaux, fui seu copeiro, coisa que ele solicitou

expressamente. A memória dele é surpreendente. Há de reconhecer-me e não duvido que se sinta tocado.

Primeiro, por mim, pois é afeiçoado aos que gravitam ao seu redor e nota até os -mais humildes dos que o

servem com gosto. Mas também será tocado porque sabe de quem sou filho. Florimond suspirou

profundamente. Voltou-se para Angélica.

— Eu era só umá criança, mas sabia muito bem para quem se dirigiam os olhares do rei. E não creio que me

engane afirmando que é sobretudo a você, minha mãe, que ele quer rever. E quando não vir chegar aquela a

quem espera, sua cólera não poderá ser proporcional à sua decepção?

— Sua cólera não explodirá diante da corte — disse o conde. — Não faz parte dos modos do rei. Ora, você

estará de joelhos diante dele, para a "confissão" e a "homenagem". Não se ataca um homem ajoelhado. Você

pronunciará seu juramento de vassalagem. Ele receberá suas mãos nas dele. Receberá a você, Florimond,

.Conde de Peyrac. E depois que o houver recebido, você poderá levantar. O rei é nobre. Ama a coragem. Então,

você não temerá fitá-lo nos olhos, por mais terrível que seja o clarão que neles descubra. Você o olhará sem

insolência, mas direto, com franqueza, com interesse pela sua pessoa e com amizade, não como a um monarca

todo-poderoso cuja cólera você receia, mas como ao homem que ele será naquele instante, violentamente

emocionado com uma decepção que ele não pode manifestar diante dos mil olhos que o observam...

A voz de Peyrac diminuiu de tom, para ser ouvida apenas pelo filho.

— Há que ter piedade dos príncipes, Florimond, como de todos os homens, e você não deve nunca deixar de

confraternizar com as incertezas deles. Ao se levantar, você tomará cuidado para não ser afastado pelos

importunos. Ficará o mais perto possível dele, e as palavras que ainda terá a pronunciar serão ouvidas somente

por ele e não pelos curiosos que se acotovelam avidamente à volta. A meia voz, em tom premente, você dirá:

"Sire, poderia encontrar Vossa Majestade em particular? Pois tenho notícias de minha mãe, a Condessa de

Peyrac".

— Bem! — disse Florimond.

Antevia a cena em que seria o ponto de mira dos olhos dos cortesãos, ciumentos e invejosos, e com a

perspectiva desse confronto com o rei já se sentia tão excitado quanto para um duelo.

— Bem! Continue, meu pai, por favor.

— Suponho que a partir desse momento essas poucas palavras começarão a serenar no coração do rei os

turbilhões violentos de que ele é presa. Ele retomará seu papel. A corte se porá em movimento de novo. Talvez se

vá visitarmos jardins. Mas prevejo que o rei não tardará a desvencilhar-se dos importunos e encontrar diversas

razões para retirar-se, e levar a você, e somente a você, para a solidão de seu gabinete de trabalho.

— E o que lhe direi, meu pai? O que lhe direi em segredo?

O conde passou um braço pelos ombros de Florimond e levou-o até a janela.

Eram do mesmo tamanho, e as silhuetas, recortando-se escuras contra a claridade estival, revelavam ao mesmo

tempo a semelhança e a diferença de ambos. A do pai, que oferecia um aspecto mais abrupto, hesitante entre a

robustez e a magreza, um corpo grande e vigoroso, talhado em ângulos rudes, mas com uma elegância de atitude

onde se lia um desafio, o desafio que desde a infância o homem chamado Joffrey de Peyrac não cessara de

proclamar, a fim de obrigar o corpo marcado de ferimentos a dominar o infortúnio, a ponto de ele se haver tornado

mais forte, mais ágil e atraente do que outros mais favorecidos pela sorte. Perto dele projetava-se, delicada, a

longa forma intacta do jovem, toda nova na sua perfeição.

E eram ambos tão cheios de ardor e vida contidos, que a simples vista de seus ombros próximos causava uma

corrente de alegria e de confiança no que empreendiam.

Peyrac contemplou, sem vê-las, as grandes distâncias impávidas. Depois, imperceptivelmente, virou a cabeça e

fitou o fino perfil do rapaz, que a luz cinzelava como no bronze de uma medalha.

Seu filho! Que aos treze anos enfrentara grandes perigos para encontrá-lo!

Sentiu-se inebriado. Embriaguez de viver! Embriaguez de amar e ser amado! Embriaguez de ver um jovem

prosseguir o' cami1 nho e incumbir-se de uma parte dos sonhos, ambições e esperanças do pai.

Ele, Joffrey de Peyrac, atingia com surpresa, mas também com deleite, um ponto de sua existência que se abria

sobre uma página ainda mais confusa e indecifrável do que as outras, que ele só sabia que viveria afinal, sem

apelação e sem dividi-la, com a mulher que adorava.

Os dons da felicidade são furtivos. Há que estar à espreita e não ignorar o relâmpago que bruscamente jorra do

céu e rios ofusca, nem ignorar que o instante só costuma ter valor quando é vivido, serri ser embaciado com

pensamentos sobre o amanhã, nem querer garantir-lhe a perenidade, pois tudo se encontra em movimento...

Florimond, por sua vez, desviou os olhos do horizonte e, voltando-se para o pai, sustentou aquele olhar escuro

e luzidio, onde se emboscavam todos os desafios, todas as audácias, e que por isso era mais alegre.

— O que direi ao rei? — insistiu o menino. — O que lhe direi, meu pai, em segredo?

A mão de Joffrey de Peyrac aumentou a pressão sobre o ombro delgado a fim de atraí-lo para mais perto e,

com a doçura que teria dispensado a uma mulher, pousou os lábios sobre a têmpora do jovem paladino, do

mensageiro que levava consigo os rebentos do futuro.

— Você lhe dirá — murmurou —, você lhe dirá que ela voltará um dia!

Ordem ideal de leitura das aventuras de Angélica:

1. Os Amores de Angélica

2. O Suplício de Angélica

3. Angélica e o Príncipe das Trevas

4. A Vingança de Angélica

5. Angélica e as Insídias da Corte

6. Angélica, a Favorita do Rei

7. Angélica e o Pirata

8. Angélica, Cativa no Harém

9. Angélica, Rebelde Guerreira

10. Angélica, Clandestina... Maldita

11. Angélica no Barco do Amor

12. Angélica no Fim do Arco-Iris

13. Angélica na Floresta em Chamas

14. Angélica e a Caçada Mortal

15. Angélica e Seu Amor Proibido

16. Angélica Ultrajada

17. Angélica e a Duquesa Diabólica

18. A Satânica Rival de Angélica

19. Angélica e o Complô das Sombras

20. Angélica, Rainha de Quebec

21. O Inesquecível Natal de Angélica

22. Angélica e o Perdão do Rei

No próximo volume

Angélica e as Feiticeiras de Salem

Angélica e o marido, o Conde Joffrey dePeyrac, perdoados por Luís XIV, reintegravam-se com todas as honras ao

reino da França. No entanto, a despeito da magnanimidade do Rei-Sol, seria seguro afirmar que jamais voltariam a

pisar em solo europeu? Só o tempo diria.

Por ora, cabia à pertinaz Marquesa dos Anjos e ao grande amor de sua vida solidificar os laços de amizade na

América e cuidar de seus domínios constantemente ameaçados. Wapassu os aguardava com a promessa de

felicidade.

No próximo número, Angélica e as Feiticeiras de Salem, numa passagem pela famosa cidade da caça às bruxas,

grandes surpresas aguardam nossa intrépida heroína. Na Nova Inglaterra, ela terá de superar momentos decisivos,

ameaçada entre a vida e a morte, sob a influência de criaturas excepcionais.

ANNE E SERGE GOLON

OS AUTORES:

ANNEE SERGE GOLON

Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Changeuse, em Toulon (Fiança), em

1928. Çonheceram-se e casaiam-se na Africa, para onde Anne, com o dinheiro de um premio literário, viajara como

jornalista. Serge era uma celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso

continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de estanho em Katanga (Zaire).

Atraída por sua rama, Anne resolveu entrevistá-lo

De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a ideia de escrever uma novela histórica ambientada no século XVII:

Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na

infância.

O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os autores a produzirem

novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos para o cinema, fizeram da heroína uma das

personagens mais famosas do mundo.