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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDCAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL A MEDIAÇÃO E O DESAFIO DA COMPLEXIDADE Salomão Lopes Teixeira Fortaleza - CE Julho - 2007

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZUNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFORCENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDCAS - CCJPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A MEDIAÇÃO E O DESAFIO DA COMPLEXIDADE

Salomão Lopes Teixeira

Fortaleza - CEJulho - 2007

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SALOMÃO LOPES TEIXEIRA

A MEDIAÇÃO E O DESAFIO DA COMPLEXIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Lília Maia de Morais Sales.

Fortaleza - Ceará2007

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SALOMÃO LOPES TEIXEIRA

A MEDIAÇÃO E O DESAFIO DA COMPLEXIDADE

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Nome do professor orientadorUNIFOR

_____________________________________________

Nome do professor examinadorUNIFOR

_____________________________________________

Nome do professor examinadorUFC

Dissertação aprovada em:

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Dedicoeste modesto empreendimentoaos meus pais — Santos e Cristina —,à minha mulher, Alcione,e ao meu filho, Davi;símbolos de integração e construtividadeem minha vida.

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RESUMO

A presente pesquisa discute a mediação consensual de conflitos. Anima-se da suspeita de que os elementos em jogo nas disputas, ao envolverem pessoas, interesses, sentimentos e poder, desafiam soluções que tendem à complexidade. Procura verificar como o pensamento complexo pode alentar a mediação. Das nascentes de uma noção e outra, tenta compor um quadro cuja moldura busca refletir uma epistemologia nova, capaz de fortalecer o homem na construção de soluções para seus conflitos interpessoais. Se a mediação se investe do intuito de pacificação compartilhada, de uma visão integradora dos saberes e de uma aposta no potencial humano de conquistar autonomia e evolução, seria a complexidade, entendida como meio de alavancar a coexistência, o desafio a enfrentar?

Palavras-chave: Mediação. Conflito. Complexidade. Sistema. Construtividade.

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ABSTRACT

The present research argues the mediation consensual of conflicts. It is livened up of the suspicion of that the elements in game in the disputes, when involving people, interests, feelings and power, defy solutions that tend to complexity. Search to verify as the as the complex thought can activate the mediation. Of the springs of a notion and another one, it tries to compose a picture whose frame will search to reflect a epistemologia new, capable to fortify the man in the construction of solutions for its interpersonal conflicts. If the mediation if invests of the intention of shared pacification, of a vision integrator of knowing them and of an appositive one in the human potential of win autonomy and evolution, it would be the complexity, understood as half of work the coexistence, the challenge to face?

Key-words: Mediation. Conflict. Complexity. System. Construtividade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 9

1 NOÇÕES PRELIMINARES........................................................................................... 13

1 NOÇÕES PRELIMINARES................................................................................................. 13

1.1 Mediação como tema complexo .................................................................................. 13

1.2 O que é conflito.............................................................................................................17

1.3 A cultura matrística.......................................................................................................18

1.4 A cultura patriarcal....................................................................................................... 19

1.5 O efeito mental da mudança de cultura.........................................................................19

2 AS PERSPECTIVAS GANHAR/PERDER E GANHAR/GANHAR............................ 23

2 AS PERSPECTIVAS GANHAR/PERDER E GANHAR/GANHAR.................................. 23

2.1 Conflito e poder............................................................................................................ 23

2.2 Entre jurisdição e mediação ......................................................................................... 25

2.3 Entre dogmas e dúvidas................................................................................................ 29

3 UMA NOVA EPISTEMOLOGIA?.................................................................................33

3 UMA NOVA EPISTEMOLOGIA?.......................................................................................33

3.1 Entre receber pronto e construir....................................................................................33

3.2 Entre o bem e o mal dos conceitos................................................................................42

3.3 Entre a disciplina e a transdisciplina.............................................................................44

4 O PODER TRANSFORMADOR....................................................................................47

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4 O PODER TRANSFORMADOR..........................................................................................47

4.1 A mediação que “empodera”........................................................................................ 47

4.2 Esclarecer a função....................................................................................................... 47

4.3 Não julgar......................................................................................................................48

4.4 Respeito às partes em conflito...................................................................................... 49

4.5 Encarar emoções........................................................................................................... 50

4.6 De frente com as contradições...................................................................................... 52

4.7 O presente do conflito interligando passado e futuro................................................... 58

4.8 Visão de conjunto (sistema)..........................................................................................62

5 A COMUNICAÇÃO ABRANGENTE....................................................................... 72

5 A COMUNICAÇÃO ABRANGENTE............................................................................. 72

5.1 A prática comunicativa da vida.....................................................................................72

5.2 A comunicação abrangente .......................................................................................... 77

5.3 O abraço das mudanças ................................................................................................83

6 APOSTA DEMOCRÁTICA ......................................................................................89

6 APOSTA DEMOCRÁTICA ............................................................................................89

6.1 Entre a universalização e a particularidade...................................................................89

6.3 A convivência............................................................................................................... 96

6.4 Balanço autopoiético.....................................................................................................99

CONCLUSÃO.................................................................................................................. 102

CONCLUSÃO........................................................................................................................ 102

REFERÊNCIAS................................................................................................................106

REFERÊNCIAS......................................................................................................................106

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INTRODUÇÃO

É do pensamento a animar a mediação, nos conflitos interpessoais, que se ocupa esta

pesquisa. O ser humano, os vários mundos que o cercam, suas necessidades e possibilidades,

tudo se faz enredar numa trama de relações conflituosas. Suspeita-se que o modo complexo de

pensar o homem e o mundo é capaz de fornecer elementos para assunção da não

adversariedade, pacificação, solidariedade, transversalidade dos saberes e alteridade propostas

pela mediação.

Será a complexidade, na sua missão de integrar o todo e as partes, para a

coexistência dos sistemas humanos, o desafio fundamental a ser trabalhado pela

mediação? Noutras palavras: será que esta forma de compor conflitos guarda convergência

com o modo de pensar complexo? Como ocorre essa aproximação? Quais resultados esperar

dessa interação para o crescimento humano? Estes são problemas e ao mesmo tempo

objetivos deste trabalho, postos à análise e discussão.

O trabalho se desdobra em seis capítulos.

No primeiro, chamado de noções preliminares, colocam-se o conflito, o homem, o

mundo e suas relações no campo da complexidade. A tentativa empreendida, a esse propósito,

levou a recuo no tempo, em específico a períodos do patriarcado e da matrística. A intenção

é a de demonstrar que o fenômeno cultural perpassa tudo, que não se pode prescindir da

cultura para alicerçar nenhum tipo de conhecimento. No presente caso, mais ainda, por tratar-

se de conflituosidades, de raízes fincadas na complexidade do agir humano e de sua história.

Afora esse recuo no tempo, experimentado apenas para colocar os termos em que a pesquisa

busca dirigir-se, os temas aqui tratados são de índole contemporânea. Mediação consensual

nem sequer chegou ainda a institucionalizar-se no Brasil, embora já disponha de projetos de

lei nesse sentido. Complexidade, por sua vez, tem-se apresentado como instrumento

recentíssimo, fomentador de religação de saberes, mercê de encaramento da vida à forma de

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“tecido”, em que tudo se correlaciona. Mais que isto: em que tudo depende de tudo e se

complementa.

No segundo capítulo, faz-se menção às perspectivas ganhar/perder e

ganhar/ganhar. A abordagem centra-se no jogo de forças empregado na atuação dos

conflitantes quando lidam na defesa de seus interesses. A luta que almeja a destruição do

contendor e a vitória de um só dos lados corporifica o paradigma ganhar/perder. A

transcendência da visão linear, pelo compartilhamento de ações leva ao ganho mútuo das

partes envolvidas, ao ganhar/ganhar. Começa-se a adentrar o manejo dos elementos que

podem integrar os sistemas de solução de conflitos. Propõe-se, a essa altura, comparar o

funcionamento de dois sistemas, o da mediação (extrajudicial) e o judicial, para demonstrar as

conseqüências do modo de atuar de cada um deles.

No terceiro capítulo, o trabalho orienta-se como uma nova epistemologia. Atinge-se,

a esse ponto, o quase convencmento de que a quebra de paradigmas que a mediação enseja, na

solução de problemas, aponta para a construção de um saber versátil, capacitador do homem,

que não pode simplesmente limitar-se ao conhecimento que lhe é anterior, tido como pronto,

fixo, bastante e imutável. Impossível não perceber a mudança de paradigma ou a quebra de

algumas lógicas com que são tratadas as matérias no sistema judicial comum.

Designa-se o quarto capitulo de o poder transformador. A mediação, ao assumir o

status de saber, colabora para a facilitação da vida dos conflitantes. Mesmo encarnando a

feição de um não-poder (pois visa desencorajar qualquer atitude de violência, hierarquia de

posições e normas incompatíveis com a paz), pode a mediação desencadear nas partes o

poder de que precisam para resolução de suas contendas. Ao mediador não se atribui outra

função que não a de facilitar o fluxo equilibrado do poder das partes. Estas sim, encorajadas

pelo terceiro (às vezes tão somente lembradas do poder de que são possuidoras e das muitas

formas como podem manipular esses recursos, mentais, emocionais ou de qualquer outra

natureza), são as legítimas detentoras de seu destino.

No quinto capítulo, traz-se a comunicação abrangente. Os modos pelos quais os

conflitantes podem expressar seus desejos e metas se expandem para muito além dos códigos

e linguagens apenas simbolizados em palavras. Ao lado dos signos de representação verbal,

há uma variedade de canais propícios à comunicação. A abrangência das possibilidades de os

seres humanos interagirem, segundo esse modo de comunicação, pode atingir desde o manejo

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das ondas cerebrais até o mais recôndito da alma, dado que de dimensões múltiplas são

formados e podem, pois, estabelecer redes de contato mesmo entre os sentimentos e o ser

mais profundo.

No sexto capítulo, chega-se ao contributo da mediação para a humanidade. Aposta

democrática, por todas as possibilidades construtivistas que ensina, oferece-se aos

conflitantes como alternativa de solução compartilhada aos problemas. Dessa visão solidária,

capaz de despertar os indivíduos em litígio para a consciência de seu poder de emancipação,

pode originar-se uma conscientização maior, abarcadora dos demais indivíduos da sociedade.

Dos nortes traçados assoma o de conhecer dos recursos da mediação, tentando extrair

suas qualidades e seus fundamentos, a partir de uma percepção sistêmica e multidisciplinar

dos elementos analisados. Nesse tocante, entende-se de acentuar os papéis do mediador e dos

mediados como impregnados de complexidades, estas próprias da condição humana, para cuja

compreensão urge enveredar pelos vários campos do conhecimento – física, biologia e

ciências humanas, principalmente – numa tentativa de ligar opostos ou achar semelhanças nas

diferenças.

Meio consensual de lidar com os humanos, a mediação põe em marcha várias mudanças

dos paradigmas envolvidos nos modos de pensar problemas. Por esse aspecto, apresenta

fundamentos apreciáveis, aptos a não apenas justificar-se como um saber, no seu nível

material, mas também a apresentar-se como um saber do ponto de vista formal. Quer-se dizer

com isto que há possibilidades tanto de ver a mediação de conflitos na moldura de um amplo

conjunto de fenômenos (formadores de um modo de ser), quanto, igualmente, possuidora de

ferramentas capazes de operacionalizar soluções. Também aí, ao transitar de um aspecto a

outro, imprimindo versatilidade ao manejo de composições de problemas, pode demonstrar

algumas notas de complexidade.

A estes aspectos metodológicos, acrescentam-se as buscas teóricas e bibliográficas. A

complexidade como noção de vida dá condições a afirmar que o recorte do estudo proposto

busca abranger a universalidade espacial e temporal dos conflitos. Por isto, não se explicita

que tipo de conflito (familiar, comunitário, de organizações, escolar...) prende a atenção da

pesquisa, por se entender que a abordagem realizada, da forma como delineada (mirada nos

fundamentos da mediação) pode albergar qualquer conflito, desde que jorrados dos contatos

humanos.

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Se alguma ênfase temporal se pode esperar da pesquisa, essa decorre de observações

acerca do mecanismo de mediação, nos últimos vinte e cinco anos, no Brasil e,

principalmente, fora dele, tendo em vista que entre nós o meio de composição estudado ainda

não se institucionalizou. Quando se destaca, sempre que possível, o comparativo entre os

modelos de pensamento lineares — típicos do paradigma judicial — com os paradigmas da

mediação, mira-se o direito brasileiro, embora os fundamentos apresentados se amoldem a

grande parte dos ordenamentos jurídicos do mundo.

Dos temas estudados, brota a crença de que a mediação se oferece como ferramenta que

dignifica a Epistemologia, tantas as possibilidades que abre às questões sobre o Homem, o

Universo e Deus, no desenrolar de conflitos!

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1 NOÇÕES PRELIMINARES

1.1 Mediação como tema complexo

Os vários modos pelos quais se concebe a mediação de conflitos, mesmo a consensual,

podem insinuar tratar-se de uma instância que lida com a complexidade. Ao visar o homem,

lida no campo complexo, seja porque este se vocacione a enfeixar várias dimensões (humana,

histórica, econômica, jurídica, espiritual...), seja porque nessas noções se agite uma

enormidade de elementos, formadores de realidades diversas.

No uso cotidiano da palavra, complexo assume a conotação de “complicado”. Não é

este, entretanto, o sentido único que a palavra desperta. Aurélio Buarque a conceitua também

com os seguintes dizeres: “Complexo (cs). [Do lat. Complexu.] Adj. 1. Que abrange ou

encerra muitos elementos ou partes. 2. Observável sob diferentes aspectos. 3. Confuso,

complicado, intricado [...]”. 1

O pensamento complexo, em abordagem aqui, decorre de uma complexidade entendida

nos termos a seguir, por Humberto Mariotti:

A complexidade não é um conceito teórico e sim um fato da vida. Corresponde à multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua interação da infinidade de sistemas e fenômenos que compõem o mundo natural. Os sistemas complexos estão dentro de nós, e a recíproca é verdadeira. É preciso, pois, tanto quanto possível entendê-los para melhor conviver com eles. 2

O pensamento complexo resulta de dois outros modelos de pensar, que são o linear e o

sistêmico. Mais uma vez é Mariotti quem fala:

O pensamento linear é a tradução atual da lógica de Aristóteles. Trata-se de uma abordagem, necessária (e indispensável) para práticas da vida mecânica, mas que não é suficiente nos casos que envolvem sentimentos e emoções. Ou seja, não é capaz de entender e lidar com a totalidade da vida humana. 3

1 FERREIRA, Aurélio Buarque Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 354.2 MARIOTTI, Humberto. As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena: 2000. p. 87.3 Ibid., 2000. p. 348.

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Ao pensamento se podem associar as formulações de René Descartes. Esse filósofo,

com enfatizar uma concepção unidirecional da realidade, forma pontos de apoio ao

conhecimento dito científico, ainda preponderante em muitas sociedades.

Descartes desenvolveu o mecanismo de separação entre o sujeito pensante e a coisa

pensada. “Penso, logo existo”. Aí está a dualidade. Espírito/matéria. Mente/corpo. Tal

concepção se importa em praticar uma verdade a partir de pontos de vistas que respeitem a

separação dos elementos.

O que pensa (sujeito) e o objeto (coisa pensada) ganharam autonomia. A noção

empunhada pela teoria disjuntiva dessas instâncias é de que podem existir independentemente

uma da outra. No campo jurídico, a partir dessa visão, uma norma que se aplique a dada

realidade, pode existir isoladamente do mundo dos fatos que a exigiu.

A forma se separação, ao conferir independência aos elementos dos sistemas, ensejou

compreender que a parte é mais importante que o todo. Da análise tão só dos elementos se

pode chegar ao conhecimento do conjunto. Não haveria necessidade de conhecer das relações

entre uma noção e outra para se alcançar a verdade procurada. Disto adveio a conseqüência da

simplificação.

O conhecimento, possível de condução por modos isolados (experimentado por diversas

áreas fragmentadas: biológicas, físicas, humanas...) passava a não ostentar necessidade de

relações. Isolados no início, os saberes alcançaram a simplificação em seguida.

Um conflito interpessoal, orientado por uma lógica tal, pode gerar mais tensões. Mesmo

quando seja possível, por esse modo, resolver-se algum dissenso, nada garante que outros

tantos não sejam gerados. Como entender um conflito (um sistema de vários elementos em

ebulição) com um sujeito pensante separado do problema que o aflige? Ou, então, como

imaginar uma disputa que se possa solucionar por uma (uma única) forma de conhecimento?!

Contrapõe-se ao pensamento linear o pensamento sistêmico. Enquanto o primeiro

privilegia a parte, este último modelo assume a posição de que o todo é o que importa. O

entendimento de simplesmente atribuir maior ênfase à totalidade, não dispensa sérios

problemas. As dificuldades que podem gerar essa perspectiva colocam os dois modelos de

pensamento em posições divergentes e intocáveis: enquanto um deles opta por cumular de

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relevância uma das extremidades (a parte), o outro corre para a outra extremidade (o todo),

detendo aí seu passo.

Sistemas lineares, pela desconexão de conteúdos (homem, conflito, vida, mundo,

interesses, emoções), podem significar nada mais que aglomerados de elementos. São

incapazes de formar ligações entre seus ingredientes e desses contatos possibilitarem

soluções.

Mariotti adverte acerca do tipo de pensamento que essa forma de conceber sistemas

pode originar:

O pensamento sistêmico é um instrumento valioso para a compreensão da complexidade do mundo natural. Porém, quando aplicado de modo mecânico, como simples ferramenta (como se vem fazendo nos dias atuais, principalmente nos EUA, no mundo das empresas), proporciona resultados meramente operacionais, que não são suficientes para compreender e abranger a totalidade do cotidiano das pessoas. 4

O pensamento complexo, de que se cuida, é o que resulta da soma do pensamento linear

e do pensamento sistêmico. Para essa perspectiva, há as partes, o todo e suas relações. Dos

vínculos necessários e constantes entre os vários elementos dos sistemas nascem a integração

e a complementaridade; daí se poder designar, também, de complementar, ao pensamento

complexo.

Edgar Morin fala da complexidade, dando a entender a conciliação de partes, todo,

relações, funções, processos e toda uma variedade de conotações a perpassar os elementos, os

conjuntos, os sistemas e as sinergias, que brotam da consideração dos problemas humanos e

de suas resoluções. Diz ele:

A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixaram cegos. 5

4 Ibid., 2000. p. 348. 5 MORIM, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 11-12.

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O autor junta o linear e o sistêmico para formular a noção do complexo. Sua

preocupação, no final da exposição, é com a “cegueira” que o apego desmedido ao modelo

linear pode causar à evolução do homem.

Como situar a mediação nesse modelo de complexidade?

A resposta pode começar a vir de enlace aos conceitos e princípios da mediação. Ouça-

se Lília Sales:

Mediação procede do latim mediare, que significa mediar, dividir ao meio ou intervir. Estes termos expressam o entendimento do vocábulo mediação, que se revela um procedimento pacífico de solução de conflitos. A mediação apresenta-se como uma forma amigável e colaborativa de solução das controvérsias que busca a melhor solução pelas próprias partes. 6 (Grifou-se).

Desse conceito, chamam a atenção as noções de paz, amizade e colaboração, ao lado da

autonomia das partes em resolver, por si mesmas, e não através de decisão de terceiro

julgador, as suas disputas.Prossiga-se a ouvir a professora cearense. Ela diz que a mediação

É um procedimento em que e através do qual uma terceira pessoa age no sentido de encorajar e facilitar a resolução de uma disputa, evitando antagonismos, porém sem prescrever a solução. As partes são as responsáveis pela decisão que atribuirá fim ao conflito. A mediação, quando oferece liberdade às partes de solucionar seus conflitos, agindo como meio facilitador para tal, passa não somente a ajudar na solução de conflitos, como também a preveni-los. 7 (Grifou-se).

A terceira pessoa, de agir neutro e não-impositivo de decisão, recebe a designação de

mediador.

A liberdade, a que alude a segunda parte da exposição, faz sugerir um viés de

complexidade nas soluções construídas pela mediação. Por tal aspecto se percebe que o

conflito potencializa transformações. As partes não estão adstritas a normas ou padrões

impostos de fora. Podem seguir as leis e regramentos preexistentes ao seu conflito, porém,

sem necessidade de acorrentar-se a esses padrões.

As partes, na utilização dessa liberdade, podem construir, desconstruir, fazer e refazer

soluções, de acordo com suas necessidades; podem transcender os problemas; encará-los de

cima para baixo, de baixo para cima; ou em quaisquer direções; encorajadas, em todos os

casos, a extrair das disputas suas possibilidades de transformação.

6 SALES, Lília de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.23.7 Ibid., 2004. p. 23-24.

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Essa compreensão larga e multidirecional de lidar com problemas levou a professora

Malvina Muszkat a afirmar: “A mediação de conflitos se concebe como um saber

comprometido com a epistemologia contemporânea de perspectiva ecológica e construtivista,

aplicável a todo e qualquer campo da vida humana”.8 (Grifou-se). A autora esclarece sua

afirmação:

O vocábulo ‘mediação’ assim como o verbo correspondente ‘mediar’ foram definitivamente assimilados pelo senso comum. Qualquer mãe de família ou profissional que trabalhe com pessoas – como professor ou advogado – dirá, com segurança, que ‘medeia’ desde sempre.A mediação de conflitos, tal como será tratada aqui, está longe de ser uma prática do senso comum. Tampouco deve-se considerá-la apenas um método pragmático de resolução de conflitos ou mesmo uma disciplina. A mediação implica um saber, uma episteme de vários outros saberes, cuja transversalidade fornecerá o instrumental para uma prática que pressupõe a planificação de uma série de passos ordenados no tempo.9

Esse modo de conceber mediação aproxima-se do entendimento perfilhado por Nicola

Abbagnano.10 Segundo ele, está-se diante de “função que relaciona dois termos ou dois

objetos em geral”. Os conflitos são os objetos aqui apresentados, com todos os elementos a

partir dos quais formam sistemas (mais precisamente sistemas de conflitos), que requerem

solução consensual.

1.2 O que é conflito

Abbagnano 11 dá à palavra o significado de “contradição, oposição ou luta de princípios,

propostas ou atitudes”. Na mesma oportunidade, lembra Kant, e destaca que o autor alemão

chamou de antinomias os conflitos.

Estudos sobre o tema são reveladores de duas espécies básicas de conflito. Numa

primeira categoria, conta-se com o conflito intrapessoal. Num segundo aspecto, existe o

conflito interpessoal.

Para a primeira espécie, pode-se dizer que o próprio conflito existente já figura como

elemento de mediação. Significa dizer que, revista a característica que revestir – raiva,

8 MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em família e organizações. São Paulo: Summus, 2005. p. 12. 9 Ibid., 2005. p. 12.10 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira, coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 655.11 Ibid., 2003. p. 173.

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angústia, medo – o problema manifestado no indivíduo situa-se entre suas várias

representações mentais.

O conflito interpessoal, por sua vez, além de contar com elementos intrapsíquicos,

ligados inarredavelmente à condição individual de uma dada pessoa, orienta-se pela relação

com outra pessoa. As posições antagônicas, geradas de lado a lado da relação, descortinam os

conflitos.

As disputas, lutas, competições, ou como quer que se designem essas tensões, marcam o

comportamento dos humanos desde sempre, na face da Terra. A História dá exemplos

inumeráveis do quanto a competição tem marcado a vida das pessoas, por vezes

impregnando-a de fortalecimento; doutras vezes, servindo de elemento de destruição das

próprias pessoas.

Os efeitos benéficos ou maléficos, construtivos ou predatórios podem ser

compreendidos a partir de várias explicações. Importa, nesse tocante, seguindo as pretensões

da investigação proposta, ver que solidariedade e competição humanas têm conotação

cultural e se alicerçam em modelos de pensamento.

Para a análise que se tenta fazer, essas culturas seriam a matrística e a patriarcal. Os

pensamentos (ou modelos de pensamento) seriam os da complexidade e da linearidade.

A cultura e o pensamento, naqueles tempos, ou o modo como funcionavam, podem

sugerir a persistência da solidariedade e da competição de hoje. É possível rastrear como isto

acontece.

1.3 A cultura matrística

As lições vêm de Humberto Mariotti. Ele nos esclarece: “A expressão ‘matrística’ foi

introduzida pela arqueóloga lituana Marija Gimbutas, para designar culturas nas quais homens

e mulheres viviam em cooperação e livres de diferenças hierárquicas de parte a parte.”

Segundo Mariotti, a expressão cultura matrística

se propõe a designar uma situação de convivência na qual as qualidades femininas conduzem a uma postura sistêmica, acolhedora e libertadora. Não que entre os povos matrísticos da Europa antiga não houvesse desavenças, agressões e mortes: o que ocorre é que naquelas culturas esses fenômenos eram exceções e não a regra. Trata-se de um modo de vida no qual a competência prevalecia sobre a competitividade –

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entendendo-se aqui o termo ‘competência’ como a reunião de habilidades necessárias a uma vida com mais solidariedade e menos medo. 12

Estudos arqueológicos indicam que a cultura matrística data do Paleolítico.13 Os povos

que a compuseram viveram há cerca de 20.000 anos. Esses povos eram, basicamente,

agricultores. Os conflitos que causaram sua ruína advieram dos povos pastores (conhecidos

como indo-europeus), que invadiram a Europa e transformaram a cultura existente,

inaugurando as bases do patriarcado.

1.4 A cultura patriarcal

O mesmo Mariotti explica que a cultura patriarcal teve início com a invasão da Europa,

há mais ou menos 7.000 anos. Aqui se verificou a transformação dos povos, de agricultores,

basicamente, a pastores. Mas não somente isto. Conforme esclarece, a mudança teria se

processado não apenas no modo de atuar como agricultor ou pastor, mas, principalmente, no

modo como se passou a tratar os rebanhos de animais.

No trato dos animais, estaria a base de entendimento da transformação ocorrida. Os

povos do novo período enfocado acompanhavam os animais e os caçavam. Só que, nessa

atividade, diversamente da cultura anterior – em que havia compartilhamento dos rebanhos

caçados, com os lobos e outras feras que também os caçavam para sobreviver – os pastores

passaram a proteger os rebanhos como seus. O pensamento de pertença levou-os a matar os

lobos e demais feras que tentassem se aproximar dos rebanhos, que assim passaram a ser

apropriados e dominados, com exclusividade, por esses povos.

A apropriação dos animais, ao lado do regime de exclusividade de sua exploração,

sufocou a cooperação da cultura anterior, na qual se podia vislumbrar uma espécie de

comensalismo. A mudança cultural significou também uma mudança no quadro mental dos

dois tipos de povos considerados.

1.5 O efeito mental da mudança de cultura

Os povos matrísticos acompanhavam os rebanhos do mesmo modo que os lobos o

faziam. Assim como estes, preocupavam-se em obter comida, muitas das vezes

conjuntamente, numa dinâmica de cooperação. Dir-se-ia existir um sentimento de que as

manadas a serem caçadas atenderiam a todos, homens e lobos. 12 MARIOTTI, Humberto, op. cit., 2000. p.39 - 40.13 Período mais antigo da idade da pedra, em que os instrumentos eram feitos de ossos e de pedras lascadas.

19

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Não havia espaço para disputas por domínio das caças. A terra e seus recursos

favoreciam a cooperação entre homens e lobos. Empreender atividades, nessas circunstâncias,

significava união.

O modelo mental da cultura matrística, assim delineada, dirige-se para a complexidade.

As direções apontadas para homens e lobos, em sua convivência, não apresentam

fragmentações ou polaridades. Não se há falar, entre eles, em níveis de hierarquização. As

práticas de vida observadas são de molde a correlacionar, em doses equilibradas, as partes e o

todo do sistema que formavam.

Dará para dizer o mesmo em referência ao patriarcado? Aqui, o pensamento

prevalecente apresenta outra configuração. Em primeiro lugar, observa-se uma divisão. Entre

homens e rebanhos deixa de haver uma convivência, para ocorrer uma relação de pertença.

Os rebanhos, antes conviventes com os homens, são agora a eles pertencentes.

Numa linguagem mais sintética, poder-se-ia compreender assim: o sujeito (donos dos

rebanhos) passa a manter uma relação de domínio com o objeto (os rebanhos).

A separação entre sujeito e objeto é nítida. Os homens não se sentem mais incluídos na

convivência dos rebanhos. Deixam de ser, com eles, batalhadores pelas condições de

sobrevivência, para exercer sobre eles a força, o domínio, a exploração.

Esse comportamento é característico do pensamento linear.

A cultura matrística, como o nome sugere, destaca qualidades femininas. Não significa

que nela prevaleça a força das mulheres. Esta é a razão pela qual não se dá a essa cultura a

designação de “cultura matriarcal”, exatamente porque nessa concepção estar-se-ia a

descrever um modo de viver dominado pelas mulheres.

Cultura matrística, pois, e não cultura matriarcal é como se tem chamado a essa cultura.

Seu modo de oferecer-se à compreensão revela-a uma atitude de vida que se timbra de

princípios, nos quais vemos aflorar em primeiro plano a recepção, a gentileza, a criação. Daí a

razão de se pode falar em princípio feminino.

Por mais que se tente ver nesse quadro de abordagem vinculações apenas de sexo-

gênero, o que se quer definir, em verdade, é um padrão de comportamento que leva em conta,

no “feminino”, uma forma de ver a vida acolhedoramente.

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Não poderia ser de outra maneira. Basta ter em mente que, para se situar a cultura

matrística, não seria necessário uma composição tão só de mulheres. O que se quer

demonstrar é que, homens também fazem parte da concepção feminina, pela visão com que

participam da vida, formando bases de união e acolhimento.

A cultura patriarcal, por sua vez, encarada apenas no aspecto sexual poderia ser mal

compreendida. Não somente de homem-gênero poder-se-ia formar uma tal cultura. O que se

vê nessa concepção é um pensamento voltado à competição e à luta. O intuito é o de vencer o

outro, visto como oponente. Nesse sentido, o pensamento predominante, embasador da

cultura patriarcal, pode incrementar-se também nas mulheres.

Não cabe imaginar aqui a mulher masculinizada. Toda mulher pode imbuir-se da lógica

patriarcal ante o modo de pensar a vida dominadoramente.

Nessa cultura, bem diversamente da primeira, são prevalecentes o desejo de domínio, a

vontade de vencer e até de destruir o outro. A moldagem de pensamento vincula-se à divisão

binária de sujeito e objeto bem definidos. Busca analisar (decompor em partes), descrever e

justificar, predominantemente, pelo modelo linear de pensamento.

Aqui, da mesma maneira que se caracterizou a dimensão feminina, pode-se falar na

existência de um princípio masculino.

Mesmo o aspecto sexual, puro e simples, antes discutido, não pode ficar à margem

dessa discussão de raízes complexas. Se se quiser fazer uma analogia dos órgãos da

reprodução humana com os modelos mentais que justificam as duas culturas em questão,

encontrar-se-á plena possibilidade. De fato, o órgão sexual masculino estaria para a cultura e

o pensamento patriarcais tanto quanto o órgão sexual feminino está para a cultura e o

pensamento matrísticos.

De que forma isto ocorre? Para tal entendimento, basta observar que o órgão masculino

tem pretensões expansivas, de projeção e disseminação. O órgão feminino, ao contrário, faz-

se de receptividade, ligação e atração.

Enquanto o falo propende para o caminho linear, o útero pode absorver a vida em toda a

sua circularidade.

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A cultura matrística, que durou cerca de 40 milênios, apresenta uma sociedade de

parceria. A cultura patriarcal, que predomina de 7.000 anos para cá, estimula a competição,

sendo responsável por configurar uma sociedade de disputas e de individualismos, em que

vencer e destruir é quase uma constante na vontade dos indivíduos.

Avista-se tal cultura por toda parte da sociedade atual. Mesmo o poder institucional,

chamado Estado, responsável por decidir conflitos entre seus jurisdicionados, não escapa ao

rol das práticas autoritárias, reducionistas e excludentes.

Anotadas estas noções (competição, solidariedade, o homem, o conflito, suas relações,

linearidade e complexidade – o modo como surgiram, que são fundamentais ao entendimento

das soluções), passa-se a apreciar o modo como a mediação busca se aproximar da cultura

matrística. Buscar-se-á ver como tenta transcender as visões lineares, mercê do manejo de

elementos integradores, pro-ativos, de ligação, e de alternativas multiportas, na resolução de

problemas.

É o que se fará no capítulo seguinte.

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2 AS PERSPECTIVAS GANHAR/PERDER E GANHAR/GANHAR

2.1 Conflito e poder

O desequilíbrio que se busca corrigir, na estratégia de satisfação das partes em conflito,

decorre de um jogo de forças. A dinâmica das ações desenvolvidas por ambos os lados

envolvidos na disputa pode ser compreendida segundo a concepção de poder defendida por

Michel Foucault.

Para esse pensador, o poder manifesta-se por vários níveis, na vida das pessoas e

instituições, tanto no espaço particular, ou íntimo, quanto no social e público. É corrente que

se esteja, nesse sentido, o tempo todo, a “empoderar” 14 ou “desempoderar” de algo, nas

diversas interações sociais. Foucault esclarece:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. 15

Para Foucault, “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque

provém de todos os lugares”16. Segundo o mesmo autor, onde há poder, há resistência.

Assegura que as correlações de poder

[...] não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande recusa — alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas,

14 Provém da palavra inglesa empower. Significa autorizar, dar poder.15 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2006. v. 1. p. 102-103.16 Ibid., 2006. p. 103.

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irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. 17

Chamada a intervir nas relações em desequilíbrio, a mediação agarra-se à concepção

construtivista de poder. Tenta mostrar aos conflitantes que o poder, longe de ser algo que se

deva reduzir a uma dimensão apenas exterior a eles, é bem mais que isto: traduz-se no que

ambos podem construir na sua relação.

São as pessoas que produzem o poder. Assim, tudo o que possuem, os recursos de que

dispõem, têm nascente no seu mundo interior.

A representação da fonte apenas externa do poder, por essa concepção, gera grande

desequilíbrio nas relações interpessoais. Torna-se campo propício a se encarar o termo “ter”

como superior ao termo “ser” e nega imensas possibilidades de construção de um mundo

novo nas relações.

Não é por outro motivo que, dos vários conflitos, se podem presenciar o brilho nos

olhos de um dos confrontantes ou mesmo dos dois ao sentirem que “tiraram” algo do outro.

“Que maravilha; ganhei de fulano, na disputa” – diz um deles. “Levei a melhor; tirei-lhe todos

os bens; ele perdeu” – diz a outra parte. É o “desempoderar”, que funciona, às vezes, para os

conflitantes, como oportunidade de “castração” do outro. E nisto há uma sensação de perder

ou ganhar o poder.

É vislumbrável algum ponto comum entre a mediação e a complexidade no exercício

dessa construção? O poder de buscar soluções para conflitos tanto é exterior ao indivíduo

como interior a ele. No fluxo de ação, de um pólo a outro (dentro e fora dos entes formadores

do sistema), podem ser encontradas as respostas às tensões.

Forças contrapostas podem gerar desequilíbrios. E como tais forças se encontram por

toda parte, Foucault pugna por utilizá-las para obtenção de equilíbrio (ou reequilíbrio) das

condições ligadas às pessoas a que se referem. Esse o norte, também, da mediação.

17 Ibid., 2006. p. 106.

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2.2 Entre jurisdição e mediação

Na visão herdada do patriarcado, conforme visto no capítulo anterior, o processo que se

estabelece entre pessoas com vistas a instrumentalizar uma disputa, orienta-se por regras de

competição. É necessário que os contendores apresentem suas armas e se digladiem na arena

que se lhes prepara para esse fim. Dora Fried Schnitman percebeu a linearidade desse modo

de pensar, ao afirmar:

Nossa cultura privilegiou o paradigma ganhar-perder, que funciona como uma lógica determinista binária, na qual a disjunção e a simplificação limitam as opções possíveis. A discussão e o litígio – como métodos para resolver diferenças – dão origem a disputas nas quais usualmente uma parte termina ‘ganhadora’, e outra, ‘perdedora’. Essa forma de colocar as diferenças empobrece o espectro de soluções possíveis, dificulta a relação entre as pessoas envolvidas e gera custos econômicos, afetivos e relacionais. 18

A disputa passa a gerar nos seus personagens as noções de vencer, demolir e destronar o

oponente, com todas as forças que puder utilizar. Quadro de lutas semelhante às que se dão

num ringue de pungilistas, um dos contendores deve sair vitorioso, e o outro amargar a

derrota.

Gonçalves Dias retrata a necessidade do conflito e a existência desse ganhar/perder

entre os indígenas. Esses selvagens já definiam e exaltavam a vida pelas lentes desse

paradigma. Diz a mãe, ao consolar o filho:

Não chores, meu filho;Não chores, que a vidaÉ luta renhida:Viver é lutar.A vida é combate,Que os fracos abate,Que os fortes, os bravos,Só pode exaltar. 19

A noção de que a vida é um eterno conflito existia mesmo entre os selvagens.

Reconhecidos como necessários, os conflitos exaltavam a condição dos guerreiros.

18 SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas na resolução de conflitos. In: SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLEJOHN, Stephen (Org.). Novos paradigmas em mediação. Tradução de Marcos A. G. Domingues e Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: ArtMed, 1999. p. 17.

19 DIAS, Gonçalves. Canção do Tamoio. In:__________. Poesia e prosa completas. Organizado por Alexei Bueno. Textos críticos de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. v. único. p. 394.

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O padrão forte/fraco, vencedor/vencido bem representa o grau de valor de um guerreiro,

como na passagem a seguir:

Valente na guerraQuem há como eu sou ?Quem vibra o tacape com mais valentia ?Quem golpes dariaFatais, como eu dou ?-- Guerreiros, ouvi-me:-- Quem há, como eu sou ? 20

Ao perdedor cabia a vingança. Se não por si mesmo (uma vez que morto não vinga

ninguém) pelo menos por intermédio de seus familiares, seu grupo ou tribo. E assim novas

lutas se seguiam. Mais sangue banhava lugares e florestas. A violência e a barbárie

zombavam do poder de pacificação humana.

O sistema que rege as soluções de pelejas, assim embrutecedoras, é o judicial. O

perdedor da demanda, mais do que revoltar-se em quadros de mágoa e de ressentimento, pode

continuar utilizando recursos que o sistema lhe proporciona. Há recursos, petições, arrazoados

para novas lutas, em face da derrota que lhe restou da luta decidida pelo Estado. O sistema é

rico em oferecer possibilidades para novas disputas, querelas e intrigas. As discussões podem

amontoar razões e argumentos de toda sorte, desde que amparadas nos códigos e mais códigos

de leis positivadas.

O nome do processo que o Estado disponibiliza para os litigantes já diz de sua

predominância; ou seja: é de litigância que se trata. As partes se vêem como adversárias.

Às vezes, como descreve Kafka, nem há possibilidade de se conhecer os adversários.

Eles, de qualquer modo, podem rondar, como monstros invisíveis, o mundo das pessoas e lhes

acusar de algo que não se conhece e do que não se pode, por isto mesmo, se defender.

Em O Processo, a interface entre literatura e direito é esclarecedora. O protagonista,

Joseph K, ao tempo em que tem seu espaço íntimo invadido e onde é detido por seres reais,

que o acusam de um crime, não tem como visualizar de que crime é acusado. A narrativa, em

seus instantes iniciais, anuncia:

Alguém devia ter caluniado a Joseph K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal, foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua hospedeira, que todos os dias às oito horas lhe trazia o desjejum, não se apresentou no quarto de K nesta manhã. Jamais acontecera isso. [...] [K.] fez soar a campainha. Imediatamente

20 DIAS, Gonçalves. O canto do guerreiro. Primeiros cantos. In: _______, op. cit., 1998. p. 106.

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bateram em sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K jamais vira antes naquela casa. 21

O personagem Joseph K indaga sobre sua detenção, quer saber a causa. Faz conjecturas,

que irradiadas para o restante do romance, atinam com a noção de culpa, de complô, de

realidade e irrealidade, numa confusão de possibilidades que mais o atrapalham do que o

ajudam na tentativa de explicação para o que sabe não ter praticado, embora a instituição

estado o tome em sentido contrário.

Debate-se o personagem entre o fato de sua prisão, com toda a realidade de poder do

sistema judicial que lhe tolhe a liberdade, e o monstruoso da acusação (não saber de que é

acusado, que crime cometera). Uma situação constrangedora que não poderia levá-lo a bom

termo.

De outro modo, há o processo que busca integrar as partes. E dar-lhes amplas

possibilidades de conhecer os envolvidos, capacitando-os a dominar a situação conflituosa. O

problema passa a oferecer-se numa visão potencializadora de respostas, em grande parte

porque, nessa concepção, a autoridade e as regras com que se contam, são nascidas dos

próprios integrantes da disputa.

Dora Fried Schnitdman, agora sem o dizer com palavras diretas, mas apontadas para

esse sentido, prepara a noção de pensamento complexo e a incorpora à mediação. Nas

palavras da autora:

[...] Os contextos de resolução alternativos à confrontação, ao paradigma ganhar-perder, à disputa ou ao litígio direcionam-se à co-participação responsável, admitem a consideração e o reconhecimento da singularidade de cada participante no conflito, consideram a possibilidade de ganhar conjuntamente, de construir o comum e assentar as bases de soluções efetivas que legitimem a participação de todos os setores envolvidos. 22

Derrotar o outro pode significar a derrota do vencedor. Pode alguém satisfazer-se

completamente por eliminar, em qualquer disputa, o seu contendor, legitimado tanto quanto

ele a defender interesses? Ao invés de se atinar com a destruição do outro, bem se pode

crescer com ele, a partir do conflito.

Para a visão da complementaridade, melhor do que a satisfação de um dos lados, com

revolta intensa do outro lado, é tentar colher a oportunidade para transformar a desavença em

ganhos para ambos. 21 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 37. 22 SCHNITMAN, Dora Fried, op. cit., 1999. p. 17-18.

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A rigidez de uma competição, assim trabalhada, transpõe-se para a flexibilidade da

cooperação. As direções, antes unilateralizadas, comportam, agora, múltiplas direções. E

dessas perspectivas – novas - surgirão novos horizontes. Isto é pacificar por modo diferente

do que se dá no modelo judicial.

O conflito, na visão competitiva, abrigada pelo Estado, revela um contexto em que mais

importantes que as partes são as referências ao sistema de resolução (no caso, o judicial).

Isto é um modo de desvalorizar as pessoas e as desmotivar ou, antes, as motivar para mais

combate. Os egos não se contêm de vontade de guerrear. À maneira de crianças, não cabem

em si de contentamento por poder jogar com a situação exibindo brinquedos incomparáveis

de lado a lado.

O Direito, em tal sistema, engessa-se e não parece se revestir de maiores preocupações

que não as de conformar os interesses de cada um dos litigantes às regras estabelecidas. A

vontade das partes deve operar-se em consonância com a legislação existente e pugnar dentro

de seu traçado.

É como se o Direito tivesse chamado a si a tarefa de deter o curso da vida dos litigantes,

a partir de determinado conflito que apresentam ao Estado para solução. Eduardo Novoa

percebeu os caracteres paralisantes desse sistema, ao afirmar:

Nem o modo permanece estático, nem a vida detém o curso, apenas porque alguns homens, ajudados por instituições a isso dispostas, querem deter a dinâmica da história. Uma contínua mobilidade e mudança impulsionam, para além de qualquer vontade conservadora, um processo de criação cultural que pugna por expressar-se em variações e revisões de forma de vida social, ainda quando, para tanto, seja mister desbordar dos marcos que o quiseram conter. Novos valores e novas necessidades sociais fustigam, ininterruptamente, esse Direito petrificado e insuficiente, por inapto para adequar-se às realidades emergentes. E, se as normas jurídicas não são capazes de palpitar ao compasso acelerado da vida, não será o ritmo desta o que se retarda, ainda que tenha de vencer obstáculos e, por momentos, pareça diminuir a marcha.Não pretendemos negar que tenha havido alguns progressos dentro da ciência jurídica e das legislações, porém todos minguados, diante dos anseios sociais. Muitas vezes ocorreram meras reformulações dos envelhecidos modelos; outras, novidades que visavam mais ao formal, ou acidental, do que ao fundo e às essências das instituições; não poucas vezes, os avanços ficam no puramente teórico, sem possibilidade de enfrentar as novas realidades. Por isso, o Direito, como ciência e como legislação, vai ficando para trás e seu desajuste, em face da evolução social, se torna cada vez mais manifesto. 23

Cada um quer ganhar; ganhar sozinho. Se tiver a oportunidade de outra disputa, quererá

ganhar de novo. À feição do que ocorre com os clubes de futebol, cuidará para derrotar todos 23 MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social. Tradução de Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 147.

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os outros clubes em todas as vezes que jogar com eles, não bastando ser o campeão do ano,

senão o campeão de todos os anos (ou, pelo menos, o que mais vezes ganhou), para não restar

nenhuma dúvida sobre quem é o melhor.

Em tal modo de atuar, as partes são as estrelas do processo, e nessa concepção tentam

brilhar intensamente, cada uma com mais brilho, para ofuscar a outra, tais e tantas as

habilidades e estratégias à sua disposição.

Na mediação, importa mais é a relação que se instaura entre as pessoas. A importância

anteriormente enfatizada nos elementos deslocam-se, aqui, para o sistema. Só se poderá

compreender as partes pela dinâmica de sua atuação no todo. Sai-se do individualismo para o

campo da parceria.

A soma das partes é maior que o todo. Isto se torna possível no cômputo da

solidariedade. Na matemática cartesiana, 1 + 1 é igual a 2. Os elementos são vistos em

isolamento de posição, que também se transfere para o plano da atividade. Cada pessoa, no

desempenho de suas atribuições ao lado de outra pessoa, se não der o máximo de si para a

relação, não atingirá sequer o número “1” de potência dinâmica. O número “1” significa 50%

de sua força participativa. Se a outra parte também se desincumbe de igual percentual (50%),

colabora para a formação de um todo cuja quantificação esbarrará nos 100%.

Ocorre que, quando as pessoas saem do plano do isolamento de suas posições e, além de

uma visão centrada apenas em si, buscam colocar-se na posição também do outro, passam a

ajudá-lo. Nesse caso, o quantitativo de participação que era de 50%, sobe para 60%, 70% ou

mais. Se isto se observar na outra extremidade, ou seja, com a outra parte tentando entender as

dificuldades do outro e entrando em sintonia com os objetivos dele, para construção de

alternativas, atinge também percentuais maiores de 50%.

Efetuadas as somas, claro que, nesse plano de compartilhamento, o resultado

emprestado pelas partes ao todo é bem superior aos meros 100% que seria de se esperar. E

então, do mesmo modo, 1 + 1 passa a significar não 2, mas 3, 4 ou o que puder produzir a

relação compartilhada.

2.3 Entre dogmas e dúvidas

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Na pacificação de conflitos, o sistema jurídico se vale de dogmas. 24 As leis ou

regulamentos positivados são concebidos como dogmas porque, em princípio, são recebidos

como se encontram nos códigos e legislações. Posta como entidade anterior ao conflito, não

se questiona a lei, que irá regular as questões abrangidas em seu âmbito de previsão.

A dogmática lida, assim, com certezas. As normas jurídicas, ao estabelecerem prazos,

oferecem um bom exemplo dessa afirmação. Há prazos para contestar, para recorrer, para

arrazoar... e todos eles centrados numa visão: a de conferir aos litigantes a certeza de uma

situação. O mesmo ocorre com os institutos da prescrição e da decadência das ações

ajuizadas. Prazo há para quase todas as manifestações no processo judicial. Obedecer ao prazo

estabelecido na lei é dogma. Quando o prazo é decorrência de estipulação judicial, também é

dogma: cumpre obedecê-lo, sem mais considerações.

Na maioria das vezes, a certeza que se poderia extrair dos prazos processuais não

combina com a situação dos jurisdicionados. A tábua reta em que se colocam uma parte e

outra da relação em debate anda longe de adequar-se às necessidades de cada uma delas. Que

razoabilidade, por exemplo, se poderia descobrir na concessão de um prazo único de cinco

dias para que, tanto uma pessoa rica quanto uma apenas arremediada, conseguisse uma caução

de R$ 100.000,00 (cem mil reais)?

A linearidade dos prazos, nestes termos observada, encontra companhia mais enfática

no modo de decidir dos juízes de direito. Uma vez que tais autoridades decidam, está

decidido! Põem fim, juridicamente, às controvérsias, mesmo que grande parte delas, senão a

maioria, revele-se inconclusa sob diversas faces em discussão. A simplificação do modo de

decidir, nesse caso, muito mais que buscar resolver as chagas do conflito, realiza sua

neutralização. Caberia indagar: neutralizar conflito representa justiça para as partes ? Ou,

noutros termos: mesmo válida tal forma de encarar o dissenso entre pessoas, pode-se

conceituar esse tipo de decisão como autêntica?

O dogma de assim decidir ou de se entender que essa é uma forma de decisão, não

parece atender às necessidades das pessoas em conflito. Uma racionalidade desse tipo não

atinge o desiderato de justiça. E se torna duvidoso entender daí que estabilize as relações

sociais. A segurança jurídica buscada não passa de uma tentativa em grande parte frustrada.

24 A palavra dogma tem origem religiosa. Quando utilizada no campo jurídico, quer significar paradigma imutável e indiscutível.

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A mediação não se interessa apenas por neutralizar problemas. Tenta oferecer condições

para um consenso real entre as partes disputantes. Não lhe interessa apenas a lei como está

nos códigos de conduta. Se seguisse apenas as diretrizes dela emanadas, estaria a corroborar

que a maioria (encarnada pelo Estado na concepção de poder legal) pode esmagar as minorias.

A esse dogma de que a maioria tudo pode, a mediação coloca o valor da diferença. É dizer:

não se pode simplesmente reduzir o Estado à concepção legal; ele pode enriquecer-se por

outras formas de soluções que alarguem as possibilidades dos envolvidos. A verdade não

pode confinar-se às expressões ditadas em leis. As provas dos autos não são as provas todas

do mundo. Pelo menos, não há sentido em encará-las como as únicas existentes nos mundos

dos litigantes.

Tércio Sampaio percebeu os cuidados do sistema de decisão como voltados para a

verossimilhança e não para a verdade buscada pelas partes. Atina com o que chama de versão

de verdade, uma versão processual, capaz de dar conta de um processo judicial e terminá-lo,

mesmo sem decidir o conflito. Em verdade, trata-se de uma versão de decisão. Diz o

estudioso:

[...] A verdade é que a decisão jurídica, a lei, a norma consuetudinária, a decisão do juiz etc. impede a continuação de um conflito. Ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim. Pôr um fim não quer dizer eliminar a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação onde ela não pode mais ser retornada ou levada adiante. 25

Tal modo de decidir aponta para o que se pode chamar de terminar sem terminar. Como

é próprio da noção de linearidade, o quadro dessa decisão radica em simplificar o conflito,

abreviar o seu rumo e impor-lhe uma não preocupação com a complexidade da disputa.

Seria o caso de indagar: a quem aproveitariam as decisões desse nível? Não

satisfazendo às partes diretamente interessadas, satisfariam à sociedade? É quase uma

provocação querer satisfazer pela não solução dos problemas. A mediação procura ligar o

direito ao mundo dos litigantes. Não vê apenas pela lei; descortina o olhar, ao redor do

problema e para além dele, visando equacionar propostas às necessidades das pessoas em

tensão. Nesse esforço de composição, os vários aspectos do dia-a-dia dos interessados vêm à

superfície da realidade. Emergem do fundo das questões e propagam, das partes para o todo e

deste para aquelas, referenciais ou balizas conducentes à pacificação. Do cotejo dos muitos

prismas enfocados, não apenas uma, mas várias soluções se tornam possíveis.

25 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 167.

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Enquanto o sistema legal busca subsumir o caso dos conflitantes num regramento pré-

estabelecido, a mediação cria um regramento em que pode adaptar soluções para o caso. O

nome que se pode dar ao manejo de regras já existentes, complementadas por outras regras

oriundas de criação pelas partes, é o de complexidade. Da formação de tal “abraço” – para

utilizar o termo cunhado por Edgar Morin –, se pode caminhar para um destino mais seguro e

duradouro.

No capítulo seguinte, mostrar-se-ão mais aspectos em demanda dessa

complementaridade. Tentar-se-á atinar com os alicerces a partir dos quais a mediação constrói

suas estratégias resolutivas. Tratar-se-ia de uma nova feição epistemológica?

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3 UMA NOVA EPISTEMOLOGIA?

3.1 Entre receber pronto e construir

As soluções judiciais, pelo que se observa de notas anteriores, têm-se originado de

formulações de normas estatais, todas conducentes à agregação de representações mentais.

Colhem-se das leis, por abstração, os comandos de regência dos fatos jurídicos. Diz-se, então,

que a realidade existente é a que se concebe como idéia. As coisas passam a ser para os

sujeitos a representação que delas fazem.

Uma vez aceita a possibilidade de se perceber o ser das coisas mercê apenas das

representações que delas se fazem, o mundo põe passivos os humanos. O conhecimento que

lhes é possível alcançar é anterior e completo. Pode existir de modo independente do sujeito

cognoscente e contém informações sedimentadas e prontas.

Para conhecer as informações, a partir dessa concepção, pouco ou quase nada se tem a

fazer. O representacionismo, num primeiro momento, parece calar a inventividade; dá,

apenas, as imagens das coisas elaboradas por outros; imagens paradas (tais como de

fotografias) em cujos cenários não se pode intervir.

O modo postulado pela mediação é de outro matiz. Encara cognição como algo diverso

da concepção representacionista. Conhecer não quer dizer apenas ter idéias acerca de um

mundo anterior. Isto demonstraria a fixidez da realidade observada pelo sujeito. Conhecer

implica ligar-se à vibração da vida, colocar-se em sua corrente de fenômenos, para a

construção de elos e alternativas.

Se, para a primeira forma de resolver conflitos, basta a utilização do conhecimento

como representação, com as determinações e limitações que essa perspectiva propicia, para o

conhecimento de que faz uso a mediação conhecer é construir.

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Nesta segunda lógica, construtivista, os seres vivos e seus sistemas são

interdependentes. Necessitam uns dos outros. No caso em específico de pessoas em conflito,

hão de construir suas soluções mediante processos que considerem as noções de “outro” e de

“meio” em que se encontrem.

Ainda que não se possa negar o valor das representações que se fazem da realidade, o

que se intenta pôr com a construtividade é que pouco acresce considerar um mundo anterior,

dado ou pré-estabelecido, quando o que conta para os protagonistas de um conflito é o

conhecimento de um mundo que lhes incumbe construir, se querem resolver diferenças.

Para a forma de resolver problemas, pela representação, o mundo que acolhe os

contendores é o resultante de um dado anterior. Por tal anterioridade, são seguidas regras

anteriores e assim estáticas. As informações que se podem colher dessa situação endurecida

pelo tempo, por mais que se digam descritivas de verdades objetivas, não parecem oferecer

confiabilidade.

A objetividade das regras compositivas dessa realidade traduzem-se por caracteres

escritos, regulamentares e condições padronizadas, que tentam levar a crer serem autênticas,

confiáveis e objetivas.

Se bem analisada, essa representação revela dados isolados, estáticos e voltados para

uma única direção de tempo (o passado).

O Direito, principalmente, é um domínio do conhecimento onde se podem perceber

lacunas dessas representações. Sua linguagem rígida, elaborada por pessoas dissociadas da

realidade dos confrontantes, distantes do seu contexto, e perpassada de artigos arrumados para

a colocação de casos que de antemão possam neles se amoldar, como se de uma fôrma se

tratasse, vive dessa simbologia. Fazendo dela verdade, retira da frieza de suas palavras, entes

mortos para os vivos, um sentido que não faz sentido, pois desprovido de vitalidade.

Há uma ilusão no modo de conhecer pela representação do sistema judicial. Tenta esse

sistema fazer entender que a cognição se apresente como completa e verdadeira. Não é bem

assim, se se atentar para o “como” os seres humanos recebem as informações do meio em que

se encontram. Utilizam os sentidos. Por processos de “generalizações”, distorção e

cancelamento, o cérebro recebe os sinais elétricos e os filtra numa representação interna.

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O que há são representações. Isto parece ser verdadeiro. Só que uma representação

dificilmente pode corresponder ao evento concreto. Sabe-se que as representações são

variáveis de pessoa para pessoa; são assim personalizadas. Cada indivíduo filtra as imagens

que seu sistema de percepção lhe permite.

Num acidente automobilístico, por exemplo, várias são as versões que as

pessoas/testemunhas podem estabelecer para sua compreensão. Trata-se de um mesmo

evento. Porém, umas pessoas se ligam mais à visão (narram com facilidade as cores dos

carros envolvidos no desastre, a quantidade de passageiros, as distâncias dos automóveis entre

si e deles para o canteiro divisor da estrada). Outras pessoas conseguem melhor captar a

representação do acidente por meio da audição: são capazes de reproduzir, com nitidez, as

conversas entre os envolvidos no acontecimento, palavra por palavra. E assim seguem as

representações. Cada indivíduo com maior ou menor facilidade de retomar uma imagem, um

som ou um gesto de algo por meio de sua interpretação dos eventos.

Relevante entender, para esse tipo de cognição, é que o significado é tão somente uma

interpretação. Os indivíduos, por suas representações, acomodam versões variadas para os

eventos observados. O significado influencia-se das crenças de cada um dos observadores,

bem assim de seus valores e expectativas de vida.

A verdade que a ciência do Direito tenta pôr no trato dos conflitos humanos tem

decorrido, preponderantemente, dessa visão representacionista. Não pode o Direito continuar

a pensar que, de regras genéricas possa tecer a verdade ou alcançar esta por intermédio de um

automatismo de aplicação, como se um vínculo de traçado linear sempre pudesse existir entre

pessoas e condutas previstas em lei.

Alberto Einstein, sem deixar de ser cientista, soube criticar a ciência assim concebida,

quando projetou para esta uma verdade bem diferente da que apregoada pela maioria de seus

colegas. Observou:

A ciência tem por objetivo estabelecer regras gerais que determinem a conexão recíproca de objetos e eventos no tempo e no espaço. A validade absolutamente geral dessas regras, ou leis da natureza, é algo que se pretende — mas não se prova. Trata-se sobretudo de um projeto, e a confiança na possibilidade de sua realização, por princípio, funda-se apenas em sucessos parciais. 26

26 EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, religião, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Tradução de Maria Luíza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 31.

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A mediação alonga a ciência. Vem dizer para os conflitantes que, não sendo portadora

de regras de verdade (até por que, como visto, “não sabemos como as coisas são em realidade,

mas apenas sabemos como as representamos para nós mesmos”), vale a pena representar a

realidade desejada de um modo melhor, de um modo que fortaleça as soluções dos conflitos.

Isto parece ser mais do que representar. Se se quiser continuar a utilizar a cognição como

necessidade representacionista, pode-se dizer que a mediação sabe representar, construindo.

Construir aqui dá a noção de atividade, bem diversa do quadro de passividade de apenas

representar o que se acha pronto e acabado.

A complexidade das soluções almejadas para os conflitos pode estar, assim, no fluxo

entre a representação e a construção. Pode-se representar, simplesmente, pela paralização;

como se pode representar também de modo dinâmico, construindo saídas para problemas

próprios e dos outros. Esta última forma de representar se condimenta de ação e proação dos

disputantes.

Os questionamentos, perguntas, intervenções da mediação tentam criar, nos

confrontantes, possibilidades de ação. Mesmo quando estimulados a representar para si idéias

e emoções, os sujeitos o fazem de modo construtivista. Não se detêm nos quadros de

representações mentais ou de sentimentos fortalecedores de suas metas; vão adiante; buscam

construir comportamentos compatíveis com essas representações, para delas extrair seu

ensinamento.

Para a mediação, é possível solucionar os conflitos, com a atenção dos envolvidos para

uma visão prospectiva. Diz aos interessados que, bem acima do conflito que os embaraça, o

que mais importa é que podem mudar esse quadro, de negativo para positivo. Diz que tudo o

que ocorreu não tem tanta importância como evento passado, mas, sobretudo, tem relevância

como oportunidade de mudança. Pode-se, de algum modo, transformar os males ocorridos.

Transformar o modo de representá-los cria estágios novos para eles. A não ser que se queira

(o que, ainda assim, é uma opção respeitável) continuar a lamentar para sempre os conflitos

ocorridos, buscar construir soluções no presente e para o futuro, parece ser a opção desejada

pela paz.

Que tipo de interação esperar das relações ocorridas entre as informações de um código

de leis pré-estabelecidas e as pessoas envolvidas num conflito presente, que transcorre no

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tempo presente? As diretivas constantes de tais preceitos normativos têm potência para captar,

por abstratividade, os fluxos de vida presentes, a agitação, o desejo e a angústia existentes nos

movimentos das pessoas envolvidas numa disputa?

A mania linear de justificar as coisas pela linguagem leva à confusão entre palavra e

realização, o que significa dizer entre informação e interação. As informações, por si

mesmas, são incapazes de produzir o dado. A não ser no fiat lux 27 de Deus, que pelo simples

verbo construiu o mundo. As mudanças decorrem das interações dos sistemas. Ainda que de

uma só pessoa se trate, essa pessoa (sistema que é, conforme já tivemos oportunidade de

explicar) mantém interações com o ambiente, um super-sistema. E por tais enlaces (a relação

entre o indivíduo e o meio é circular) é que as mudanças acontecem.

Giambattista Vico, citado por Glasersfeld, opõe o conhecimento por via da razão ao

conhecimento por via da imaginação poética. Para aquele autor, os seres humanos somente

podem conhecer aquilo que cheguem a criar. Toma Deus como o “artífice do mundo” (real) e

o homem como o “deus dos artefatos”.28 O homem, pelo conhecimento racional, somente

poderia lidar com os artefatos que sua mente cria, não com o mundo objetivo.

Os humanos, por suas experiências, criam a ciência. Só se há falar em racionalidade do

conhecimento científico nos termos experimentados a partir das relações formadas pelos

humanos. Isto propende para o mundo da subjetividade.

Quanto à obra de Deus, o autor lhe confere objetividade. Para alcançar esse mundo, o

tipo de conhecimento que elege, chama-se conhecimento místico.

O construtivismo abandona a idéia de que “o que nós percebemos e inferimos de nossas

percepções está presente, pré-fabricado”. Os “construtos mentais são sempre essencialmente

individuais e subjetivos”. O sujeito não deveria fazer “afirmações sobre a realidade exterior

ao seu pensamento”. Então, qualquer curioso por conhecer; qualquer profissional do

conhecimento (professores, mediadores, magistrados) não deveriam, em suas atuações, “partir

do pressuposto de que a representação” que detenham acerca de alguma coisa “possa ser

conhecida de forma objetiva” (promanarem de objetos: seus alunos, mediados e

jurisdicionados). O mesmo entendimento pode ser estendido para outras partes (clientes e

pessoas em disputas).

27 Faça-se a luz!28 VON GLASERSFELD, E. A construção do conhecimento. In: SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.78.

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Por essa concepção, aos profissionais mencionados incumbe criar as condições para que

as pessoas com quem se relacionem possam construir, em si mesmas, as próprias

representações. Disso pode resultar um partilhamento de significados pela construtividade. É

dizer: os lados em busca de soluções para algo podem convergir em pontos de vista, a partir

das representações “construídas”.

De notar que os aludidos profissionais, quando participam dessa construtividade

representativa, participam na condição de colaboradores. Ou seja: integram o processo, como

ocorre na mediação de conflitos, facilitando o fluxo de possibilidades construídas pelos

próprios interessados.

Uma segunda abordagem, nesse sentido, atina com a construção ou tentativa de

construção de modelos hipotéticos para fazer face aos mundos dos conflitantes. O mediador

pode demonstrar que os mediados estão o tempo todo construindo conceitos e artefatos a

partir de suas posições individualizadas.

O papel da linguagem assume relevância. O mediador pode demonstrar aos litigantes a

linguagem e seu significado. Da correlação dos dois conceitos surge a percepção de que não

somente se pode ver a linguagem como simples transmissão de significados, mas também

como meio hábil à formação de várias conexões, pelas possibilidades da inventividade e da

imaginação.

A interação proposta pela mediação, em razão disto, pareceria de todo possível e

adequada. Só se pode acessar as entranhas de uma realidade por um mecanismo de sua

construção ou reconstrução. E nisto, mais do que representação, há uma guinada para

elaboração de mudanças, adaptações de rumos e novos traçados, tendentes a lidar com

problemas concretos, na singularidade de suas diferenças.

No âmbito de relações concretas entre as pessoas conflitantes, ou entre estas e o seu

meio, podem surgir soluções. Ao contrário de verdades fixas, anteriores e externas aos

interessados (daí ser tida por objetiva essa forma de aplicação de leis às condutas nela

amoldáveis), o que se pode extrair do conflito entre as pessoas diz com a sua condição

interativa. A interação é que faz das relações um marco, a cada instante, da vida, alterando-a.

Por interações todos são formados e de interações todos dependem, muito mais do que

poderia ocorrer em referência a regramento de leis de um passado que não pediu opinião aos

litigantes em sua escrita, a não ser, se tal é possível, pela boca (vontade) de seus ancestrais,

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políticos e legisladores, com os quais não mantiveram nenhum contato de vida, a não ser

simbolicamente, por explicações advindas de lembranças.

Há quem possa argumentar como é próprio da lógica racional, que uma concepção de

regras de conduta desatenada do passado não seria possível, principalmente porque o tempo

presente está constantemente se transformando em passado e, com ele, as regras que um dia

compuseram o tempo presente. Exatamente aqui, o sinal de linearidade faz desaguar

impossibilidades práticas para as pessoas. Se o tempo todo, o presente se converte em

passado, também o tempo todo as leis se convertem em passado, mesmo pela lógica linear isto

é admissível e é uma de suas conseqüências. Com base no reconhecimento disto, é que leis e

mais leis são postas, avassaladoramente, na ordem do dia, inflacionando a cada instante os

sistemas do direito estatal.

No entanto, por mais que as leis “corram” para alcançar o tempo presente, na dinâmica

que seus idealizadores lhe atribuam, ainda assim se tornam insuficientes. Não deixarão de

apresentar, mesmo se corressem à velocidade da luz, falhas que se acaba de demonstrar. Isto

porque, como visto, é impossível talhar as vidas alheias numa representação do que elas

significam, sem lhes adentrar as entranhas e conhecer de suas interações.

O mundo conflitivo das pessoas é bastante amplo e, por isto, indica a construção de

alternativas. Não desmerecer o passado, mas buscar idéias novas; não desprezar o que já se

acha pronto, mas elaborar outras perspectivas; ver de fora do sistema, mas não dispensar um

olhar atento às estruturas internas; são necessidades de vida que clamam por integração.

Uma visão humanitária – com seu modo transcendente de conceber a vida em conflito –

não opta por condenar a representação. Antes, sabe receber o seu legado, multiplicá-lo de

inovações e patrocinar o seu “abraço” com o construtivismo.

A epistemologia construtivista leva à epistemologia genética de Piaget. Embora haja

quem coloque Piaget como pós-modernista e quem o coloque como iluminista, o fato é que

sua teoria aponta para um construtivismo que interessa à mediação, porque interessa à

aprendizagem.

Numa posição que se pode enquadrar como relativismo subjetivista, Piaget responde a

questões sobre como são possíveis a verdade e o conhecimento, afirmando que conhecimento

é construção. Recorre, para demonstrar a construção, à analogia da evolução biológica.

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Von Glasersfeld, defensor de um construtivismo radical, vê na obra de Piaget uma

ruptura entre ontologia e epistemologia, ao dizer:

O construtivismo não formula declarações ontológicas. Não nos diz como é o mundo, só nos sugere uma maneira de pensá-lo e nos fornece uma análise das operações que geram uma análise a partir da experiência. Provavelmente, a melhor maneira de caracterizá-lo seja dizer que é a primeira tentativa séria de separar a epistemologia da ontologia. Na história de nossas idéias, a epistemologia (o estudo do que sabemos e como chegamos a sabê-lo) sempre esteve ligada à noção de que o conhecimento deva ser a representação de um mundo ontológico externo. O construtivismo procura prescindir de tal idéia. Exclui esta condição e afirma, em troca, que o conhecimento só tem que ser viável, adequar-se a nossos propósitos. Tem que cumprir uma função. Por exemplo, tem que se encaixar no mundo tal como o vemos, e não no mundo tal como deveria ser. 29

A mediação pode encontrar terreno nessa perspectiva de construção? Se o conhecimento

não é uma representação de uma realidade externa, mas, ao contrário, um instrumento mental

utilizado no processo de adaptação dos seres humanos ao meio em que vivem, as soluções de

conflitos devem ser construídas, e não baseadas em ditames normativos anteriormente

elaborados.

Em conseqüência dessa construtividade, a noção de verdade também se transforma. Se,

para a visão representativa, tem-se de buscar o conhecimento verdadeiro (como tal concebido

o que confere com a norma anteposta), aqui o que conta, a esse respeito, é o quanto o

conhecimento propicia de possibilidades para ações que coloquem os indivíduos em posição

de interagir com o meio em que se encontrem e, assim, resolver suas tensões.

Essa adaptação de seres humanos ao meio, ao mundo tal como o vê o sujeito, compõe

um processo que se complementa pelas idéias de “viabilidade” e “encaixe”. Essa é a marca

da ruptura radical com a epistemologia tradicional. O conhecimento deixa de ser concebido

como representação de uma realidade externa ao pensamento, para ser uma construção, uma

atividade adaptativa.

O ser, que se representa tão bem quando se diz “alguém é isto”, “você é culpado”,

“ninguém é mais terrível do que você” e outros rótulos do gênero, todos com o verbo ser, foi

extirpado do mundo da mediação. A origem disto está aí: a ontologia foi eliminada do

construtivismo. A interação entre sujeito e objeto ganha novos ares. Sobre essa interação nos

diz Glasersfeld:

[...] na teoria construtivista de Piaget não se pode extrair conclusões sobre o caráter do mundo real, da adaptatividade de um organismo ou da viabilidade dos esquemas

29 Ibid.,1996. p. 82-83.

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de ação. Em sua visão, o que nós vemos, ouvimos e sentimos – ou seja, nosso mundo sensorial – é o resultado das nossas próprias atividades perceptíveis e, portanto, específico dos nossos modos de perceber e conceber. O conhecimento, para ele, surge de ações e da reflexão do agente sobre elas. As ações ocorrem em um ambiente e são embasadas em objetos – e a eles dirigidas – que constituem o mundo experiencial do organismo, não em coisas que tenham, por si mesmas, uma existência independente. Portanto, quando Piaget fala de interação, isso não explica um organismo que interage com objetos como eles realmente são, mas antes, um sujeito cognitivo que está lidando com estruturas perceptivas e conceituais anteriormente construídas. 30

Quando o sujeito interage com seus “construtos”, ocorrem os resultados. A visão

construtivista não está preocupada em saber sobre se tais resultados são verdadeiros.

Interessa-lhe a sua viabilidade ou não. Por isto, pode-se ver na concepção construtivista um

reconhecimento da noção de conhecer, que os céticos da era pré-socrática defendiam. A

observação a esse respeito é do mesmo Glasersfeld:

Os céticos sustentavam que o que chegamos a conhecer passa por nosso sistema sensorial e o nosso sistema conceitual e nos brinda com um quadro ou imagem , mas, quando queremos saber se esse quadro ou imagem é correto, se é uma imagem verdadeira de um mundo externo, o que vemos é visto de novo, através de nosso sistema sensorial e nosso sistema conceitual. Fomos apanhados, pois, num paradoxo. Queremos acreditar que somos capazes de conhecer algo sobre o mundo externo, mas jamais poderemos dizer se tal conhecimento é ou não verdadeiro, já que, para estabelecer esta verdade, deveríamos fazer uma comparação que simplesmente não podemos fazer. Não temos maneira de chegar ao mundo externo senão através de nossa experiência dele; e, ao ter essa experiência, podemos cometer os mesmos erros; por mais que o víssemos corretamente, não teríamos como saber que nossa visão é correta.31

A mediação, por apresentar-se construtivista, não afirma que algo “é”. Opta por dizer

que algo está sendo percebido “como”. Essa percepção é fruto das experiências individuais.

Glasersfeld chega a radicalizar: lamenta que não se tenha extirpado da linguagem o

verbo “ser”, tantas as ambigüidades e contratempos que essa forma de expressão causa.

Assegura que, quando se afirma, por exemplo, “isto é um copo”, isto pode gerar a

compreensão equivocada de que o copo possa existir “como entidade independente da

experiência de outrem”. Ao invés de se afirmar que algo é um copo, parece-lhe mais

adequado dizer: “a partir de minhas experiências anteriores, a imagem que mentalmente

construo sobre este objeto que vejo à minha frente é a de um copo”. 32

Destaca-se a questão ética ou escolha dos propósitos mediante os quais os sujeitos

atuam. Por esses delineamentos as pessoas agem no meio em que vivem e a ele se adaptam.

30 VON GLASERSFELD, E. Construtivismo: Aspectos introdutórios. In: FOSNOT, C. T. (Org.). Construtivismo – teoria, perspectivas e práticas pedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p. 19-23. 31 Ibid., 1998. p.77.32 Ibid, 1998. p. 82.

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Para Glasersfeld, a racionalidade, assim reduzida, não pode fundamentar nenhum tipo de

ética.

Ética e Razão são separadas. As conseqüências são decisivas. Nenhuma educação

(processo de acordos, soluções de conflitos) pode guiar-se sem valores. O estabelecimento

desses valores, para Glasersfeld, não é um processo racional. A ética só poderia ser

“fundamentada racionalmente por uma filosofia que não separe ontologia e epistemologia. E

que construa o homem como uma concepção social e, portanto, histórica”. Motivo para que

um indivíduo se interesse por outras pessoas: a necessidade que o indivíduo tem de

reconhecimento de suas construções cognitivas.

3.2 Entre o bem e o mal dos conceitos

A competição que assola a cultura atual, com sua pressa angustiada de angariar

patrimônio, tem ensejado uma visão negativa de conflito. Quando não se diz diretamente que

é assim que se pensa, são as ações das pessoas que entremostram aspectos ligados à sua não

construtividade. Isto significa que as lutas entre as pessoas, tidas num primeiro momento

como desagregadoras, permanecem em caminhos contrapostos e irreconciliáveis no

desdobramento do tempo.

Essa visão prepara a exclusão de elementos dos sistemas. O sistema composto de um

lado por um dos litigantes trata de separar o seu oponente (o outro sistema) do mundo de suas

cogitações de paz. O outro passa a não existir como porta de acesso para qualquer pegada que

se imagine. Diversamente disto, todas as considerações feitas por um dos lados tendem a

culpar o outro lado, fruto dessa ruptura da cadeia de convivência.

Analisar o conflito apenas por seu aspecto ruim ou bom é uma forma de polarizar as

incompatibilidades. Focadas as resoluções por essa divisão, surge vazio todo o espaço que

medeia uma e outra categoria de pensamento e se corre o risco de perder contato com muitos

recursos, capazes de propiciar um tratamento neutro e de enriquecimento para o combate.

Será o que se tem observado através do sistema judicial ? Por lidar com normas pré-

estabelecidas para as disputas, esse sistema não se aventura a ver além do que vê a norma. A

limitação que se lhe impõe é de molde a desconsiderar o fato que deveria reger e de enfatizar

a norma dele regente.

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Não apreciando os conflitos como fatos que são, mas ao contrário, impondo uma

separação deles em relação à regra jurídica de regência, o sistema se dá o privilégio de dizer

para os litigantes o que é relevante para eles, quais os caminhos que lhes interessa trilhar, que

argumentos são válidos, enfim, o que pode e o que não pode ser objeto de sentido.

A separação que o sistema jurídico estatal coloca entre a norma e o fato, dando primazia

àquela, conduz ao modo de julgar por abstração. Se, nos primeiros instantes da disputa, a

norma levou o fato para dentro dela por uma operação abstrata de recortar o que lhe parecia

relevante do episódio suscitado, o julgamento a advir há de conformar-se também dentro de

operações abstratas. Atribuir-se-á um resultado aos problemas debatidos, por abstração de

muitos de seus aspectos e compatibilização apenas dos que, por abstração, correspondam com

os dizeres da norma.

As pulsões da vida são desprezadas num tal modo de solucionar conflitos. A esse

propósito, sinalizou Warat:

O mediador tem como função tentar recolocar o conflito no terreno das pulsões de vida. Ele tem que retirar o conflito do espaço negro das pulsões destrutivas (um território ao qual não escapa o Direito, suas normas e procedimentos de coerção e vingança. 33

O conflito entre fato e norma não se dá na mediação? De que modo esses elementos

poderiam separar-se? As normas, criadas pelos mediados, ou complementadas pelas normas

préexistentes, atuam em ligações concretas. Quer isto dizer que a abstração decorrente de um

fio mental a ligar um elemento e outro não deixa de existir. Só que, ao seu lado, são

observáveis operações que dinamizam os fatos tratados, na complexidade do seu

desenvolvimento.

Se, antes, a valoração dos acontecimentos partia das normas, aqui essa valoração é

perceptível nos fatos, pelo modo como são trabalhados. Não se quer dicotomia entre norma e

fato. Pelo contrário, é do seu enlace que advirão as conquistas de ambos os lados. Logo se vê

não tratar-se aqui de julgamento apenas jurídico ou abstrato. Há decisão nos fatos, a partir dos

fatos, que ligados efetivamente às normas criadas pelas partes, interagem para que os sistemas

em disputa se satisfaçam.

O modo simplificado e automático com que a norma jurídica, no sistema estatal, transita

para o fato, não pode ser aproveitado, sem mudanças, no sistema da mediação. Diversamente

33 WARAT, Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. p. 87.

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de simplificar esse percurso em que atua a regra estatal, a regra de consenso busca flexionar-

se para atingir pontos recônditos das disputas. Há maior liberdade para isto.

3.3 Entre a disciplina e a transdisciplina

As disciplinas que tentam dar conta do conhecimento, o fazem miradas na

especialização. Assim, como entes separados em cada área de atividade, vão se formando as

várias segmentações, cada uma voltada a cuidar de um campo de atividade, e se formam as

disciplinas físicas, que cuidam dos aspectos físicos, as biológicas, que cuidam das biologias,

as sociológicas, preocupadas com os fenômenos sociais, o direito, voltado para normatizar a

vida em sociedade.

O espantoso das disciplinas, assim empregadas, é essa tendência a ver a importância das

partes em prejuízo do todo da realidade. O conhecimento objetivo que buscam imprimir às

suas pesquisas deixa de lado aspectos outros, configurando mesmo uma forma fechada ou um

sistema fechado em si mesmo. O tolhimento ensejado por essa visão das coisas leva ao

tolhimento do pensamento. E coloca sérias dúvidas sobre se é mesmo possível, no campo das

soluções de problemas humanos, uma abordagem tão só efetuada por uma das disciplinas,

isolada das demais que compõem a vida.

O sistema jurídico tradicional tem-nos feito ver a debilidade dessa proposta de divisão.

Tentando dar uma dimensão apenas objetiva aos conflitos, dispensa-se de averiguar a

subjetivação que se encontra em torno deles.

Jean Piaget fala de uma necessidade de reciprocidade nas relações entre objetividade e

subjetividade. O intento da proposta é o de conciliar os ditames de uma objetividade (calcada

no desejo de universalidade do conhecimento) com o conhecimento de cada grupo, nação ou

pessoa tomados individualmente. Nas suas ponderações:

[...] não pretendo que abandonemos nossos pontos de vista pessoais. Creio que cada um deve manter sua perspectiva particular, pois ela é, em última instância, o único laço que existe com o real. O que há por fazer, mas é exatamente isso que é difícil, é compreender que o ponto de vista próprio não é o único possível. 34

Dir-se-ia que Piaget anteviu a necessidade da mediação. Este saber busca, exatamente,

construir o conhecimento que considere não apenas a dimensão objetiva do conflito, mas

também seu lado subjetivo. Os mediadores, por isso, são preparados não apenas para lidar

34 PIAGET, Jean. Sobre a pedagogia (textos inéditos). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p. 103.

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com os temas normativistas, senão também com ferramentas da psicologia, da sociologia, da

antropologia, e de todas as disciplinas que, entabulam pontes com as pessoas e os conflitos

que as envolvem.

A visão de indissociabilidade de todos os conhecimentos considerados, a par das redes

de contatos que os perpassam, fortalece as decisões. Por encarar o conhecimento como

construção, tanto Piaget quanto a mediação abrem ensanchas à percepção de analogia dessa

forma de encarar os conflitos com a evolução biológica dos seres vivos.

A mediação se abre às outras disciplinas ou formas de conhecimento. Sistema aberto,

aceita a colaboração de outros sistemas no evoluir de suas interações. Forma parcerias. Nesse

sentido, organiza-se com o meio, com os outros, compondo processos de assimilação e

adaptação.

Tal como se dá na biologia, a mediação tanto pode assimilar conhecimentos quanto

adaptar-se a eles, na elaboração de práticas que solucionem incompatibilidades humanas. No

processo de assimilação, traz de fora para dentro de si os recursos que possam contribuir para

seu desiderato de paz. No processo de adaptação, sai de dentro de si e busca fortalecer-se fora

em técnicas que convirjam para seu intento de construir soluções.

A necessidade que a mediação vê de sair de seu espaço de disciplina para a

transdisciplinaridade diz com sua humildade de reconhecer não ser possível a atuação isolada

dos conhecimentos quando se trata de gente. Sendo o homem um ser complexo, seria de

surpreender que apenas a racionalidade pudesse contornar suas dificuldades. Tivesse o ser

humano apenas a dimensão mental, talvez fosse isso possível. Acontece que não é assim.

Sabe-se que o homem também possui outras dimensões, como a sentimental, em cujo âmbito

se agita uma infinidade de possibilidades.

Uma disciplina, ao agir fechadamente, por mais que se esforce em buscar explicações

para suas análises, não encontra bases firmes. A realidade não vive solta, apartada das coisas.

Tudo se interliga. Olhar numa só direção não ajuda quase nada, principalmente quando se

trata de conflitos, oriundos das várias dimensões do ser humano.

Por entender assim, a mediação se comunica com os vários saberes. É esse

entrelaçamento sadio, voltado para construir soluções, essa humildade em precisar de outras

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disciplinas — do mesmo modo que cada um ser não vive sem o outro — , que faz dela uma

maneira de pensar tudo ligado a tudo.

O que pode o normativismo, sozinho, sem a compreensão do homem em suas outras

dimensões?

Nessa modalidade, os sistemas não podem visualizar muito do que lhe passa em torno.

Fechados para o sistema maior ficam impedidos de averiguar relações necessárias com outros

sistemas.

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4 O PODER TRANSFORMADOR

4.1 A mediação que “empodera”

A visão relacional da mediação pode enriquecer a vida das pessoas. É o que

normalmente acontece quando procura, na resolução de conflitos, suplantar posições que

privilegiam apenas visões individualistas.

Da complexidade das relações, podem-se obter possibilidades variadas de composição

de disputas. A potencialidade produtiva do conflito emerge por capacitar as pessoas, com a

ajuda do mediador, a auto-determinar-se. As intervenções são de molde a levar os

confrontantes a repensar os problemas.

Nesse contexto transformador, o profissional da intervenção se vê envolto em várias

trilhas. Embora não exista padrão único a ser indicado para o seu fazer relacional ou

transacional entre conflitantes, os passos a seguir apresentados lhe podem ser de valia no seu

trabalho:

4.2 Esclarecer a função

Importa muito que o profissional da intervenção explique seu papel às partes, antes de

seguir o processo da mediação. Por mais que os disputantes tenham noção do que esperar do

mediador, a explanação feita diretamente por ele passa a gerar conseqüências de enorme

repercussão no desenrolar do processo.

Após dizer às partes que seu objetivo é colaborar com elas, o mediador afirma que

procurará ensejar um contexto em que se esclareçam os pontos do conflito e suas

potencialidades. Quanto às partes, explicará que seu intento é buscar levá-las ao entendimento

do que desejam para si. Se, de tudo concluírem, que o melhor é um acordo, assim o farão,

pelas razões a que chegarem por si. Todos os recursos a serem debatidos e considerados, ao

longo do processo, visam a decisões das partes.

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As conquistas a serem obtidas dependerão do comprometimento, reconhecimento e

desejo das partes. O encorajamento ou facilitação ofertado são de molde a alargar a visão da

contenda. Às vezes, de dentro do conflito, não há condição suficiente para alcançar a solução

de um problema. Ver de fora, ou por outras lentes, pode tornar-se uma necessidade. Quando

estimula as partes a ver por esses outros modos, o mediador pode ser útil à solução que

procuram. E nisto consiste intervir, para abrir portas antes fechadas ou inimaginadas.

4.3 Não julgar

A prática da mediação mantém esse fundamento. Não compete ao mediador julgar

ninguém, muito menos as partes que o escolheram para ajudar na solução de problemas. De

tal decorre seu compromisso de respeitar os pontos de vista, valores e opções das partes.

Seria possível ao mediador conduzir um processo conflitivo sem ter mesmo de fazer

julgamentos? A questão é muito delicada. E é onde entra a competência (capacidade) forte do

profissional em saber lidar com os conflitos alheios e com os seus.

O julgar é próprio da cultura de guerra e não da cultura de paz. Atos que julgam seguem

uma trilha de combate, oposição, contestação, resistência, teima, obstrução de diálogos e

separações de sujeitos. O ato de julgar está diretamente contido numa relação de sujeição e

dominação. No âmbito de relações de confiança e respeito mútuos, os processos que se

buscam estabelecer são de outra natureza: a proximidade dos participantes, a aceitação

conjunta de opções e a preocupação com o bem do outro são fundamentos que indicam

cooperação.

Talvez melhor seja dizer que o mediador se contém de fazer julgamentos ou, pelo

menos, sabe controlá-los, não os expressando na mediação ou não deixando que influenciem

os julgamentos das partes.

De pouco adiantaria ao mediador dizer que não faz julgamentos, ao tempo em que, de

modo enviesado ou implícito, deixasse à mostra suas opções em questões debatidas. As partes

perceberiam, de logo, a tendência do mediador e isto poderia comprometer todo um processo

em que as partes poderiam reagir de formas diferentes.

O desequilíbrio de poder que se possa verificar entre as partes há de ser reequilibrado

por elas mesmas. O terceiro não pode se substituir a elas. Chama-se de ação responsiva a do

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mediador, por se dar a ele a atividade de agir em correspondência à atividade das partes. Deve

desencadear os julgamentos delas. Não julgar por elas.

Por mais que o terceiro detenha conhecimento que propicie intervir sobre a disputa, tal

conhecimento é pouco em relação ao conhecimento que as próprias partes detêm de si

mesmas. Quaisquer mudanças no quadro da disputa deverão advir dos julgamentos que os

interessados alcançarem. O terceiro irá ajudá-las a descobrir o que desejam encontrar os

pontos de insatisfação e, assim, serem levados a aportar onde lhes interessa chegar. O

mediador será guiado pelos enfoques das partes. Desses enfoques extrairá o equilíbrio de

poder entre elas e os caminhos a trilhar para alcançar suas metas.

4.4 Respeito às partes em conflito

Ao assumir uma posição de respeito na condução dos objetivos traçados pelos

disputantes, o mediador está respeitando as razões deles, ao mesmo tempo em que propicia

respeito de um para com o outro. O mediador deflagra energias positivas e as faz emanar para

o conflito. Não lhe interessa o ânimo contrário dos mediandos. Por força de vontade própria

pode desencadear emanações para as pessoas com quem está a dialogar sobre os problemas

apresentados.

As pessoas envolvidas no conflito devem ser tratadas como capacitadas a resolver suas

diferenças. Às vezes se pensa que estas são apenas as que vicejam na dimensão intelectiva das

pessoas. As diferenças a que se destinam os questionamentos da mediação são todas aquelas

do cotidiano, e não somente as que se observem no seu mundo intelectual ou profissional.

Se é de cultura que se trata, numa tentativa de conhecer, respeitar e trabalhar as

diferenças, ganha sentido a observação de Paulo Freire, quando alega:

A cultura não é só a manifestação artística ou intelectual que se expressa no pensamento. A cultura manifesta-se, sobretudo, nos gestos mais simples da vida cotidiana. Cultura é comer de modo diferente, é relacionar-se com o outro de outro modo. Cultura para nós são todas as manifestações humanas; inclusive o cotidiano, e é no cotidiano que se dá algo essencial: o descobrimento da diferença. 35

Descobrir as diferenças e respeitá-las é uma das grandes virtudes de um método que se

propõe com elas lidar, para o seu equacionamento.

35 FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 34.

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4.5 Encarar emoções

Um processo de mediação conta com emoções. Lidando com seres humanos, o

mediador deverá imbuir-se de que pode e deve deixar que se manifestem os sentimentos.

Conflito nenhum pode se desenrolar sem egoísmos, ressentimentos, tristezas, frustrações...

Quando o mediador deixa fluir a caudal de emoções, dá-lhe oportunidade de

manifestação. As partes se capacitam diante das expressões de sentimentos, os quais,

conforme aduz Iering (1998: 84), contêm a força do direito. Nas palavras do professor

alemão: “A força do direito jaz no sentimento, tal qual a força do amor. E, quando falta o

sentimento, o conhecimento e a inteligência não podem substituí-lo”. Adiante, acrescenta:

A suscetibilidade do sentimento de justiça não é igual em todos os indivíduos. Costuma delimitar-se ou robustecer-se na medida em que determinado indivíduo, classe ou povo sinta a importância do direito como condição moral da sua existência, e não apenas do direito como um todo, também de determinado instituto jurídico. 36

Se a essência do direito vive no sentimento, compreende-se o porquê de se apostar tanto na

mediação e em outras formas de composição de conflitos que não seja apenas a estatal. Na

mediação, mais que em qualquer outra técnica, o sentimento é amplamente valorizado.

No uso de tal noção, a mediação pode levar um dos lados litigantes a recuperar

sentimentos, e assim, ver melhor o quanto de enriquecedor pode ter sido uma relação agora

desgastada. Quando se leva uma pessoa a recordar de seus momentos mais profundos na vida

de outra pessoa, muitas respostas podem advir. Mesmo diante de dor que alguém tenha

causado, pode-se, uma vez assumindo o seu lugar, entender os motivos do que se considerava

erro ou ofensa.

É por tal situação que se diz que mediar é aproximar um do outro. Trata-se de uma relação

de um com o outro, em que ambos são indispensáveis à construtividade de metas. Não dá, por

isto, para, simplesmente, excluir dos sentidos o que se passa com o outro.

É dessa interação que se pode colher o lado positivo do sentimento, mesmo na sua feição

negativa. Siginifica que as perturbações amenizam-se quando fluem para fora do ser humano.

Muitas vezes é bastante para acabar uma tristeza a oportunidade de comunicá-la a alguém. De

36 IERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 85.

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igual modo, ocorre com sentimentos de insegurança ou de rejeição. Basta uma oportunidade

de mencioná-la para, em seguida, reconhecer-se que não passava de uma imaginação negativa

e boba da cabeça.

Livres das questões emocionais, quer dizer, expressadas as emoções, as pessoas se

soltam. As questões que verdadeiramente interessam à solução emergem. As partes ficam

mais fortalecidas a discutir outros aspectos do conflito.

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4.6 De frente com as contradições

Envoltas em emoções, pensamentos e mundos povoados de perturbações, o fato é que as

pessoas em conflito se vêem, normalmente, ligadas a contradições. Mesmo em tal terreno, o

mediador encontra ensejo para encorajar as partes em direção ao objetivo de consenso.

Como em um jogo, o interventor deve assistir ao desempenho das partes, seguir-lhes o

rumo e aferir com quais cartas querem jogar.

As contradições, que, num primeiro instante, poderiam significar dificuldade de

enfrentamento, podem, ao revés disto, propiciar pontos de apoio ao mediador. Para que tal

ocorra, vale observar que é possível transitar entre antagonismos a partir mesmo da

composição biológica das pessoas. Sabe-se que o lado esquerdo do corpo humano é regido

pelo lado direito do cérebro. Da mesma forma, o lado direito do corpo recebe controle do

hemisfério esquerdo cerebral.

As forças que atuam nas vidas dos conflitantes podem valer-se desse intercruzamento e

apoiar iniciativas que vejam para além do princípio de identidade, de Aristóteles. Ver uma

dada situação como igual a “A” e somente a “A”, significa estar de frente à identidade pura.

Tudo aquilo que É: É, e tudo aquilo que NÃO É: NÃO É; eis como os princípios

afirmativo e negativo desse pensador se tomam por lógicos, racionais.

Numa tal formulação, “A” somente pode significar “A”, “B” somente “B” e assim por

diante. Torna-se impossível, por essa concepção, que uma coisa SEJA e NÃO SEJA, ao

mesmo tempo.

Sem negar o valor desses princípios para os casos em que tenham aplicação, o agir da

mediação não se contenta com eles. Consegue enxergar que, tanto no mundo natural quanto

no cultural, as coisas podem ser e não ser, ao mesmo tempo. E que é graças à flexão desse

movimento que se podem compreender o valor das relações e enriquecê-las de possibilidades.

Tome-se o exemplo de uma norma. Nascida para regrar condutas, esta entidade É

dotada de autonomia. O “ser” autônoma diz acerca da sua existência e de sua conformação

em códigos ou textos constitucionais. Elemento individual, existe, É autônoma e guarda essa

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qualidade em relação a tantas outras normas que, de igual hierarquia ou não, existam nos

ordenamentos jurídicos.

Vem a outra parte: a mesma norma em apreço também NÃO É autônoma. E não o é

porque foi gestada para regrar uma realidade com a qual deve guardar relação. Esta tem o

caráter de dependência, que está na configuração exata de correspondência entre o ente

normador e o ente normado. Quer dizer: um ser, mesmo autônomo, guarda em sua essência

um sinal de dependência. Uma norma jamais poderá, para ser autêntica, desvirtuar-se da

relação com o mundo dos fatos para os quais se dirige. A vigência e a eficácia da norma,

observadas a partir de suas condições históricas de realização, são indicadores dessa

dependência.

SER e NÃO SER, neste caso, são simultâneos. Ao mesmo tempo se dão as relações de

AUTONOMIA e DEPENDÊNCIA. A norma É autônoma e NÃO É, ao mesmo tempo. Ou,

dito de outro modo, É independente e NÃO É, ao mesmo tempo.

Assim, as contradições podem conviver e, mais que isto, podem se complementar.

Como é próprio dos conflitos, neles se podem observar que, enquanto algo é, pode também

não ser, ao mesmo tempo, e daí se podem obter muitas respostas, por tentativas de conciliação

entre um pólo e outro do que acontece.

Dependendo de como se olhe para uma questão, dela podem surgir efeitos positivos e

negativos para os envolvidos. Esse surgir, ao mesmo tempo, favorável e desfavoravelmente é

indicativo de que se pode transitar por opções. Pela mudança de ângulos de visão e reposição

dos modos como se percebem os objetos, muito se pode angariar de soluções. Há, em

verdade, um campo imenso, aberto aos envolvidos em conflitos, quando decidem por

explicitar suas contradições, pô-las em destaque, trazê-las à luz, para questionamentos.

Os dualismos são aperitivos para a argúcia do conhecimento. Bertran Russel percebeu o

tamanho da importância deles, ao explorar as doutrinas rivais, na filosofia ocidental, ao tempo

em que as explicou para o mundo dos críticos. Admitiu:

A maneira pela qual estes problemas foram abordados pelos primeiros filósofos é instrutiva. Uma determinada escola se dedicava a um dos lados de um dualismo; em seguida, outra lhe faria críticas e adotaria o ponto de vista oposto. Afinal, surgiria uma terceira escola, que produziria uma espécie de compromisso, substituindo as duas opiniões anteriores. Ao observar essa batalha pendular entre as

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doutrinas rivais de filósofos pré-socráticos, Hegel resolveu pela primeira vez a sua noção de dialética”. 37

Foi a partir de discussões sobre esse tema, que se pôde esclarecer dimensões

ontológicas e deontológicas no domínio do direito. Havia uma forte corrente de juristas que

não via como compreender que do “ser” pudesse advir o “dever-ser”. O entendimento a esse

respeito era o de que, a descrição não pode gerar a prescrição. Os mundos seriam desligados e

impenetráveis.

Com o pensamento dialético, Hegel fez por compor o dualismo existente. Demonstrou

que as duas entidades, apesar de opostas, são comunicantes e se complementam. Arnaldo

Vasconcelos fez repercutir entre nós o acontecido, expressando-se da seguinte forma:

Para Hegel, já não se trata apenas de afirmar a comunicabilidade entre as categorias do ser e do dever-ser, mas de negar a própria distinção. Em seu idealismo absoluto dissolvem-se todas as oposições, para chegar-se à unidade do conceito. O jogo dialético firma o princípio universal de que “o que é real é racional, o que é racional é real”. Dele flui, naturalmente, que ser e dever-ser não só se pressupõem e se completam, mas, finalmente, se identificam. Com os hegelianos, o Direito tanto é um ser, que tem o significado de um dever-ser, como um dever-ser, que tem o significado de um ser. 38

O professor cearense chega a fornecer exemplos de como isto ocorre. O intuito é o de

não deixar dúvidas acerca das possibilidades de conciliação entre categorias contrárias.

Escreve:

Do direito, que é relação jurídica, deriva o direito que deve ser, a prestação de cada uma das partes vinculadas; da não prestação, que é, origina-se o dever-ser da sanção; e do ser de sanção consumada, provém o dever-ser da coação possível. Existe, pois, no Direito, comunicação sucessiva entre ser e dever-ser, trânsito contínuo de um estado para outro. Pela análise do fenômeno jurídico, verifica-se que o Direito que é (Natural) transporta-se para o Direito normativo que deve ser (Positivo). 39

De tudo se percebe – para usar a expressão hegeliana —, a composição de uma

“totalidade” que se faz existir entre tese e antítese, superadas na síntese. Nesse jogo

comunicacional, nem a tese é bastante em si, nem a antítese. Apesar de opostas, buscam

encontrar-se e se encontram. De uma categoria à outra existe correlação e reciprocidade. Não

37 RUSSEL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.19.38 VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia, 2. ed. rev. amp. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 63. 39 Ibid p. 62.

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se pode cuidar de uma, excluindo a outra, porque é do vai-e-vem entre elas que se produzem

as respostas.

O pensamento dialético, nesse sentido, serve à mediação de conflitos e, a um primeiro

olhar, se confundiria com o pensamento complexo, orientador desse meio de composição.

Entretanto, há diferenças entre os modos como tais pensamentos se oferecem às soluções.

Para a dialética, a verdade é a totalidade. Não se cansa de afirmar que, no todo a que se

tem acesso na discussão de problemas, residiria a verdade. Implicação disto é que o universo

é ordem, e das buscas em seu interior se podem obter objetos, espelhadores de certezas.

O pensamento complexo segue outra trilha. Os mundos que investiga não lhe dão nem

certezas, nem verdades absolutas. O que intenta é um conhecimento multidimensional. Nas

palavras de Morin (2005: 7), que faz suas as palavras de Theodor Adorno: “A totalidade é a

não-verdade”.

A não-verdade implica incertezas e incompletudes. Daí o fato de esse pensamento,

diversamente do dialético, olhar o universo como caos (e não somente como cosmos). O

universo não é pura integração, mas desintegração também. Integra-se, desintegrando-se.

Dessa idéia de complexidade, por reunir antagonismos e os complementar, a mediação

muito aproveita para solucionar problemas humanos. O que são os conflitos, senão

exatamente essa luta permanente entre integrar e desintegrar ?

Saber encontrar pontos de comunhão nesses movimentos é habilidade que facilita a

resolução de disputas. Dos muitos giros das forças em jogo, muitas possibilidades de diálogos

e ações vêm a lume.

Olhar apenas para um dos lados das coisas, ou buscar solução tendo em mente um modo

só de raciocínio, é limitar a riqueza dos processos de oposição. Não se pode esquecer de que

há uma imensidade de modos de se chegar a um consenso, quando as partes interessadas a tal

se dispõem, por vontade.

As pessoas todas, especialmente as em conflito, que se mantenham no leito apenas de

uma opção (visual, auditiva, de raciocínio, ou de qualquer outra modalidade), somente estão

aptas a perceber o que lhe comunica um dos lados do cérebro. A ação desintegrada desse

órgão causa visões isoladas. Perde-se a oportunidade de integração dos hemisférios, um

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acomplamento que embora agindo de modo contraditório, favorece uma visão maior dos

conflitos. Maturana descreve o que acontece quando assim se age, da seguinte maneira:

Há maneiras de produzir, em laboratório, uma interação preferencial com o hemisfério esquerdo e direito do cérebro em separado. Esses experimentos se baseiam na anatomia do sistema visual, no qual tudo o que vemos com o lado esquerdo estimula neurônios que se encontram no córtex direito e vice-versa. Desse modo, se fixamos o olhar de um indivíduo e controlamos a localização em seu campo visual das imagens-estímulos, podemos escolher entre interagir preferencialmente com o córtex direito ou o esquerdo. Nessa situação experimental, descobrimos que é possível encontrar distintos comportamentos, caso a interação com a pessoa ocorra pela direita ou pela esquerda. Por exemplo, um indivíduo se senta diante de uma tela, com a instrução de escolher, entre vários objetos — que não pode ver — aquele que corresponde à imagem projetada. Se no lado esquerdo (hemisfério direito) projetamos a imagem de uma colher, ele não terá dificuldade para encontrar, pelo tato, a colher que está sob sua mão e mostrá-la. Mas se agora, em vez da imagem de uma colher, mostramos a palvara ‘colher’, o indivíduo não reage. Quando questionado, confessa que não viu nada. Interações faladas ou escritas que só envolvem o córtex direito são, em geral, ininteligíveis para adultos depois da secção do corpo caloso. Nesses casos, eles não podem interagir com o córtex esquerdo na linguagem escrita, do mesmo modo que um bebê ou um macaco. Contudo, pessoas assim são perfeitamente capazes de participar, pelo campo visual esquerdo, de outros domínios lingüísticos, como mostram os mesmos experimentos.Imaginemos agora que em vez de mostrar a essa pessoa uma colher, em seu hemisfério direito, lhe mostremos a imagem de uma bela modelo nua, diante da qual ele se ruboriza. Ato contínuo, perguntamos: ‘O que aconteceu?’ A resposta do indivíduo é: ‘Mas doutor, que máquina divertida essa sua...’ Ou seja, a pessoa com quem estamos conversando por meio de e perguntas e da linguagem falada, em interações que só envolvem seu hemisfério esquerdo, simplesmente não é capaz de fazer descrições orais das interações que ocorreram no seu hemisfério direito, do qual o esquerdo está desconectado. 40 (Grifou-se).

O princípio da identidade implica assim o princípio do terceiro excluído. O que destoar

dos objetivos comumente esperados de uma formulação testada, não seria aceita. As

incertezas não teriam vez ou consideração num tal sistema. Não ocorridas as conseqüências

de uma pesquisa, tal como esperado, o estudo estaria “furado” e só por isto já mereceria ser

descartado. Esta é uma visão que desatende a compreensão das contrariedades tão próprias do

ser humano quanto os conflitos.

A mediação de contrariedades é recurso inafastável para as pessoas envolvidas. Pode-se

perceber que os pensamentos vêm ao cérebro de modo dual. As pessoas, principalmente as em

conflito, pensam os problemas por vertentes duplas: “consigo” / “não consigo”; “posso” /

“não posso”; “isto me ofende” / “não me ofende”.

Com as representações mentais ocorre assim. E com as emoções também. Sente-se em

fluxo polarizado. Pode-se percorrer uma via que vai de uma emoção de raiva até uma emoção 40 MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. 5. ed. São Paulo: Palas Athena, 2005. p. 248-250.

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de sintonia com a pessoa à frente do seu interlocutor. Cérebro, pensamento, emoção são

unidades complexas. Nadam em contradições e por elas se afirmam.

Cabe ao mediador buscar integrar esses elementos. Das conversas com os conflitantes

pode perceber qual dos lados cerebrais mantém preponderância. Em seguida, montará um

quadro de trabalho onde faça transitar estímulos de transitividade de um extremo a outro das

questões debatidas.

Pode o mediador, nesse ritmo, imprimir imagens às suas considerações. Da

manipulação de emoções e pensamentos dos envolvidos, poderá encontrar “acomplamentos” a

permitirem revisão de fatos, com proximidade, brilho, distanciamento, cor e uma série de

agregações ao momento presente da disputa.

A visão demonstra o nível de complexidade do aparato humano de que se pode valer a

mediação. E o faz quando sabe perceber os antagonismos e sua complementaridade, a partir

das potências cerebrais.

Não se deve esmagar os recursos de um dos lados, em prejuízo do outro lado. Perceber

isto e com isto atuar significa que a mediação encontra aberturas para manipulação, mesmo

sem julgar, dos conflitos interpessoais. Tal modo de se conduzir corrobora o entendimento de

que pode deixar para trás de si formulações científicas, privilegiadoras de soluções por

mecanismos que atendem tão-só à esfera direita ou à esquerda de operação do cérebro

humano.

A essas aberturas, Morin designou de brechas. E sem o saber, faz atrair essa concepção

ao processo mediático, chegando a sentir daí muitas quebras de paradigmas e muitas fendas

no quadro epistemológico. Assevera:

Assim houve de início duas brechas no quadro epistemológico da ciência clássica. A brecha microfísica revela interdependência do sujeito e do objeto, a inserção do acaso no conhecimento, a desreificação da noção de matéria, a irrupção da contradição lógica na descrição empírica; a brecha macrofísica une numa mesma entidade os conceitos até então absolutamente heterogêneos de espaço e tempo e quebra todos os nossos conceitos a partir do momento em que eles eram transportados para além da velocidade da luz. Mas pensava-se que estas duas brechas estavam infinitamente longe de nosso mundo, uma no pequeno demais, outra do grande demais. Não queríamos dar-nos conta de que as amarras de nossa concepção de mundo tinham acabado de se soltar nos dois infinitos, que em nossa ‘onda média” não estávamos no solo firme de uma ilha cercada pelo oceano, mas num tapete voador.Não há mais solo firme, a ‘matéria’ não é mais a realidade maciça elementar e simples à qual se podia reduzir a physis. O espaço e o tempo não são mais entidades

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absolutas e independentes. Não só não há mais uma base empírica simples, como também uma base lógica lógica simples (noções claras e distintas, realidade não ambivalente, não contraditória, estritamente determinada) para constituir o substrato físico. Resulta daí uma conseqüência capital: o simples (as categorias da física clássica que constituem o modelo de qualquer ciência) não é mais o fundamento de todas as coisas, mas uma passagem, um momento entre complexidades, a complexidade microfísica e a complexidade macrofísica. 41 (Grifou-se).

Imbuída dessa concepção, o processo de mediar trabalha. O homem é o pequeno

mundo. Da integração contraditória com outro homem, pode ascender ao plano macro, onde

outras alternativas estão disponíveis ao conhecimento.

O distante e o próximo, ao mesmo tempo em que se separam, podem tocar um ao outro.

Essa lógica contraditória perpassa tudo, e a mediação busca empregá-la no trato dos conflitos,

lugar perfeito para a manifestação das contrariedades.

4.7 O presente do conflito interligando passado e futuro

As disputas desafiam o olhar do mediador para o presente. É no tempo presente que o

mediador tenta verificar o que está ocorrendo, quais extrações pode fazer do comportamento

de cada parte. Ao concentrar-se em pontos em discussão pode ver a ligação entre os fatos

discutidos e algum ponto do passado.

Valorizar o presente em discussão implica ouvir o que cada disputante tem a dizer. Dos

diálogos se pode obter como cada um gosta (ou gostaria) de ser visto. Quais suas

expectativas. Pode-se, então, falar em capacitação delas, seu reconhecimento pela outra parte.

Podem interagir.

As partes podem e devem contar as histórias de suas vidas. E assim podem refletir.

Buscar pontos de fortalecimento, esclarecimento, disposição e percepção que as ajude na

tomada de decisões.

A mediação transita da história abstrata que o fenômeno jurídico capta em seu momento

presente até à história concreta que lhe deu origem. Os conflitos não evoluem do nada.

Nascem de contatos e relações. As desavenças de hoje são conseqüências de atividades de

ontem. Tem-se de rever o tempo, o tempo em que se deu a contenda, buscar a sua trajetória,

tentar compreender os elementos que compõem o seu sistema, como roteiro evolutivo para

sua superação.

41MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 18-19.

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Contrariamente ao sistema judicial, que tende a uma evolução linear da história dos

conflitos, a mediação marcha para a amplitude deles. Pode perscrutá-los, um a um, em suas

meditações. Dá-lhes vibração e cor.

Quando o sistema judicial atua na história dos conflitantes tende a desencadear posições

reativas. O arcabouço de soluções à disposição dos contendores não os fortalece a tornarem

vivos as possibilidades de superação de traumas. Os fatos desenrolam-se sem luz ante os

olhos dos disputantes: audiências em que não são ouvidos... quando ouvidos, o são por um

aspecto só de abordagem... sistema de julgamento que não os exime de críticas, “puxões de

orelha” e outras maçadas... sem falar no arsenal de formalidades, expressões ininteligíveis e

modos de atuar de magistrados e serventuários.

A ruptura da mediação com esse sistema é clara. Tenta enveredar pela proatividade. Vê

para a frente do conflito, sem deixar de olhar para trás dele. Expande a compreensão para o

movimento da vida. Diz que há necessidade de mover recursos para atingimento de objetivos.

Viver lamentando indefinidamente o que ocorreu, de que servirá? Tal posição pode atrair

mais dificuldades. É como se dissesse, em mensagem quase inaudível: urge sair da

miserabilidade dos pântanos e buscar vida em terrenos firmes; sair da escuridão do passado e

pugnar pela luz de novos dias.

Para o entendimento do que ora se expõe, pode-se projetar um quadro em que a AÇÃO

medeia a REAÇÃO e a PROAÇÃO. Tudo o que pretende dar maior relevo aos

acontecimentos surgidos da ação para trás pode chamar-se de reação. Às atitudes que

conferem mais importância aos acontecimentos a serem gerados da ação para a frente, cabe

chamar de proação.

Numa reta, a formulação seria: reação, ação, proação. O mediar da ação humana, em

conflitos, faz o giro complementar da reação com a proação. Seu trabalho se volta a buscar

resultados, o que enseja desfazer posições endurecidas no tempo e enfraquecedoras das

pessoas.

A partir da linguagem que caracteriza as formas com que se pode agir na vida, é

possível atentar para exemplos de como se desenrolam esses conceitos. Tome-se o esquema a

seguir:

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O que dizem as pessoas diante de fatos do dia-a-dia:

PESSOAS REATIVAS PESSOAS PROATIVASNão há o que fazer.

Está tudo perdido.

A escuridão domina tudo.

Não posso.

Ninguém me entende.

Este trabalho me fatiga muito.

O trajeto é longo demais e cansativo.

Por que me esforçar tanto, se a vida é tão

curta?

Você só me desagrada!

Não tenho dinheiro.

A culpa é toda sua!

Não tenho nada a ver com isso!

Vamos ver o que podemos fazer.

Pode haver uma saída.

Em algum ponto cintila luz.

Posso.

Buscarei ser mais claro.

Neste trabalho me divirto e ganho meu

sustento.

Aproveito o trajeto para caminhar,

oxigenar o cérebro e equilibrar a saúde.

A vida vale pelo imenso aprendizado que

oferece.

Você pode agradar de outro jeito!

Estou tentando suprir, pelo trabalho,

minhas necessidades financeiras.

Como você interpreta a causa desse

episódio?

Vamos discutir esse problema?

São muitas as implicações desses modos de atuação para as pessoas. A principal tem a

ver com as energias, que, empregadas numa situação ou noutra, quer dizer, para trás ou para

frente, podem desencadear enfraquecimento ou fortaleza. Pensamentos, idéias e imagens que

ocupam a mente são formas de energia. Sentimentos também o são. Conseqüência direta

disto: onde estiverem os pensamentos e as emoções das pessoas, também aí estarão as

energias.

Dirigir pensamentos e emoções para o passado e nele permanecer, remoendo mágoas e

discussões de como poderia ter sido se de outro modo tivesse atuado, significa dispersar

energias, enfraquecê-las. As energias quando em consumo se debilitam, tal qual uma bateria

do sistema elétrico dos automóveis.

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Doutra parte, mirar as idéias e as emoções no futuro, para a construção de resultados, no

delineamento do que se deseja e quer, ativa energias fortalecedoras, que se renovam por si

mesmas, numa dinâmica de realimentação.

Uma grande diferença da proatividade para o pensamento positivo se faz notar:

normalmente este age apenas no mundo mental; a outra se manifesta nos dois mundos (mental

e físico). É por isto que apenas manter-se com ânimo positivo pode não resolver os problemas

das pessoas. Embora esse estado seja relevante, pode não ser capaz de ativar os resultados.

É com a proatividade que se temperam os dois mundos, o da mente e o físico. Quando

se afirmou, no capítulo terceiro deste trabalho, que conhecimento é construção, que mediar se

fundamenta na epistemologia de perspectiva construtivista, era exatamente isto que se queria

dizer.

Tudo porque no final das contas – seja por se dar prevalência à representação como

modo de se tomar conhecimento das coisas, ou seja porque se atribua à construção que o ser

faz para delas conhecer —, não há negar que tal processo ocorre de forma dupla. E para os

que entendem o conhecer como construção, surge, clara, a construção dobrada. É dizer:

constrói-se algo uma vez na mente; para, logo depois, construir de novo no mundo físico.

Para o pensamento positivo, a segunda construção poderá não ocorrer. Às vezes, as

pessoas, por melhor que intentem tratar suas idéias, o fazem num plano distanciado da

realidade. As coisas ficam vagando pelo ar e se perdem no idealismo que não chega a

vincular-se com a matéria do mundo dos fatos. Na mediação, o objetivo trabalhado é de

construção das soluções nos dois mundos (mental e físico), dando acabamento à proatividade.

Quem estabelece para si o parâmetro da reação está ligado a fatos do passado. Lidando

com conflitos, essas pessoas retornam a um tempo em que as lembranças só parecem piorar

seu momento presente. É como se recebessem, em dobro, os sofrimentos já experimentados.

Porque se voltam ao que passou, as pessoas se tornam tendentes a culpar mais

facilmente as outras por tudo o que lhes ocorra. Se alguma coisa não chega a se verificar

como um dos lados espera, é comum que dispare dizeres como os seguintes: “a culpa é sua,

que não me avisou do assunto”, “se você tivesse dito que ele estava aqui, eu não teria vindo”,

“você viu o que fez, prejudicou todo o meu dia?!”.

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Em tais condições, como se tem observado durante os debates que visam solucionar

problemas interpessoais, um dos envolvidos, ou os dois, perdem as chances de olhar para a

frente dos problemas. Dispensam-se de construir, de logo, resultados e se “afundam” em

análises de algo transcorrido, no qual só aumentam suas forças para mais brigas, insultos e

atribuições de culpa recíproca.

Uma visão para os resultados capacita, por outro lado, uma maior concentração no

diálogo. Os envolvidos, ao tempo em que dissolvem vinculações negativas do passado,

comprometem-se para o futuro. Atingem condições de responsabilidade pelos atos que

chegarem a estabelecer, e não de mera culpa pelo que fizeram.

Percebe-se que a noção de culpa tem grande adaptabilidade para a unidade. São

exemplos: “você é culpado”, “a culpa é dele”, “só ela errou”. Já a responsabilidade encarna

noção mais vocacionada para a pluralidade: “este problema foi gerado por nós”, “temos

condições de resolvê-lo”, “vamos assumir este compromisso”.

4.8 Visão de conjunto (sistema)

A existência do conflito é reveladora de um contexto mais amplo. De fato, o conflito

mostra ao mediador e aos mediados aspectos não somente interiores a esse sistema, mas

também exteriores a ele. O modus operandi da mediação parece atentar para a complexidade

do significado disto. Revela a tendência dos sistemas a se comunicarem com outros, na busca

de ajustar as partes aos ganhos que podem advir de outros pontos de vista.

Instaurado um conflito entre pessoas, ao se debaterem postados (fixos) em posições

antagônicas, lineares, não sairão do ponto de resistência. Quando olham para fora do sistema e

movimentam recursos que não apenas o do sistema em si, descobrem portas.

Está aí uma face de aproximação dos dois conceitos. E assim também com outros

exemplos. Se alguém discute com outrem e se agarra a posições fixas (na qual se embrutece),

fica limitado e perde as chances de ver em outras direções.

O direito estatal de julgamento, com propiciar aos litigantes os dizeres da norma a ser

aplicada (como autêntico sal da terra), confere essa limitação, pois o sistema que cuida de ver

e de estabelecer como balizador da controvérsia não abarca outros sistemas, e quando o faz

(abarca) não tem condições de adentrar sua profundeza.

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O sistema legal (paradigma positivista) manieta o homem de suas potencialidades.

Cega-o; limita-o; põem-no em luta com o próximo por fechar-se num sistema que pretende

ser auto-suficiente, sem o ser.

Arnaldo Vasconcelos chega a duvidar da racionalidade desse sistema, tantos os defeitos,

reduções e abstrações que nele enxerga. O pior de tudo é que, pelas formulações engendradas

ao sabor do positivismo das normas, faz-se da justiça um objeto de fácil aprisionamento, já

que legisladores de plantão podem, a qualquer momento, levá-la de qualquer lugar a outro,

com a certeza de que ela pode resplandecer em textos e códigos. Diz o jusfilósofo cearense:

Os defeitos, todos, provieram das abstrações racionalistas, que estiveram na base de suas sugestivas teorias. Ou melhor: dos aspectos irracionais desse racionalismo, os quais se centralizaram na crença fanática na força da lei. Atribuíram-lhe potencialidades que não lhe pertenciam absolutamente. Como resultado, tivemos a justiça e a legitimidade, instâncias metapositivas por excelência, contidas forçadamente no texto legal. 42

Conferir capacidade à lei, de abranger a força do sistema de direito, é o mesmo que

atribuir à parte a condição de responder pelo todo.

Ao movimentar recursos fisiológicos, emoções e idéias do complexo humano, a

mediação enverga habilidade para ver o todo do sistema conflitivo. Das interações de suas

várias partes, no próprio sistema ou noutro maior, ou vizinho a ele (já que tudo se embebe de

sistemas) advirão as soluções para qualquer conflito.

A conscientização acerca das potencialidades da mediação, como sistema, vem

aumentando no mundo inteiro. Não poucas vezes, tanto esse mecanismo de solução de

conflitos, quanto outros, alternativos ao sistema judicial, têm sido sugeridos como forma de

encontrar respostas que o sistema tradicional não consegue dar ou, quando consegue, o faz

desatendendo às mínimas necessidades dos interessados. É o que diz o Documento a seguir:

O Poder Judiciário é uma instituição pública e necessária que deve proporcionar resoluções de conflitos transparentes e igualitária aos cidadãos, aos agentes econômicos e ao estado. Não obstante, em muitos países da região, existe uma necessidade de reformas para aprimorar a qualidade e eficiência da Justiça, fomentando um ambiente propício ao comércio, financiamentos e investimentos.O Poder Judiciário, em várias partes da América Latina e Caribe, tem experimentado em demasia longos processos judiciais, excessivo acúmulo de processos, acesso limitado à população, falta de transparência e previsibilidade de decisões e frágil confiabilidade pública no sistema. Essa ineficiência na administração da justiça é um produto de muitos obstáculos, incluindo a falta de independência do judiciário, inadequada capacidade administrativa das Cortes de Justiça, deficiência no gerenciamento de processos, reduzido número de juízes, carência de treinamentos,

42 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 256.

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prestação de serviços de forma não competitiva por parte dos funcionários, falta de transparência no controle de gastos de verbas públicas, ensino jurídico e estágios inadequados, ineficaz sistema de sanções para condutas anti-éticas, necessidade de mecanismos alternativos de resolução de conflitos. 43

Das muitas faces que revelam as condições precárias do sistema judicial, destaca-se a

necessidade de mecanismos que lhe sejam alternativos. A função é a de complementá-lo. O

sistema estatal deve valer-se de sistema extrajudicial para atingir sua missão adequada de

distribuir justiça.

Das manifestações apresentadas, flui um clamor por mudanças. Argumenta-se que os

elementos do sistema judicial estão desagregados, dissonantes e sem vitalidade. O sistema

todo parece comprometido. Onde encontrar soluções? Noutros sistemas, portadores de

elementos que fortaleçam as legítimas aspirações dos cidadãos. O sistema tradicional está

sufocado; não garante confiabilidade, nem segurança, nem certeza.

O sistema falhou; e agora tenta complementar-se de outros, que apontem soluções mais

compatíveis com os estágios de evolução atual das pessoas e instituições.

Um desses estágios diz com a globalização. Trata-se de fenômeno que se imbrica com a

razão de se querer mediar os conflitos atuais, principalmente nos campos trabalhista e de

família. Dir-se-ia existente uma espécie de conscientização para uma nova postura frente aos

desmazelos da Justiça como aparelho único do Estado de Direito. Cada pessoa e mesmo

aglomerados de grupos passam a se dar conta de que podem tomar a frente de suas decisões.

Escolher por si mesmos a solução de suas dores passa a ser uma realidade.

Boaventura atina com a globalização, para entender que nada se livra desse fenômeno hoje

em dia. Desde a economia, a política e a cultura, tudo se impregna da feição global. Assim

também os mercados. Assim também os tribunais. O aludido Professor revela mesmo o

andamento de um visível interesse, existente no mundo todo, pela reforma do sistema judicial.

Diz, em tom enfático:

E esses objetivos globais são muito simplesmente a criação de um sistema jurídico e judicial adequado à nova economia mundial de raiz neoliberal, um quadro jurídico e judicial que favoreça o comércio, o investimento e o sistema financeiro. Não se trata, pois, de fortalecer a democracia, mas sim de fortalecer o mercado. O que está em causa é a reconstrução da capacidade reguladora do estado pós-ajustamento estrutural. Uma capacidade reguladora que se afirma pela capacidade

43 BANCO MUNDIAL. Doc. Téc. nº 319 do Banco Mundial, sobre o Setor Judiciário na América Latina e no Caribe.

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do Estado para arbitrar, por meio dos tribunais, os conflitos entre os agentes econômicos. 44

A reforma do sistema judicial chega, de vez, segundo o mesmo doutrinador. Ele não

trepida em assegurar que, do mesmo modo que é justa a resistência de juízes ao advento de

um sistema judicial, meramente tecnocrático, fortalecedor dos ricos e seus empreendimentos,

– também é justo e necessário que sobrevenha um sistema de justiça que faça valer todo o

conjunto de aspirações democráticas dos cidadãos. Os termos, em que se expressa, são:

A resistência justa dos magistrados contra uma reforma tecnocrática do sistema judicial exclusivamente orientada para as necessidades da economia mercantil não pode servir de álibi para justificar a resistência a uma profunda reforma do sistema judicial orientada para a efetiva democratização da sociedade e do estado. O sistema judicial precisa ser radicalmente reformado para responder às aspirações democráticas dos cidadãos cada vez mais sujeitos ao abuso de poder por parte de agentes econômicos muito poderosos. Se essa reforma política e democrática não tiver lugar, o vazio que sua ausência produzirá será certamente preenchida por uma reforma tecnocrática virada para servir preferencialmente aos interesses da economia global. 45

Essas observações estão consentâneas com o sentido da mediação. Os pontos de ligação

apontam para duas direções. A primeira indica a irreversibilidade deste meio de composição

de conflitos, por imposição de mercado. Não se pode desconhecer que investidores e

financistas estão cada vez mais preocupados com a segurança e a rentabilidade de seus

empreendimentos. O Poder Judiciário, arcaico como tem se apresentado, não pode oferecer

respostas compatíveis com a velocidade e o tamanho dos negócios.

Se assim é, não há falar, mesmo, no advento de democracia como fator preponderante da

mediação que se observa. O veio democrático há. Porém, sua existência veio a reboque do

interesse globalizante, ávido por respostas urgentes a necessidades urgentes.

E qual a outra direção que a tempestade global oferece ?

Essa é a mais grave. E tem a ver com o mau uso da mediação ou de algumas de suas

ferramentas. O próprio Judiciário tem sido um dos principais responsáveis por essa mancha,

quando de sua atuação em chamados “mutirões” de julgamentos.

44 De artigo intitulado “Da mediação e da arbitragem endoprocessual”. Disponível em <http://www.uepg.br>. Acesso em 20/07/07.45 Ibid.

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A necessidade de mostrar serviço, na resolução de processos inumeráveis, tem levado o

sistema judicial, nem sempre zeloso de seu ofício, a também não o ser na utilização da nova

forma de composição. Vêem-se Juizados Especiais e Juízos diversos, espraiados pelo Brasil,

formulando acordos e mais acordos, com a preocupação quase exclusiva de desafogar

armários e prateleiras, abarrotados de papéis.

Nessas ocasiões, privilegia-se a quantidade de acordos em detrimento de sua qualidade. E,

pouco a pouco, colabora-se para a desconstrução de um instrumento que aflorou, justamente,

como alternativa à deficiente prestação de justiça do Estado.

Os processos por busca de justiça têm um novo papel a desempenhar no trato das relações

atuais. As pessoas não estão mais conformadas em simplesmente litigar por litigar. Querem,

ao contrário, extrair das normas existentes, tanto na Constituição quanto em Códigos

infraconstitucionais e, principalmente nos códigos não-escritos da vida, a solução efetiva de

seus problemas.

Nessa concepção e como resposta a essa nova postura, o processo passa a se investir de

outras compreensões. Não dá mais para ser visto como algo pertencente somente às partes,

nem, por outro lado, pode infundir a idéia auto-suficiente e duradoura de que, no processo, os

direitos e garantias são, em verdade, iguais para todos. O direito de ação, por exemplo, apesar

de todas as manifestações doutrinárias em sentido de sua abertura, não tem conseguido

franquear-se, a contento ainda, para todas as pessoas.

Sendo a nova visão de justiça impulsionada pelo trato que lhe impõe a globalização, o

sistema de justiça anterior fica convocado a abraçar outros sistemas e a compor outras redes

de novidades. Está-se diante de condições que determinam uma nova mentalidade social.

Assim, o princípios como o da oralidade e seus consectários (a imediatidade do juiz e a

concentração da causa) devem ser postos em novo relevo.

Não é que se deva afastar, de todo, a escrita. O que se quer dizer é que a oralidade ganha

espaço amplo no deslinde dos conflitos onde as partes têm melhores condições de falar e ser

ouvidas. O mesmo se dá com outros participantes do processo, entre os quais: testemunhas e

quem quer que, por alguma razão julgada essencial, possa contribuir para a causa. O

mediador, tal como devia fazer o juiz, pode captar, no trato da questão que lhe é posta, um

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amplo leque de informações valiosas para o desate dos problemas sociais. Não apenas

informações, mas, principalmente, sentimentos, dados psicológicos e nuances de sentidos, que

só a presença, o diálogo e a percepção direta com as partes podem propiciar.

A oralidade pode convencer de que tem como responder a um dos maiores problemas do

Judiciário, que é o amontoado de escritos e papéis de que faz uso. A tal ponto se agravaram os

problemas, que já se cuida do processo dito “eletrônico”, embora, ainda assim, não se tenha

deixado de escrever, e muito, para alcançar comunicação com os órgãos de julgamento.

Enquanto um advogado chega a passar dias e dias em frente a um computador, digitando

paginas e páginas de uma petição, será que não seria mais aconselhável dizer tudo aquilo

perante o mediador e as partes ?

Quanto ao julgador, qual a necessidade de colheita de razões escritas, se nem sequer

chegou a ler todos os escritos que lhe foram endereçados ?

E as comunicações judiciais ? Qual o sentido de se remeterem citações, intimações e

notificações, amplamente detentoras de qualificativos e modismos de linguagem jurídica, para

muitas pessoas que jamais tiveram oportunidade de conhecer desses meios ?

De todos conhecida, a crise do Judiciário brasileiro se patenteia, principalmente, por

fatores que a mediação pode enfrentar. Quais são eles ? Basicamente: lentidão, deficiente

assistência judiciária e pouca oralidade. Se a isto for somada a enxurrada de recursos e a má

formação de servidores e juízes, tem-se a noção do quão perigoso se revela o quadro para

todos os que precisam de justiça.

A mediação de conflitos vem contribuir, e o faz por meios inversos aos do sistema judicial.

A complexidade de se buscar, pelo consenso, resolução de problemas interpessoais, é um

grande desafio para esse meio de solução.

Quando Mauro Cappelletti se refere à dimensão social do processo, afirma a existência de

uma revolução copernicana. No seu tempo, Copérnico se deparou com um sistema de

astronomia que perfilhava o geocentrismo. Em tal formulação, a Terra assumia o centro dos

privilégios universais, rondando-lhe em torno os demais corpos celestes. O cientista polonês

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descobriu que não era assim. O Sol, e não a Terra, é que é o centro do sistema solar. O

heliocentrismo foi mesmo uma revolução, a ponto de, a partir de novas descobertas, se mudar

totalmente os enfoques e os estudos espaciais.

Assim como em astronomia, o processo por justiça sofreu revolução. Não pode mais,

como dantes, aceitar o positivismo legal como o centro do universo jurídico. De fato, a

redução do direito à norma – seja a geral ou a particular, consistente de manifestação judicial

para um caso concreto – não deve merecer do intérprete uma atenção unidimensional.

O jurista há de ter em mente outras dimensões. Deve mirar-se, antes de mais nada, nas

necessidades sociais. Daí é que nascem muitos dos problemas que deságuam no plano

jurídico. Em tal enfrentamento, o aplicador se deparará com o disciplinamento normativo, é

bem verdade. Competir-lhe-á, então, avaliar sobre os instrumentos ou meios de que dispõe

para alcançar a resposta satisfatória. Não pode deixar de apreciar, em qualquer desses

momentos, o impacto das respostas obtidas, o que significa se preocupar com a eficácia do

decidido.

Esta é a perspectiva abraçada pela mediação. Em seu foco estão os necessitados de justiça,

e não os legisladores do direito. O fato social, e não a norma em si, ganha expressão

abrangente e superior.

A tal modo de ver as coisas, Cappelletti designou de Justiça Coexistencial. Assinalou:

“Bastante relevante se apresenta a substituição da Justiça contenciosa (de natureza

estritamente jurisdicional), por aquela que tenho chamado de Justiça coexistencial, baseada

em formas de conciliação.” 46

Coexistencial procede de coexistir, existir junto, em compartilhamento. Isto quer dizer

solidariedade, que somente pode acontecer quando as partes do sistema (integrantes do

conflito) passam a experimentar idéias em conjunto e a terem uma visão de que, na sua força

comum, residem os melhores recursos para as soluções.

As inversões que a mediação provoca, no gerenciamento e solução de conflitos, não a

eximem de críticas. Leonardo Schvarstein considera inviável esse meio de compor

46 Ibid.

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problemas. Segundo entende, em passagem constante da obra de Marinés Suares, a mediação

é “altamente improvável”. A improbabilidade decorreria das seguintes razões:

[...] é improvável que alguém que esteja enfrentando outra pessoa queira sentar-se e conversar sobre outras formas possíveis de resolver sua disputa, diferente daquelas que imaginou e ensaiou anteriormente;é improvável que pessoas modifiquem condutas muito arraigadas em um âmbito de impacto temporalmente curto como o que estabelece a mediação;é improvável que se obtenha o resultado desejado, por mais que ele seja o que todos os atores estejam buscando. 47

A desilusão do doutrinador assentaria em três bases:

1) a competição, como processo de enfrentamento, leva as pessoas a lutar mais por seus

direitos. O mundo é de guerra: poucos se aventurariam a sentar, lado a lado com um

oponente, para discutir em conjunto soluções para disputas. Geradas de confusões e interesses

contrariados, as questões não poderiam suscitar outras reações, a não ser as consistentes de

lutas e desentendimentos.

2) Condicionadas com estão as pessoas às crenças do espírito belicoso, da cultura

patriarcal, quaisquer sinais de indicação para outras formas de solução não despertariam

confiança, até mesmo em face do pouco tempo para as soluções. Confiar, por sua vez, é tema

difícil de ser encarado. Cada litigante faz precisamente o contrário: desconfia do outro e de

tudo.

3) Uma carga de negatividade se encastela na terceira assertiva. Mesmo sem explicar o

porquê de tanto desalento para com um instituto que se oferece à viabilização da paz, não se

quer aceitar, sequer, que possa constar do rol de opções para discutir as disputas.

A tarefa do mediador está, justamente, no desafio de superação dessas improbabilidades.

Agente de transformação social que é, incumbe-lhe estar preparado para atuar num amplo

contexto em que pugnará por desconstruir modelos arraigados e perpassará seu agir de largos

recursos que sua experiência de vida e a transversalidade dos saberes lhe pode oferecer.

47 Prólogo do Livro Mediación: condución de disputas, comunicación y técnicas. Apud Muszkat, Malvina Ester, Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo: Summus, 2005, pp. 60/61.

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Como o fará ? Primeiro, dedicando-se a conhecer a realidade debatida, tendo em vista a

multiplicidade de fatores que a envolvem. Se for capaz de cotejar as diversas disciplinas que

podem incidir sobre um caso, aí compreendidas a psicologia, a filosofia, a religião, o direito, a

política, a arte, a ética, a sociologia e a teoria da comunicação, dentre outras, extrairá relações

possíveis com o problema enfocado e, em conseqüência, alguns acenos de solução.

As três inviabilidades, descritas acima, são, de uma só vez, desmontáveis quando o

mediador retira da perspectiva das partes o seu senso adversarial. Se as pessoas envolvidas na

disputa se conscientizam do valor do diálogo e o aceitam, mesmo como simples requisito do

início de qualquer processo, sinalizam para outras aberturas. Daí em diante, fica evidenciada

uma mudança de postura. Os mediandos passam a encarar-se não mais como inimigos, mas

como integrantes de um contexto que evoluirá em respeito mútuo e construção de objetivos

traçados. Desconstrói-se, assim, construindo.

Os esforços de desconstrução e reconstrução reclamam, segundo essa ótica, por um novo

trato do direito e não, somente, do processo que o discute. Processo e direito são entidades

que se têm digladiado, vida a fora, sem que encontrem denominadores satisfatórios para os

disputantes, quando focados em olhares de oposição. Daí a observação do professor Rui Celso

Reali Fragoso:

[...] As Faculdades de Direito, muitas sem condições de cumprir sua função, entregam à sociedade um número de bacharéis absolutamente sem consciência da nobre e magnífica carreira que teriam pela frente se tivessem sido bem preparados. Em 1960 havia 69 cursos de Direito no Brasil, em 1997 já eram 270. Hoje mais de 400. Apenas em termos de comparação, nos Estados Unidos há 178 Cursos de Direito. Pouco, muito pouco, quase nada tem se modificado. O aluno ainda é formado (quando isso ocorre) para o litígio forense. Formas diferenciadas de solução de conflitos, estratégias que exercitem o raciocínio, a pesquisa e o direito material não são temas usuais nas faculdades. Há uma supervalorização do processo em detrimento do direito. A transmissão de conhecimento pela forma consagrada, nos Cursos de Direito, deve ser revista. 48 Grifou-se.

A filosofia criada é a da luta. Quanto mais preparado para combater o opositor, ainda que

contra o direito, mais o estudante (o futuro profissional) se considera em ascensão. Se o

processo, e não o direito, é o que mais importa nesse jogo de disputas, então fortalecer-se para

a intriga, a argumentação e a contra-argumentação, com todos os ódios e desentendimentos

que isto possa gerar, passa a ser natural para os combatentes.

48 Em editorial do Informativo do Instituto dos Advogados de São Paulo, n. 44 (set./out. 1999).

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A cultura apresentada é a da guerra. Quem detiver maior arsenal, e o souber manejar,

torna-se o vencedor. Não há preocupação com o direito, muito menos com o outro (o outro

que está em face do lutador), que respira como ele, sente como ele, quer viver como ele.

É nesse meio competitivo e devastador do humano, do outro, que a mediação quer

construir condições para a solidariedade, a visão conjunta de questões, uma cultura de paz.

O propósito é gerar um mundo novo para as partes. O que era fechado (campo de visão)

ganha abertura e propicia novos enfoques. Algo que só podia ser visto por um modo de olhar,

que se tinha como específico ou único, ganha abrangência e coloração.

Com toda a competência do mediador e utilizados os recursos da mediação, pode ocorrer

de não se alcançar, por essa estratégia, a solução de conflitos. Não se pode afirmar, só por

isto, que o meio resolutivo, em questão, não se apresente eficaz. Bem ao contrário: quando as

partes não aceitam ajuda alguma e tomam sua causa como algo o mais justo, o mais correto e

o mais meritório da Terra, é porque estão longe de entender as possibilidades que a vida lhes

oferece; de reconhecer o outro lado das coisas; de servir; de valorizar as pessoas e as

instituições. Nesses casos, nem mesmo o Judiciário – se lhe fosse dado todo o tempo do

mundo para analisar seu processo, e com todo o poder de império de que se investe na

aplicação de normas legisladas –, conseguiria demover os litigantes de suas posições iniciais.

Dentre as estratégias resolutivas que a mediação apresenta para responder às demandas

atuais dos conflitos, encontra-se a comunicação. O comunicar, abrangente de habilidades

espraiadas pelas várias dimensões do homem, pode atender à complexidade das disputas. É do

que se trata no capitulo a seguir.

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5 A COMUNICAÇÃO ABRANGENTE

5.1 A prática comunicativa da vida

A perspectiva dialógica da mediação caminha para a co-criação de significados. Para

essa prática, as palavras não são os únicos meios capazes de expressar pensamentos e

emoções. Desde os gestos efetuados a partir dos membros do corpo físico até às conexões

invisíveis que compõem os vastos mundos biológicos que cercam os humanos e todas as

coisas, tudo pode inserir-se em correntezas de comunicações, em simbioses e redes de

estímulos e respostas, capazes de influenciar a decisão de conflitos.

Na comunicação racional, como ocorre no domínio do direito linear, os litígios se

apresentam como aclarados de todas as suas motivações. As causas surgem, e de seu debate se

entende que nada restou para ser dito, que tudo foi explicado, posto, proferido e classificado.

A linguagem utilizada, muito embora incapaz de revelar a profundidade dos motivos de

cada um dos litigantes, se arvora de clareza e expressividade. Goza do privilégio de ser

encarada como científica. Trata-se, na maioria das vezes, de instância a albergar meras

aparências. O fundo das questões fica latente, envolto por uma espécie de capuz lingüístico,

próprio do manuseio jurídico, que encobre os reais sentimentos das pessoas.

Entre o patente e o latente das conflituosidades, há um campo reservado à mediação, no

seu propósito de conciliar antinomias. As discussões contemporâneas estão pondo por terra

muitas das formulações anteriores, dadas como científicas, e aprovando novos modos de lidar

com o conhecimento.

Essas novidades partem de influências oriundas de muitos estudiosos, maiormente

daqueles sintonizados com a área humana, como é o caso de Boaventura Santos, que, sob a

temática de conhecimento prudente, critica essa forma de fazer ciência, ao assinalar:

Desde o século XVII, as sociedades ocidentais têm vindo a privilegiar epistemológica e sociologicamente a forma de conhecimento que designamos por ciência moderna. Quaisquer que sejam as relações entre esta ciência e outras ciências anteriores, ocidentais e orientais, a verdade é que esta nova forma de conhecimento se auto-concebeu como um novo começo, uma ruptura em relação ao passado, uma revolução científica, como mais tarde viria a ser caracterizada. Desde então, o debate sobre o conhecimento centrou-se na ciência moderna, nos fundamentos de validade privilegiada do conhecimento científico, nas relações deste com outras formas de conhecimento (filosófico, artístico, religioso, etc.), nos

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processos (instituições, organizações, metodologias) de produção de ciência e no impacto da sua aplicação. 49

A crítica existente se dirige à percepção de indolência da razão. Os desdobramentos

para a comunicação seriam, nesse sentido:

a) quanto à razão impotente, considerar-se que nada se pode modificar no mundo

exterior aos conflitantes; ou seja: que as palavras, termos e códigos de linguagem tais como

contidos no domínio do direito legislado, são suficientes ao debate dos temas aflitivos das

partes;

b) quanto à razão arrogante, achar-se que é normal regrar a liberdade das pessoas; que

afinal nem devem perfilhar caminhos outros para a solução de seus problemas, quando o

sistema oficial é imperativo de ordens, traduzidas em sinais escritos, para a pacificação social

como um todo;

c) quanto à razão metonímica, estabelecer-se uma (única) linguagem para o

encaminhamento dos diálogos; sendo a parte, embora simples elemento do sistema, detentora

de capacidade para explicá-lo, e engendrar daí comunicação de resultados satisfatórios;

d) quanto à razão proléptica, a indolência ostenta a ousadia de se dizer visualizadora de

tudo o que acontecerá aos litigantes; prolepse é manuseio ou técnica de antevisão do futuro;

será mesmo possível antecipar o conhecimento do que virá a ocorrer com as partes, a partir

tão-só do que se diz e ouve no processo judicial ?

O modo de comunicar, apresentado, detentor de tantas indolências, faz por merecer

todas as críticas.

A missão de métodos compositivos de conflitos se volta para extrair do convívio na

alienação ingredientes que ajudem no deslocamento para o outro lado, ou seja, para a

desalienação.

Hanna Arent, ao se aprofundar nos labirintos da condição humana, explica feições da

alienação, que poderia ser observada a partir de três atividades: labor, trabalho e ação. A

essas atividades, que a autora chama de fundamentais, correspondem condições para a

desenvoltura da vida das pessoas. Segundo detalha:

49 SANTOS, Boaventura S. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2004. p. 10.

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O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. O trabalho e o seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história. 50

E arremata:

A tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com a sua capacidade de produzir coisas – obras e feitos e palavras – que mereceriam pertencer, e pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de modo que, através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmos onde tudo é imortal, excepto eles próprios. 51

Da integração de obras, feitos e palavras, pode descortinar-se uma visão mais ampla

para a comunicação. Do labor, como atividade ligada aos processos biológicos do corpo

físico, se podem obter os meios de atividades metabólicas e saberes de uma lógica inerente ao

mundo da biologia.

Do trabalho, compreendido como portador das potencialidades artificiais, decorrem as

criações, a produção das coisas que mantêm o homem na terra, a mundanidade.

Pela ação, resultante da prática com outros homens, como condição de pluralidade, se

podem modificar os espaços de convivência, as linguagens, a utilização de polifonias e

estabelecer acréscimos para o cuidado da vida.

É nesse cuidado que se podem conceber as ligações do indivíduo consigo, com o outro e

com o meio. Conforme filosofa Heidegger (1989), é o modo de “ser-estar-em-relação” que

confirma a existência e a produz pela imensidade de contatos de que é capaz.

Não se trata, então, de cuidar de si, apenas. Há um sentido, ao mesmo tempo vivencial e

convivencial, a ser considerado. Nesse “ser-estar-no-mundo” em comunhão consigo e com o

outro, gera-se a modulação dos interesses de vida, a harmonização entre pais e filhos,

indivíduo e sociedade, angústias e alegrias, numa teia que desperta o intuito de solidariedade,

para a articulação de saídas.

Seres de linguagem, os homens são, por natureza, seres de relações. Constroem, com a

ajuda da linguagem, o sentido do mundo, no qual passam a manifestar o seu sentido de

existência e funcionalidade. É pela linguagem que se pode observar que as pessoas não vivem

sem as outras. Os problemas, assim, passam a ostentar problemas de linguagem, porque a

50 ARENDT, Hannan. A condição humana. São Paulo: Universitária, 1987. p. 20-21. 51 Ibid., 1987. p. 31.

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realização das pessoas e a solução de seus confrontos são confrontos e problemas de interação

na e pela linguagem.

Fernando Pessoa, lingüista e filósofo, deixa entrever sinais de como isto acontece. Ao

falar da significação das coisas, proclama: “As coisas não têm significação, têm existência. As

coisas são o único sentido oculto das coisas. (...) A espantosa realidade das coisas É a minha

descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me

alegra, E quanto isso me basta. (...) O universo não é uma idéia minha. A minha idéia de

Universo é que é uma idéia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha idéia da

noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A

noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.” 52

As palavras podem ter significado e significação. E não se há de confundir os dois. O

significado, segundo Gilberto Gomes, “é o conceito ou imagem mental que vem na esteira de

um significante”. Significação, por sua vez, “é a efetiva união entre um certo significado e um

certo significante”, entendido este como “a parte material do signo (o som que o conforma, ou

os traços pretos sobre o papel branco, formando uma palavra, ou os traços do desenho que

representam, por exemplo, um cão”. 53

A linguagem abraçada pela mediação é a que se dirige para a significação. Enquanto o

significado depende apenas de um indivíduo, ou somente de um sistema, a significação é,

necessariamente, plural ou correlacional. O significado prende-se ao domínio da gramática,

formando os conceitos inerentes aos caracteres lingüísticos. A significação se abre para a fala

e faz com que haja uma espécie de solidarização entre sujeitos ou entre sujeitos e elementos,

se se tem em mente a noção de sistema.

Assim, ao poeta é licito entender que “as palavras não têm significação, mas

existência”. Existência elas ostentarão sempre, e ele tem razão neste aspecto, porque se

traduzem de signos constantes de dicionários como, também, de códigos jurídicos que

enfeixam normas.

Quando as palavras não têm significação, é fácil retirar das pessoas e entidades a

qualidade de significação. Entes desligados do mundo ou afastados de semelhantes, e

52 In Página da Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Disponível em http://www.ufp.pt/. Acesso em: 16/07/07. 53 GOMES, Pedro Gilberto. Tópicos de teoria da comunicação (processos midiáticos em debate), 2ª ed. São Leopoldo RS: Unisinos, 2004, pp. 81-82.

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considerados existentes tão só por uma individualidade sígnica, passam a se apresentar com

um alto teor de objetividade e auto-suficiência. Valendo por si mesmas, essas entidades se

colocam em posição superior às demais coisas do mundo, além de lhes ousar anteceder.

A essa forma estacionária e individualizada se contrapõe a mediação, que opta pela

integralidade dos elementos de linguagem. É pela significação que se pode entrar em sintonia

com o outro, que passa a não somente existir no campo de visão do sujeito, mas também a

integrar uma relação de cuidado, no sentido de ser importante aferir de sua dor, de seu

problema, saber como se colocar em seu lugar, buscar, com sua colaboração, a construção de

soluções necessárias.

A existência, nesse sentido, é objetiva, independe de relação para se manter. A

significação, não. É o resultado de interações, não vive sozinha. Ou até pode viver, numa

relação complementar (de autonomia e dependência), só que faz de tudo para agregar, somar.

Depende, pois, da subjetividade de cada um construí-la.

Num mundo empobrecedor, as coisas, palavras e acordos têm apenas existência. Num

mundo dinâmico, as coisas, além de existência, têm significação, porque, por natureza, estão,

necessariamente unidas, e se enriquecem nessas interações.

Nesse sentido, além de estabelecer formas de composição, a linguagem se revela meio

de sobrevivência da espécie, como afirmado por Peruzzolo:

A linguagem não é apenas um meio de comunicação, enquanto constrói as realidades

semióticas, é também um mecanismo de expressão pessoal pelo qual o sujeito se expõe e se

propõe ao encontro do outro, para exercício de si e sobrevivência da espécie. Nesse exercício

de si a comunicação pode receber, assumir o caráter de influência pessoal. Então, só

secundariamente ela é influência. Primariamente, ela é força de procura da relação com o

outro. 54

Por reconhecer a indispensabilidade do outro, a linguagem, assim compreendida, firma-

se como meio de encontro. Faz a solidarização de sujeitos, para no “entre-si” de propósitos

alcançarem o desfecho de seus problemas.

54 PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de semiótica da comunicação: quando aprender é fazer. Bauru SP: 2004, p. 212.

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5.2 A comunicação abrangente

A unidade complexa, de onde partem as conexões humanas, hábeis a pôr as pessoas em

contato com os vários modos de vida e a expressar necessidades e possibilidades como seres

pensantes, é o cérebro. Para criar maiores habilidades de comunicação e, assim, desenvolver

condições para solucionar conflitos interpessoais, deve-se atentar para a complexidade desse

órgão. De seu funcionamento, depende a maior parte de todas as estratégias sugeridas pela

mediação.

É bem de ver que os seres em confronto são condicionados, pela cultura patriarcal, a dar

prevalência ao lado dito racional desse órgão, ao tempo em que quase esquecem por completo

o outro lado dele, o imaginativo e criador.

A mediação vem alertar para a necessidade de integração dos dois hemisférios

cerebrais. Lembra, por suas práticas de comunicação, que, utilizadas adequadamente as duas

porções do cérebro, podem os indivíduos beneficiar-se de recursos poderosos, na resolução de

problemas.

O hemisfério cerebral esquerdo comunica aspectos ligados à racionalidade, à lógica

verbal, enquanto o hemisfério direito comunica consciência e imagens. O esquerdo é

detalhista, sabe deter-se em partes e em dados específicos; o direito sabe abarcar o todo de

uma realidade e dar conta de suas relações. Um é mestre em análise; trabalha para separar. O

outro procura a síntese; sua missão maior consiste em reunir.

A comunicação a que a cultura patriarcal (no domínio do Direito) atribui maior

notabilidade provém do hemisfério cerebral esquerdo. Dali dimanam os raciocínios ditos

lógicos, as palavras, as interpretações. A utilização dessa maneira de comunicar-se tem sido

feita até mesmo por escolas de mediação. Segundo algumas delas, o brilho intenso de

palavras, o fervor delas, as argumentações, os diálogos verbais poderiam conduzir a

composição de conflitos. Sem negar o valor das expressões verbais, mas sem perder de vista a

complexidade dos conflitos, Warat depõe contra esse tipo de comunicação, ao esclarecer:

Um mestre nunca está interessado em comunicar (é absurda a ênfase que as escolas de mediação colocam na comunicação). O mestre está interessado em comunhão. Comunicação significa o encontro, em palavras, de dois egos. Comunhão significa que apenas os corações se encontram sem palavras; o entre-nós silencioso do sentir. Com um mestre a única coisa a ser feita é entrar em sintonia. O mestre forma mediadores mostrando-lhes o valor de ser simples, homens comuns, que é uma coisa nada fácil de conseguir. O ego está sempre ávido de grandeza. Precisamos entender

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o valor da simplicidade para atingirmos a sabedoria que provém do esvaziamento do ego. Um mestre permite-nos ascender a um vínculo com o mistério da existência, ajudando-nos a entender que o segredo está em deixar que a natureza siga o seu próprio curso, sem interferir. O ego existe através da resistência. Inclusive não podemos tentar abandonar o próprio ego, porque dessa forma o ego vencerá. Se nós proclamamos que abandonamos nosso ego, quem proclama é sempre o ego. Lembremo-nos também de que o ego mais sutil sempre tenta aparentar uma ausência de ego. Não caiamos na armadilha. Não lutemos contra o ego, que ele sempre vence as lutas. Permitamos que as coisas aconteçam sem tentarmos interferir. O ego sempre salta adiante, tem pressa; é o que chamamos ansiedade: uma tentativa egoísta de dominar os acontecimentos. Deixemos que a existência aconteça, tentemos unicamente mudar a nós mesmos; uma mudança que deve vir de nosso ser mais profundo, não da periferia. (Grifou-se). 55

Pessoas há que optam por conformar-se com a linearidade racional do pensamento

centrado no hemisfério cerebral esquerdo. Uma perspectiva de mudança que traga alento

efetivo à solução dos conflitos não pode, no entanto, prescindir de uma visão que entrelace

outros recursos, que podem ser aqueles do sentimento e do poder de criação.

O mesmo Luiz Alberto Warat expressa o valor do sentimento, na resolução de conflitos,

ao afirmar:

A mediação é um processo do coração; o conflito, precisamos senti-lo ao invés de pensar nele; precisamos, em termos de conflito, sê-lo para conhecê-lo. Ser e conhecer, não há outro conhecimento. Os conflitos reais, vitais, encontram-se no coração, no interior das pessoas. Por isto é preciso procurar acordos interiorizados. 56

Grifou-se.

De fato, o drama das disputas ganha fôlego pelas emoções, e por elas devem transitar,

também, suas soluções. O doutrinador mencionado está atinando com a eficiência da

mediação por considerá-la campo propício ao desenrolar do “sentir” dos conflitos.

A visão expõe a deficiência de comunicação do sistema judicial. No cenário que este

prepara para os conflitantes, pouco espaço ou quase nenhum se reserva para a manifestação

construtiva do sentimento. Os meios de comunicar as razões dos problemas, levados à decisão

judicial, são regidos por fórmulas verbais, escritas e sacramentais.

A noção a que se liga tal forma de comunicação diz com a mecanicidade de palavras até

ao ponto de, não poucas vezes, alcançarem o desvario. Tantas são as palavras, argumentos,

adminículos e teorias escritas a abarrotarem as petições, que, podem esses papéis, por si

mesmos, conforme se tem visto nos tribunais, gerar confusões quando do próprio contato

inicial com o setor de recebimento.

55 WARAT, Luiz Alberto, op. cit., 2001. v. 1. p. 35. 56 WARAT, Luiz Alberto, op. cit., 2001. v. 1. p. 46.

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O cérebro esquerdo – argumentativo criticador e analista — quando não está a

preencher folhas e mais folhas de papel com amontoados de palavras e considerações escritas,

o faz nas audiências designadas para defesa de suas teses. Num ponto, quanto em outro, o

mesmo desvario, a mesma flama das palavras. Tal um rio caudaloso a despencar-se de

montanha a baixo, vai levando tudo que lhe passa à frente, com raciocínios, análises

percucientes e habilidades verbais.

Em meio à verve afogueada de tantas palavras e ao descortino com que são trabalhados

os discursos ditos racionais em favor das teses esboçadas, dir-se-ia não haver espaço para a

comunicação sentimental. Seria isto verdadeiro?

Deste tipo de comunicação se podem obter muitas soluções. O hemisfério cerebral a

atuar, neste modelo, é o direito. Toda a voracidade de expressão, do modelo anterior, se cala.

As vozes aqui, quando existentes, são quase inaudíveis. Podem ocorrer casos de nem mesmo

existirem vozes.

Não existindo palavras ou vozes, como, então, se comunicam as pessoas em conflito?

Pelos corações. As pulsações cardíacas, a par de outras que conseguem desencadear no

sistema nervoso central dos indivíduos, podem muito. Basta deixar fluir a correnteza de

emoções pelo silêncio das palavras, para se perceber sinergia entre as pessoas.

A mediação pretende utilizar-se das palavras de tal forma que possa delas extrair seu

teor sentimental. Todas as palavras têm vibração e podem comunicar soluções quando bem

sentidas e vividas pelos mediados.

Nesse sentido, mediar se aproxima da espiritualidade buscada na oração. Quando

alguém ora, de pouca valia se revestem as palavras que sua boca profere. Mesmo que

pronuncie os nomes mais sagrados e invoque as forças mais superiores da Criação, de nada

adiantará se não sentir a energia, a pulsação e o vibrar dessas expressões.

Quanto mais sentimento se puser na oração, mais sublime a comunicação se torna.

Ponto forte das estratégias de mediação é saber combinar coração e mente. Utiliza-se

das emoções, conferindo-lhes o devido valor, mas não se dispensa de incursionar pelo mundo

das palavras, que fazem os diálogos verbais. Quando Warat aponta a mediação como

“processo do coração” por certo quer dizer que se trata de processo que medeia mente e

coração.

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Essa conexão ressalta o intercruzamento de recursos diversos, de uma instância à outra.

Faz-se a verdadeira comunicação; a comunicação abrangente, que ocorre mercê da

complementaridade funcional dos dois órgãos.

O enlace das palavras (como força inteligente, ato de vontade) com a vibração

sentimental de que se imantam, conforme apontado, levou Eliphas Levi 57 a atribuir ao homem

a qualificação de fazedor de milagres. Senhor dessa consciência, o homem pode dispor das

forças da natureza, galgar satisfação de vida, despertar o poder de atrair e projetar vantagens,

curar suas mazelas, tornar-se um vencedor. No dizer do ocultista: “O homem é o taumaturgo

da terra, e pelo seu verbo, isto é, pela sua palavra inteligente, dispõe das forças fatais. Irradia e

atrai como os astros; pode curar por um contato, por um sinal, por um ato de sua vontade”.

A vontade e o sentimento enriquecem a ação.

De ponte feita com a terapia cognitiva, a mediação utiliza uma estratégia que combina

mobilização dos dois hemisférios cerebrais, visando estimular os confrontantes a perceber um

quadro completo, ou mais aproximado do completo, que os possibilite reconhecer dados do

problema que os aflige e quais os nortes que os poderão favorecer. É o caso do sistema

TruthTalk. 58

Mais adequado é tratar o formulário como Formulário de Construção. Conforme se

demonstra, por seu intermédio se pode chegar a verdadeiros achados no trato de soluções de

conflitos. Ele pode fornecer condições para alteração de pensamentos, sentimentos e

condutas.

A utilização dessa ferramenta auxilia o mediador a extrair dos mediados o melhor de

sua comunicação e a ensejar nos conflitantes potenciais de mudança que almejem. A

descrição de tal sistema é amplamente divulgada por Timothy Ursiny 59

O sistema consiste, basicamente, em:

1. Catálise (catalisador) do conflito. O mediador busca conhecer dos fatos, saber o que

aconteceu, a causa da tensão. O relato da aflição.

57 LEVI, Eliphas. Dogma e ritual da alta magia. São Paulo: Pensamento, 1987. p. 43.58 TruthTalk. O termo completo é TruthTalk Thought Tracking Form (Formulário de registro de pensamento).59 URSINY, Timothy E. Como evitar conflitos. Tradução de Analy Uriarte. São Paulo: Futura, 2007. p. 186-199.

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Essa parte pode tanto ocorrer em reunião dos participantes quanto de modo isolado,

cada um dos mediados com uma oportunidade para descrever os fatos do conflito.

2. Estado mental. Quais pensamentos o angustiado mantinha quando do conflito. As

crenças compõem essa parte do estado mental e também devem ser descritas, assim como os

diálogos internos mantidos da pessoa para ela mesma, ou de si para a outra.

3. Estado emocional. O mediador precisa tomar conhecimento dos sentimentos. A

pessoa em conflito expressará, a esta altura, o que sentiu, o que sente, do problema.

4. Comportamento. Importa saber sobre as ações da pessoa, o que ela fez e está fazendo

em resposta ao conflito.

Feitos esses registros, passa-se a uma segunda fase, na qual se pode questionar:

1. O que a pessoa diz (pensa) sobre o conflito é tudo verdade? Teste de reflexão.

2. Outro teste. Questionar sobre se a resposta mental efetuada ajuda ou prejudica? Teste

estratégico.

3. Atinar com um novo estado mental. Que outro seria mais verdadeiro e benéfico?

4. Pode ainda evoluir. Resposta mais produtiva. Como obter do evento uma resposta

ainda melhor, mais produtiva?

5. Refletir, pesquisar sobre as oportunidades do conflito.

O desdobramento desse método propicia a descoberta de pensamentos, sentimentos e

condutas que atrapalham a solução do problema. Revelados os gargalos e entraves, podem-se

buscar redirecionamentos para outros modos de pensar, sentir e agir, mais favoráveis.

Claro que, para isto, a mediação questiona os participantes. Todo o receituário de

perguntas, que utiliza, se justifica como ferramentas de abertura de sistemas fechados. Desse

perguntar constante, às vezes intercalado de silêncios, se formam os diálogos mais

produtivos.

A complexidade de se poder passar do fechado para o aberto, em tal modalidade de

obter respostas, foi observada por Richard Boulton. Ele elabora um quadro de muitas

perguntas, que poderiam ser assim sintetizadas:

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Para mudar a pessoa, de sua dimensão “eu” para a dimensão “nós”, pode-se

perguntar: “Para que os outros concordem com você, de que forma vocês todos poderiam agir

juntos para ocasionar uma mudança?”.

Mudando de “pessoa”: de “nós” para “eu”: “Quem concorda (um participante

falando para todo o grupo) mais/menos com as idéias (sobre um assunto)?”.

Mudando de opinião. “Se você mudasse aquele ponto de vista, parasse de fazer aquilo,

quem notaria e como reagiriam? Quem ficaria mais satisfeito? De que forma, outras pessoas,

na mesma posição que você, agiriam?”

Capta-se das perguntas um encaminhamento de respostas. Dificilmente alguém deixaria

de responder a essas indagações. Ao responder, podem surgir pistas, necessárias à formulação

de acordos, já que despertam a consciência para o modo como os respondentes gostariam de

ser vistos e tratados, se estivessem no lugar do outro.

Quando as perguntas são feitas no sistema fechado, as pessoas indagadas manifestam,

de imediato, sentimentos negativos, conforme é próprio, na lógica patriarcal, da noção de

culpa que essa forma de abordagem faz incutir.

Geralmente, as perguntas mais desafiadoras de revoltas, nesse sentido, e captalizadoras

de imersão de culpa, são do tipo frasal que privilegia categorias “Quem”, “o que”, “onde”,

“quando”, “como” e “por quê”, proferidos num tom direto e insinuador.

Há muita diferença entre se perguntar: “Por que você causou isto?” desta outra forma:

“Qual é a sua explicação para isto?”.

Ao mesmo tempo em que podem afastar do conflito, num primeiro instante, o tormento

da noção de culpa, as perguntas abertas conduzem à reflexão dos envolvidos. Por exemplo:

Perguntas assim trabalhadas: com que objetivos vocês concordam?... Que planos têm

pra atingir algo? De que forma você reagiu exatamente quando (algo) aconteceu? De que

forma você entendeu a situação que fez com que (algo) acontecesse? O que avalia que

ele/ela/eles pensam que você pensa quando ele/ela/eles fazem (algo)? O que você faz quando

ele/ela/eles fazem (algo)? Quando você reage a isso, de que forma ele/ela/eles reagem? Se, ao

invés de evitar seu chefe, você admitisse para ele que você cometeu um erro e pedisse

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desculpas, o que você entende que poderia acontecer? No momento em que (x) fosse perdoá-

lo por um erro, ele/ela o faria em silêncio ou ele/ela diria algo de forma explícita? 60

Os questionamentos apresentados são conducentes à abertura dos sistemas de

comunicação. Semelhante flexibilidade, no mediar de conflitos, pode ser observada no trato

das expressões adversativas. Tudo, às vezes, vai bem na discussão de um problema até que

surgem “mas”, “no entanto”, “porém”, todavia... e, das conseqüências de palavras tão

pequenas, mas poderosas para destruir, lá se vai todo um esforço de cooperação.

Tão pernicioso quanto alguém teimar (buscando opor-se aos argumentos do

interlocutor, como é próprio das sociedades atuais), só mesmo a arrogância de se intitular

(alguém) o dono da verdade, o senhor de todas as certezas, o infalível ser que a tudo suplante

por tudo conhecer e dominar.

Como esse tipo de ser humano não existe na face da Terra, a mediação ensina às

pessoas em divergência o lado produtivo dessa comunicação. Ensina que, diversamente de se

atacar, pode-se encaminhar os assuntos com respeito e paciência. É de conquista que se trata

com utilização de diálogos moderados apontados para direção conjunta. É a não-agressividade

inteligente para a construção de mundos na não inteligência das lutas renhidas.

Enquanto a arrogância do sistema de comunicação argumentativa se esforça por mutilar

o opositor com teimas e palavras que expressam “tenho certeza disto”, “indubitavelmente foi

ele quem atrapalhou meus planos”, “não concordo com nada do que você está fazendo”, opta

por dizer: Imagino que você saiba o que está fazendo”, “Sou levado a entender que ele pode,

de algum modo, participar dos meus planos nessa área”, “Acredito que possamos construir

um consenso em torno dessas idéias.”

As pessoas, mesmo na complexidade dos momentos adversos, podem ter em conta

expressões de respeito e apreciação pelos motivos, interesses e sentimentos do outro.

5.3 O abraço das mudanças 60 Os exemplos mencionados foram extraídos do ensaio de BOULTON, Richard. Uma compilação de perguntas úteis para o trabalho com grupos. In: SCHNITMAN, Dora; LITTLEJOHN, Stephen (Org.), op. cit., 1999. p.322-325.

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Ao compartilhar desejos, desafia-se mudança de padrão. Tanto o de uma das partes

quanto o da outra. Pode-se evoluir. Reprimir desejos significa não abrir uma porta para a

mudança do outro, que poderia, com a abertura, responder com outro comportamento.

A exposição dos próprios desejos. O reconhecimento dos desejos do outro. A discussão

da justiça desafia a consciência de cada um, como cada um vê o outro e em que podem

evoluir. Reagir com respeito a si mesmo pode deflagrar um quadro demonstrador de

integridade. Primeiro de um, depois do outro. As reações podem ser respeitosas.

A mediação abraça o movimento da vida. A procura obstinada por integridade mental,

emocional e de comportamento lhe é constante. Tais são alcançados pela co-construção dos

interessados, após esclarecerem o que desejam, se abrirem para reconhecimento do desejo do

outro.

A mediação age no sentido de prover o diálogo sem os temores da ofensa. Procura

demonstrar que, muitas vezes, conflitos se dão simplesmente por decorrem de falta de respeito

na conversa das pessoas. As palavras, mesmo as aparentemente inofensivas, podem conter

algum tipo de veneno, alguma adversidade que um dos sujeitos da comunicação não tolere ou

não aceite ouvir. Muitas dessas palavras e expressões podem transformar a língua (órgão do

corpo físico) na mais afiada das armas e conduzir os dialogantes à violência. Fagundes Varela

observou, a esse respeito:

Qual a mais forte das armas,A mais firme, a mais certeira?A lança, a espada, a clavina,Ou a funda aventureira?A pistola? O bacamarte?A espingarda, ou a flecha?O canhão, que em praça-forteFaz em dez minutos brecha?

— Qual a mais firme das armas?O terçado, a fisga, o chuço,O dardo, a maça, o virote?A faca, o florete, o laço,O punhal, ou o chifarote?...

A mais tremenda das armas,Pior que a durindana,Atendei, meus amigos:Se apelida — a língua humana! 61

61 VARELA, Fagundes. Vozes da América. 2. ed. Porto, 1876. p. 236-237 apud CUNHA, Celso. Manual de Português. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. p. 64-65.

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A língua humana é, de fato, terrível arma. A mediação vem, no entanto, lembrar que

esse órgão também pode tornar-se grande aliado na comunicação. As frases mais belas são

proferidas pela língua. Pela língua agem abençoadores e abençoados; conquistam-se

amizades, pode-se conversar com entes queridos, orar, cantar, bendizer.

Exercício de largo poder comunicativo, da pessoa para ela mesma, em que se

manifestam condições ou testes de afirmações acerca de pensamentos e sentimentos, a

respeito do exercitante e de outros, pode ser feito com o espelho. Diante desse objeto, que a

tudo reflete, sem desvios, olhos nos olhos podem fazer mais que palavras. Pode desencadear

várias possibilidades insertas nas dimensões que agitam o ser humano em sua expressão mais

profunda.

A auto-reflexão, que o exercício desperta é tal que incentiva o exame de papéis de

consciência nos conflitos.

A comunicação trabalha modelos e mudança de modelos na vida das pessoas. Por sua

atuação, os mediados tendem a perceber que podem construir soluções para seus problemas.

São os autores de suas vidas, os responsáveis por elas.

A comunicação abrangente torna o homem poderoso; liga sua mente à do Universo;

movimenta representações para conseguir os resultados de que precisa. Onde existentes

pensamentos e emoções, aí estarão energias e, em conseqüência, possibilidades de

comunicação abrangente. As energias do homem, por efeito de correlação, devem ser do

mesmo teor das que rondam os astros e estrelas nas esferas celestes.

O modo construtivo de que se vale a comunicação pode superar o isolamento da ciência

linear. Vai superá-la por indicar aos conflitantes a consciência de sua capacidade de

mudanças.

Em manter-se angustiada, tensa e raivosa, uma pessoa suscitará, no contexto do

conflito, respostas portadoras de idêntica expressão. Prossegue-se a caminhar na direção do

que lhe oprime, encontrará, por certo, cada vez mais opressão. Todas as energias empregadas

em tal sentido deflagrarão energias de força correspondente. Como são negativas, levarão ao

aprofundamento da negatividade e aumentarão as mazelas do conflito.

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A comunicação abrangente vem dizer que se pode optar por mudar as representações

destrutivas. Tanto as emocionais quanto as mentais podem ser remodeladas e ensejar novos

quadros nas vidas dos disputantes.

Conflito é um estado de tensão (um estar não é um ser) que leva a outros estados

(raiva, ressentimento, tristeza, decepção). Há o outro lado desses estados (amor,

compreensão, alegria, animação, altruísmo).

Há muitos caminhos para mudança de estados.

O ser humano pode dispersar suas limitações. A mente pode voltar a qualquer tempo,

porque nela há um hemisfério atemporal (o direito). Os acontecimentos físicos não podem

retornar, mas a mente pode. Há possibilidade de ligação de tudo a tudo e, assim, de aprender

melhor, compreender e mudar o que se fizer necessário. Assim comunicando e, acaso, não

atingidas as metas postuladas, ainda pode valer a tentativa. Os sujeitos da comunicação saem

fortalecidos para outros embates com que se depararem. Dificilmente desistirão das

oportunidades ofertadas pela vida, de crescer, mesmo nos problemas.

Conflito é algo desagradável? Pode, entretanto, transformar-se em algo agradável. A

estratégia passa pela mudança de estado (representações internas, fisiológicas do conflito); ao

mesmo tempo em que mudam padrões de pensamentos e de emoções. As experiências de

angústia, tristeza, frustração, raiva, desejo, egoísmo... são fruto de representações, todas

elaboradas segundo conexões do cérebro e do coração.

Angústia não é uma condição permanente, instalada numa pessoa. Deve ser encarada e

é, na mediação, como aprendizagem de vida, como condição passageira. Logo, apresenta-se

como estado, estado passageiro, que assim como se liga, pode desligar-se. A visão de que a

vida é movimento bem se adéqua: veio, volta; entrou, sai; bateu, retorna. A força

comunicativa é ampla. Pode dilatar-se para além do momento, para trás e para diante.

Ninguém, por certo, nasce deprimido; normalmente não. Por que passar a vida inteira nesse

estado?

Estratégia de mudança para os conflitantes pode ser representar para si experiências

felizes em suas vidas, de modo brilhante, claro, próximo, associado. Mudar a mente (os

pensamentos) sempre que necessário à manifestação de padrões opostos. Por que manter

pensamentos angustiantes quando o que se quer é exatamente o contrário? A mediação é

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dinâmica também por lembrar de que se tem um cérebro que pode expandir seu uso para

além do que normalmente faz. Ensina, o tempo todo, formas de comunicação interna e

exterior, de cada um para si (sistema individual) e em abertura para outros sistemas.

As imagens propiciadas pela televisão podem ajudar no entendimento de como

funcionam as representações. Pode-se, assim, construir, primeiro na imaginação, depois em

comportamentos efetivos, os objetos desejados para fortalecimento dos problemas

enfrentados. A dinâmica das imagens e o desenrolar vívido das cenas criadas podem operar

milagres. Parece brincadeira. Que o seja. As brincadeiras não estão proibidas de participar da

comunicação. Operam como ocorre nos filmes de TV. O que há de errado nisso? A mediação

é criativa. De seus vários inventos é que se tecem soluções para os conflitos.

Pode-se usar da capacidade inventiva na mediação sem temor de estar lidando com

brincadeiras infantis. Ser criança novamente é um estado vantajoso para a solução de muitas

pendências entre adultos mal-resolvidos. As crianças não duvidam de seu poder emancipador

quando sonham a realização de suas vidas. Podem mudar de um estado a outro, de um

sentimento a outro, de um pensamento a outro, num estalar de dedos, sem a necessidade de

questionamento algum de racionalidade ou argumentação. As quantidades indivisíveis (ou

pelo menos aparentemente indivisíveis) de energias eletromagnéticas, que os cientistas

designam de quanta, são mobilizáveis por esses pequeninos sem muito esforço. A

comunicação chama os adultos a se colocarem no nível de crianças para, à semelhança dos

saltos que estes imprimem às suas brincadeiras infantis, poderem experimentar, também,

vibrações quânticas e fortalecedoras em suas vidas.

A estratégia é mudar. Se os conflitantes não gostam de como se sentem, devem mudar o

que representam para si. Podem pensar e sentir as emoções “amor” e “ódio”. Ambas são

estados. Como todos os estados, são produzidos pelos conflitantes. O mediador ou qualquer

terceiro que observe o quadro conflitivo, pode perceber que esses estados foram originados

por ações dos sujeitos. Podem, a partir da observação, estimular estratégias de mudança

desses estados. Mudando as representações, atingirão seu objetivo.

Se alguém duvida da estratégia da comunicação, para esse fim, pode verificar a situação

mais de perto, como, por exemplo, reparar o que acontece nos casos de pessoas em processo

de separação. Como as pessoas são levadas a se apaixonarem? Uma das maneiras é a

associação (que se faz) à pessoa amada de tudo o que o seu parceiro ama. Ao mesmo tempo

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esse parceiro faz tudo por desassociar a amada de todas as coisas que não aprecia. Se

associações e desassociações são feitos sob o inebriamento da paixão, para alguns de molde a

beirar a insconsciência dos atos, seja pela imaturidade dos amantes, seja por fatores que a

razão desconhece, cabe indagar: se assim é possível, por que, também, não seria possível, em

plena consciência, realizar atos de associações e desassociações como forma de solucionar

conflitos?

A paixão pode ser resgatada. Tudo o que felicitou a vida de pessoas em separação pode

recompor-se mercê de representações que se podem fazer de estados de outrora. Mudando os

estados, os fatos mudam também. A mediação é um convite a essa possibilidade, capaz de

“empoderar” os litigantes na tentativa de compor suas desavenças.

Toda essa lógica de poder construtivo leva o indivíduo a ter uma visão positiva de si,

dos seus semelhantes e do mundo que o cerca. A partir desse modo de pensar e de resolver

seus conflitos, pode participar (democracia) mais qualificadamente do meio em que vive.

Pode colaborar, também, para a melhoria da convivência da humanidade. É o que se pretende

abordar no capítulo a seguir.

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6 APOSTA DEMOCRÁTICA

De todas as notas que possam caracterizar a democracia, uma há que parece destacar-se:

participação. Efetivamente, não se há de falar em governo do povo sem que este, reconhecido

como titular do poder, não disponha de meios de praticá-lo ou de aproveitá-lo no

aprimoramento da previsão constitucional. É onde a mediação entra, em cheio. Instância apta

a reconhecer a autonomia humana na solução de seus problemas faz por motivar as pessoas a

participarem dos debates de seus conflitos e a abrirem condições para a conscientização de

que dos sistemas individuais pode projetar-se o aprimoramento dos sistemas maiores.

6.1 Entre a universalização e a particularidade

Mediar conflitos é perceber que a universalização que se poderia pregar como

fundamento à democracia pode traduzir-se numa visão particularizada. O universal e o

particular não são pontos intocáveis. A separação desses marcos tem levado à lógica

unidirecional de igualdade para todos. Assim dispõem as várias cartas constitucionais dos

países. O plano defendido é o da formalidade. Desse ponto de vista, os direitos são para todos,

e a todos são destinadas as garantias constantes dos estatutos normativos.

Essa concepção não garante por si só efetividade de direitos. Trata-se de lógica da

abstração. A desigualdade que se busca combater apresentaria elementos de correspondência

– ponto a ponto – com todas as demais desigualdades existentes no meio social considerado.

Quando se trata a igualdade ou a desigualdade de modo uniforme, está-se conferindo

orientação que desatende às particularidades de cada caso em concreto.

A uniformidade, por outro lado, cumula a vontade democrática das cartas

constitucionais de potenciais abrangedores das necessidades todas das pessoas sob seu

alcance. Há necessidade de outros meios para complemento dessa vontade, que, sozinha,

pouco pode realizar para os cidadãos destinatários. A mediação pode ajudar nesse desiderato.

E o faz a partir do contato, pessoa a pessoa, que estabelece em seus processos de diálogos.

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A democracia passa a captar, da mediação, o senso de criatividade. Ambas são criativas.

Urge inventar soluções para algumas realidades a partir de valores dessas realidades. Foi o

que defendeu Rosseau no seu Discurso sobre as Origens da Desigualdade entre os Homens. 62

O que fez Rosseau nesse tratado (ou discurso)? De começo, afastou todos os fatos. Sua

concepção partia do entendimento de que deveria afastar os fatos, dando a entender que

estariam de algum modo errados. Em seguida, passa a afirmar o que ele (analista) não via, ou

seja, trabalhou com a imaginação. Inventou realidades e valores que, embora não existentes

no mundo empírico, poderiam ser palpáveis no mundo da criatividade, um domínio tão

possível de ser trabalhado como o dos fatos existentes.

Quando se postula uma democracia centrada nos fatos tais como o são, preza-se a

democracia de tipo descritiva (a expressão é de Joseph Schumpeter, na obra Capitalismo,

socialismo, democracia). Fala em democracia descritiva e normativa (ou prescritiva).

A mediação alicerça uma democracia não preocupada apenas em descrição das

necessidades das pessoas. Envolve-se com elas, no dia-a-dia de seus conflitos e lhes aponta

possibilidades de construir soluções. É uma aposta no homem, tal como é uma aposta o

balanço que Renato Lessa faz da democracia, quando diz:

A democracia é um desses acasos históricos, uma coisa que aconteceu em alguns países, que foi copiada em outros. Não é, de modo algum, um valor universal. Ela é um evento histórico, datado, específico de certas sociedades. Nesse sentido, não acredito que haja uma teoria da democracia. No máximo o que há é um conjunto de expectativas nossas com relação à democracia. Expectativas, temores e apostas, sem as quais não vivemos, que por razões pragmáticas e retóricas designamos como teorias. 63

A visão democrática vive, assim, de idealidade. São as expectativas -- que se podem

realizar ou não --, os insumos de seu projeto. Pode, no entanto realizar-se no caminhar dos

caminhantes. Nesse caminho transita a mediação, que amplia suas possibilidades de

existência.

A mediação amplia o conhecimento e, consequentemente, as chances de democracia.

Considera as regulações existentes e as complementa pela construção de alternativas

fortificadoras das pessoas. Como dessa união de pessoas se formam os grupos sociais e a

própria sociedade, nada mais natural que gere entendimentos novos, capazes de estabelecer 62 ROSSEAU. Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens apud LESSA, Renato. A teoria da democracia: balanço e perspectivas. In: PERISSINOTTO, Renato Monseff; FUKS, Mário (Org.). Democracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Araucária, 2002. p. 39-40. 63 Ibid., 2002. p. 54.

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sentimentos e idéias de igualdade na busca por melhores oportunidades de vida. A

característica de não se conformar com as normas préexistentes, pela insuficiência de não

abarcarem em concreto as situações individualizadas, faz da mediação um instrumento ideal

para constantes buscas por mudanças.

A democracia de todos, pela visão integradora da mediação, será o resultado das

construções levadas a efeito por cada um dos indivíduos. Estes determinarão, por suas

expectativas, sonhos e ações, que rumo seguir no fluxo de valores democráticos. Indivíduos

paralisados, descrentes do potencial humano, construirão uma democracia da indolência,

aquela do tipo vagarosa, silenciosa e rude, que alardeia benefícios retóricos e nada mais.

Indivíduos crentes da vida, da possibilidade de um amanhã melhor para seus filhos, seus

vizinhos, seus empregados, todos os outros humanos habitantes do mesmo planeta Terra,

farão de tudo pela construção de uma democracia ativa.

Em tese, todos são beneficiários de soluções democráticas. A Constituição brasileira

tem-se revelado um marco de regulação de avançadas idéias nesse sentido. O perigo das

formulações normativas é o de se perderem no vazio da retórica e não encontrarem eco na

concretude da vida das pessoas. A visão que aparta os indivíduos e os valores liberdade, bens

econômicos, dignidade e poder de influenciar nos rumos políticos, não serve à democracia.

Esta separação, preocupada apenas em regrar a sociedade e dar-lhe sistematicidade jurídica,

ao modo do conhecimento-regulação, a que alude Boaventura Santos, não potencializa

esperanças:

É a consciência filosófica do conhecimento-regulação. É uma filosofia da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a regularidade, lógica e empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O conhecimento sistemático e a regulação sistemática são as duas faces da ordem. O conhecimento sistemático é o conhecimento das regularidades observadas. A regulação sistemática é o controle efetivo sobre a produção e reprodução das regularidades observadas. Formam, em conjunto, a ordem positivista eficaz, uma ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controle... Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a sociedade será controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose entre as leis científicas e positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do ‘conhecimento-regulação’. 64

A mediação traz habilidades superadoras da indolência do positivismo. Por suas

estratégias, transpõe os contendores para a construção de direito efetivo, buscando impregnar

o conhecimento (agregado às suas práticas) de formas a merecerem dilargamento de

64 SANTOS, Boaventura Sousa. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. p. 141.

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aplicação. Está-se muito mais perto da emancipação quando se busca fortalecer nas pessoas as

opções de decidir por si mesmas. E muito mais aproximados de satisfação da democracia.

Sem ser senhor de si mesmo, ninguém pode entender-se como livre. A liberdade de regular

seus negócios, de tratar de seus problemas e de encontrar por parte do Estado o apoio a essa

forma de decisão, constituem abertura a felicidade de vida.

A visão de caminho democrático que o autor delineia diz, de perto, com as novas

formas de cultura, como ocorre com a mediação, que se faz interessar pelas pessoas, no

desempenho do que se pode chamar de “subjetividades emancipatórias”. Democracia desse

teor, ainda conforme Santos seria:

Um caminho de debate, de confluência de experiências e de reconhecimento das novas formas de sociabilidade, de novas subjetividades emancipatórias, de novas culturas políticas para poder reinventar um mapa emancipatório que não se converta gradualmente em um novo mapa regulatório e reinventar uma subjetividade individual e coletiva capaz de usar e querer usar esse mapa como o caminho para delinear um trajeto progressista através de uma dupla transição, epistemológica por um lado e social por outro. 65

A felicidade é ingrediente que não vive isolado. A doutrina da vida tem ensinado que,

mesmo aparentando manifestação individual, a satisfação humana se faz perpassar de

justificações vinculadas a elementos de outros sistemas, que podem exibir a estrutura de

grupos ou comunidades.

Para compreender de onde dimanam os caracteres de satisfação dos anseios coletivos e

preservação de suas bases, observam-se as práticas comunicativas que se ancoram no mundo

da vida. Vários espaços são construídos nesse contexto, propiciando valor à autonomia e

expansão dos níveis de convivência, tal como explicado por Sérgio Costa. Assegura o autor:

Quando se trata aqui da importância dos movimentos sociais para a preservação das estruturas comunicativas ancoradas no mundo da vida, não se pretende, com certeza, reabilitar, em nova chave, a tese segundo a qual tais atores estariam obliterando em suas bases constitutivas a tradição política autoritária. Procura-se tão-somente conferir ênfase devida à evidência empírica de que o surgimento de novas estruturas associativas (movimentos sociais, iniciativas de base etc) vitaliza a infra-estrutura comunicativa do mundo da vida: no âmbito das práticas coletivas são constituídos novos locais de encontro e espaços de convivência, no interior dos quais os participantes tematizam problemas vivenciados em seu cotidiano. Promovem-se, assim, formas de comunicação que espacialmente e em seus conteúdos dizem respeito ao mundo da vida. 66

65 Ibid., 2000. p. 330.66 COSTA, Sérgio. Contextos da construção do espaço público no Brasil. Novos Estudos, CEBRAP, n. 47, p. 189. mar. 1997.

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O cotidiano não pode ficar do lado de fora das questões políticas. Os diálogos do mundo

da vida conduzem à construtividade de espaços para tematização dos sofrimentos e conflitos

de cada um e de todos, que integram o grande sistema social.

A democracia dos novos tempos tem de saber caminhar entre a construção que se

estabelece do enlaçamento de máquinas, capital e tecnologias, de um lado, e dos avanços de

cidadania, do outro lado. O conhecimento e o domínio da primeira vertente devem ser capazes

de abrir instâncias acolhedoras dos cidadãos pela criação de consciência política gerada a

partir da solidariedade, das discussões e empreendimentos de que tomem parte.

É dessa caminhada em sentido macro e micro, com a atenção dos caminhantes voltada

para o social e o individual que se pode aprofundar o sentido de democracia, a que consta dos

livros de academias e a decorrente de práticas do dia-a-dia. Para Marcello Baquero, enfatizar

essa constatação já ajuda a diminuir a fragilidade de muitos países e acena com mecanismos

de esperança, quando prega:

A ênfase no aprofundamento da democracia social participativa decorre da constatação de que está em andamento um processo de fragmentação, tanto em nível macro (fragilização do Estado-nação) quanto em nível micro (percepções e alterações no comportamento das pessoas). A fragilização dos Estados emergentes, como o Brasil, oriunda da globalização comercial e financeira, faz com que a ocorrência de uma crise num país repercuta nesta região, gerando uma precarização do emprego e uma queda acentuada na qualidade de vida, sem que o Estado disponha de mecanismos para corrigir tais efeitos. 67

A Combinação dos fatores diálogo, ação e anseios de indivíduos, conscientes de seus

papéis como construtores das realidades pretendidas, faz o diferencial democrático, por

transcender a retórica e lidar diretamente com os interesses a realizar.

Em realidade, é pela sintonia desses fatores que se pode fortalecer o poder comum aos

indivíduos em sociedade. Dessa forma de poder, que a todos envolve porque nascida de cada

um dos elementos do conjunto social, são formados os pactos que Norberto Bobbio chamou

de “não-agressão” e de “obediência”.

A complexidade deles está na sua versão, ao mesmo tempo, de negatividade e de

positividade. São pactos negativos porque se dirigem a estabelecer, como o nome o indica,

acordos de não agressividade. É a paz que se quer. Todos se imbuem de dar o melhor de si nas

suas relações profissionais, grupais, escolares, de sindicatos, esportivas... e, assim, de

67 BAQUERO, Marcello. Democracia, cultura e comportamento político: uma análise da situação brasileira. In. PERISSINOTTO, Renato Monseff ; FUKS, Mário (Org.), op. cit., 2002. p. 120.

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solidariedade, de abraço de esforços para a melhoria do ambiente em que vivem, preservando

respeito de integrante a integrante. Por outro lado, são pactos positivos, como a designação

também deixa examinar, por que são dotados de um gérmen de exeqüibilidade. Quem se

compromete por esses modos tem mais vontade em cumprir os acertos, porque diretamente

realizados. Não contam com representações de pessoas interpostas. São os interesses de

alguém por ele mesmo conduzido, ele que, melhor do que quaisquer outros, sabe do que

precisa e, então, ele, melhor do que ninguém, está em condições de obedecer aos acordos

formulados. Nas palavras do pensador:

O fundamento de uma sociedade democrática é o pacto de não-agressão de cada um com todos os outros e o dever de obediência às decisões coletivas tomadas com base nas regras do jogo de comum acordo preestabelecidas, sendo a principal aquela que permite solucionar os conflitos que surgem em cada situação sem recorrer à violência recíproca. Mas tanto o pacto negativo de não-agressão, quanto o pacto positivo de obediência, para serem, além de válidos, também eficazes, devem ser garantidos por um poder comum. 68

Do jogo dessas polaridades se extrai o fermento de preservação do corpo social. Não só

dele, mas do corpo político também, quando se entende que as obras e os acordos das pessoas

(envolvidas nos mais diversos tipos de interações) favorecem o desenvolvimento de cada um

dos integrantes e do conjunto em que se inserem.

A indiferença das pessoas em relação aos semelhantes pode levar a individualismos.

Ainda assim, conforme Tocqueville, é possível falar em democracia, ante a verificação de que

nem mesmo o homem fechado em si pode escapar a sentimentos de piedade e solidariedade.

Há um quê de sensibilidade e compaixão a distinguir a espécie humana e a colocá-la em

associação com os outros, do sistema social.

Essa noção aponta para a possibilidade de se extrair do sofrimento algum grau de

positivação, no gerenciamento de conflitos. Saber trabalhar esse tema é de grande relevância

para a mediação. Tocqueville esclarece como isto funciona, ao posicionar alguém (que se

tome por indiferente) diante de outro que esteja sofrendo, mesmo que se trate de um

adversário. Observa:

68 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p. 384-385.

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Não importa que seja um estranho ou um inimigo: a imaginação o coloca

imediatamente no lugar dele, misturando algo de pessoal na sua piedade, que o faz

sofrer também enquanto retalham o corpo de seu semelhante. 69

E enfatiza:Nos séculos democráticos raramente os homens se devotam uns aos outros, mas

demonstram uma compaixão geral por todos os membros da espécie humana. 70

A complexidade disto é patente: uma pessoa indiferente e, ao mesmo tempo, solidária. O

individualismo gerando efeitos antagônicos e complementares.

6.2 Abertura à humanidade

Os espaços que a emancipação, assim entendida, abre à democracia, podem ir mais

longe. E normalmente vão quando cada uma das pessoas que experimente seu trajeto, possa

influenciar o campo de ações formadas por outros indivíduos. Se a humanidade é feita dos

humanos, e se uma pessoa compõe, necessariamente, a imensa rede dos demais seres

semelhantes, pode-se mesmo dizer, que todos terão mais condições de ganhar no conjunto.

A construtividade de cada um dá nascente e poder à construtividade de todos, tanto sob

o ponto de vista da vida material, quanto no tocante à noção ética quer se quer para o sistema

maior, que é a Terra. Por isto, é preciso ter consciência das repercussões do que cada membro

da comunidade faz. Daí a pertinência da afirmação de Edgar Morin, quando diz:

A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma ‘Pátria’, a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo. A humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez, ameaçada de morte; a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um. 71

Cada um faz parte da grande corrente que estabelece o todo. Do edentamento da

corrente (considerado cada elemento no processo de vinculação com a totalidade) depende o

movimento da vida que se quer equilibrada.

69 Tocqueville, De la démocratie em Amérique. Paris, Galimard, 1961, t. I, vol. II, p.171-5.70 Ibid., 1961, p. 174.71 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 10. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF, Unesco, 2005. p. 114.

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6.3 A convivência

O aprendizado democrático e humanitário da mediação volta-se para a convivência.

Conviver impõe a aceitação de outras pessoas, com todas as suas diferenças. Saber aliar a

diferença com a diferença, uma missão aparentemente contraditória, tem sido uma das

missões mais dignas da mediação de conflitos.

A mediação trabalha a diferença na diferença. Constituindo já de si uma ferramenta

diferencial na construção de entendimentos, navega, ao demais, no fluxo contínuo das

diferenças que marcam as pessoas em conflito.

As diferenças têm causado a separação dos indivíduos. Notas diferenciais que poderiam

agregar sentimentos de solidariedade vêm impondo às sociedades, principalmente as

ocidentais, desagregação e conflitos. Todos querem uma nota de diferenciação. Ser diferente

é visto como valor. Quanto mais diferente, melhor. Um cabelo diferente, um salário maior,

um tratamento diferente, um modo de ser atendido diferente. Qualquer coisa que diferencie o

indivíduo. A sociedade passa a configurar um amontoado de indivíduos, cada um por si. Tal

isolamento pode conduzir a um tipo de sociedade enfraquecida, conforme explica Norbert

Elias:

Com a crescente diferenciação da sociedade e a conseqüente individualização dos indivíduos, esse caráter diferenciado de uma pessoa em relação a todas as demais torna-se algo que ocupa um lugar particularmente elevado na escala social de valores. Nessas sociedades, torna-se um ideal social de jovens e adultos diferir dos semelhantes de um modo ou de outro, distinguir-se — em suma, ser diferente. Quer se aperceba disso ou não, o indivíduo é colocado, nessas sociedades, numa constante luta competitiva, parcialmente tácita e parcialmente explícita, em que é de suma importância para seu orgulho e respeito próprio que ele possa dizer de si mesmo: ‘Esta é a qualidade, posse, realização ou dom pelo qual difiro das pessoas que encontro a meu redor, aquilo que me distingue delas.’ Não é mais que outro aspecto dessa composição e situação humanas o que se expressa no fato de, em certa medida, o indivíduo buscar sentido e realização em algo que apenas ele faz ou é. 72

O enfraquecimento dessas sociedades decorre da noção competitiva e destruidora com

que são tratadas as diferenças. Se as diferenças apenas exibissem o lado alentador de beleza e

de alegria saudável, tudo bem. Não é assim, todavia, que sucede na cabeça e nos sentimentos

da maioria dos indivíduos que pugnam por estabelecer diferenças em seu comportamento.

Para esses indivíduos, a noção de diferença vem carregada de valores de superioridade. Ser

72 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Organizado por Michael Schröter. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 117-118.

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diferente passa a representar um ser mais importante do que outro; mais merecedor do que

outro; mais bonito do que outro; mais digno do que outro.

A noção de superioridade da diferença também afeta o outro lado do conceito “mais”.

Numa demonstração da complexidade que o termo encerra, podem os indivíduos se acharem

superiores a outros até mesmo pela comparação de “menos”. Efetivamente é o que acontece

quando ser diferente passa a significar ter menos responsabilidade do que outro; menos

afazeres do que outro; menos dores do que outro; menos problemas do que outro.

Pela mediação, busca-se a correlação das identidades dos indivíduos. À identidade-eu

justapõem-se a identidade-nós. Todos os indivíduos apresentam essas duas identidades. A

primeira diferencia cada indivíduo, o individuo pelo que tem de si próprio, como se se tratasse

de uma dimensão a cujo âmbito todos os interesses do mundo só a ele dissessem respeito e a

ninguém mais. A identidade-nós é, por sua vez, a que anima todos os indivíduos; seria a

porção comum a habitar em todos e a todos vincular social, ecológica e psicologicamente.

Como diz Schettini:

Na prática, os grupos de convivência subsistem pela atuação dos indivíduos com suas peculiaridades, mas transcendem suas marcas genuinamente pessoais. Em parte, o indivíduo desaparece dentro do seu grupo para fortalecer as similitudes sem perder as características das suas diferenças. Sem ser um conjunto (no sentido aritmético), carrega em si a marca indelével da ética. O que estabelece o NÓS é a relação e não a fusão. Na relação permanece a individualidade sem prejuízo das trocas, que fortalecem uns e outros componentes do grupo, no qual sobressai a nossa necessidade de pertencimento. 73

As tensões entre essas identidades podem ser trabalhadas. A mediação o faz por

balanceamento dos dois pólos conceituais. Faz ver aos opostos, em caso concreto, que

privilegiar a identidade-eu pode significar a destruição da identidade-nós. Agir alguém em

função apenas de si mesmo, sem refletir nas conseqüências de seus atos para com o outro que

o interpela (e bem assim para as demais pessoas do meio que integra) pode significar a ruína

geral. Algo aparentemente vantajoso para um dos lados, em dado momento, pode representar

imensas desvantagens, se vista a situação de um ponto de vista mais largo.

Se tudo pertence a tudo, nesse sentido de pertencimento ganham expressão as relações.

Pensar isoladamente os papéis dos indivíduos só contribuirá para a permanência do velho

paradigma da ciência, comprometida em habilitar a parte como suficiente à explicação do

todo.

73 SCHETTINI FILHO, Luiz. A coragem de conviver: uma forma de organizar as relações interpessoais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 16.

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Capra dedicou-se, a vida toda, a expressar como seria possível a compreensão desse

pertencer, ao afirmar:

No velho paradigma, acreditava-se que em qualquer sistema complexo a dinâmica do todo poderia ser compreendida a partir da propriedade das partes.No novo paradigma, a relação entre as partes e o todo é invertida. As propriedades das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do todo. Em última análise, não há partes em absoluto. Aquilo que chamamos de parte é meramente um padrão numa teia inseparável de relações. 74

Enquanto há tempo para isto, os indivíduos podem prevenir catástrofes de toda ordem.

O balanço das identidades conforme delineado é um contributo da mediação a evitar que a

sociedade desapareça pelo desaparecimento de seus indivíduos, quando estes se achando

plenos de si mesmos, fazem de tudo por impor, aos dos outros, seus desejos, interesses e

diferenças, embora com amplos prejuízos para os demais sistemas.

Esse modo de equilibrar a vida e preservar a existência de todos é entendido por Guatari

como ética superior. Ele deixa subentender que, sem solidariedade humana, aliada à

capacidade de reinvenção, entra em perigo a vida do Planeta e se torna estéril tudo o que se

tem realizado até agora. Ele assegura:

O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em função do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico redobrado pela revolução informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou da cultura, da criação, da pesquisa, da re-invenção do meio-ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade? 75

As diferenças põem em claro a necessidade humana de se decidir. Podem os homens

optar por continuar pensando unicamente em si, bafejando seus egos de todas as vantagens

que a competição predatória contra seu semelhante proporciona, ou, doutra maneira, podem

criar ambientes para acolhida da solidariedade em suas relações e concepções de vida.

Decisões no rumo da primeira vertente conduzem o homem a nada modificar no trato de

sua condição. E demonstram que nada compreendeu, ainda, dessa condição, depois de tanto

tempo em que sofre desses problemas, repetidamente, na face da Terra. Pois, nos termos

levantados por Pascal:

74 CAPRA, Fritjof. Pertencendo ao universo. Tradução de Maria de Lourdes Eichenberger e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 11.75 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. São Paulo: Papirus, 2005. p. 8-9.

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Imagine-se um certo número de homens acorrentados e todos condenados à morte. Todos os dias, alguns deles são degolados à vista dos outros, e os que restam vêem a sua própria condição e a de seus companheiros, e, olhando-se uns aos outros com angústia e desespero, aguardam a sua vez. Essa é a imagem da condição humana. 76

A condição miserável do homem é resultante, em parte, de não saber agir em seus

conflitos. Se tantas são as catástrofes e crises que de sua maneira estúpida de ser podem advir

(efeito estufa, desemprego, aids, conflitos armados), também são muitas as alternativas

(salvações, evoluções flexíveis) que poderá empenhar. Tudo dependerá de suas decisões.

Compreender que não vive isoladamente, que precisa conviver, co-existir, reconhecendo a

legitimidade das outras pessoas (com quem venha a se atritar de algum modo), já é de grande

utilidade nessa empreitada.

6.4 Balanço autopoiético

A autonomia e a dependência que se enlançam, constantemente, nas formulações da

mediação, com vistas a explicitar o caráter complexo de solução de conflitos, podem ser

encarados sob a concepção da autopoiese. 77 Tratando de seres vivos, a mediação se imbrica

com a autopoiese, por vários modos, dos quais lhe resultam vários desafios. O principal deles

talvez seja transformar a dinâmica biológica para a dinâmica social, atenta, sempre, às

entropias 78 e neguentropias 79 dos sistemas conflitivos.

É só verificar que, lidando com sistemas vivos (pessoas em conflito), a mediação faz

uso largo do fenômeno biológico. Reconhecer esses seres implica reconhecer, ao mesmo

tempo, suas igualdades e suas diferenças. De fato, são iguais em organização, mas diferentes

em estruturas. Maturana é quem explica:

A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis.O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais em organização. 80

Os seres vivos são unidades autônomas, e a mediação aposta nessa autonomia. Esta

consiste em que os seres humanos produzem o seu mundo, da mesma forma que os demais

seres vivos da cadeia biológica mais inferior produzem a si mesmos. A característica central

76 PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1973. p. 73. 77 Poiesis vem do grego e quer dizer produção. Autopoiese significa, assim, autoprodução. 78 Entropia é fenômeno de desorganização, de crescimento de desordem, de arruinamento das relações.79 Neguentropia, também chamada de entropia negativa, é fenômeno de reorganização, reintegração de partes dissonantes, ajuntamento de forças dinâmicas. 80 MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco, op. cit., 2005. p. 55.

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dessa dinâmica é a de que os seres são, ao mesmo tempo, produtores e produtos. Produzem a

si mesmos, mas dependem do meio em que vivem para a obtenção de recursos.

Esse paradoxo autonomia/dependência faz a complementaridade dos sistemas. Torna-os

circulares na sua produção. Para Maturana, a estrutura é determinante da organização

autopoiética. Tudo o que acontece ao ser vivo, em dado momento, é resultado de suas

estruturas. Funciona assim: o mundo em que os seres vivem é construído por suas percepções.

Estas, por sua vez, são construídas pelas estruturas. Ou assim: estruturas geram as percepções,

e estas geram o mundo.

Dessas implicações gerativas, forma-se o que o autor chama “acoplamento estrutural”.

Os sistemas vivos e o meio de que dependem se modificam constantemente. As estruturas de

um sistema agem sobre as estruturas de outro sistema e desencadeiam relações

compensatórias. O estímulo de um provoca o outro, que replica e, da replicação, surge outra

resposta e, assim, sucessivamente, num crescendo de influências recíprocas.

O que se nota é a existência de um diálogo. Os sistemas, acoplados, interagem em bases

compensatórias, solidárias, formando um contexto de consensualidade.

Fosse composto tão só de aspectos biológicos, a autopoiese humana ocorreria

normalmente, sem maiores danos. Ocorre que o homem, como visto, é complexo. Ao mesmo

tempo em que é biológico, é cultural. E aí parece estar o grande desafio da mediação: adaptar

ao fenômeno social as nuances autopoiéticas do fenômeno biológico, para agregar

solidariedade, consenso e humanidade às resoluções de conflitos.

Nas interações concebidas biologicamente, há respeito aos componentes dos sistemas,

há qualidade de vida das partes e equilíbrio com os elementos de sistemas de que dependem.

Nas interações humanas há desrespeitos, posições egológicas mórbidas, que se enchem de

ambições, competições desenfreadas por ter mais dinheiro e poder e uma série de desejos e

patologias sociais, que solapam a dignidade e a legitimidade de vida de membros menos

favorecidos.

A mediação trabalha por lembrar, sempre, aos mediados que: as estruturas determinam

as percepções, e estas determinam o mundo. Podem-se melhorar tudo, desde que se

descondicionem as estruturas atuais do modo mental alienador e predatório com que pensa a

vida e o mundo. Não parece ser fácil esse desafio, porque as sociedades vivem imersas em

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culturas patriarcais, privilegiadoras de separação (separação entre o sujeito e o objeto;

separação entre elementos do próprio sujeito – corpo desligado da mente; separação de

indivíduo e sociedade; separação do todo de suas partes.

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CONCLUSÃO

Das inquietações apresentadas neste trabalho, o qual – se há de reconhecer — está longe

de dar conta de todas as complexidades dos conflitos e das possibilidades resolutivas

abraçadas pela mediação, podem-se extrair algumas conclusões.

Mediação consensual se afigura como modo de pensar a realidade. Busca compreender

e ensinar que os conflitos interpessoais não podem ser manipulados por uma visão apenas

cartesiana, baseada em separar os elementos e simplificá-los no isolamento de reduções ou

exclusões.

Para o pensamento da mediação, não se deve olhar para as coisas e conflitos como

partículas isoladas. Se as várias unidades (como as pessoas em divergência), uma vez

reunidas, formam uma totalidade, nada mais congruente do que entender as partes como

pertencentes a sistemas de relações, que se voltam para si e para o todo, em redes de múltiplas

direções, interdependências e implicações.

Entre o pensar e o sentir, o que se tem percebido é uma tendência desmedida dos

paradigmas das ciências em “endeusar” a primeira categoria em detrimento da segunda, como

se somente se pudessem atingir respostas para os conflitos interpessoais pelos meios ditos

racionais que esse sistema enfeixa em suas concepções. A mediação não somente concebe

atenção a essas fórmulas (por sua maneira respeitosa de reconhecer valor a todas as

possibilidades de ações humanas), mas as faz conectar à categoria do sentimento. Somente

das interações entre pensar e agir se pode arrancar o entendimento do humano; todas as

decisões ganham maiores chances de durabilidade e bem-estar de seus protagonistas quando

tratadas pela consideração de pensamentos e emoções, estas carregadas de valores, sem os

quais se torna incompleta qualquer abordagem de vida.

Da autonomia dos interessados, revelam-se potenciais e reservas imensas para construir

soluções. Das muitas formas de conceber, juntos, os conflitos, percebem o quanto cada um

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funciona como sistema aberto às correntezas de matérias e energias e como se engatam a

outros sistemas, o tempo todo, em processos de conhecimentos e vivências.

Os conflitos podem significar impotência de vida para os envolvidos, quando estes não

compreendem o poder de que dispõem para programar, redefinir, redirigir e proativar desejos,

necessidades, recursos e aspirações. A mediação, com estabelecer bases de diálogo e de

interação os mais diversos, quer empoderar as pessoas; busca provar-lhes que podem fazer a

vida tanto quanto a vida as faz, numa reciprocidade de inteligência, emoção e atitude.

As possibilidades de comunicação são amplas, tanto de conflitante a conflitante, quanto

de cada um em si mesmo. Os diálogos podem ser verbais, orais, de pensamentos ou de

emoções, importando mais a sinergia que desenvolvam nos participantes do processo, do que

do valor em si de cada código de linguagem ou meio de expressão.

A transdisciplinaridade é tônica na mediação. Canaliza para esse saber todos os outros

que sejam exercitáveis pelo gênero humano. Da integração dos muitos conhecimentos se

podem tecer soluções para a vida das pessoas.

Viu-se que o espírito balizador das principais estratégias da mediação propende para o

pensamento complexo. Pode-se chegar a essa constatação mercê do modo como a mediação

trabalha a integração das várias dimensões humanas, a riqueza dos sistemas e a diversidade de

recursos à disposição do mediador e das partes em conflito.

A mediação se imbui de um poder de transitividade, que se entremostra no giro de suas

ferramentas através dos vários pólos dos conflitos e de seus elementos. Atenta à noção de

sistema, pode entender a abrangência das condições em que se debate o homem. Dessa

observação, pode posicioná-lo num sistema menor ou maior; mais próximo ou mais distante;

de caráter religioso ou psicológico; social ou econômico; em qualquer campo do saber; por se

tratar de uma autêntica formuladora de pontes e redes de contato, por cujo meio pode

fortalecer relações e animar processos de melhoria de vida.

O poder de transformação é dado a todos. Toda pessoa tem fisiologia, coração,

cérebro... engrenagens que, associadas e em fluxo, são mais abrangentes de comunicação do

que bilhões de computadores com trilhões de impulsos diários lançados na internet. A

mediação quer demonstrar que assim aquinhoados, os homens podem melhorar o seu destino,

bastando saber transitar do que lhes é dado para o que seja preciso construir.

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As notas valorativas, de todo o atuar das relações, seja do ponto de vista do mediador,

seja quanto aos diretamente envolvidos, não se devem centrar apenas num pólo ou outro, mas

sim num pólo e outro das realidades trabalhadas. A separação pura e simples, com desprezo

de um dos pólos, empobrece a vida. A mediação enfatiza a relação dos vários elementos

envolvidos em qualquer conjunto de que se cuide.

Alcançada a transformação em si (sistema individualmente considerado), pode-se

atingir expansão para o mundo circundante. O maior projeta-se do menor, de igual modo que

o público pode encaminhar-se do privado. Tal como nota o pensamento complexo, pode-se

trabalhar o universal localizadamente, bem assim o local universalmente. Deste movimento se

alentam as mais desenvolvidas democracias e as melhores formas de convivência.

A mediação como sistema de soluções não pretende substituir o Poder Judiciário. Antes,

tenta complementá-lo, à feição do que ocorre com o pensamento complexo. Ou seja: essa

forma de pensar junta as duas outras – linear e sistêmica – e as faz interagir na produção de

uma solução consensuada e, portanto, capaz de estabelecer satisfação duradoura.

Pode-se entender, dessa perspectiva, possibilidades várias de aproximação da justiça e

da paz, porque os interessados têm nas próprias mãos os instrumentos para efetivação dos

direitos almejados. Depende deles compartimentar suas liberdades e gerir seus interesses, no

âmbito imenso de redes e meios propiciadores de co-construção.

Cabe aos interessados decidir sobre qual dos sistemas (judicial ou da mediação) melhor

atende às suas expectativas. Haverá casos em que a mediação desponta, de cara, como a

melhor opção. Haverá outros em que, pelo contrário, o diálogo entre as pessoas não tem

possibilidade sequer de iniciar-se, o que revela um quadro desalentador até para o sistema

judicial.

No entanto, o sistema estatal, nesse passo, deve ser o indicado, pela simples razão de

que aí se cogitará melhor da aplicação de imposições. É para isto que serve toda a teorização

positivista-legal que confere ao Estado o poder de impor regras de convivência social.

Em verdade, o direito estatal, nesses casos, em aplicar as leis não é coercitivo em

essência ou pela natureza das normas do ordenamento jurídico. É coercitivo, conforme já se

explicou neste trabalho, como conseqüência de não terem os atores do direito (as partes em

conflito) conseguido resolver por si mesmas as suas diferenças, como ensinado na mediação.

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A liberdade dos indivíduos em lidar com seus assuntos, de se comprometer e de se

responsabilizar, poderá ser afetada, algumas vezes. É então que se diz que, vencida essa fase

de experiência de vida, sem preenchimento de seus espaços por iniciativas dos interessados,

estes terão aberto mão de sua liberdade e, em face disto, ficam expostos à experimentação da

força, tanto do Estado quanto de outras instâncias de decisão.

O pensamento complexo da mediação também se faz notar no acolhimento da

diversidade, a partir de cujos elementos, portadores de ecologias profundas, encoraja a

solidariedade, a desconstrução e a reconstrução de práticas, com vistas à integração das

pessoas em disputas. Trabalha por conhecer dos pensamentos, emoções e comportamentos

polarizados e, de suas pulsões, busca extrair pontos de ligação entre as diferenças e as

semelhanças. Agindo de extremo a extremo, tem condições de avistar o todo; de sabê-lo

vinculado às suas partes, por laços dinâmicos; e desse percurso amplo captar realidades

subjacentes e transcendentes aos conflitos.

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REFERÊNCIAS

LIVROS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira,

coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos

por Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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