A Medida Do Meu Mundo Sem Você
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A Medida do Meu Mundo Sem Você.
“Ninguém nessa
vida é feliz tendo
amado uma
vez”.
Raul Seixas
(Contém duas cenas que se entrelaçam).
Cena 1- A
Renata está na cozinha. Tem uma balança e muitos instrumentos de medir
quantidades: miligramas, mililitros, etc. Pega cada ingrediente e vai falando as
quantidades e despejando:
Farinha de trigo: 250 miligramas.
Leite: 100 mililitros.
Açúcar: 100 miligramas.
Despeja tudo em um recipiente, amassa a massa com a mão.
(O telefone toca, ela não muda o foco nem um pouco. Cai na caixa postal que
está no viva voz. A ligação é de Nicolau).
Nicolau: Oi, Nata. Eu sei que você está aí e sei que está cozinhando. Também
sei que você sabe que eu ia voltar para comer a sua comida. Não ia ter
coragem de deixar de fazer isso... Apesar de achar um ritual meio macabro.
Mas eu tentei muito não ir. Tanto que fiquei guiando, olhando os quilômetros
passarem à minha frente. 1, 2, 3, 239, 457 e só aí parei. Pensei em fazer uma
homenagem a nós e chegar no 2.457 e ver onde isso ia dar, mas sem você
para ir contando as coisas comigo na estrada fica bem chato mesmo e eu não
dou conta de guiar e ficar contando cada carro vermelho que passa na estrada,
cada casa amarela, cada boi Nelore... Então tô ligando para dizer que
demorarei umas quatro horas para chegar aí. Ou mais, pois já tá escurecendo.
Dá para você fazer aquela receita demorada que você tanto gosta. E abrir o
vinho que guardou para essa noite. A gente tem todos os dias do mundo à
nossa frente. Não dá para mensurar quantos. Isso é bom. Finalmente um
número que não conheço. Só você mesmo podia me dar isso. Meu MDC. Eu tô
indo, Nata. Tô chegando. Me espera.
(Ela continua a cozinhar impassível).
Cena 2-
(Essa cena é cronologicamente anterior à cena 1. Seria bom que Renata
continuasse cozinhando e, ao mesmo tempo viesse para a cena 2. Podem ser
duas atrizes, pode ser um vídeo da Renata na cena 1 cozinhando que fica
estático enquanto a cena 2 se desenrola ou uma foto da cena 1. O importante é
que se tivesse a ideia de que ela continua a cozinhar enquanto a cena 2
protagonizada por ela mesma acontece).
(Enquanto Renata cozinha, Nicolau entra
Nicolau- Você está aqui? Não acredito que você está aqui. Como você pode
estar aqui?
Renata- Eu... eu...
Nicolau- Você nada, você coisa nenhuma. Eu... Só EU! Foram 28 mensagens
de texto, 15 e-mails e 3 telefonemas.
Renata- Eu sei.... eu...
Nicolau- EU... EU! Não você. EU! E EU te dou 15 minutos. (Vira- se como se
fosse descer a escada que dá acesso à casa mas para. Respira fundo). Eu...
eu... (senta). Eu não consigo descer essa escada. Nem subir. Nem parar no
meio.
Renata- O que... Por que?
Nicolau- EU conto os passos. Eu conheço cada degrau. Lembro em cada
degrau de uma imagem diferente que fica rodando na minha cabeça. E pôr um
pé na frente do outro tá difícil. Subir os degraus tá difícil. Parece que se eu
pisar no degrau vou matar uma lembrança. Que se eu subir rápido a lembrança
vai ser esmagada que nem uma barata, sabe? Então eu decidi rastejar pela
escada. Rastejando eu não tenho lembranças. Rastejando é diferente. Achei
um jeito diferente de subir essas escadas sem contar cada um dos degraus, fiz
uma nova lembrança. Rastejando eu criei um espaço novo para mim e os
degraus da nossa... dessa casa aqui.
(Ela começa a rir. Ele ri também).
Renata- Meu deus, Nico. Que que é isso? Você rastejou escada acima?
Nicolau- Tá rindo, né? O problema é que não dá para descer rastejando, eu ia
me estatelar no chão lá embaixo. E ao mesmo tempo eu não quero lembrar de
cada coisa a cada degrau que eu piso. Não quero. Você não tinha que estar
aqui... Isso não é justo. Ainda mais depois de 28 mensagens de texto, 15 e-
mails e 3 telefonemas.
Renata- São 50.
Nicolau- O que?
Renata- Degraus.
Nicolau- É claro que sei quantos degraus são. Por que catzo a gente tem toda
essa relação com essa escada, com esses degraus é que eu não sei. Eu não
tinha reparado nisso antes. Nunca tinha reparado nisso. Que absurdo. É só
uma escada. Uma escada que daqui a um tempo nem vai mais estar aí. São
degraus como quaisquer outros degraus. Quem tem lembranças a cada degrau
que sobe? Quem?
Renata- Quem conta cada degrau a cada passo que dá.
Nicolau- Você não tinha que estar aqui. Eu não tinha que ouvir de novo o som
da tua voz. A gente tinha combinado isso. Sem som de voz, sem novas
lembranças.
Renata- Eu sei e eu juro que tentei não estar aqui. Olha, até comprei esses
tênis de corrida amarelo ovo horrível aqui. Disseram que eram os melhores.
Comprei também calça de corrida, blusa, agasalho, viseira, e até polainas.
Tudo para sair por aí correndo e poder dizer: olha só, eu corro. E isso eu herdei
do Nico. É, sim, sim... nós dois corríamos juntos todo final de tarde. Éramos um
casal muito saudável.
Nicolau- Mas nós não corríamos juntos coisa nenhuma. Eu é que sempre corri.
E sozinho! Você nunca quis. Não fazíamos nada saudável, louvável ou criativo
juntos. A gente só chafurdava juntos, como você gostava de falar.
Renata- E daí que não fazíamos nada disso juntos? Quem ia saber? Não iam
instaurar um inquérito para descobrir isso, né? Eu queria criar algo para nós.
Uma última imagem só minha.
Nicolau- Você sempre fazia isso, de qualquer modo. Criando realidades
inventadas e numerando cada uma delas...
Renata- Eu ainda estou aqui. Não fala no passado. Eu fico com aflição. Parece
que tô vendo um filme que se passa depois da minha morte.
Nicolau- De certa maneira é isso mesmo que se passa aqui. Uma cena no
limbo. Estamos no limbo. Eu não consigo descer a escada que leva à porta da
rua, nem subir a que leva ao andar de cima. Estou no lim-bo!
Renata- Não está, não, porque o limbo não existe mais.
Nicolau- Como assim o limbo não existe mais?
Renata- O limbo foi extinto pelo Papa Bento XVI. Eles fizeram um concílio de
teólogos e resolveram extinguir o limbo. Assim, meu caro Nicolau, você vai ter
que decidir: ou bem desce ao inferno ou bem ascende ao céu. O limbo está
extinto.
(Os dois riem de novo).
Nicolau- Que informação mais absurda essa. Como você pode saber isso?
Aliás, é verdade isso?
Renata- Claro que é, porque eu inventaria uma coisa dessas? Sei lá porque eu
sei isso. Vai ver que foi por causa de uma época que eu fui fuxicar sobre o
Bento XVI. Eu adoro esse lance de pôr número em papas. Com as pessoas
devia ser assim também. Você seria o Nicolau número o que? Um milhão e
setecentos mil?
Nicolau- Nata, chega disso, vai, chega...
Renata- (Ignorando-o resolutamente). Aí eu saí correndo e quando dei por mim
comecei a contar: os passos que eu dava, depois os batimentos cardíacos,
depois a respiração. E comecei a pensar em quantas respiradas damos por
segundo. E engolidas, quantas engolidas damos por segundo? E as piscadas
de olho, quantas piscadas de olho damos por segundo? E sons, quantos sons
diversos cabem por segundo e os pensamentos, quanto pensamentos diversos
cabem em nossa cabeça por segundo? E aí comecei a sentir tontura entre as
quantidades abissais que tenho dentro de mim por segundo. E lembrei porque
eu ODEIO fazer qualquer esporte: eu fico com a sensação que meu coração
vai explodir. Eu sinto cada batida do meu coração e lembro que só existo
porque um coração bate dentro do meu peito. E voltei correndo, com vontade
de sair de dentro do meu próprio corpo para poder ter um pouco de sossego e
de silêncio.
Nicolau- São: 10 piscadas por segundo. 2 pensamentos por segundo. De 1 a
30 batimentos cardíacos por segundo.
Renata- Eu sabia que você saberia. Só você sabe me acalmar com toda a sua
sabedoria sobre os números. Só você no mundo inteiro.
Nicolau- Eu não terminei de falar a quantidade de...
Renata- Isso não importa mais... porque quando eu voltei você não estava aqui
para me dizer isso. Não estava mais. Nem estaria e nem estará. Então tentei
parar com todos esses movimentos para poder parar de pensar neles e aí não
sabia mais como fazer: parar primeiro de pensar, de respirar, de ouvir, fazer o
coração parar de bater por um segundo? Me concentrar em outra coisa? Em
nada? E eu só pensava que você não ia estar aqui. E comecei a pensar em
quantos dias faltaria para que você parasse de não estar mais aqui. Quer dizer
isso seria algo definitivo, né? A sua ausência seria definitiva. Mas teria um dia
em que daria para contar isso. Ele não está aqui há tantos dias.
Nicolau- Eu estou agora.
Renata- Porque eu trapaceei.
Nicolau- Assim como não vai ter inquérito policial por conta da sua historia da
corrida, não vai ter inquérito policial por causa disso, fique tranquila.
Renata- Quanto de tranquilidade será que cabe em um copo de desespero
como o meu?
Nicolau- Dois terços? Três quartos?
Renata- Não dá para medir. Pelo menos meu desespero de hoje não dá...
Nicolau- Dá sim, tudo na vida é mensurável. Tudo. Basta apenas definir o tipo
de medida, o medidor e sair medindo. Não há nada que não possamos, em
teoria, medir, absolutamente nada. Até mesmo o nada é passível de ser
medido. O infinito, o vazio. As coisas só existem em relação a outras e por
conta disso podemos medir tudo
Renata- Eu sempre existi em relação a você. Você sempre foi a minha escala
de medidas. Sempre.
(Olham-se).
Nicolau- O bom das medidas, Nata, é que o referencial muda, então elas
mudam também. As medidas se refazem e prosseguem infinitamente.
Renata- Mas para que isso aconteça toda a quantidade de medidas anteriores
terá que ser enterrada. Substituída, reinstalada. Que nem essas tomadas de
três pinos que deixou todas as casas esquizofrênicas, uma coisa tão simples
que ninguém reparava de repente instalou o caos em todas as casas...
Nicolau- Nata. Eu posso conversar com você para sempre. Todos os dias, por
todas as horas dos meus dias. Eu gosto. Eu rio. Eu choro. Mas já falamos
sobre isso tantas vezes. Mais de duzentas, para ser mais preciso. Então eu vou
ascender aos céus e buscar os 90 litros de roupa que cabem na minha
mochila.
Renata- Litros de roupa?
Nicolau- Essa minha mochila tem seu espaço medido por litros. Todas elas
têm esse sistema de medida... O que você quer? Que a gente comece de novo
com tudo aquilo? Quer que eu comece pondo a mão em você e fingindo que foi
sem querer daí você põe a mão em cima da minha e finge que foi sem querer
também e... O engraçado é que eu já reparei que casais que estão terminando
são iguais os que estão começando, fingem que não percebem o jogo que
estabelecem... é bem patético e acho sinceramente que a gente não precisa
disso...
Renata- Não é o que você está pensando, não. Isso, Nico eu posso fazer com
você pelo resto da minha vida. A gente pode começar aqui nos ladrilhos 27 e
28, lembra? Os que a gente mais gostava. Eram menos frios que os outros,
você dizia.
Nicolau- Não é verdade. A verdade é que a sua cabeça tem um redemoinho
bem no meio e encaixa direitinho nesses ladrilhos que têm uma concavidade
estranha entre eles.
Renata- A gente experimentou cada combinação de ladrilho.
Nicolau- São apenas 50 combinações. O que eu sempre achei engraçado,
porque é o mesmo número de degraus na escada.
Renata- Viu? Tô falando? Não preciso de subterfúgio para experimentar
ladrilhos, azulejos, escadas, colchões, areia, nada com você. Isso é nosso
patrimônio. Sei que posso acessar isso a qualquer momento dentro de mim.
São imagens intermináveis.
Nicolau- Parecem intermináveis porque podem ser combinadas de milhares de
maneiras diferentes.
Renata- Ser casada com um gênio tem essa desvantagem irritante. Não há
como ser nem um pouquinho romântica, né?
Nicolau- É. É assim. Mas no começo você me achou bem romântico, ou vai
dizer que não lembra?
Renata- Por causa da música do Raul você está falando?
Nicolau- Pelo que mais seria?
Renata- (Ri). Eu não acredito que você ainda lembra daquilo! Juro que eu
achei que você tinha esquecido isso há anos!
Nicolau- Não é só porque eu não fico repisando nossas histórias que não
lembro delas, Nata!
Renata- A música do Raul. Contando parece mentira que o Raul Seixas uniu a
gente, né?
Nicolau- Os melhores amores começam das maneiras mais inusitadas.
Renata- Até amor você vai querer medir? Quais são os melhores e quais são
os piores? É isso mesmo?
Nicolau- Medindo ou não medindo, de qualquer forma o nosso era dos
melhores.
Renata- Ainda é.
Nicolau- E eu nunca esqueceria uma história de amor que começa comigo
explicando o que é o MDC para alguém...
(Os dois cantam juntos o final da música Você é Meu Máximo Denominador
Comum, de Raul seixas). Você é meu Máximo Denominador Comum! (Riem).
Nicolau- E depois eu tive que te explicar que na matemática é máximo divisor
comum.
Renata- Pois é.
(Ela pega na mão dele que se esquiva).
Nicolau- Eu falei que era isso.
Renata- Não é isso. Não quero deitar no nosso ladrilho de novo...
Nicolau- (Meio surpreso e ofendido). Não?
Renata- Quer dizer, não é que eu não queira, poderia deitar no ladrilho para
sempre com você, Nico. Para sempre. Mas esses momentos em seus milhares
de combinações vão morar dentro de mim para sempre. Como um filme que
posso baixar nos momentos em que precisar. A lembrança mais difícil na
verdade é outra. E é isso que eu quero fazer com você pela última vez. É isso
que ainda não fizemos pela última vez.
Nicolau- O que?
Renata- Eu quero cozinhar para você uma última vez. O paladar é uma
lembrança fugidia. Eu quero guardar os nossos temperos, o gosto da nossa
comida com mais força. Quero cozinhar hoje para você, pela última vez. Existe
esse número? O último número conhecido? Antes do infinito? Deve haver.
Nicolau- Há, claro que há esse número, mas ele é indizível e não é antes do
infinito ele faz parte do infinito. Como nós. Você quer cozinhar para mim?
Mesmo? Por que?
Renata- É. Depois que cheguei em casa da minha corrida frustrada resolvi
cozinhar para me acalmar e deixar a casa livre para você. Você sabe, cozinhar,
medir a quantidade de cada uma das coisas, dos ingredientes, do calor do
forno, do tamanho da forma, tudo exatamente certo. Tudo bem definido. Isso
certamente me acalmaria, já que você, suas medidas, tudo o que você sabe
não estariam mais aqui e aí foi... foi horrível...porque percebi que todas as
medidas que eu tenho são para você ou para nós. Tudo eu só sei cozinhar
para as medidas de nós dois.
Nicolau- Pega tudo e divide ao meio.
Renata- Você come mais do que dois terços de tudo o que eu cozinho, Nico.
Nicolau- Corta dois terços, ué.
Renata- Nada fica exato. Para eu refazer as medidas da minha cozinha vou ter
que refazer tudo. Começar de novo. Tudo de novo. Reparei que depois de
você, de nós dois vou ter que reaprender a comer. A fazer compras, listas.
Tudo que eu já tinha medidinho aqui vou ter que remedir, e não vai poder ser
na mesma escala, não. Vou ter que aprender novas formas de mensurar
tamanhos entendeu?
Nicolau- Há vários sistemas de medidas por aí.
Renata- Eu vou ter que inventar um que se chama as medidas do meu mundo
sem você.
(Olham-se em silêncio).
Nicolau- Bom, eu preciso subir os 23 degraus que me levam até o segundo
andar. Vou ter que pegar os 90 litros de roupas, afinal é o que cabe dentro
dessa mochila. O resto eu pego depois.
Renata- Por favor, fica mais um pouco.
Nicolau- Quanto?
Renata- Mais algumas horas.
Nicolau- Quantas? Para que? Para que isso tudo, Nata?
Renata- Eu preciso cozinhar uma última vez para você. Preciso. Eu quero fazer
aquelas receitas que guardamos juntos por tanto tempo, aquelas que eu
apurei, medi, pesei, anotei. Aquele caderno inteiro de receitas que fizemos
juntos. Eu só sei cozinhar para você. Quero fazer pela última vez pelo menos
aquela minha receita que demora quatro horas exatas para ficar pronta.
(Descreve o prato em detalhes de quantidades, pesos, etc.).
Nicolau- Não, Nata. Não. Isso parece um funeral. E eu não quero.
Renata- Por favor. Já separei tudo. Fui correndo com meus tênis novos até o
supermercado. Contei os passos que dei daqui até lá. Enfrentei o meu medo de
todos os números que moram dentro de mim e fui. Comprei tudo, olha
(enumera o que comprou).
Nicolau- Não. Eu não vou ficar. Não vou subir. Não quero mais lembranças. Tô
tentando parar a nossa história no dia número 2.457 e você não deixa. Cada
hora acrescenta mais um dia à nossa lista. Não consigo parar e catalogar cada
coisa. Não consigo pôr as lembranças ou meus pés no lugar certo. Tenho que
ficar rastejando por aí. Tirando cascas me tornando um réptil. Chega, Nata.
Uma hora tem que ser a última. Tem que ser. E é agora.
(Nicolau respira fundo, fecha os olhos e desce as escadas. Renata vai até a
cozinha e volta a cozinhar).
Cena I- B.
(Renata Continua cozinhando)
Renata- (De repente fala): 23 minutos (e a mesma ligação de Nicolau do
começo da peça entra novamente no viva voz).
Nicolau: Oi, Nata. Eu sei que você está aí e sei que está cozinhando. Também
sei que você sabe que eu ia voltar para comer a sua comida. Não ia ter
coragem de deixar de fazer isso... Apesar de achar um ritual meio macabro.
Mas eu tentei muito não ir. Tanto que fiquei guiando, olhando os quilômetros
passarem à minha frente. 1, 2, 3, 239, 457 e só aí parei. Pensei em fazer uma
homenagem a nós e chegar no 2.457 e ver onde isso ia dar, mas sem você
para ir contando as coisas comigo na estrada fica bem chato mesmo e eu não
dou conta de guiar e ficar contando cada carro vermelho que passa na estrada,
cada casa amarela, cada boi Nelore... Então tô ligando para dizer que
demorarei umas quatro horas para chegar aí. Ou mais, pois já tá escurecendo.
Dá para você fazer aquela receita demorada que você tanto gosta. E abrir o
vinho que guardou para essa noite. A gente tem todos os dias do mundo à
nossa frente. Não dá para mensurar quantos. Isso é bom. Finalmente um
número que não conheço. Só você mesmo podia me dar isso. Meu MDC. Eu tô
indo, Nata. Tô chegando. Me espera.
(Ela continua a cozinhar).
Renata- Eu vou acertar essa receita. Talvez 100 ml de açúcar? Não, 120. Isso
120. Dever 120. Como eu faço para diminuir dois terços de tudo? Como é que
eu faço para medir um terço da gema de um ovo? Da clara de um ovo?
(Respira fundo). Lembrar que tudo, absolutamente tudo é mensurável porque
um terço da gema não seria? (Pega uma balança mede a gema, faz contas e
começa a receita de novo). Vai dar certo. Essa receita vai dar certo. (Joga a
massa anterior fora e começa de novo). 120 ml de açúcar, 100 de sal, etc. 46
minutos
(Entra a ligação de Ernesto no viva voz).
Ernesto- É... (silêncio) É... Olha, eu sei que tá tarde, tá? Eu sei mesmo: São duas e meia da manhã, mais precisamente 2 e 37. Sei que parece absurdo eu falar o horário exato, mas sei lá, vai que isso pode ser importante mais para a frente, né? Mas é que eu tava aqui no meio da estrada e eu vi um carro... eu parei e vi um carro caído aqui no acostamento, virado... Ou o contrário na verdade... Essa estrada aqui é no meio do mato. Só tem mato aqui e gado e duas casas vermelhas e uma amarela, eu não sei porque mas eu contei isso, acho que foi o nervosismo... Puta que o pariu, desculpa falar palavrão moça, quer dizer eu acho que é moça, mas sei lá, pode ser moço também, hoje em dia vai saber, né? Mas eu tô com muito medo, aqui não tem luz direito a cidade mais perto é uns 70 quilômetros e ficar aqui do lado desse... desse corpo... (pausa) Desculpa falar assim, eu nem falei porque eu liguei, mas é que eu tenho medo de gente morta e ai... (pausa). Desculpa de novo... eu nem sei o que esse cara aqui é seu...mas eu tive o azar de encontrar esse carro e tava começando a anoitecer e agora, agora já anoiteceu e só agora tive a ideia de fazer aquelas coisas que a gente vê nos filmes: eu peguei o celular do cara e disquei o último número tava lá escrito Meu MDC. Eu nem sei seu nome, ai que coisa louca isso... Eu tô aqui faz umas horas, já liguei para a polícia faz tempo... Olha, eu não sou um filho da puta não... eu nem queria abandonar o... corpo aqui do seu amigo, sei lá do seu marido... ai, ai, ai... que que eu tô falando... Mas ficar nesse fim de mundo no escuro com... com um morto eu não seguro a onda. Cê faz uma coisa, liga para a polícia e fala que se quiserem é só retornar para esse telefone aí do seu bina. Ah! Meu nome é Ernesto. Desculpa o mal jeito, MDC, quer dizer... sei lá. Desculpa aí mesmo, moça, moço...ai meu Deus. Eu ia ficar aqui até a polícia chegar, mas aí eu tive a péssima ideia de ligar o meu I Pod e aí começou essa música aqui ó, só para você não pensar que é mentira escuta um pouco da música aí não deu mais... Caralho, viu, só comigo acontece essas coisas. (Ouvimos ele desligando e o som de ocupado, enquanto sobe música Canto para a Minha Morte, de Raul Seixas).
(Ela continua cozinhando impassível. A música é tocada alto, a luz cai sobre
Renata em sua cozinha).
FIM.