A Memória Recriada: História e Imagem em La jetée (1962) e Sans Soleil (1982), de Chris Marker
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOESCOLA DE COMUNICAO E ARTES
TAINAH NEGREIROS OLIVEIRA DE SOUZA
A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982)de Chris Marker
So Paulo2013
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TAINAH NEGREIROS OLIVEIRA DE SOUZA
A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982)de Chris Marker
Dissertao apresentada Escola deComunicao e Artes da Universidade de SoPaulo para obteno do ttulo de mestre emMeios e Processos Audiovisuaisrea de Concentrao: Teoria, Histria eCrticaOrientador: Prof. Dr. Eduardo VictorioMorettin
So Paulo2013
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Autorizo a reproducao e divulgacao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletronico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Souza, Tainah Negreiros Oliveira de
A Memria Recriada: Histria e Imagem em "La jete" (1962)e"Sans Soleil" (1982) de Chris Marker / Tainah Negreiros Oliveirade Souza. -- So Paulo: T. N. O. Souza, 2013. 95 p.: il.
Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Meios eProcessos Audiovisuais - Escola de Comunicaes e Artes/Universidade de So Paulo.Orientador: Eduardo MorettinBibliografia
1. Cinema 2. Memria 3. Histria 4. Chris Marker I. Morettin, Eduardo II. Ttulo.
CDD 21.ed. - 791.43
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FOLHA DE APROVAO
Tainah Negreiros Oliveira de SouzaTtulo: A MEMRIA RECRIADA: Histria e Imagem em La jete (1962) e Sans Soleil (1982) de Chris Marker
Dissertao apresentada Escola deComunicao e Artes da Universidade de SoPaulo para obteno do ttulo de mestre emMeios e Processos Audiovisuaisrea de Concentrao: Teoria, Histria eCrticaOrientador: Prof. Dr. Eduardo VictorioMorettin
Banca examinadora:
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituio:____________________________ Assinatura: ____________________________
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Agradecimentos
Ao prof. Dr. Eduardo Morettin, pela orientao dedicada, minuciosa, presente e pelas
valiosas contribuies em todos os nossos encontros e conversas.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela
bolsa de mestrado concedida e pelo apoio financeiro para realizao da pesquisa.
Ao prof. Dr. Marcos Napolitano e ao Prof. Dr. Mrcio Seligmann-Silva, pelas
importantes consideraes na qualificao que muito ajudaram no desenvolvimento do
trabalho.
Ao Prof. Dr. Joo Kennedy Eugnio e profa. Me. Maria do Socorro Rangel, pelas
leituras, recomendaes e sugestes.
Ao professor Robrt Grlier, pelas conversas, pelo incentivo e pelas consideraes.
Ao Luiz Carlos Oliveira Jr. , pela leitura e pelas valiosas consideraes sobre a
dissertao.
Ao prof. Dr. Cristian Borges, pelas sugestes e consideraes importantes para o
trabalho.
Virgnia Lello, que me acolheu no meu comeo em So Paulo e sempre foi uma
presena amiga.
Ftima Gomes, que contribuiu no meu gosto pelo cinema e me emprestou revistas e
filmes fundamentais na minha formao desde que eu me entendo por gente.
Ana Stella Negreiros, pelo apoio, torcida carinhosa e pela inspirao como
historiadora e como dedicada madrinha.
Ao Edson Costa, pelas importantes conversas que tivemos sobre Chris Marker e pelo
material generosamente compartilhado comigo.
Ao Reinaldo Cardenuto, pelas leituras, pelas conversas, pelo apoio, pelas
consideraes e pela generosidade durante o percurso.
Laura Carvalho, pelas conversas, apoio, consideraes e pela sensibilidade
partilhada.
Isabella Goulart pelas conversas, pelo apoio, sugestes e importantes trocas de
informaes.
Aos amigos Natal Veras, Franciane Barbosa, Clarissa Poty, Lidiane Moreira, Felipe
Fontana, Ana Maria Palma, Sanmya Meneses, Lorena Moura, Millie Paniche, Maria Pinho,
Aracele Torres, Andr Mendes, Lucas de Deus, Mariana Abbade, Melina Caddah, Lumena
Adad, Ana Isabel Carvalho, Fernanda Tuoto, Igor Cordeiro, Cristiano Balzan, Marcelo
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Fontes, pelo constante apoio, incentivo, sugestes, conversas e pelas alegrias compartilhadas.
Ao meu amor, amigo, companheiro Arthur Tuoto, que esteve comigo durante todo o
percurso, mudou de cidade comigo, foi quem me apresentou Chris Marker, e que partilha
comigo essa paixo pela obra do diretor, pelo cinema e a vida.
Aos meus queridos pais Raquel Negreiros e Severino Neto, por acreditarem em mim,
pelo incentivo, apoio constante, fundamental e pelo imenso e to inspirador amor.
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RESUMO
NEGREIROS, Tainah. A Memria Recriada: Histria e Imagem em La jete (1962) eSans Soleil (1982) de Chris Marker. 2013. 95 p. Dissertao (Mestrado) Escola deComunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.
A dissertao dedicada a analisar a relao entre Histria e memria na obra do cineastafrancs Chris Marker, focando nos filmes La jete e Sans Soleil. No trabalho, investigamos aconcepo esttica dos filmes em contato com aspectos de poca que os constituem.A dissertao est dividida em trs partes. A primeira dedicada a analisar La jete e o trabalhode representao da memria feito pelo diretor em uma era de catstrofe. A segunda parte dedicada a analisar Sans Soleil, seu carter reflexivo e o modo como o diretor trata datemtica da memria, da relao com as imagens do passado e as experincias de luta dasegunda metade do sculo XX. A terceira parte um estudo comparativo das duas obras e dasquestes que permanecem e mudam na representao da memria nos dois filmes.
Palavras-Chave: Cinema, Histria, Memria.
ABSTRACT
NEGREIROS, Tainah. Recreated Memory: History and Image in La jete (1962) andSans Soleil (1982) by Chris Marker. 2013. 95 p. Dissertation (Master) Escola deComunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.
The research is dedicated to analyze the relation between History, memory in the cinema ofthe french director Chris Marker, specially the films La jete and Sans Soleil. We investigatedthe aesthetics conception of films and historical aspects that influenced them.The work is divided into three parts. The first one investigates La jete and the constructionof memory representation made by the director in an era of catastrophe. The second part isdedicated to analyze Sans Soleil, its reflective nature and the way the director treats the themeof memory, the relation with images of the past and the social mobilizations experiences ofthe second half of the twentieth century. The third part is a comparative study of the two filmsand the issues that remain and change in the representation of memory.
Key Words: Cinema, History, Memory.
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SUMRIO
Introduo..................................................................................................................................1CAPTULO I Os estilhaos do tempo Memria, Histria e fotografia em La jete (1962)....................6
PARTE 1 - Memrias, runas e fotografias - A estrutura de La jete1.1 O acesso ao passado atravs das runas..............................................................................101.2 O cinema contaminado pela fotografia...............................................................................21
PARTE 2 - O futuro passado2.1 Um projeto de cinema historicamente informado...............................................................272.2 A ida ao futuro e o Teorema Markereano...........................................................................31
CAPTULO IISans Soleil e a memria recriada...........................................................................................34
PARTE 1 - A estrutura de Sans Soleil1.1 A imagem de felicidade......................................................................................................381.2 Comentrio, ensaio e reflexividade....................................................................................401.3 A convivncia temporal e geogrfica..................................................................................421.4 O estrangeiro e a televiso japonesa...................................................................................471.5 A busca pela igualdade de olhar..........................................................................................491.6 A montagem memria atravs dos raccords de souvenir................................................531.7 A radicalizao dos raccords de souvenirs e a construo de uma fico documentriada memria................................................................................................................................57
PARTE 2 Histria, Memria e Apropriao
2.1 Como lembrar da sede? As possibilidades e impossibilidades das imagens em relao smemrias ..............................................................................................................................612.2 Guin Bissau, Cabo Verde e as mil memrias....................................................................67
CAPTULO IIILa jete, Sans Soleil e as conexes na representao da memria......................................75
1.1O isolamento das imagens de alegria...................................................................................761.2 A montagem memria comum............................................................................................781.3 A herana formal de Vertigo...............................................................................................801.4 O homem do futuro.............................................................................................................84
Consideraes Finais...............................................................................................................86Referncias Bibliogrficas......................................................................................................90Filmografia..............................................................................................................................94
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Introduo
Na introduo de Also Known as Chris Marker, Arnaud Lambert se refere ao diretor
francs tratando de sua onipresena no campo das imagens a partir da segunda metade do
sculo XX (2008, p.8). Lambert usa o termo onipresena para falar de Marker considerando
que a sua obra constitui o cinema do ltimo sculo e suas atualizaes e reinvenes. Mesmo
que tenha optado pela mxima discrio de sua vida, de sua imagem, os registros que concebe
compe um acervo voltado para as experincia dos ltimos 60 anos em um constante contato
e dialtica entre experincia pessoal e coletiva. Ou ainda, se cada filme ou cada criao
audiovisual um testemunho sobre o momento de evoluo das tcnicas de filmagem , como
afirmou Guy Gauthier (2001, p. 9), Marker atesta esse aspecto de testemunho, ou de uma
construo artstica sempre voltada para questes do seu tempo, sobre a forma que, para ele, a
poca em que vive deve exigir uma reflexo sobre uma tcnica, sobre uma poltica e uma
esttica de representao da vida, das experincias de luta e, principalmente, como nos
voltamos nesse trabalho, para a representao da memria e da Histria.
O que temos um artista explorando as dimenses dos registros do tempo nas variadas
possibilidades de faz-lo, desde o ensaios escritos no seu incio de carreira para a Revista
Esprit, ainda na dcada de 1940, se desdobrando sobre o papel da linguagem depois das
experincias dificlimas de apreender como foram as da Segunda Guerra Mundial, passando
pelas suas fotografias, pelos seus trabalhos multimdia e pelos filmes na sua diversidade. Toda
sua obra revela uma relao de dedicao sobre as questes do seu tempo, seja pelos
investimentos artsticos e tcnicos a partir do que sua poca oferece, seja pelo tempo como
matria para o cinema, suas duraes, a fragilidade de sua passagem, o que fica e o que
inevitavelmente se perde.
Como parte desse projeto artstico sempre ligado a um debate contemporneo, a obra
de Chris Marker revela uma constante preocupao em dar forma a essas reflexes
constituintes, parte de uma comoo e compromisso do diretor com esses temas e eventos
irrecuperveis como as experincias da Segunda Guerra Mundial que vemos ser tratados em
filmes como La jete (1962), Sans Soleil (1982), ou Level Five (1997); os movimentos
sociais de esquerda, tratados em Carlos Marighella (1970), Le fond de l'air est rouge (1977) e
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La Spirale (1975)1 e os processos de independncia africanos e seus ecos tratados em filmes
como Le joli mai (1963) e Sans Soleil. Interessa ao diretor discutir, com sua obra, sobre os
nossos lugares de construo de discurso, seja atravs da inveno, mas tambm a partir das
apropriaes, das outras imagens e outras histrias que que podem ser feitas do vivido. Da a
importncia da memria como algo que liga seus filmes nessa costura sobre esses temas. A
multiplicidade das memrias, dos discursos diversos sobre o passado, so matria prima para
o diretor lidar com essas questes que lhes so caras e formadoras. A memria, nesse trabalho
constante de recriao, como antdoto para o que a Histria muitas vezes no lida e para o
que a informao na sua urgncia no salva. A sua obra mobilizada por esse aspecto de
reinveno constante em que a memria e essa relao com o tempo e sua passagem propicia.
O trabalho dedicado a analisar os filmes La jete (1962) e Sans Soleil (1982)
construindo um dilogo com as teorias sobre a memria, a histria e o debate sobre a sua obra
para, dessa forma, investigar os procedimentos e a concepo formal do diretor e a sua
historicidade. O enfoque se d nesses dois filmes pois revelam uma profunda ligao a partir
desses aspectos apontados aqui, dessa relao com o tempo, dessas tentativas de
representao da sua passagem, desse contato constante entre experincia ntima e coletiva em
uma dinmica revelada atravs do trabalho de montagem.
Analisar La Jete e Sans Soleil permite explicitar alguns desses aspectos da importncia
da obra de Chris Marker no campo das imagens na segunda metade do sculo, especialmente
na questo da provocao em relao aos documentos, imagens de arquivo e dos registros
voltados para a representao do trabalho da memria nessa era de extremos e de catstrofe.
O filme de 1962 um curta-metragem em que acompanhamos as memrias de um homem
atormentado pelas lembranas do seu passado em um perodo de guerra. Uma fico cientfica
em um tempo de guerra feita quase que toda atravs de fotografias. Sans Soleil pode ser
definido como um documentrio de viagem, de deslocamentos espaciais e temporais tambm
em um processo de reflexo sobre a memria. importante para o trabalho, at mesmo como
uma hiptese inicial, explicitar essas conexes entre os dois filmes, o desembocar de aspectos
de um no outro, o modo como esses 20 anos entre eles fazem com que o diretor reveja,
amadurea e recrie questes trabalhadas no primeiro para o segundo filme.
Essas questes apontadas sero discutidas principalmente atravs do mtodo da anlise
1 Este filme um trabalho coletivo fruto do encontro entre Chris Marker e o sociolgo ArmandMattelart que trata do golpe de estado no Chile, em 1973, e das variadas foras mobilizadas paraderrubar Salvador Allende.
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flmica, buscando partir sempre dos filmes como modo de obter respostas s questes sobre o
trabalho do diretor e aspectos que o informam. Atravs da anlise flmica possvel tambm
estabelecer aspectos de ruptura e continuidade entre as duas obras que so fundamentais no
entendimento desse projeto de cinema da memria de Chris Marker. Esse percurso de anlise
flmica nos leva, tambm, a ligar esse cinema da memria de Chris Marker a outras obras
relevantes da poca que se aproximem desse trabalho esttico e temtico como, por exemplo,
os filmes de Agns Varda e Alain Resnais feitos no mesmo perodo, autores parceiros e de
inquietaes prximas do diretor.
A dissertao ento se divide em trs momentos na investigao sobre essas duas obras:
O primeiro captulo, intitulado Os estilhaos do tempo: Memria, Histria e Fotografia em
La jete, se prope a analisar a estrutura do filme, as opes estticas do diretor e a forma
como a obra construda a partir das viagens no tempo e do uso de fotografias para montar
esse ir e vir fragmentado que compe a narrativa. Na incurso sobre essas questes,
dialogamos com alguns trabalhos fundamentais na bibliografia dedicada obra de Chris
Marker que tratam de pontos importantes que analisamos aqui como a representao da
memria feita pelo diretor e a discusso desses aspectos atravs da anlise flmica. Autores
como Arnaud Lambert em Also Known as Chris Marker (2008), Philippe Dubois junto a
outros pesquisadores na compilao Thorme 6: Recherches sur Chris Marker (2002) e
Jane Harbord e seu livro La jete (2009) podem ser considerados nomes relevantes nesse
debate em construo sobre a obra do diretor.
Por se tratar de um filme quase que inteiramente feito com fotografias, o trabalho de
Raymond Bellour, L'entre-images(1990), importante referncia. Nessa obra o autor
analisa o filme iluminando a discusso que envereda para os modos de contaminao do
cinema pela fotografia. No texto, essa discusso desemboca na questo da relao entre
lembrana e imagem e no dilogo fundamental com os estudos sobre a relao entre memria
e imagem do filsofo Paul Ricoeur (2007). Os estudos de Paul Ricoeur nos aproximam das
ideias de Henri Bergson e o seu conceito de imagem-lembrana na obra clssica Matria e
Memria(1999), de bastante relevncia para o entendimento da forma como Marker
estabelece essa conexo no filme. O captulo est voltado, ainda, para como essa concepo
de tempo e relao com o passado, proposta por Chris Marker, pode ser entendida a partir de
uma aproximao com a filosofia de Walter Benjamin, esse modo de olhar para as runas do
passado e a postura diante dessas estilhaos do vivido presente em textos como A imagem de
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Proust, Experincia e Pobreza, O Narrador e Sobre o Conceito de Histria reunidos
no I volume das suas Obras Escolhidas (1985). Nesse contato com Walter Benjamin,
dialogamos tambm com o importante trabalho de anlise sobre sua obra, Histria, Memria
e Literatura O testemunho na Era das Catstrofes, do autor Mrcio Seligmann-Silva,
buscando perceber esses aspectos que ligam Chris Marker ao autor alemo tratados
principalmente no texto: Catstrofe, Histria e Memria em Walter Benjamin e Chris
Marker: A Escritura da Memria.
O segundo captulo, intitulado Sans Soleil e a memria recriada, est dividido em
duas partes. A primeira voltada para a anlise da estrutura do filme e da forma como
elaborada partindo de uma imagem orientadora; de como construda buscando uma
reflexividade atravs do trabalho equilibrado feito entre imagens e comentrio e, ainda, sobre
o esforo de construo de uma encenao do trabalho da memria explicitada pelos recursos
da montagem e pela articulao entre imagem e som desses registros feitos pelo mundo. Mais
uma vez o trabalho de Arnaud Lambert sobre a obra de Chris Marker uma referncia
importante pois em grande parte dedicado a essas construes que o diretor elabora como
modo de tratar dessas experincias com os lugares e com o tempo. Um trabalho fundamental
tambm o do autor Guy Gauthier, Chris Marker: crivain Multimdia, em que analisa o
trabalho de colagem, ou de bricolagem do diretor e o modo como ele mobiliza os diversos
meios e mdias na construo dessa experincia geogrfica e, principalmente, temporal nesse
filme. A segunda parte dedicada questo da reescritura da memria atravs da montagem e
da modificao das imagens, ao trabalho de apropriao no cinema do diretor e crtica feita
histria atravs de um questionamento de documentos e do uso de arquivos de found
footage. Investigar essas questes em Sans Soleil nos leva ao encontro dos textos de Michael
Zryd (2003) e Catherine Russel (1999) sobre found footage e esse trabalho marginal de re--
escritura com arquivos encontrados. Como discusso terica nesse momento do texto tambm
temos a obra referncia de Jacques Le Goff Histria e Memria e especialmente o texto
Documento/Monumento que dialoga bem com essa necessidade de Chris Marker tensionar
os arquivos a que tem acesso como forma de provocar sobre questes do passado e o lugar
dele no presente e para o futuro.
O terceiro momento do trabalho dedicado a fazer um estudo comparativo das duas
obras, uma anlise da conexo revelada pelas opes estticas de representao da memria e,
ainda, o uso da fico em La jete e do dilogo com a fico em Sans Soleil para construir
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essa representao. Esse captulo dedicado, ainda nesse vis comparativo, a analisar a
temtica das viagens no tempo presente nos dois filmes e a clara influncia do filme Vertigo,
de Alfred Hitchcock, sobre as duas obras.
Chris Marker: Memories of the Future (2005) de Catherine Lupton tambm uma
referncia constante para a pesquisa pois, alm de traar um percurso de anlise por toda a
carreira do diretor, se dedica de forma muito eficiente aos temas discutidos aqui como a
questo da relao de Marker com avanos tecnolgicos do seu tempo que influenciam sua
concepo flmica e, ainda, esse seu lugar de catador de imagens (2005, p.11), ou de
colecionador, conforme a autora define, que nos ajuda a entender o trabalho feito nesses dois
filmes, fruto de uma relao inquieta com o passado e com as imagens feitas dele.
Na anlise dos dois filmes frequente tambm fazer referncia crtica da poca e a
forma como no s a obra de Chris Marker, mas as leituras feitas dela foram bastante
informadas pelas experincias de luta e violncia da segunda metade do sculo XX, e como o
entendimento dessa temporalidade contribui no debate sobre a obra do diretor e sobre o
entendimento de questes daquele momento. Entre esses textos importantes esto o de Yann
Lardeau para Cahiers du Cinma (1983) e o de Paul Louis Tihard para Positif (1983) em que
analisam Sans Soleil e a abordagem das questes de poca feitas pelo diretor e da forma como
trabalha temas caros a sua gerao. Outro crtica de poca relevante a de Franois
Weyergans sobre La jete para Cahiers du Cinma (1963) em que analisa aspectos como os
elementos de fico cientfica no filme e a questo temtica das viagens no tempo sempre
relacionando s questes histricas do passado recente como a Segunda Guerra Mundial.
***
Em Julho de 2012 perdemos Chris Marker. E escrever esse trabalho passou a ter o
peso disso, de escrever em um mundo sem ele, mesmo que seus filmes, suas imagens, suas
questes sejam to presentes, constituintes e inspiradoras. Ou seja, Chris Marker jamais ser
uma ausncia, ser associado sempre a teimosia da memria atravs da vida que ela
possibilita reinventar atravs de um cinema incansavelmente dedicado a isso. As suas imagens
se juntam ao nosso acervo de passado inesquecvel e formador, e esse trabalho busca
evidenciar essa importncia e permanncia.
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IOS ESTILHAOS DO TEMPO MEMRIA, HISTRIA E FOTOGRAFIA EM LA JETE (1962)
Jane Harbord define La jete, de Chris Marker, como um filme sobre voltar. (2009,
p. 5), e o interesse nesse captulo esmiuar esse retorno mostrado nessa obra, de 1962, do
diretor francs. Trata-se de um curta metragem de cerca de 25 minutos, filmado em preto e
branco, composto de fotografias que narram a histria de um homem marcado por uma
imagem do passado, e que, em uma Terceira Guerra Mundial, em meio a uma realidade de
runas, ser objeto de uma experincia pelos vencedores. As experincias a que o protagonista
submetido so de viagem no tempo. O filme vai ser composto, principalmente, desses
acessos ao passado, atravs das imagens que ele consegue alcanar, orientadas pela busca do
que viveu com a mulher que no esquece.
Aqui importante que seja exposto em que momento se situa La jete, no projeto de
cinema de Chris Marker. O que temos o diretor que, desde a dcada de 1950, junto a
cineastas como Agns Varda e Alain Resnais, esteve voltado para a questo da memria, do
tempo e de dar forma s suas reflexes contemporneas, relacionadas com os eventos e
experincias histricas recentes como as da Segunda Guerra Mundial. As tentativas de
representao dessas vivncias do perodo podem ser percebidas tanto nesse trabalho como na
parceria anterior La jete entre Marker e Resnais, Noite e Neblina, de 1955. O filme de
Resnais, com a colaborao de Marker no roteiro, se volta para os escombros da Shoah e j
sinaliza para a postura e para as questes que constituem os diretores nesse momento, como o
uso de imagens de arquivo e sua ressignificao atravs da montagem com imagens recentes
das regies de campos de concentrao da Segunda Guerra Mundial, no retorno s imagens
intocadas, montadas de forma que componham uma releitura, um conjunto inquieto,
provocador, numa sucesso melanclica e reflexiva.
La jete, que nos conta uma histria passada em uma Terceira Guerra Mundial, pode
ser alinhado junto ao trabalho de Resnais nessa tentativa de lidar com as experincias recentes
e ainda no superadas de guerra e violncia, como as da Shoah, ou de Hiroshima, como fruto
do debate acalorado que informa as posturas tomadas pelos artistas aps esses eventos e como
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o cinema toma para si um lugar de reflexo atravessado pela impossibilidade de ignorar esse
passado recente. Ou ainda, como afirmou Jean Michel-Frodon: A Shoah inscreveu no
corao do sculo XX uma crise decisiva que o marcou irremediavelmente. O cinema foi a
arte do sculo XX. (FRODON, 2007, p.11)
A obra de Chris Marker mais interessante de ser analisada sempre que pensamos
esse contato entre sua concepo formal e os aspectos do seu tempo. Seu cinema, seus vdeos,
suas criaes multimdia costumam sempre revelar uma reinveno do uso da forma a partir
da temporalidade que as constituem. Em La jete no diferente. Algo como o que Antoine
de Baecque definiu (referindo-se a esses contatos) como essa mise en scne especfica que
chamo de uma forma cinematogrfica da histria. (2008, p. 20). Voltar-se para a
historicidade dessa obra investigar em que momento do projeto de cinema do diretor ela se
situa, e que questes do seu tempo orientam essas escolhas estticas que investigamos aqui.
Marker passou a ser conhecido, como muitos cineastas da sua gerao, a partir dos
movimentos e organizaes criados com o fim da guerra e a libertao de Paris. Seu trabalho
vem tona, inserido no debate de que fazem parte artistas e pensadores, em uma reflexo de
rumos claramente informada pelas experincias de luta e violncia, como as da Segunda
Guerra Mundial e dos processos de descolonizao africanos. O grupo de artistas e
pensadores que se organizam nesse momento tem em comum no s o debate sobre o cinema,
mas sobre a cultura daquele momento, sobre o que ficou desse perodo, o que est
inevitavelmente perdido e sobre como se posicionar diante do que essas experincias
representam. Dentre esses grupos est o que se encontra reunido nas publicaes da revista
Esprit, criada por Emmanuel Mournier, em 1932, com o vis personalista que defendia o
filsofo, em que colaboraram diretores como Alain Resnais, companheiro de trabalho de
Marker; Andr Bazin, mentor, amigo, e inspirador; e autores fundamentais para o debate sobre
a questo da memria na contemporaneidade, como Paul Ricoeur. Nessas primeiras
participaes de Marker na revista, j possvel notar sua preocupao com a questo de uma
postura em relao memria.
Sobre as memrias compartilhadas de uma gerao, cada poeta impe umaforma e um estilo. A aprovao melanclica das memrias se junta aqui,espalhada por estas pginas cativantes ou engraadas, em uma comoventetentativa de afastar o tempo e permanecer fiel vida. (MARKER, 1948, p.158).
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H um cuidado em dar forma a esse sentimento do mundo, a essa perplexidade que
tomou a humanidade aps eventos como a Shoah ou Hiroshima. Se h algo que pode ligar
esses homens e mulheres que fizeram a cultura naquele momento essa preocupao em
discutir a representao daquelas experincias de violncia nos vrios campos a que se
dedicaram.
As experincias de guerra certamente deram um novo senso de energia,comprometimento e convico para Mournier e os outros membros do grupoeditorial, que incluam o crtico de teatro Pierre-Aim Touchard, o filsofoPaul Ricoeur, o escritor e crtico literrio Ibert Bguin, o romancista JeanCayrol, que depois trataria de sua experincia de deportao no texto dofilme marco do documentrio Noite e Neblina, e o crtico de cinema AndrBazin. No editorial combativo e otimista para o re-lanamento da revista emdezembro de 1944, a Esprit enfatizou fortemente a sua ambio em criaruma ligao entre os princpios espirituais do Personalismo e da acuidadepoltica e engajamento exigida pelo mundo contemporneo, para fazer darevista sinnimo de compromisso, bem como posio intelectual e moral.(LUPTON, 2005, p. 17, traduo nossa)
La jete, filmado em pouco mais de uma dcada depois desses primeiros escritos, de
1948, informado por esse debate que vai se constituindo naquele momento, pela necessidade
de uma tomada de postura antifascista, alinha-se s obras voltadas reflexo sobre a
representao daquelas experincias de dor e violncia, construo dessa memria, e mais
uma vez podemos pensar em Noite e Neblina. Este filme feito a partir do acesso a
documentos raros de registros da ocupao e do massacre nazista, montados junto s imagens
mais recentes daqueles mesmos lugares, como que em uma espcie de busca do que restou e
do que no pode ser esquecido. O trabalho com a imagem, no filme, deseja desequilibrar
qualquer calmaria que repouse sobre aqueles lugares e sobre os registros feitos sobre os
campos onde as maiores atrocidades ocorreram. Os escombros e as imagens reveladas so o
meio de impedir que essa memria seja rejeitada. O diretor investiga a memria desses
eventos, revisitando arquivos, estilhaos e compondo uma obra de ruptura na questo do
acesso e na revelao de imagens antes obscuras na histria da Segunda Guerra Mundial. La
jete se aproxima dessa obra por partilhar de um sentimento em relao s runas,
demonstrando uma postura que mostra o desejo de inquiet-las. Esses filmes so fruto de um
momento, na Frana, de reunio de documentos e de forte mobilizao pela memria das
vtimas do nazismo, dos deportados, da Resistncia e da construo dessa outra histria em
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que a violncia seja trazida tona. E o cinema vai buscar esses lugares que a memria
impregna e subverte a despeito das tentativas de obscurecimento.
Ainda se nos mantivermos nas aproximaes entre os dois diretores, preciso destacar
a parceria na direo, no mesmo perodo, em Les Statues Meurent Aussi (1953), em que os
diretores mais uma vez se voltam s runas, dessa vez s esttuas africanas, denunciando
atravs desses registros, o menor espao dado arte africana em um contexto de colonizao.
La jete pode ser relacionado tambm a Hiroshima Mon Amour (1959) de Resnais, do mesmo
perodo. No filme, a memria mais uma vez um meio de lidar com as experincias de
violncia, tratando dessa tensa relao entre linguagem e o vivido onde os personagens tm
dificuldade em falar do que viram e viveram e as as imagens tentam dar conta de
experincias difceis de significar, h tambm a tentativa de representao do trabalho
fragmentado da memria entre suas potncias e vazios. Essa gerao de diretores em que
podemos citar tambm Roberto Rosselini, Jean Luc Godard, ou a companheira Agns Varda,
que persegue essa temtica das imagens insuperveis da Shoah em filmes como Une minute
pour une image (1968) ou no bem mais recente Ydessa:Les ours et etc (2004), em que a
diretora lida com o peso dessa tradio dedicada ao trauma, a violncia extrema e aos desafios
da linguagem nessa seara, problematizando essas questes tambm atravs da fotografia,
dessa relao entre o que ela salva e o que nela est tambm inevitavelmente perdido.
Estamos diante de questes de poca que so fundamentais para o cinema de Chris
Marker e que fazem com que nos voltemos para a historicidade de sua obra. Essas questes
sero tratadas nesse primeiro captulo, principalmente, quando analisaremos a construo
desse futuro passado no filme, desse movimento entre os tempos verbais, atravs das
imagens. Trata-se aqui de uma aproximao com os estudos de Histria e Cinema, como
inaugurou Marc Ferro, e que tem uma interessante continuidade de autores como Antoine De
Baecque, Christian Delage, Vicent Guigueno e Jacques Rancire, que se dedicam a esse
perodo aqui abordado.
O captulo est organizado de forma a, primeiramente, analisar a estrutura do filme,
sua mise en scne elaborada atravs do uso de fotografias e dos recursos da fico cientfica,
analisando as opes estticas do diretor, seus recursos mobilizados que revelam sua
concepo sobre nossa relao contempornea com o passado.
Destacaremos ainda como essa concepo de tempo e relao com o passado,
proposta por Chris Marker, no filme, pode ser entendida a partir de uma aproximao com o
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debate contemporneo sobre a memria, e sobre as tentativas e investimentos do cinema e das
artes nessa representao, aproximando Chris Marker de autores que trataram desses temas,
como Henri Bergson, Paul Ricoeur e Walter Benjamin; e de que forma esses aspectos so
historicamente constitudos por esse repensar da forma que d conta dessas experincias
difceis de representar, que so as experincias extremas em tempo de guerra.
PARTE 1 MEMRIAS, RUNAS E FOTOGRAFIAS A ESTRUTURA DE LA JETE
1.1 O acesso ao passado atravs das runas
No com guardanapos que se junta as migalhasMarguerite Duras
Para esse homem que gostaria de ser cosmonauta, a fico cientfica sempre foi uma atrao Robert Grlier em O Bestirio de Chris Marker
O letreiro adianta que essa a histria de um homem marcado por uma imagem de
infncia vivida no per de Orly, anos antes de uma Terceira Guerra Mundial. o per que
vemos no incio do filme, atravs de fotografias em preto e branco dos avies sob o sol e da
estrutura do lugar, enquanto ouvimos barulhos que remetem ao aeroporto; avies e chamadas
de voos. Vemos tambm famlias que iriam ao per aos domingos, e aquele que pode ser esse
homem, na infncia, em uma tentativa inicial de representao do que foi vivido naquele dia.
Trechos dessa histria anunciada e do provvel dia da inesquecvel imagem. nesse espao
de memria que a imagem do passado nos mostrada, o rosto de uma mulher com o cabelo
assanhado pelo vento, uma fotografia que dura na tela (img.1). A narrao nos diz: Nada
distingue a lembrana de outros momentos, s mais tarde elas se fazem reconhecer por suas
cicatrizes. Dito isto, o rosto ainda est l, a imagem guardada, recolhida, a ser retomada
como lugar de continuidade nos tempo ruins. dessa imagem que partimos, do que ela
emana, do que esse rosto guarda de alegria e como orienta uma busca.
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(Fotograma de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Img. 1)
Em La Jete, o instante de doura do rosto da mulher interrompido por um tumulto.
O som ajuda a construir uma desorientao nessa sequncia, enquanto vemos a imagem
isolada, ouvimos somente a narrao que interrompida pelo barulho de turbinas de avio.
Vemos imagens que vo desde a reao assustada da mulher s das demais pessoas no per
que olham com ateno e pavor para algo fora do quadro. A narrao nos diz da morte de um
homem, mas no vemos a imagem. Nesse momento, Marker deseja que algo falte no
conjunto; interessante para ele, no incio, deixar bem claro esses vazios de uma primeira
explorao das lembranas.
A histria desse homem que no esquece contada a partir da confuso entre o vivido
e o lembrado. O protagonista no sabe definir se a imagem que o acompanha por toda a vida
uma inveno ou realmente uma lembrana. Acompanhamos, j no incio, atravs dessas
fotografias do per, do rosto da mulher inesquecvel, desses rastros, o trabalho da memria e o
que nele a convivncia entre lembrana e o esquecimento, que fazem parte do que prope
Marker, dessa convivncia no mesmo tecido, do que fica no meio do caminho no trabalho da
memria, ou como Walter Benjamin define: a recordao a trama e o esquecimento a
urdidura. (BENJAMIN, 1985, p. 370). A matria prima de Marker em La jete esse tecido
esgarado, suas dimenses, suas potncias, seus vazios, e a relao contempornea do homem
com o tempo, e como a imagem recurso para o acesso ao vivido. A criana cuja histria
contamos se lembraria por muito tempo do sol fixo, da estrutura armada do per, e do rosto de
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uma mulher. Marker parte da para analisar as circunstncias da persistncia dessas imagens
e as razes do seu retorno.
O filme deseja conectar o recolhimento do protagonista de imagens ntimas do seu
passado s runas do seu presente. Dessa construo incompleta da sequncia do per, somos
levados paisagem de runas, destruio de Paris, ao tempo de guerra. A confuso sonora da
sequncia anterior d lugar msica que acompanha o tom trgico dessas imagens, os
estilhaos do tempo de guerra. Apesar de situadas no futuro, as imagens remetem, na verdade,
ao passado ento recente da Europa no ps Segunda Guerra Mundial (imgs. 2 e 3). As runas
da histria se confundem com as runas da memria daquele homem, na tentativa de juno
dos cacos em um tempo de catstrofe.
(Fotogramas de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Imgs. 2 e 3)
Temos ento um movimento da estrutura de La jete ao qual devemos nos deter: desse
paralelo entre as runas do vivido a serem recolhidas e as runas fsicas do perodo de guerra
mostradas no filme. Por se tratar de um trabalho de juno de cacos diante do esfacelamento,
isso exige um trabalho de reconstruo e, para Marker, esse retorno complexo que revela a
reminiscncia carece de ser representado e de um exerccio que exponha uma concepo
contempornea sobre o tempo e que represente a problemtica dos acessos. Com o que se
depara o homem que volta s suas experincias atravs de suas lembranas? Como representar
o reencontro com o vivido? Atravs de imagens. Que forma de imagens? Como mont-las?
Imagens fixas, fotografias em preto e branco em uma histria fincada em um real difcil de
significar. Trata-se de um desafio de encenao da memria que vai atravessar a obra de Chris
Marker a partir desse filme.
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Em La jete, diante da superfcie inabitvel que nos mostrada, somos levados aos
subterrneos. L esto os vencedores da guerra montando guarda sobre um imprio de
ratos, onde submetem os vencidos s experincias cujo intuito fazer com que sejam
transportados no tempo. O subterrneo que nos mostra La jete cruel e notamos isso, seja
atravs dos ambientes sombrios, seja atravs dos rostos assustados, filmados de forma
expressionista pelo diretor. Acompanhamos o horror atravs das imagens fixas e trmulas dos
rostos destes homens nessas experincias, enquanto ouvimos uma lngua estranha, em um
primeiro momento, e que depois possvel notar de que se trata da lngua alem, em mais
uma relao com o passado recente da segunda guerra que ser analisada mais adiante.
Um desses homens submetidos experincia no subterrneo o protagonista. Para os
cientistas, essas viagens ao passado e ao futuro seriam uma arma para dominar o presente.
Temos at a o contedo de uma fico cientfica: viagem no tempo, Terceira Guerra Mundial.
Nada, porm, parece futurista, a impresso que temos de uma precariedade, do uso de
poucos recursos para falar de lugares e de homens em pedaos. No vemos mquinas, no h
alta tecnologia, vemos cacos, os encanamentos e os recursos dos cientistas partindo desses
rastros na sua explorao. As referncias histricas esto postas, mas trata-se de uma fbula
(HARBORD, 2009, p. 97).
Trata-se de um filme futurista precrio; a mquina do tempo substituda por uma
rede com dois tampes-curativos nos olhos dos homens, as experincias se do nos
subterrneos. Temos a informao de luz e sombra, mas poucos objetos cnicos, a
composio se d nessa construo simples, mas de detalhes significativos na concepo dos
ambientes e dos planos. importante destacar que essa precariedade no quer dizer
despreocupao esttica, pelo contrrio, medida que observamos as imagens de lembrana
do homem, vamos percebendo a minuciosa elaborao de Marker. Aparentemente, isso se d
devido a essa vontade de fbula, como diz Jane Harbord, ou da esttica que esse tema pede
ao diretor. No se trata de um dos seus documentrios dedicados aos processos, ou s
apropriaes, como so alguns de seus outros trabalhos. Trata-se do nico filme do diretor no
qual existe uma preocupao esttica-formal rgida, em quadros perfeitos de luzes-sombras
bem desenhadas, como em um sonho perfeito de escombros. Cabe aqui questionar essa
rigidez, e o que ela informa sobre essas questes que Marker deseja tratar, sobre esse seu
movimento de se voltar s runas, em seus vrios aspectos, literais e metafricas.
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Desafiar a lgica atravs do paradoxo do tempo no uma questo simples.Marker consegue faz-lo graas a uma quase elegncia clssica, uma perfeitaestruturao e controle dos mecanismos do filme e uma manipulaointeligente no convencional dos elementos de fico cientfica. Os homensdo futuro, por exemplo, no so marcianos com trs olhos e antenas. E asnicas criaturas extraordinrias como um toque de travessura, so osanimais pr-histricos do museu. [] Nada pitoresco; nenhum aspectofuturista. A que propsito servem quando esta viso de dor certamentedemonstra que os monstros esto entre ns? preciso incrivelmente poucopara fazer o truque: eletrodos, olhos mascarados, as cordas da rede ondeocorrem as experincias sendo rodas em agonia, estranhos culosestereoscpios, sussurros guturais, a batida do corao. (JACOB, 1966, p.167, traduo nossa)
Esse rigor nos remete tambm a escolha pela fico; uma escolha incomum, e que vai
se revelar nica. Trata-se da nica fico pura, se acompanharmos a carreira do diretor,
mesmo que vejamos aspectos de fico em outros de seus filmes. Talvez Marker no encontre
ferramentas no contato mais direto com o real para tratar desse drama. No basta ir direto a
ele para transform-lo, preciso fabul-lo, preciso o extremo da experincia do homem que
no esquece jamais para tratar do que passa e do que no passa nesse tempo de testemunhos
difceis. preciso promover uma ruptura no seu cinema para mostrar, de forma original, que,
como diz Gilles Jacob, os monstros esto entre ns.
A persistncia da experincia nos subterrneos leva o protagonista s imagens do que
viveu, tratadas no filme como imagens de verdade, as imagens do tempo de paz: o quarto
do tempo de paz, o quarto de verdade, a criana de verdade, o gato de verdade...os tmulos de
verdade, mesmo na confuso j descrita entre vivido e inventado em uma sequncia que
busca revelar a descontinuidade nesse conjunto. Esse carter de verdade atribudo parece ser
uma forma de dizer que o que resta de certeza, ou fiel ao vivido, so esses momentos fugidios
diante do esfacelamento das experincias naquele perodo. A verdade descrita nas imagens
dessa primeira viagem parece estar contida naquilo que o protagonista pode se agarrar,
imagens essas que vo do per de Orly vazio (img. 4) s outras cenas de felicidade lembradas.
Esses primeiros acessos demonstram uma fragmentao, elas vo aparecendo sem nenhuma
ligao aparente a no ser de experincias do passado. E dessa forma, Marker constri aquilo
que ele define como sendo o museu da memria do protagonista, explicitando o que em um
museu h de uma convivncia estranha de vrios tempos, do fato de ser uma referncia do
presente sobre o passado e por conter vrios registros heterogneos, mas unidos por serem
passado. E ainda assim, Marker subverte esta ideia de museu, pois essas memrias
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construdas, acrescentadas, criadas, convivem e se modificam; fogem de uma estrutura
esttica e controlada. Da se assemelhar imperfeio do trabalho da memria, muito mais
que a fixidez do museu.
Esse carter de verdade, atribudo s lembranas, pode ser lido tambm como a
tentativa de Marker, ou do prprio viajante do tempo, na sua narrativa sobre o passado, de
tratar da materialidade desse alcance do vivido, da forma como as imagens retornam vivas,
verdadeiras, em algo que remete ao que Jacques Rancire afirma sobre o cinema como um
modo especfico do sensvel, por tratar da energia eltrica da matria unida energia nervosa
do esprito (2008, p. 51). Em La jete, essas dimenses que o cinema capaz de captar esto
postas. A questo do filme trazer esses dramas do esprito sua concepo formal, atravs
da montagem que represente um trabalho dolorido de rememorao. Nesse momento, o
esforo do trabalho da memria evidenciado por esses lampejos atingidos, que mesmo
frgeis e desconexos, revelam uma potncia sempre acompanhada de um vazio. O trabalho da
memria leva o homem at o per vazio, como se fosse , ainda nesse incio, uma memria
ainda imperfeita, a ser preenchida. A montagem que concebe Marker vai tentando recobrir
esse trabalho de montagem mental.
(Fotograma de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Img. 4. )
Para os cientistas, os homens capazes de imaginar ou sonhar outros tempos, seriam
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talvez capazes de reintegrar-se neles. O diretor vai explorando essas questes, desde a dor do
retorno, do homem que volta, procura, delira e sofre, a esse aspecto da memria que tem
muito mais a ver com uma reinveno que com a reintegrao que acreditavam os cientistas.
No se trata de reviver, mas de persistir, reescrever essas frgeis eternidades, como demonstra
o trecho em que vemos mais dessas imagens encontradas atravs da viagem no tempo: a
imagem melanclica vista distncia vista de algum sozinho em um barco, o rosto da
mulher buscada que nos olha frontalmente enquanto a narrativa nos diz s vezes ele
encontra um dia de felicidade, mas diferente. Um rosto de felicidade, mas diferente Uma
moa que pode ser a que ele procura. A narrao diz que pode ser porque nesse momento
no filme, no primeiro sucesso na experincia de projetar o homem no tempo, as imagens
ainda so mostradas como que fora de uma ordem, incertas. As aparies da mulher, a essa
altura do filme, so descontnuas entre esses e outros pedaos desconectados, mas poderosas
suficientes para serem reencontrados. Nesse retorno, so vrios os momentos mostrados como
fragmentos de alegria aparentemente sem ligao, parte desse mosaico que o homem tenta
recompor.
Na segunda viagem no tempo, acontece o primeiro encontro entre o protagonista e a
mulher do seu passado. Passamos ento a ver o homem nas suas prprias lembranas, ele
um elemento acrescentado nos quadros em que antes pareciam fazer parte somente de sua
contemplao. A partir dessa segunda viagem, j preciso se deter em detalhes reveladores da
mise en scne feita por Marker que mostra o que ele acredita como sendo o trabalho da
memria.
medida que o homem vai revivendo e recriando as imagens do seu passado, elas vo
se tornando mais contnuas; as lembranas que antes vinham pulverizadas e indicando, atravs
da montagem, momentos muito diferentes, agora remetem a ocasies; compem sequncias
que reportam a um dia, a uma tarde de passeio, a uma volta pelo parque entre crianas, a um
sorriso que ela lhe d, ou um cochilo sob o sol em que ele a observa. como se a persistncia
da memria levasse o homem a imagens cada vez mais organizadas de dias vividos,
especialmente junto a essa mulher, at o sublime do despertar dela, por exemplo, a nica
imagem em movimento do filme, que talvez tenha essa caracterstica justamente por
representar algo que o homem atingiu com seu percurso e sua persistncia. como se esse
trabalho mnemnico o levasse a um outro nvel de lembrana, o mais ntido possvel, esse
frgil instante recolhido que ele conseguiu recriar em movimento.
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Aos poucos, o quebra cabea da memria vai sendo montado e o protagonista vai
preenchendo os vazios do que viveu, da sua confuso; e a operao de Marker ir tornar isso
visvel, representar cinematograficamente essa juno do cacos. O cineasta vai encenando o
trabalho da memria como em uma metfora de preenchimento da imagem, acrescentando
elementos, medida que o trabalho da reminiscncia vai acontecendo.
Na sequncia do segundo encontro, evidente essa concepo. Encontramos a mulher
de perfil em um plano mdio, em seguida vemos o homem acrescentado ao plano (seq. 1) ,
como se simulasse essa construo aos pedaos, em que esses fragmentos, aos poucos, vo
aparecendo.
(Fotogramas de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Seq.1)
Foi o cinema que, como prtica mas tambm como paradigma, permitiu aMarker refinar sua percepo singular de imagem e, dessa forma, de espaoe de tempo. A montagem o correlato dessa percepo: as imagens espao-tempo devem ser associadas para construir uma viagem, ou seja, umaexperincia de tempo, uma temporalidade de substituio. H umacongruncia quase perfeita entre suas reflexes, sua explorao (na forma defico) e o meio utilizado para expor e as colocar em cena. Obtm-se umdeslocamento metonmico revelador do imaginrio markereano: ubiquidadede tipo ednico, analogismo mnemnico, montagem cinematogrfica dedocumentos. (LAMBERT, 2008, p. 169-170, traduo nossa)
Arnaud Lambert preciso ao tratar dessa mobilizao das mdias, dos meios do
cinema proposta por Marker, para construir essa viagem e essa temporalidade alternativa,
atravs das suas imagens e desse outro tempo construdo atravs do acesso ao passado. O que
temos exatamente essa correlao entre percepo e a montagem do filme; um tempo
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vivido, e um tempo acessado e representado atravs de imagens, com o sentido colado a elas.
As fotografias vo revelando pontos atingidos, pedaos montados do que vivencia esse
homem projetado no tempo.
At a essa altura do filme, os elementos sonoros j esto praticamente todos postos, e
os vimos ser desenvolvidos nas cenas seguintes. Temos a voz over que conta da experincia
desse homem; os rudos confusos de sussurros; batidas do corao, misturados lngua alem
falada pelos cientistas, tudo isso ouvido principalmente nos subterrneos durante as
experincias. H tambm, nessa composio, a msica de Trevor Duncan que ouvimos
principalmente quando o personagem atinge essas lembranas, no recolhimento dele nos
momentos que pode alcanar. Essa organizao sonora de repeties das msicas, dos
sussurros e rudos junto a voz over, vai ajudando a construir esse ciclo de idas e vindas atravs
do tempo pelo protagonista.
Quando, no 50 dia de experincia, a viagem leva o homem at o museu de histria
natural, ele percebe que atingiu algo. Agora o foco est perfeitamente ajustado. Temos
ento a metfora perfeita entre coisa filmada e coisa lembrada. O foco ajustado revela um
ponto atingido com perfeio, talvez o que possa se chamar de uma memria perfeita, em
uma sequncia que o protagonista consegue reconhecer com clareza. Atirado no momento
escolhido ele pode permanecer l e mover-se sem dificuldade, diz a narrao. E o que vemos
um conjunto revelador da concepo formal de Marker sobre o que seria o trabalho da
memria, dessa teimosia que leva a imagens mais contnuas.
Um paralelo construdo entre o ato da memria e aquele de filmar efotografar, ou seja, que o significado do que capturado pela cmera, ou aimagem apresentada na prpria memria, muitas vezes no facilmenteperceptvel nos anos seguintes. (ALTER, 2006, p. 94, traduo nossa)
Os trs primeiros planos dessa sequncia demonstram, mais uma vez, o mosaico
markereano criado no filme: primeiro, em um plano aberto, percebemos a mulher em meio
aos animais do museu de histria natural, depois ele; a seguir, aparece um plano no qual os
dois planos anteriores esto contidos. (seq. 2)
Esse encontro com a mulher de suas lembranas evidencia, para alm dessa montagem
de planos associada construo das lembranas, uma minuciosa concepo dos gestos que
indiquem essa intimidade existente que o homem recupera atravs do alcance dessas imagens
do seu passado. Todo o gestual dessa sequncia indica proximidade, afeto, um senso de
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partilha de um momento importante de ser revisitado nessas viagens. O sonoro, nesse
momento, tambm contribui para esse tom de proximidade que as cenas mostram. A msica
acompanha esse percurso; delicada, fluida. Trata-se de mais um desses momentos
musicais nesse retorno a essas imagens que ele deseja guardar; do retorno ao tempo de
alegria. Eles sorriem, veem juntos os animais no lugar; ele olha para ela em meio s esttuas e
animais empalhados, congelados no tempo. Em meio a esse lugar de tempo suspenso eles se
movimentam, pairam em seu momento. Ela tambm parecia domesticada. Ela aceita como
um fenmeno natural a passagem desse visitante que aparece e desaparece, diz a narrao,
como se, a partir dessa persistncia dele em revisitar suas lembranas, houvesse por parte dela
um reconhecimento disso que foi vivido. Se pensarmos esse homem como um intruso do
futuro no passado, o trabalho da memria seria isso: esse corpo de outros tempos que insiste
em retornar, em querer fazer presente o que passou.
(Fotogramas de La jete -1962. Dir. Chris Marker. Seq.2)
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O que temos a perseguio de imagens que levam at esses encontros, esses
reconhecimentos ou essas invenes. Segundo Mark Fisher, Marker teria afirmado que La
jete um remake de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock (FISHER, 2002). Mesmo que
desconhecssemos essa afirmao, seria possvel aproximar o filme dessa obra do diretor
ingls que trata desse homem obcecado por uma mulher do passado e pela imagem dela no
presente. Algumas referncias so mais evidentes, como na cena em que o casal, em uma das
viagens do tempo, aponta para uma sequia, como acontece no filme de 1958, no momento
em que os dois se procuram naquelas linhas do tempo. Outras questes esto imbricadas,
principalmente essa perseguio a que nos referimos, que encontra a temtica de Hitchcock
em Vertigo, a questo da vertigem do tempo, ou de como a passagem do tempo recai sobre as
coisas e sobre as pessoas atravs das imagens, da obsesso por imagens imperfeitas do
passado. Assim como Scottie, o personagem de James Stewart persegue uma mulher do seu
passado atravs de uma repetio falsa, um duplo, o protagonista de La jete tambm guiado
por uma mulher, e por uma imagem de uma mulher do passado, como tambm a imagem
que tem Scottie, um registro mental que jamais recobrir o que foi a sua verdadeira
Madeleine, a mulher que conheceu, salvou, se apaixonou e depois reencontrou disfarada.
Essas aproximaes desvendam essa afirmao de Chris Marker e essa influncia vai ser
declarada mais diretamente em seu outro filme trabalhado aqui, Sans Soleil (1982), ao tratar
das tentativas de reescritura incompletas de experincias do passado.
O filme de Marker leva seu protagonista at o limite das suas lembranas, at onde seu
corpo gostaria de mais uma vez estar como parte dessa vertigem desse seu trnsito pelos
vrios momentos de sua vida atravs da memria. Depois da ida ao futuro, promovida pelas
experincias no subterrneo, o homem decide voltar ao passado mais uma vez e ser levado ao
que faz aluso s primeiras cenas do filme, na busca daquela imagem de felicidade da mulher
da sua lembrana. Vemos mais uma vez a mulher, o per, as pessoas no per, um dos cientistas
tambm no lugar, para que o homem possa finalmente reencontrar o momento da sua
lembrana mais preciosa e encontrar tambm a morte (img.5). A morte do homem que temos
notcia no incio era, na verdade, a dele mesmo. Quando se encontra o extremo da lembrana,
o que resta? Para Marker, o inevitvel desse alcance a morte. o que temos, talvez para
mostrar que seja impossvel recobrir o vivido e que a busca disso limitada, dolorida e
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extrema. Quando atinge esse ponto da memria, o homem tomba; para ele, no era possvel o
futuro pacificado, nem o presente cruel; era preciso repousar naquele que era o momento em
que tanto se agarrara para sobreviver.
(Fotograma de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Img.5)
1.2 O cinema contaminado pela fotografia
Seguindo o percurso de investigao da concepo formal de Chris Marker em La
jete, nos defrontamos com a escolha por fazer um filme atravs de fotografias. Temos aqui
um diretor dedicado a tratar de uma relao com o tempo, e refletindo sobre a maneira de
representar esses acessos, os alcances, os instantes, todas essas categorias temporais que
passam pelos temas da memria, do seu aspecto involuntrio, do que nela trabalho e
reconstruo. O filme demonstra o interesse de Marker por algo que Roland Barthes
explicitou ao dizer que o que a Fotografia reproduz ao infinito s ocorreu uma vez: ela repete
mecanicamente o que nunca mais pode se repetir existencialmente (BARTHES, 1984, p.13).
A fotografia, no filme, assume essa posio de representao de algo inalcanvel a partir da
persistncia da repetio, da investigao das circunstncias da experincia que no pode ser
revivida. A repetio algo que interessa ao diretor e essa forma imperfeita que diz respeito
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ao registro fotogrfico fundamental para entendermos sua criao nesse filme. Se o trabalho
de se voltar s runas, que seja feito atravs de um recurso que d conta dos cacos e que
mostre a incompletude de se voltar a essas frgeis infinitudes; que d conta das imagens do
que nelas presena, fantasmagoria e falta. Nas mos de Marker, as fotografias no so
testemunhas leais do tempo, mas armadilhas da conscincia temporal. (HARBORD, 2009, p.
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A fotografia um simulacro. Quando muito, uma lembrana, com o que issoimplica de ausncia e separao. A lembrana no tem relevo, no tem nadade verdadeiramente presente. Do passado, ela apenas a decomposio. Afoto , por natureza, essa decomposio; ela atenta contra o esquecimento,do qual surge a revelao da memria involuntria. S esta, nascida aoacaso, da disponibilidade, metamorfoseia o passado em presente, fazendocom que se juntem na escrita, que ter por objeto fundar a apreenso nadurao. (BELLOUR, 1997, p. 70)
La jete expe essas questes fundamentais na temtica da memria e da narrativa ao
tratar das lembranas como fotografias, tornando isso cinematogrfico, atravs da montagem,
em uma convivncia entre aspectos contnuos e descontnuos. O que temos essa tentativa,
atravs da imagem, de explorao das duraes que, em convivncia menos ou mais linear,
traz tona as camadas do trabalho da memria. Marker usa desses vrios aspectos de que fala
Raymond Bellour para tratar desse drama, desde a decomposio revelada atravs da
montagem, reinventando duraes para o que foi vivido, a esse aspecto da fotografia no que
contm nela, ao mesmo tempo, de passado e de presente desse recobrimento do passado
atravs de parte dele somente o que revela uma inevitvel perda, e ainda assim uma
poderosa capacidade de guardar, recolher.
Sabemos que a fotografia, quando usada no cinema, costuma provocar uma suspenso.
Aqui Marker escolhe o caminho oposto: o da montagem feita com fotografias que compe o
ritmo do filme e a sua narrativa; a suspenso vem atravs da nica imagem em movimento, do
despertar da mulher inesquecvel. Acompanhamos os mnimos gestos dela at que 11 plano
em que temos os olhos se abrindo em movimento, como em uma persistncia que permite
atingir algo mais; um olhar retribudo em movimento (seq. 3). Ou seja, tratar desses acessos
ao passado, exige esses vrios estatutos da imagem, esse impregnar do cinema pela fotografia
e o contrrio. Ou como tratou Raymond Bellour, La jete parece percorrer novamente todo o
espao da lacuna aberta do cinema desde seu incio, se no, desde sua origem at a presena
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imvel da fotografia (tanto como corpo como ideia) (BELLOUR, 1990, p. 131).
(Fotogramas de La jete - 1962. Dir. Chris Marker. Seq.3)
Isto , o ato de lembrar passa a ser cinematogrfico, o que leva indagaode uma ordem diferente. No somente dos lugares da criana e do homem,do passado e do futuro, indistinguveis, tambm possvel que a memria
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seja inseparvel da encenao, enquadramento e dispositivos focais dafotografia cinematogrfica. Como a memria infectada pela fotografia e,reciprocamente, os dispositivos fotogrficos tm servido aos requisitos damemria? (HARBORD, 2009, p.1, traduo nossa)
O movimento operado por Marker o de dispor os mecanismos da fotografia e do
cinema a servio da memria, promovendo essa contaminao desses meios pela dinmica da
memria. Os frames, a montagem, o conjunto vai atendendo ao que o trabalho da memria
pede na sua representao.
A escolha por fazer um filme atravs de fotografias, nessa dinmica do fotogrfico e
cinematogrfico, diz tambm sobre o desejo de Marker usar aspectos inerentes ao recurso,
como essa morte que acompanha o sentido da fotografia, da presena, do instantneo, e da
ausncia j contida na velocidade da sua passagem, da sua durao. Marker se interessa por
esse aspecto que Susan Sontag viria a definir: A fotografia o inventrio da mortalidade.
Basta agora um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia pstuma. (SONTAG;
2004, p. 85). Ou ainda: O passado mesmo, uma vez que as mudanas histricas continuam a
se acelerar, transformou-se no mais surreal dos temas tornando possvel, como disse
Benjamin, ver uma beleza nova no que est em via de desaparecer. (ibid, p. 91). A escolha de
Marker pela fotografia informada por esta fragilidade, por isso, de morte que est contida na
imagem fotogrfica, na sua durao, nesta potente e frgil capacidade de salvar que est
presente tanto na lembrana quanto na fotografia, no que h de eterno e fugidio nas duas. A
imagem que acompanha o homem paira sobre o filme, como presena, como ausncia, e
como procura, em uma dinmica da memria, do instante, do vivido, do percebido, registrado
e da relao que fazemos com estes depois.
Esses modos de contato com o passado, presente e o futuro passam por essa tradio
da representao da lembrana atravs da imagem algo impregnado no nosso cotidiano, j
que nos referimos a esse acesso atravs de imagens do passado. Essa relao antiga, vem
desde a Antiguidade, mas segue como um linha de continuidade na contemporaneidade, como
afirma Paul Ricoeur.
A questo embaraosa a seguinte: a lembrana uma espcie de imagem,e, em caso afirmativo, qual? E se, por uma anlise eidtica apropriada, severificasse ser possvel dar conta da diferena essencial entre imagem elembrana, como explicar seu entrelaamento, e mesmo a confuso entreambas, no s a nvel da linguagem, mas no plano da experincia viva: no
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falamos de lembrana imagem, e at de lembrana como uma imagem quefazemos do passado?[...] Como explicar que a lembrana retorne em formade imagem e que a imaginao, assim mobilizada, chegue a revestir-se dasformas que escapam a funo do irreal? (RICOEUR, 2007, p. 61-66)
Ricoeur toca nestas camadas a que se referiram tambm Sontag e que se aproxima
dessa confuso intencional que faz Marker entre as lembranas e as fotografias. La jete faz
com que reflitamos junto com o autor: em que momento do trabalho da memria a lembrana
passa a ser imagem? Que espcie de imagem? A forma como Marker trabalha a lembrana
informada por essa tradio em que o passado sempre tratado como experincia visvel,
mesmo que imaginada, ou inventada. La jete se aproxima tambm da concluso bergsoniana
de Ricoeur ao tratar da passagem da lembrana-pura a lembrana-imagem no qual a
segunda parece sempre revelar uma repetio, um dej vu, ou ainda, em algo notrio na
representao da memria dessa obra de Marker, o fato da lembrana como imagem sempre
estar relacionada com um processo de reconhecimento. (RICOEUR, 2007, p. 68). As imagens
ou as fotografias vo revelando esse percurso e esses lampejos que representam uma confuso
entre a repetio do vivido que leva a um reconhecimento, ou a uma imagem mais ajustada,
mais focada, mantendo aqui a metfora entre o que se lembra e o que se filma.
Em mais uma das experincias de viagem no tempo, o homem volta a encontrar a
mulher da sua lembrana: Ele enviado novamente, o tempo passa novamente, o instante
volta. Vemos este momento, o perfil da mulher, o instante que tem seu sentido colado ao da
fotografia, neste retorno que , na verdade, um re-encontro. Desta vez ele est mais perto
dela, fala com ela. Ela o acolhe sem surpresa. Eles no tm lembranas nem projetos. Suas
nicas referncias so o sabor do momento que vivem, e os sinais nas paredes. Neste
momento do filme, Marker parece desejar trazer essas vrias noes informadas pela tradio
da imagem-lembrana, a repetio, o reconhecimento, esse retorno de um presente fugidio,
seja nesta volta do instante, ou nesta frgil alegria que tem o casal, sem projetos,
aparentemente sem passado e sem futuro, apenas o momento, e os sinais na parede, aquilo que
h de visvel, do que poderia ser lembrado como imagem, como fotografia.
Nesse sentido, sua natureza material, no dispositivo singular do filme, isto ,seu estatuto hbrido de imagem que no nem (simplesmente) fotogrficanem (verdadeiramente) cinematogrfica, mas o que eu chamo de (pelaverso da noo de fotograma - uma imagem de filme como fotografia) umcinematograma (uma imagem fotogrfica como de filme), essa naturezaambivalente corresponde exatamente ao dado: La Jete ao mesmo tempo nos
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conta a histria de um filme mental que se deteria em uma fotografia e aomesmo tempo nesse filme (uma foto que dura). (DUBOIS, 2002 p. 38,traduo nossa)
O que Marker tem em mos um material delicado em que ele escolhe uma fronteira
tambm delicada como forma de representao. como afirma Dubois, a imagem-lembrana
no filme adquire esse carter dbio, ou contm tanto o sentido cinematogrfico como
fotogrfico; um movimento para tratar dessa experincia radical com o passado que
retomado como imagem. O que o autor deseja dar conta daquilo que Marie-Jos Mondzian
afirma, em seu texto sobre a relao entre cinema, Shoah, ou sobre com o que se depara
aquele que se volta na tentativa de capturar um registro sensvel sobre aqueles eventos, como
sendo uma eternidade frgil (MONDZAIN, 2007, p. 31) revelada na imagem de felicidade e
em todo o percurso do filme nos reencontros fragmentados com a mulher amada. Eternidade
frgil que tambm pode ser lida nessa alegria guardada como recurso nos tempos de guerra,
como lampejo de felicidade depois do fim do mundo.
Se tudo se inscreve na memria psquica e ali permanece gravado intacto,nem tudo volta. O recalcamento originrio, e sempre haver restosperdidos, parcelas inacessveis a conscincia. Sempre haver uma parcela deimagem invisvel. Sempre haver uma espcie de latncia no positivo maisafirmado, a virtualidade de algo que foi perdido (ou transformado nopercurso). Nesse sentido a foto sempre ser assombrada, sempre ser em(boa) parte, uma imagem mental. (DUBOIS, 1994, p. 325, 326)
Sobre estes aspectos que acompanham a fotografia a que se refere Dubois, partindo de
Freud, acrescentamos no entendimento da escolha pela fotografia, que vai desde esse esforo
de representao desse encontro com a lembrana como imagem, at essa sensao que traz
de algo irrecupervel, das camadas invisveis a serem preenchidas com o pensamento, ou com
estas imagens mentais a que o autor se refere. So estas imagens indefinidas entre o vivido e o
inventado de que trata Marker, nessa convivncia entre o que possvel de ser acessado e o
que assombra esses registros incompletos. A fotografia para o autor no filme meio, portanto,
para construir camadas de significado sobre a lembrana como linguagem. Trata-se de um
registro assombrado pelo que se consegue recolher e pelo que est perdido. A fotografia, ou a
representao da imagem-lembrana, como tratou Henri Bergson (2010, p. 98-99),
reveladora dessa mortalidade melanclica da recordao. O que Chris Marker faz com esse
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filme nos propor uma representao desse movimento quase que incessante de associao,
justaposio, intervalo e reconhecimento.
PARTE 2O FUTURO PASSADO
2.1 Um projeto de cinema historicamente informado
As experincias de violncia das dcadas anteriores, a abertura dos documentos
nazistas, o desejo de construir uma memria da Resistncia, a perplexidade e o desejo de
signific-la, tudo isso material para Marker conceber sua meditao contempornea sobre a
nossa relao com o passado. A ruptura que esses eventos representam informa a ruptura
esttica que se d em La jete e que analisamos na primeira parte desse captulo. As
experincias de guerra recentes exigem uma inquietao da relao do diretor com a
linguagem e com seu prprio cinema.
Esse real exige uma nova tica da representao, na medida em que nosatisfaz nem com o positivismo inocente que acredita na possibilidade de sedar conta do passado, nem com o relativismo inconsequente que querresolver a questo da representao eliminando o real. (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 10)
La jete informado pelo contexto turbulento e reflexivo do ps Segunda Guerra
Mundial, mas ainda por eventos mais recentes como a Guerra da Arglia (1954-1962) e as
experincias de descolonizao do Terceiro Mundo. Essa gerao tem que lidar com essa
nova tica da representao, como diz Mrcio Seligmann-Silva. interessante entender de
que maneira a ruptura que esses eventos de violncia desencadeiam tambm em um
rompimento na concepo do trabalho de Marker, que passa a se voltar constantemente para a
temtica da memria. Algo que se introduz com relevncia e notoriedade em La jete, e que o
artista no mais abandona, torna-se uma questo que atravessa sua obra, seus filmes, que, de
uma forma ou de outra, tratam das memrias constitudas, das rejeitadas, e principalmente da
inquietao dos dados estabelecidos atravs de um questionamento de documentos e da
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construo de um outro saber sobre o seu tempo.
No filme, notamos a temtica ser trabalhada, principalmente, atravs dessas
experincias com as runas nessa histria subterrnea. O que temos em La jete so um diretor
e um protagonista lidando com o que resta e montando e desmontando imagens mentais como
imagens fotogrficas a partir dessa ideia que se relaciona com aquilo que Giorgio Agamben
define na sua concepo do contemporneo, como sendo aquele que concerne o escuro de
seu tempo que no cessa de interpel-lo [...] que recebe em seu rosto o facho de trevas que
provm do seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 64). Marker esse homem voltado para as
experincias extremas onde elas teimam em persistir, no trabalho mnemnico e no que nele
repetio, falta, reconhecimento, permanncia e no que revela um sentimento de um tempo.
La jete demonstra isso, traz tona essa tentativa de dar conta dessa escurido de que fala
Agamben, nesse confronto com o presente e com o passado recente que, como afirma Susan
Sontag, seria o mais surreal dos temas. Marker nos apresenta um futuro passado difcil de
definir e representar, um futuro passado para o qual ainda estamos todos voltados e perplexos.
A mesma lio da arte contempornea, assim como a Shoah serprofundamente trabalhada, e, em particular da arte do cinema como arte porexcelncia desta poca poca essa que sempre, 60 anos depois daabertura do campo de Auschwitz, a nossa essa lio precisamente aexigncia reformulada de recusa de qualquer sistema fechado, de todapretenso totalizante ou linear. (FRODON, 2007, p. 26, traduo nossa)
Marker se afasta de qualquer pretenso totalizante. Seu desejo conceber uma
reflexo sobre seu tempo atravs da experincia do seu protagonista. Um homem errante
diante de suas lembranas e do que nelas no consegue alcanar. Os homens que passam
pelas viagens no tempo no filme tornam-se confusos e sujeitos com fortes imagens do vivido
no seu presente. A imagem que o protagonista no consegue esquecer no filme, e que
mostrada, esttica, como uma imagem-lembrana, seria a nica do tempo de paz a chegar ao
tempo de guerra. atravs das imagens, que se vive o passado mais uma vez. E viv-lo no
era tarefa fcil naquele momento. Ou como afirmou Walter Benjamin:
No final da (Primeira) Guerra observou-se que os combatentes voltavammudos do campo de batalha, no mais ricos, e sim mais pobres emexperincia comunicvel. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurradade livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experincia
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transmitida de boca em boca. No havia nada de anormal nisso. Porquenunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que aexperincia do corpo pela guerra de trincheiras, a experincia econmicapela inflao, a experincia do corpo pela guerra de material e a experinciatica pelos governantes. Uma gerao que ainda fora escola num bondepuxado por cavalos se encontrou ao ar livre em uma paisagem em que nadapermanecera, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de foras detorrentes e exploses, o frgil e o minsculo corpo humano. (BENJAMIN,1985, p.198)
A imagem do futuro que Marker nos apresenta prxima dessa descrita por Benjamin,
e os corpos que ele filma remetem a esta imagem, evocada por ele, dos homens
desterritorializados nos lugares e no tempo. As experincias dos corpos com os ambientes so
radicalmente transformadas, como vemos nas expresses transtornadas dos homens nos
subterrneos, eles no oferecem respostas exatas, no levam a lugares definidos do passado,
a imperfeio do esprito humano no permite essa exatido. Mesmo o protagonista na sua
viagem ao passado, em sua busca pela mulher da imagem da qual ele no esquece, transita por
lugares de vrios tempos. No processo, e nas vrias viagens, vemos esse homem ir da
confuso at atingir pontos de maior continuidade. Nas primeiras viagens, as imagens so
menos certas: que dia da lembrana seria aquele? Trata-se do mesmo dia? Foram tantas idas
ao parque, qual seria aquela? Por que ela lida com tanta naturalidade com a presena dele?
Seria ela vivida ou inventada? Ou com diz a narrao, Ele nunca sabe se ele a inventa ou se
sonha. Marker se interessa pelas diversas camadas da memria e faz isso na sua
representao em uma ordem tanto confusa quanto emotiva.
E mais uma vez, diante das reflexes possveis de serem feitas sobre esse filme, o
pensamento de Walter Benjamin nos encontra; essa relao com o passado, as formas de lidar
com seu aspecto fragmentrio, as limitaes e as potncias desses reencontros. Benjamin j
afirmara: A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado s deixa fixar, como
imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que reconhecido. (BENJAMIN,
1985, p. 224). Este pequeno trecho dialoga claramente com o procedimento de criao e o
entendimento que Marker tem da memria e deste modo do protagonista acessar o passado.
Ou como diz Benjamin, mais uma vez demonstrando ser uma clara influncia para Marker
neste filme: Articular historicamente o passado no significa conhec-lo como ele de fato
foi. Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um
perigo.
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No seria exagerado ver neste filme uma mise-en-scne da viso da Histriade Benjamin s que realizada do outro ponto de vista, a saber, daquele que selocaliza preso do outro lado da catstrofe destruidora. Tambm nessefilme somos confrontados com runas, sofrimento, torsos que desfilam comoparte daquilo que o narrador denomina como museu da memria [...]O filme estrutura-se a partir da rememorao: o presente que comanda aexcurso no tempo; o passado visto tanto como um amontoado de runascomo tambm como composto por imagens paralisadas que contem em si ogerme da salvao. (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 411)
O filme traduz aquele que seria o homem contemporneo para Walter Benjamin.
Homens e mulheres marcados por uma imagem de infncia, como o protagonista do filme,
e que tem sua relao com a linguagem inquietada diante da ruptura das extremas
experincias de violncia. o corpo daqueles homens que acompanhamos nas experincias e
sua impotncia diante daquele destino. So homens mudos em que a linguagem permitida a
do recordar, do rememorar e reinventar. O frgil e minsculo corpo humano daquele homem,
desterritorializado, ancorado somente quelas lembranas, aos dias de alegria vividos, ou
talvez inventados como forma de sobreviver.
O homem diz, em seu re-encontro com a mulher buscada, enquanto aponta para
sequia e seus mltiplos tempos, que vem do futuro. Essa presena em um tempo outro pode
ser entendida a partir do movimento de recordar, de voltar como um corpo velho, marcado,
com as cicatrizes do presente e as esperanas do futuro, at algo que no pode ser repetido.
Mais uma vez a metfora do recordar e do retorno atravs das imagens faz sentido numa
leitura desta obra de Marker, com a presena deste corpo estranho em outros tempos,
reconhecveis, mas diferentes. Isso nos remete relao que o autor constri desta
imperfeio do retorno e desta dupla dimenso da memria em que a lembrana e o
esquecimento esto contidos.
Chris Marker faz parte de duas ou trs geraes de artistas e de pensadoresque acreditaram (e querem acreditar) que Auschwitz e Hiroshima forammomentos insuperveis da histria da humanidade. Por exemplo, para sedeter na Frana e no cinema: Resnais, os Straub, Godard, Duras, Daney.[] Sabe-se que Auschwitz essencial e ao mesmo tempo destinado aoesquecimento o que explica, sem dvida, a relao obsessiva, como umaferida nunca curada, que esses artistas e pensadores tm com a memria.(BOUQUET, 1998, p. 60, traduo nossa)
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As experincias de guerra para essa gerao devem ser representadas, expondo essas
dimenses que vo de uma inevitvel presena, da teimosia da memria s lacunas, falta, ao
esquecimento que faz parte do tecido mnemnico e das dificuldades em significar a violncia
vivida. La jete faz parte desse conjunto diverso e dessas tentativas de dar conta da
complexidade disso que retornar, mexer no que nunca foi esquecido, mas, por vezes,
adormece at mesmo como forma de sobreviver. Essas questes fazem parte do debate sobre
o testemunho que informa o trabalho realizado nesse filme. Como aquele que viveu a dor, o
abalo da grande violncia, representa isso? E Marker, assim como Benjamin, quer apreender,
indicar esse no representvel e inapreensvel: a vida. (SELIGMANN-SILVA, p. 410).
2.2 A ida ao futuro e o Teorema Markereano
Em La jete, o sucesso das experincias de viagem para o passado desperta o interesse
dos vencedores em levarem o protagonista ao futuro. Apesar de que, para aquele homem, o
futuro seria mais protegido que o passado, ele rejeita o que presencia. Na viagem, o homem
se depara com um mundo de mulheres e homens que rejeitam a escria de outra poca.
Mesmo com a chance de estar nesse porvir pacificado, ele prefere voltar ao mundo da sua
infncia, como numa impossibilidade de abandon-lo, ainda como lugar possvel de se
ancorar. Em anlise sobre o filme, Mrcio Seligmann-Silva afirma: Como em Benjamin,
tambm o nosso personagem de La jete recusa a imagem de futuro pacificado: ele prefere
escavar as suas memrias. Apenas a sociedade tem futuro, o indivduo s possui as imagens
do seu passado aprisionadas no seu presente (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 413). O
homem compreende que no havia como escapar do tempo, restando-lhe ir ao encontro das
suas lembranas, voltar ao per de Orly, e dessa forma encontrar a morte.
Vemos como o filme levanta inicialmente questes contemporneas masfalando da nossa poca como uma lembrana. Marker descreve a dificuldadede comunicao, as relaes espao-tempo-movimento, o encontro, o nada,as questes na urgncia que nos tocam, como se tratasse de abordagens jconcludas e permitissem o futuro de se instalar. Ele deveria talvez falar maisde uma crtica da fico cientfica, uma vez que uma questocontempornea tratada em flash-back em uma obra que parece se situar nofuturo, e que ainda vai situar no futuro do futuro. (WEYERGANS, 1963, p.37, traduo nossa)
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Para Marker, em La jete, preciso transitar primeiro pelo passado, partindo do
presente para que ento o futuro possa se instalar. Algo que pode, como aponta Franois
Weyergans, na ocasio do lanamento do filme, ser considerada uma provocao em relao
s fices cientficas que costumam se projetar direto para o futuro. O homem volta ao local
da imagem inesquecvel, ao per, a essa sucesso, aos avies sob o sol, e procura da mulher
aquele que seria o momento de sua prpria morte. No era possvel escapar do tempo.
Marker tambm no escapa, e no o recusa, ele vai ao futuro, mas, para tratar do nosso tempo,
sobre questes no superadas, para mexer mais uma vez com elas. Esse ir e vir sempre
pareceu necessrio para Chris Marker lidar com as questes de sua poca e as que se dedicou
com seu cinema. Esse drama contemporneo exige um movimento pelos tempos verbais que
possibilite a reflexo, pois o tempo produz sua prpria alteridade (HARBORD, 2009, p.
95). Da a necessidade de Marker dar tempo s imagens, de mostr-las primeiro em uma
montagem incompleta, como a da morte do protagonista, para depois, com a carga do
tempo, ser reencontrada.
Mais tarde, ele entendeu. justamente esse o mecanismo (teorema)markereano do distanciamento e da compreenso adiada, tratado aqui nomodo narrativo de reencarnao do passado que nos leva ao fim do filme,seu eplogo, que retoma exatamente a mesma cena, mas mudando o objeto eo ponto de vista. Recuperao, reviso. Pode-se dizer que entre essas duas"verses" da mesma cena que h, finalmente, alternncia. (DUBOIS, 2002,p. 27, traduo nossa)
Este teorema markereano, proposto por Philippe Dubois, atravessa sua obra em que as
imagens so constantemente repetidas em circunstncias diversas, em tempos diferentes;
primeiro como imagens isoladas, depois com a carga dos registros que convivem com elas, e
levam at elas. Como no caso de Sans Soleil (1982) e a imagem de felicidade das crianas na
Islndia, mostrada no incio na impossibilidade de montagem com outras, e no final do filme,
mostrada em tempo maior, impura, na convivncia com os outros registros. Como diz a
narrativa no incio de La jete, Nada distingue a lembrana de outros momentos, s mais
tarde elas se fazem reconhecer por suas cicatrizes. Isso faz parte da crena de Marker do
tempo que as imagens precisam para ganharem novos sentidos, os sentidos do tempo, da
serem retomadas, repetidas, da em muitos filmes o uso de materiais filmados por outros, em
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outros tempos que Marker d o sentido da leitura do seu tempo, trazendo a inquietao da sua
significao.
A ideia do mosaico ou do quebra-cabea das lembranas, a ser montado, tambm est
presente nessa ideia da imagem que sempre precisa de um futuro. interessante notar como
essas questes esmiuadas por Chris Marker em La jete o acompanhariam. Esse mecanismo,
ou teorema, como aponta Dubois, como se fosse um postulado da sua investigao sobre a
memria, atravs da imagem que atravessa sua carreira entre aspectos de ruptura e
continuidade. O que temos nesse filme, nessa explorao da temtica da lembrana colada ao
sentido da imagem e representada atravs de uma mise en scne mnemnica, tambm
desemboca em Sans Soleil. Nele, novamente, teremos esta investigao dos acessos, das
representaes, das imagens possveis de se fazer do passado, onde novamente veremos
imagens que no largam, e a convivncia delas com outros registros.
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II
SANS SOLEIL E A MEMRIA RECRIADA
Toda memria subversiva porque diferente,todo projeto de futuro tambm.
Eduardo Galeano
Documentrio, filme-ensaio, nico documentrio de fico cientfica na histria do
cinema (NINEY, 2002, p.105), so muitas as definies para Sans Soleil, filme de Chris
Marker de 1982, no qual acompanhamos os registros de viagem de um homem pelo mundo,
suas impresses e uma reflexo contempornea sobre a memria e as experincias de luta da
segunda metade do sculo XX. O que temos um filme voltado para essas imagens de viagem
que se lana sobre questes do presente, mas em um constante retorno s imagens da dcada
de 1960, aos ecos e assombros das experincias de luta do perodo para as dcadas seguintes.
Le fond de l`air est rouge , filme de Chris Marker de 1977, j demonstrava esse peso do
tempo, quando o diretor se voltou s imagens dos movimentos sociais da dcada de 19602
dando-lhe o sentido da leitura da dcada seguinte, com seu mtodo de ressignificao das
imagens, atribuindo-lhe novos sentidos.
Na poca do lanamento, boa parte da crtica interpretou Sans Soleil como parte de
um projeto de maturao desse desejo que j aparecia em filmes como o de 1977, ressaltando
esse carter de balano na obra que passa por essa relao do diretor com os grandes temas da
sua gerao, como a Segunda Guerra Mundial e os processos de descolonizao africanos, na
impossibilidade de abandonar essas questes, mas em um momento de reflexo sobre o modo
de abordagem delas.
Yann Lardeau, em seu texto sobre Sans Soleil para Cahiers du Cinema, em 1983,
demonstra essa tentativa de entender de que modo esta obra informada historicamente, e de
como esse trabalho revela uma reflexo ps-60, feita pelo diretor. Lardeau tem uma leitura do
2 A obra de Chris Marker revela a participao ativa e constante do diretor no registro de imagens dosmovimentos sociais da dcada de 1960. No s Sans Soleil, mas muitos de seus outros filme, como Onvous parles du Brsil: Carlos Marighella ou Le fond de l'air est rouge demonstram o tamanho e aimportncia do acervo construdo pelo diretor que