A memória e o tempo na narrativa Ópera dos mortos · A força da memória é o que faz com que...
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A memória e o tempo na narrativa Ópera dos mortos
Selma Peruci dos Santos Oliveira (UFGD)
Paulo Bungart Neto (UFGD)
Resumo: Esta comunicação tem como principal objetivo analisar aspectos fundamentais do
romance Ópera dos mortos (1967), de Autran Dourado, importante e conceituado escritor
mineiro. O romance em questão é o corpus da pesquisa de Iniciação científica sob orientação
do prof. Dr. Paulo Bungart Neto, cujo projeto estuda a vertente memorialística da literatura
brasileira contemporânea. Durante o desenvolvimento das etapas da pesquisa, foram abordadas
questões ligadas à relação entre a memória e o tempo. Através das análises, compreendemos o
processo polêmico vivenciado pela personagem Rosalina Honório Cota, dividida entre o apego
ao passado e a sensação de uma passagem do tempo tão lenta que beira a inércia
(metaforicamente representados pelos relógios parados no casarão). O narrador relaciona essa
característica da narrativa a uma espécie de “interrupção” do tempo, relacionada à decadência
e morte dos antepassados da personagem, causando-lhe feridas nunca cicatrizadas e a levando
à morte psicológica. Em suma, pretendemos contribuir para a ampliação da fortuna crítica do
romancista e da abordagem do “regionalismo intimista” na literatura contemporânea. Para a
compreensão desses aspectos, mais precisamente sobre a perspectiva da relação entre a
memória e o tempo em Ópera dos mortos, utilizamos conceitos como os de POUILLON
(1974); SANTO AGOSTINHO (1987); e RICOEUR (1994, 1995); bem como a conceituação
dos subgêneros memorialísticos efetuada por LEJEUNE em O pacto autobiográfico (2008).
Palavras–chave: Autran Dourado; Literatura brasileira contemporânea; Memória; Tempo.
Abstract: This paper aims at analyzing some essential aspects of the novel Ópera dos mortos
(1967), written by Autran Dourado, an important and respected writer from Minas Gerais. The
novel in question is the corpus of a research under the guidance of prof. Dr. Paulo Bungart
Neto, whose project studies the memorialistic tendencies of comtemporaneous Brazilian
literature. During the development of the research stages, issues related to the relationship
between memory and time were addressed. Through the analyzes, we understand the
controversial process experienced by the character Rosalina Honório Cota, divided between
the attachment to the past and the sensation of a passage of time so slow that it borders the
inertia (metaphorically represented by the clocks stopped inside the house). The narrator relates
this characteristic of the narrative to a kind of "interruption" of time, related to the decadence
and death of the character's ancestors, causing him to never healed wounds and leading to
psychological death. We intend to contribute to the expansion of the novelist's critical fortune
and the approach of "intimate regionalism" in contemporary literature. To understand these
aspects, more precisely on the perspective of the relation between memory and time in Ópera
dos mortos, we use concepts such as POUILLON (1974); SANTO AGOSTINHO (1987); and
RICOEUR (1994, 1995); as well as the conceptualization of the memorialistic subgenres made
by LEJEUNE in O pacto autobiográfico (2008).
Keywords: Autran Dourado; Contemporaneous Brazilian literature; Memory; Time.
Introdução
Autran Dourado, em 1967, lança o romance Ópera dos mortos, obra que foi listada pela
Unesco como uma das mais representativas da literatura universal. O romance apresenta uma
intertextualidade com a peça teatral O Fantasma da Ópera (Le Fantôme de l'Opéra), escrita
por Gaston Leroux.
Dourado propõe em sua obra o movimento de um espetáculo, no qual a personagem
protagonista desencadeia uma série de situações dramáticas que fogem do convencional,
causando ao leitor expectativas de que a história fosse tomar rumos diferentes, principalmente
com a chegada do forasteiro Juca Passarinho, mas não é o que acontece. O romancista
possibilita ao leitor criar uma expectativa de que a chegada de Juca iria transformar a vida da
personagem, tirando-a daquele destino.
O teórico Jean Pouillon justifica a liberdade do escritor em fazer escolhas do rumo que
irão tomar seus personagens, e assim sugere a necessidade de uma investigação acerca do
porquê dessas escolhas:
No caso presente, como “tudo é revelador”, o romancista considera-se
livre e disto se aproveita para escolher por motivos particulares os fatos
que irá registrar. Trata-se assim de uma organização da contingência e,
já que ela consiste na escolha dos acontecimentos reveladores, torna-
se necessário investigar as possíveis razões desta escolha.
(POUILLON, 1974, p. 164).
No romance Ópera dos mortos, Autran Dourado mostra suas virtudes em conciliar
ficção e suas habilidades como escritor, visto que, com total segurança, leva o leitor a interagir
com os personagens através dos jogos propostos sobre a junção de memória, tempo,
personagens e ambientes, bem como os objetos da casa (mais precisamente, os relógios
parados).
Durante a leitura e através das análises do romance, questiona-se: será possível parar
o tempo? Para nós simples mortais não, mas para Autran é possível sim, através da sua ficção.
A memória, como tal, recorre a reminiscências de todos que ali se encontram, numa
cidade fictícia, do lugarejo, mais precisamente no casarão da família Honório Cota, construído
com a “junção” de duas personalidades, a do avô da protagonista Rosalina, chamado Lucas
Procópio, e de seu pai João Capistrano.
A obra Ópera dos mortos foi dividida em nove capítulos, com títulos sugestivos,
correspondendo a um tempo em que se explica cada momento vivido, por cada personagem e
ao mesmo tempo integrando as características físicas e as personalidades, bem como a história
de vida de cada um.
O início do romance chama a atenção do leitor, pela forma em que o narrador
personagem conduz a narrativa, que toma a forma de um “guia” ou “corretor de imóveis”
mostrando o casarão a uma pessoa “de fora”, possível interessado em sua compra. Assim, o
romance se constrói como a evocação da história, do próprio casarão e dos seus habitantes: “Se
quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos” (DOURADO: 1974,
p. 3). Como podemos constatar nessa citação, era portanto uma volta ao passado através da
imaginação. Vejamos que o narrador insiste para que o “senhor” imagine, que ultrapasse a
linha dos olhos e mergulhe na imaginação e faça um recuo ao passado:
O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração –
imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas o conduto, o olhar é
que importa. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure
ver do outro lado, no fundo do lago, mais além do além, no fim do tempo. Recue
no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até o tempo do coronel
Honório… (DOURADO, 1974, p. 2).
O “senhor” praticamente não tem voz durante a narrativa, é um ser passivo, basicamente
o narrador questiona e ao mesmo tempo ele mesmo responde a seu próprio questionamento,
como podemos observar durante essa passagem:
O senhor diz que gosta de antigualhas. Não sei, a gente diz uma coisa e pensa
outra. Diz que gosta apenas por delicadeza, talvez não. Talvez nem me
acompanhe. Ah, gosta mesmo, de verdade? Então me siga, paga a pena, o
sobrado é antigo de velho (DOURADO, 1974, p. 6).
O primeiro capítulo traz a ideia de que a história nos remete ao tempo passado no
presente e o presente no passado, a ponto de vivenciá-los ao mesmo tempo: “Um recuo no
tempo, pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora” (1974, p. 2).
Para compreender melhor essa perspectiva, variação entre tempo passado e tempo
presente e também a questão da memória inserida em ambos os aspectos, contaremos com
contribuições teóricas como a de Santo Agostinho, no qual ele faz, em Confissões, uma reflexão
no capítulo “O homem e o tempo” sobre a memória: “Se nós retemos na memória aquilo de
que nós lembramos, e se é possível, ao ouvir a palavra ‘esquecimento’, compreender o que ela
significa, a não ser que dele nos lembremos, conclui-se que a memória retém o esquecimento”
(SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 183). Para o filósofo, a presença do esquecimento faz com
que não o esqueçamos; mas quando está presente, esquecemo-nos. No romance, Rosalina não
esquece o passado, tanto que o vivencia a cada momento, e o presente se torna um
esquecimento, visto que para ela o tempo parou juntamente com as engrenagens dos relógios,
portanto não há presente para ser lembrado e vivido, e nem futuro para se pensar ou planejar,
apenas um passado presente no “agora” de Rosalina.
A força da memória é o que faz com que possamos estar em tempo presente e fazemos
recuos ao passado, não com riquezas de detalhes, mas apenas momentos, e se não acontecer,
podemos contar com a memória alheia para nos auxiliar.
Reminiscências de uma engrenagem parada em Óperas dos mortos
Para entendermos melhor os fatos na narrativa de um romance, o fator tempo é
imprescindível, é ele que nos situa na história. O tempo na narrativa é essencial, visto que
marca o período cronológico (tempo de um acontecimento no romance), ou seja, basicamente
o enredo da história se desenvolve durante esse tempo pré-determinado.
O que seria então o tempo cronológico e o tempo psicológico no romance de Autran
Dourado? Primeiramente, vejamos a definição de cada um deles situando-os em relação ao
romance: o tempo psicológico é o tempo em que a personagem Rosalina assume interiormente,
é o tempo filtrado pelas suas vivências subjetivas, na maioria das vezes, carregado pela
densidade dramática da protagonista. Esse tempo se amplia ou se encurta, de acordo com o
estado de espírito da personagem. Já o tempo cronológico é aquele tempo que segue uma ordem
linear, no romance esse tempo é medido em tempo passado e presente ou fazendo uma mescla
entre ambos, isso é perceptível no início da narrativa, em que o narrador está em tempo presente
pedindo ao personagem “senhor” um recuo no passado, rememorando fatos acontecidos
outrora: ”Se quiser, o senhor pode ver Rosalina acompanhar os seus mínimos gestos” (1974,
p. 3), e, já no fim do capítulo, ele interage com o personagem solicitando uma escolha: “O
senhor querendo, pode voltar para seu olho de naturalista, que só vê o já, o agora” (p. 7). Esse
olhar diz respeito a um olhar que acredita somente no que vê. No caso, que aquele casarão em
ruínas pode ser reconstruído, mesmo que ninguém acredite nessa possibilidade. Portanto, o
senhor, caso não estivesse interessado em saber a história do lugar, poderia estar interessado
somente em reconstituir, em sua imaginação, o velho casarão em ruínas.
Os relógios parados metaforizam uma interrupção do tempo, principalmente na vida da
personagem Rosalina, que praticamente interrompe seu fluxo normal para viver “escravizada”
ao passado, tanto quanto os relógios parados da casa. À medida que os habitantes do casarão
vão morrendo, um determinado relógio da casa é parado, primeiramente pelo pai João
Capistrano Honório Cota, após a morte de sua esposa, e sucessivamente por Rosalina, após a
morte de seu pai, e, por fim por Quiquina, depois que Rosalina é levada para o hospício. Para
Santo Agostinho:
É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro.
Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das
coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem,
pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte:
lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas
presentes e esperança presente das coisas futuras (SANTO
AGOSTINHO, 1987, p. 222).
Convenhamos que a personagem se deixa levar por essa situação, ou seja, por
lembranças presentes das coisas passadas; “Ali estava ela sufocada pelo tempo, vencida no
mundo” (1974, p. 135), e tem a chance de seguir um curso diferente nessa história, no momento
em que chega o forasteiro Juca Passarinho. Todavia, quem acaba envolvido nos devaneios de
Rosalina é ele próprio que, ao se envolver intimamente com a personagem, é ignorado na
manhã seguinte e tratado como empregado. Rosalina seguia sua rotina como se nada tivesse
acontecido, com o apoio da criada muda Quiquina, que odiava Juca Passarinho, pois via nele
uma ameaça de mudança de rotina no casarão. Vários encontros noturnos entre Rosalina e Juca
Passarinho resultam numa gravidez não planejada nem esperada. Quiquina dá um basta na
situação fazendo o parto de Rosalina, esperando que o bebê nasça morto e, caso isso não
ocorresse, a própria serviçal trataria de resolver a questão a seu modo. Após o parto, ela entrega
o filho enrolado em panos para Juca Passarinho, dando sinal para que ele o leve para ser
enterrado: “Um grande ódio espumava dentro dele, mas era impotente diante do sobrado, diante
de Quiquina, diante do destino. Diante daquele mundo absurdo, só tinha de obedecer” (1974,
p. 192). Juca assim o fez sem questionar, indignado com sua própria conduta, fazendo jus ao
nome, pois, assim como um passarinho sentindo-se acuado, após o incidente, Juca foge sem
destino e sem deixar vestígios. Para Jean Pouillon:
Percebe-se com isto por que motivo, num certo sentido, esses romances
podem ser tomados às vezes por romances do destino: como este
caráter revelador aparece em primeiro plano, o leitor pode ser levado a
atribuí-lo com exclusividade aos acontecimentos escolhidos e a
acreditar que não poderia haver outros (POUILLON, 1974, p. 165).
Autran retrata a vida de Rosalina, e a compara com a engrenagem dos relógios que
foram parados, à medida que seus antepassados foram morrendo, ou seja, é como se ela
estivesse à mercê do tempo parado dos relógios, impossibilitada de seguir um caminho
diferente daquele que os mortos lhes reservou, como se estivesse condicionada a esse destino.
Segundo Paul Ricoeur:
O narrador pode acompanhar o passo de seus personagens, colocando
seu presente de narração em coincidência com o deles e aceitando,
desse modo, seus limites e sua ignorância; ao contrário, pode se mover
para frente e para trás, considerar o presente do ponto de vista das
antecipações de um passado rememorado ou como a lembrança
passada de um futuro antecipado etc (RICOEUR, 1995, p. 156).
O tempo no casarão era inerte, assim como os relógios parados da casa. Dourado utiliza-
se de metáforas, no caso, os relógios parados representam a personagem Rosalina presa ao
passado, impossibilitada de progredir espiritualmente, já que ninguém se atrevia a mudar
aquela situação, nem mesmo dar corda no relógio, para que a história da personagem pudesse
seguir uma direção contrária a que ela estava condicionada a viver. Era assim que tinha que
ser, era o seu destino.
Para Jean Pouillon, o escritor dá vida aos seus personagens e com isso já lhes atribui
um destino, ou seja, é ele quem determina o destino da personagem e as escolhas que se faz no
presente:
[...] esta ilusão possui uma realidade psicológica: é muitas vezes graças
a ela, à impressão de estar sujeito a um destino, que o tempo se revela
à pessoa que o está vivendo. Esta ilusão consiste no seguinte: o ser, em
seu presente, pretende-se determinado pelo seu passado, não querendo
por isto reconhecer que é ele próprio quem atribui a esse passado o seu
sentido e o seu valor determinante (POUILLON, 1974, p. 151).
A condição na qual a personagem se encontrava era de uma pessoa extremamente
problemática e mal resolvida psicologicamente, condicionada a viver daquela maneira por
culpa de um passado que, talvez tenha iniciado ainda na sua gestação, visto que as gestações
que antecederam a sua não “vingaram”, e ela, como a única que conseguiu sobreviver, recebeu
a carga de carregar o peso da família nas costas, ou seja, como se as expectativas da família
estivesse sobre ela para toda a eternidade.
Contudo, o casarão e os objetos faziam parte da sua memória em relação aos seus
antepassados, é como se todos fizessem parte um do outro, impossibilitados de se distanciarem.
Rosalina não saía de casa, porque era parte daquilo que a cercava.
Santo Agostinho faz referência sobre a memória que um objeto pode carregar:
O grande receptáculo da memória – sinuosidades secretas e inefáveis,
onde tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão –
recebe todas estas impressões, para as recordar e revistar quando for
necessário. Todavia, não são os próprios objetos que entram, mas as
suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-
se ao pensamento que as recorda (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.
177).
Com o passar do tempo, o estado mental de Rosalina piora, e, de acordo com os
moradores, ela saía à noite cantando pelas ruas como uma alma perdida, e assim a narrativa
termina como um espetáculo, onde a protagonista Rosalina encerra sua vida, praticamente sem
controle psicológico de si mesma, é induzida a acompanhar um amigo de mãos dadas, para
longes terras. O narrador não diz, mas o leitor percebe que a mesma estava sendo conduzida a
uma clínica para doentes mentais. Esse tempo marca a morte psicológica de Rosalina, fato esse
representado pelo último relógio que ainda funcionava, e que dessa vez foi parado por
Quiquina.
A partir daí o que restou foram as reminiscências locais. Um casarão em ruínas,
corroído pelo tempo e também corroído por marcas impressas da família Honório Cota, que,
embora não estejam mais vivos fisicamente, ainda são como fantasmas ou como almas que
ainda impregnam as paredes do casarão.
A narrativa de Autran Dourado em Ópera dos Mortos
No romance, o narrador é um personagem onisciente e interage com o leitor em quase
toda a extensão da narrativa. Podemos constatar esse fato logo no primeiro capítulo, que recebe
o título de “O sobrado”: “Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até o
tempo do coronel Honório” (1974, p. 2). Esse narrador é também uma espécie de narrador
coadjuvante, ou seja, tem uma visão subjetiva dos fatos, ele narra o que vê, observa, sente e
opina. A sua percepção é geral, claro de acordo com o seu ponto de vista.
O narrador proposto por Autran em Ópera dos Mortos é uma espécie de ser
intermediário entre o leitor e o narrador, e assim tem-se a impressão de autenticidade, pois ele
está participando da ação, e está muito próximo de tudo o que acontece na história, tornando-
se um narrador-personagem e ao mesmo tempo envolvendo o leitor na história, fazendo com
que esse leitor participe, seja de forma direta ou indiretamente.
Segundo Paul Ricoeur:
Essencialmente, vinculando-as às categorias de narrador e
personagem: o mundo contado é o mundo do personagem e é contado
pelo narrador. Ora, a noção de personagem está solidamente ancorada
na teoria narrativa, na medida em que a narrativa não poderia ser uma
mimese de ação sem ser igualmente uma mimese de seres agentes;
Seres agentes são, no sentido amplo que a semântica da ação confere à
noção de agente, seres que pensam e que sentem; melhor, seres capazes
de falar seus pensamentos, seus sentimentos e suas ações. (RICOEUR,
1995, p. 147).
Para o teórico, a narrativa pode ser uma imitação de seres agentes, que tem
personalidade própria, capazes de pensar por si sós e até mesmo agir de acordo com suas
convicções. O narrador de Ópera dos mortos é um ser instigante, que envolve o leitor de tal
forma que é praticamente impossível não reviver a história, ele traça um movimento na
narração, permitindo uma dinâmica na ação de mover-se para amplitudes e perspectivas, seja
por sentimentos reais ou mesmo pela imaginação de fatos e acontecimentos em qualquer
tempo, passado, presente ou futuro. De acordo com Ricoeur, o narrador acompanha os passos
dos personagens, criando uma cumplicidade entre ambos.
O narrador pode acompanhar o passo de seus personagens, colocando
seu presente de narração em coincidência com o deles e aceitando,
desse modo, seus limites e sua ignorância; ao contrário, pode se mover
para frente e para trás, considerar o presente do ponto de vista das
antecipações de um passado rememorado ou como a lembrança
passada de um futuro antecipado etc. (RICOEUR, 1995, p. 156).
A visão que o narrador tem de todo o enredo da história mostra o quanto ele pode estar
envolvido na trama, é ele que torna perceptível a mudança do tempo e o envolvimento nas
ações e nos sentimentos do personagem – um ser agente de ação, ou seja, ele é quem move a
história traçando um paralelo entre o passado e o futuro: “o tempo torna-se tempo humano na
medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa
na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 15).
O narrador, no romance de Autran, além de ser um personagem, torna-se essencial para
a introdução da narrativa, visto que é ele quem desencadeia uma série de possibilidades a um
outro personagem de rememorar algo que, embora esteja no passado, pode ser revivido, através
da imaginação, devido ao personagem “senhor” não ter participado das ações vividas. Não é a
mesma situação em que uma história verídica, como por exemplo, um fato político que ficou
para a história e que mesmo não sendo “verdade”, passa como verossímil ao leitor.
Ricoeur aborda esses aspectos narrativos referentes à ficção e à historiografia:
[...] na medida em que o passado só pode ser reconstituído pela
imaginação; por outro lado, o que ela lhe acrescenta, na medida em que
é polarizada pelo real passado. Inversamente, coloca-se a questão de
saber se a narrativa de ficção, por sua vez, não retira da referência por
meio de vestígios uma parte de seu dinamismo referencial. Toda
narrativa não é contada como se tivesse ocorrido, como o testemunha
o uso comum dos tempos verbais do passado para narrar o irreal? Nesse
sentido, a ficção se inspiraria tanto na história quanto a história na
ficção. É essa inspiração recíproca que me autoriza a colocar o
problema da referência cruzada entre a historiografia e a narrativa da
ficção (RICOEUR, 1994, p. 15).
Em suma, uma narração consiste basicamente no relato de acontecimentos ou mesmo
de fatos que envolvam o narrador personagem, que no caso vivencia também os fatos narrados,
bem como um espaço, no qual a história se passa e o transcorrer do tempo em que a trama se
desenvolve, até o produto final que é o desenlace das ações.
Segundo Jean Pouillon, existem três possibilidades na relação narrador-personagem:
“visão com”, “visão por trás” e “visão de fora”. Na “visão com”, o narrador limita-se somente
a uma personagem, ou seja, o foco narrativo é restrito a essa única personagem e geralmente é
narrado em primeira pessoa. Tem como principal característica a visão subjetiva e limitada,
passa um sentimento de história real, mesmo sendo ficção.
Na “visão por trás”, o narrador conhece a vida da personagem, bem como o seu destino.
Narrativa em terceira pessoa, tem o poder de manipular as ações, é chamado de onisciente, pois
tem conhecimento sobre a vida dos personagens.
Na “visão de fora”, o narrador não conhece todos os fatos, fica restrito somente a
narração de acontecimentos, alheio a sentimentos e às emoções das personagens.
Após verificar as possibilidades propostas por Pouillon, o romance de Autran, a nosso
ver, embora esteja em primeira pessoa, adequa-se perfeitamente à “visão por trás”, visto que o
narrador de Ópera dos mortos conhece a vida dos personagens e o destino dos mesmos, a
princípio manipula as ações (tempo presente/recuo ao passado) e, como narrador onisciente,
conhece tudo sobre a vida de seus personagens. E pode se encaixar perfeitamente nas
características da “visão com” devido à concentração e à ênfase que gira em torno da
protagonista Rosalina, sendo o centro principal da narrativa, fica praticamente limitado ao
campo mental dessa personagem.
Considerações finais
Autran Dourado, em Ópera dos Mortos, remete à memória não como gênero literário e
sim como conteúdo (reminiscências de família), ou seja, lembranças do passado familiar,
retidas na memória.
Um texto memorialístico tem como principais características a exposição da sua própria
vida, acompanhado do subjetivismo, ou seja, o autor expõe seu ponto de vista em relação aos
fatos contados. Esse não é o caso apresentado em Ópera dos mortos, visto que este é um
romance no qual a memória é retratada por situações evocadas através do recuo no tempo.
Santo Agostinho faz referência a esse tipo de reminiscência:
Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens
que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-se
esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos
receptáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e,
enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio, como que
a dizerem: “Não seremos nós?” Eu, então, com a mão do espírito,
afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do
seu esconderijo a imagem apareça à vista (SANTO AGOSTINHO,
1987, p. 176).
O lapso de memória presente na vida do ser humano é normal, porque a memória só
registra aquilo que nos traz significado e fica reservado para consulta no momento em que
desejarmos. No caso, o esquecimento faz parte da memória, assim como a memória também
faz parte do esquecimento, e, para que exista esquecimento, necessariamente algo foi um dia
registrado na memória:
O grande receptáculo da memória – sinuosidades secretas e inefáveis,
onde tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão –
recebe todas estas impressões, para as recordar e revistar quando for
necessário. Todavia, não são os próprios objetos que entram, mas as
suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-
se ao pensamento que as recorda (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.
177).
A narrativa de Autran Dourado compreende o tempo passado e possibilita os entrelaces
de vidas passadas e presentes. Isso porque a história individual traz em si a memória coletiva
do grupo social à qual pertence.
Em relação à memória, pensamos o tempo a partir da linguagem, ou seja, a fala, porque
a linguagem adquire sentido através do tempo. Para Agostinho, a memória e a linguagem são
muito importantes para se entender o tempo, tanto o tempo cronológico quanto a interioridade
psíquica.
Autran propõe em Ópera dos mortos um fluxo vital estagnado no passado, a personagem
protagonista vive petrificada pelos ressentimentos de perda, não compreendendo a razão de se
viver, entra em conflito consigo mesma quanto à dinâmica existencial e assim vive o passado
como presente. Contudo, o percurso existencial da personagem passa a não compreender os
três tempos (passado, presente e futuro). Para ela, o presente e o futuro não existem, visto que
é o passado que determina a sua vida.
Essa relação complexa de Rosalina com o tempo se reflete na relação entre o espaço
exterior e interior dos personagens. Essa temporalidade é representada pelos relógios, que
simbolizam a interrupção do tempo e a vida estagnada da personagem principal, causando um
tipo de paralisia existencial.
O casarão, representando a união de duas personalidades (avô e pai de Rosalina),
simboliza a racionalidade de ambos, mas não somente isso, ele também simboliza a
temporalidade e a espacialidade do romance. A obra como um todo é representada por
ambientes, objetos, nos quais se constrói a realidade ficcional da obra de Autran Dourado,
Portanto, o curso do romance é marcado pelo caráter estático do tempo, com uma
estrutura narrativa fragmentada, mostrada no decorrer do romance, cuja temporalidade é alheia
à vida dos personagens, impossibilitados de viver plenamente o futuro.
Referências
DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. 4 ed. Rio de Janeiro-RJ: Editora Civilização
Brasileira, 1974.
POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo-SP:
Cultrix / USP, 1974.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (Tomo 1). Trad. Constança Marcondes Cesar.
Campinas-SP: Papirus, 1994.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (Tomo 2). Trad. Marina Appenzeller. Campinas-SP:
Papirus, 1995.
SANTO AGOSTINHO. O homem e o tempo. Confissões - Livro XI. In: Coleção Os
Pensadores. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 207-231.