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A memória também é um campo de batalha: Ecos da Revolução Russa no currículo de história na Bélgica francófona Sébastien Antoine 1 Resumo: Enraizado numa pesquisa de doutorado em sociologia, este trabalho tem como enfoque analisar criticamente a conjunção entre a onda de reformas curriculares da década de noventa, inspiradas na pedagogia das competências, e a virulenta ofensiva historiográfica antimarxista vivida no mundo francófono no contexto pós-queda do muro de Berlim. Focalizar-se-á então na abordagem do principal alvo desta ofensiva a Revolução Russa e os seus desdobramentos desde o material didático e das diretrizes curriculares de história aplicadas no ensino secundário da Bélgica francófona à partir da década de 2000. Nesse marco, enfatiza-se a crise do comitê cientifico do único livro didático de historia existente, cujos membros rejeitaram a interpretação da história contemporânea por ele apresentado. Algo que revelou a influência latente da revista “L’Histoire” – grande apoiadora dos trabalhos de François Furet e Stéphane Courtois, e fervente oponente à tradução francesa da “Era dos Extremos” de Eric Hobsbawm – bem como a utilização sistemática do conceito camaleão de totalitarismo para equiparar comunismo e fascismo como inimigos gêmeos da democracia. Com Walter Benjamin, Daniel Bensaïd e Michael Löwy, proponhar-se-à uma avaliação do impacto político deste livro didático, demonstramos como tais orientações estão contribuindo ao cerrar de horizontes históricos e políticos dos discentes, fechando as possibilidades políticas do passado e, portanto, do futuro. Palavras-chave: Currículo de historia; Livro didático; Revolução Russa 1 Doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Université catholique de Louvain (UCL Louvain-la- Neuve Bélgica) [email protected]

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A memória também é um campo de batalha:

Ecos da Revolução Russa no currículo de história na Bélgica francófona

Sébastien Antoine1

Resumo: Enraizado numa pesquisa de doutorado em sociologia, este trabalho tem como

enfoque analisar criticamente a conjunção entre a onda de reformas curriculares da

década de noventa, inspiradas na pedagogia das competências, e a virulenta ofensiva

historiográfica antimarxista vivida no mundo francófono no contexto pós-queda do

muro de Berlim.

Focalizar-se-á então na abordagem do principal alvo desta ofensiva – a

Revolução Russa e os seus desdobramentos – desde o material didático e das diretrizes

curriculares de história aplicadas no ensino secundário da Bélgica francófona à partir da

década de 2000. Nesse marco, enfatiza-se a crise do comitê cientifico do único livro

didático de historia existente, cujos membros rejeitaram a interpretação da história

contemporânea por ele apresentado. Algo que revelou a influência latente da revista

“L’Histoire” – grande apoiadora dos trabalhos de François Furet e Stéphane Courtois, e

fervente oponente à tradução francesa da “Era dos Extremos” de Eric Hobsbawm – bem

como a utilização sistemática do conceito camaleão de totalitarismo para equiparar

comunismo e fascismo como inimigos gêmeos da democracia.

Com Walter Benjamin, Daniel Bensaïd e Michael Löwy, proponhar-se-à uma

avaliação do impacto político deste livro didático, demonstramos como tais orientações

estão contribuindo ao cerrar de horizontes históricos e políticos dos discentes, fechando

as possibilidades políticas do passado e, portanto, do futuro.

Palavras-chave: Currículo de historia; Livro didático; Revolução Russa

1 Doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Université catholique de Louvain (UCL – Louvain-la-

Neuve – Bélgica) – [email protected]

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La mémoire aussi est un champ de bataille :

Échos de la Révolution russe dans le programme d’histoire de Belgique francophone

Sébastien ANTOINE2

Résumé : Plongeant ses racines dans une recherche de doctorat en sociologie

récemment terminée, cette communication entend proposer une analyse critique de la

conjonction entre la vague de reformes de programmes scolaires des années nonante,

inspirée par la pédagogie des compétences, d’une part, et la virulente offensive

historiographique antimarxiste vécue dans le monde francophone dans le contexte post-

chute du mur, d’autre part.

Le présent travail se focalisera ainsi sur le traitement de la principale cible de

cette offensive – la Révolution russe et ses développements – par le matériel scolaire et

les orientations du programme en vigueur dans l’enseignement secondaire de Belgique

francophone à partir des années 2000. C’est dans ce cadre que sera mise en évidence la

crise du comité scientifique de l’unique manuel d’histoire existant, dont les membres

finirent par rejeter l’interprétation de l’histoire contemporaine qui y était déployée,

soulignant l’influence latente de la revue L’Histoire – soutien enthousiaste des travaux

de François Furet et Stéphane Courtois, et fervente opposante à la traduction française

de l’Âge des Extrêmes d’Eric Hobsbawm – ainsi que de l’utilisation systématique du

concept caméléon de totalitarisme afin d’assimiler communisme et fascisme comme

ennemis jumeaux de la démocratie.

Avec Walter Benjamin, Daniel Bensaïd et Michael Löwy, sera enfin proposée

une évaluation de l’impact politique des orientations défendues par ce manuel,

soulignant en quoi ces dernières contribuent à limiter l’horizon historique et politique

des élèves, réduisant d’autant les possibilités politiques du passé, et dès lors également,

du futur.

Mots-clefs : Programme d’histoire ; Manuel scolaire ; Révolution russe

2 Docteur en Sciences Politiques et Sociales – Université catholique de Louvain (UCL – Louvain-la-

Neuve – Belgique) – [email protected]

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A reforma do currículo de história na Bélgica francófona3

Na conjunção entre o projeto de educação para a cidadania democrática

defendida pela UNESCO e o Conselho da Europa, de um lado, e a ascensão da

pedagogia das competências como referencia pedagógica dominante, do outro, a década

de noventa foi marcada pela inicio de uma profunda reforma dos currículos do ensino

público na Bélgica francófona4. O “Décret Missions” de 1997 – resposta política à

derrota da ultima greve geral da educação em 1996 – se apresenta, portanto, como o

momento em que a aquisição de competências e de uma concepção conformista da

cidadania foram proclamados como os principais objetivos políticos – ou seja, as

“missões” – da educação pública.

Todavia, “contrariamente as outras disciplinas [de ciências humanas], a maneira

que as competências foram enunciadas na área de história foi mais profunda, mais

precisa, mais radical”5, seguindo as palavras do principal organizador, e único

acadêmico participante, da reforma do currículo de história: o professor Jean-Louis

Jadoulle, doutor em história da Université catholique de Louvain (UCL) e professor de

didática da história na Université de Liège (ULg).

Sendo assim, analisar criticamente a reforma do currículo desta disciplina,

dotada de uma carga política tremenda, apresenta-se como uma oportunidade para

avaliar o impacto da ofensiva política pós-caída do muro proclamando o triunfo da

democracia liberal e a fim da história – como também da sua expressão no marco da

historiografia francófona – na forma de uma proposta pedagógica concreta.

Competências e conteúdos

No marco da pedagogia por competencias, os conteúdos escolares, os conceitos

científicos e as diversas acentuações ideológicas que eles podem receber, são de certa

forma secundarizados na prática concreta dos docentes, substituídos pela atenção

constante que os professores precisam ter pela realização de exercícios de competências,

3 As traduções em português dos textos referenciados em francês ou em inglês são minhas. 4 Desde a “communautarisation” da educação pública de 1989, no marco de transformação do Estado

belga em um Estado federal composto de “comunidades” – flamenga ; francófona ou francês ;

germanofona ou alemão – e de “regiões” – Flandres, Valônia e Região de Bruxelas Capital – a

Communauté française de Belgique é inteiramente responsável pela organização do ensino público de

língua francesa na Valônia e em Bruxelas. 5 Entrevista realizada em novembro de 2012 com o professor Jean-Louis Jadoulle na ULg.

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afim responder as obrigações do currículo. Contudo, o sociólogo suíço Philippe

Perrenoud – principal defensor desta orientação pedagógica no mundo francófono

como, para surpresa dele, no Brasil – vai se rebelar contra a crítica – freqüentemente

dirigida para a pedagogia por competência – seguindo a qual os saberes ficam

desvalorizados no marco desta abordagem pedagógico, abrindo contraditoriamente

perspectivas de pesquisa particularmente fértil para a análise critica:

Precisa descartar a falsa ideia que, para desenvolver competencias,

precisaria renuciar aos conhecimentos. Estes, no sentido classico da palavra,

são representações organizada da realidade, ou da ação sobre a realidade.

Como tal, eles constituam recursos cognitivos muitas vezes essencias na

constituição de uma competencia.6

Mesmo secundarizados, os saberes ocupam uma posição absolutamente central

de matéria prima para a aquisição das competências. Considerando a maneira que esta

linha pedagógica contribuía, de fato, a diversão da atenção dos docentes para as

competências mais que para os conteúdos, é também a questão do caráter político destes

conteúdos que fica relegado ao segundo plano. Portanto, mesmo se a pedagogia por

competências se apresenta como forma pedagógica neutra, sua polarização interna abre,

na realidade, sobre a possibilidade de transmitir mais facilmente conteúdos escolares – e

então acentuações ideológicas – disfarçados como simples “ferramentas” para o

desenvolvimento de competências. Enquanto pareciam ter saídos pela porta de frente, os

conceitos escolares, como também o seu profundo enraizamento político, voltam assim

sub-repticiamente pela janela.

Tal questão revela uma contradição inerente a pedagogia por competência,

consistindo nos conhecimentos que vão ser mobilizados como recursos cognitivos

durante os exercícios de competências. De fato, mesmo se o professor Jadoulle vai

afirmar que “não teve, no momento de reforma, uma real reflexão sobre os conteúdos

que os cursos de história têm de ensinar”7, ainda assim reconhece que esta reforma foi

um momento decisivo da integração, no coração do currículo, de uma lista de conceitos

que os professores de história têm de transmitir aos alunos da escola pública:

6 Philippe PERRENOUD. Des savoirs aux compétences : de quoi parle-t-on en parlant de compétences ?

Pédagogie collégiale. vol. 9, n° 1, 1995 : p. 21. 7 Entrevista com Jean-Louis Jadoulle.

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Jean-Louis Jadoulle – No final, o que emergiu foi a idéia que o que o ensino da

história poderia legar de mais durável seria um conjunto de conceitos. E então

nos elegemos alguns conceitos que poderiam ser apreendidos através do estudo

do passado, mas que poderiam também ser ferramentas de compreensão do

presente. Então é assim que chegamos a algo de bastante decisivo.

Assim, mesmo se os quatros competências inscritas na cabeça do currículo

aprovado pela Communauté française de Belgique – “fazer perguntas históricas” ;

“criticar” ; “sintetizar” ; “comunicar” – ocupam o centro do palco e constituam,

portanto, a principal preocupação dos professores na sua pratica diária, os conceitos

constituam, porém, também uma peça central do novo currículo de história. Portanto,

nenhuma definição destes conceitos fica explicitada no currículo de história, adotando

de certa forma uma posição profundamente empirista da disciplina:

A abordagem da história é, antes de tudo, um processo de pesquisa e de

critica da informação. [...] Os fenômenos que o historiador descobre estão em

primeiro lugar apreendidos em sua singularidade. Contrariamente as ciências

exatas ou naturais, e mesmo a varias ciências humanas, a história não procede

por teorias. Ciência do único, do sempre novo, do nunca reiterado, a pesquisa

histórica desconfia das teorias previas e tem grande cuidado de não articular os

seus resultados na forma de modelos. E se às vezes ele usa alguns deles, a

primeira tarefa do historiador será de demonstrar os seus limites.8

A linha epistemológica defendida por Jean-Louis Jadoulle, através do novo

currículo, considera desta forma a teoria de história como um usual suspect de que

precisa desconfiar a priori. Neste espírito, não é questão de perceber a singularidade de

um evento histórico entendendo a maneira seguindo a qual este foi moldado por grandes

dinâmicas políticas, econômicas ou sociais – do que só uma teoria prévia poderia ser

capaz. Tampouco possui como objetivo confrontar a teoria aos casos novos para

contribuir à sua ampliação, mas sim fazer uso da pesquisa para reduzir o seu alcance,

para limitar qualquer pretensão ao desenvolvimento de uma teoria da história digna

desse nome. Porém, precisa o currículo:

8 COMMUNAUTÉ FRANÇAISE DE BELGIQUE. Annexe II - Histoire : Compétences terminales et savoirs

requis - Humanités générales et technologiques. In: Décret portant confirmation des compétences

terminales et savoirs requis en langues modernes, histoire et géographie à l’issue de la section de

transition. Bruxelles: Centre de documentation administrative, 1999 : p. 11.

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A descoberta destes fenômenos históricos, dos quais o historiador tem

sempre primeiramente de demonstrar o caráter inédito, supõe a utilização de

certos conceitos sem os quais não poderia haver ordem e, portanto,

entendimento. Emprestados as outras ciências humanas, muitos deles

conservam uma pertinência para um melhor entendimento do mundo

contemporâneo. Eles são construídos e validados na base da observação

concretas de fatos históricos, como eles se dão a ver através das fontes do

passado. O trabalho do historiador consista então a dar-lhes uma profundidade

histórica, uma historicidade, tornando o aluno mais capaz de aplicar-lhes em

contextos sempre diferentes, e aguça a sua capacidade de usar-lhes em

situações sempre novas.9

Desta forma, os conceitos do currículo de história – colonização, imperialismo,

capitalismo, coletivismo, liberalismo, socialismo, comunismo, autoritarismo,

humanismo, crise ou ideologia10 – são abordados não do ponto de vista das suas varias

acentuações por parte de programas de pesquisa distintos, mas sim como produtos

unívocos e singulares de uma indução analítica sempre renovada. Esta posição

epistemológica extremamente forte impede a apreensão da lógica genética de

elaboração dos conceitos, mascarando o caráter político e conflituoso das suas

definições. De tal modo, encontramos no cerne do novo currículo as principais

características de uma concepção positivista de pesquisa histórica, que foi precisamente

criticada por Michael Burawoy tendo como alvo o trabalho da cientista política Theda

Skocpol no que tange aos processos revolucionários. Seguindo o sociólogo de Berkeley,

“em pretendendo que a teoria emerge dos fatos, a indução obscurece as outras fontes da

teoria”11, ou seja as próprias posições teóricas do historiador. Portanto, são essas

matrizes de inspiração teórica concretas, influindo em profundidade a leitura da história

pela qual o currículo quer orientar o desenvolvimento dos alunos, que precisam ser

trazidas à luz. Mas como o próprio artesão da reforma curricular reconhece:

Jean-Louis Jadoulle – Os currículos enunciam conteúdos frios. Os conteúdos

curriculares estão arrefecidos: é a colonização, é a questão social... Os

enunciados do currículo são frios. Acho que o trabalho do professor é de

9 Ibid. : p. 11. 10 Cf. « 4. Outils conceptuels » in ibid. : pp. 14-15. 11 Michael BURAWOY. Two methods in search of science : Skocpol versus Trotsky. Theory and Society.

vol. 18, n° 6, 1989 : p. 779.

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aquecer-los. Isto é, de trazer problemáticas – em didática falamos de “questões

socialmente vivas” – de trazer problemáticas mais quentes, e acho que o livro

didático oferece muitos recursos para isso.

Quais são então os recursos particulares que o livro didático de história propõe

aos professores para realizar exercícios de competências? Quais acentuações ideológicas

destes conceitos, dos quais a definição é deixada indeterminada pelo currículo, este livro

vai fazer possíveis? Ou seja, que teoria da história vai transpirar da reconstrução da

história proposta da parte do material escolar elaborado no marco do novo currículo?

Um livro didático em posição de quase monopólio

Considerando a baixa massa critica da Communauté française de Belgique –

nomeadamente comparada com o tamanho do mercado francês ou brasileiro – apenas

um livro didático de história, derivado em duas edições seguindo o tipo de escolas,

conseguiu enraizar-se de forma duradoura: Construire l’Histoire, na rede das escolas

católicas12 ; e FuturHist, o seu equivalente na rede de ensino organizado direitamente

pelo Estado. Mas o elemento mais interessante é que estes dois livros escritos por

professores de escolas publicas belgas francófonas foram, na verdade, coordenados pela

mesma pessoa: o próprio Jean-Louis Jadoulle.

– Que foi o processo de elaboração dos livros didático? Como se fez que é

você que se colocou na cabeça deste processo? Como entender que ele é o

único livro [de história] existente na Bélgica francófona?

Jean-Louis Jadoulle – É o único, acho eu, essencialmente porque o mercado é

pequeno. Então quando uma editora consegue conquistar o mercado, é difícil

para uma editora menor de instalar-se. Acho também que é porque o ensino da

história não interesse muita gente nas universidades. Porque durante sete anos,

eu fui sozinho responsável de duas agrégations13 em duas universidades

diferentes [a UCL e a ULg].

12 Na Bélgica, desde o Pacto escolar de 1959, todas as escolas católicas estão inteiramente

subvencionadas pelo Estado. Apesar da anomalia do desenvolvimento do Estado integral belga que isso

revela, a rede católica faz então de certo modo integralmente parte do sistema de ensino público e

gratuito. Na Bélgica francófona, 60% dos alunos de ensino secundário – nível de educação de 6 graus

destinado aos adolescentes de 12 a 18 anos – estudam hoje em escolas da rede católica. 13 Formação pedagógica post-master de um ano dando acesso à docência no “enseignement secondaire

supérieur” – nível superior do ensino secundário equivalente ao ensino médio no Brasil.

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Acompanhando a reforma do currículo de historia do inicio até o fim – da

gênese das competências e dos conceitos até o seu desembarque concreto nas salas de

aulas na forma do livro didático – o professor Jadoulle assumiu, portanto, um

verdadeiro papel de intelectual no sentido gramsciano, de organizador político e

ideológico orientando este processo de elaboração de forma bastante livre.

Jean-Louis Jadoulle – [Uma editora] queria pôr um comitê de leitura acima da

equipe de direção e dos autores. Ela queria ter mais controle sobre o processo.

– Eram leitores acadêmicos, ou… ?

Jean-Louis Jadoulle – Inspetores [do ministério da educação], conselheiros

pedagógicos [das redes de ensino], isso... Então escolhi a liberdade [com outra

editora]. É verdade que a editora fez uma confiança gigante... foi até uma

aposta ! [...] A editora tomou um risco, que se revelou benéfico. Então é verdade

que consegui dirigir esta coleção [de livros didáticos] de forma muito, muito

livre e autônoma, com nenhumas restrições da parte da editora.

E, de fato, a aposta da editora foi um acerto. Apesar do surgimento tímido de um

livro didático concorrente em 201314, FuturHist e Construire l’Histoire – apresentados

como “os únicos livros didático 100% em conformidade com as exigências do currículo

de história”15 – desfrutam até hoje, mais de dez anos após as suas publicações, de uma

posição quase monopolística nas escolas da Bélgica francófona, provavelmente pelo

prestigio decorrente da sua profunda integração da lógica do novo currículo de história.

Constituição e crise do comitê cientifico de Construire l’Histoire

Porém, a liberdade do professor Jadoulle na elaboração desta coleção de livros

didáticos – dividida em 4 volumes focados sobre épocas distintas – não foi absoluta:

junto a equipe de redação, comitês científicos para cada volume da coleção foram

criados, juntando pesquisadores reconhecidos por suas competências e conhecimentos

relativos a cada período histórico:

14 Bruno BOULANGER, Marcella COLLE, Cécile GRÉTRY, e al. Histoire - Jalons pour mieux comprendre

3e/6e. Louvain-la-Neuve: De Boeck, 2013. 15 Éditions ERASME. Construire l’Histoire. In: Catalogue Secondaire & Supérieur. Namur: Éditions

Erasme, 2017 : p. 36.

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– Como foi feita a seleção dos documentos apresentados no livro?

Jean-Louis Jadoulle – Isso era o trabalho dos autores, mas também da

intervenção dos conselheiros científicos. Então tinham dois conselheiros... Dois

ou três seguindo o livro... Que eram lá para garantir que do ponto de vista

historiográfico, a gente não estava esquecendo novas problemáticas, novos

campos de pesquisa. Tinha uma reflexão didática sobre a acessibilidade dos

documentos. Tinha uma reflexão didática sobre a conexão possível entre estes

documentos e as exigências do currículo, entre estes documentos e o presente.

Então tinha um olhar cientifico da parte destes conselheiros. [...] Às vezes eles

resistiam um pouco... Ou a gente não conseguia entender bem [o que eles

queriam]... Mas houve, sim, um dialogo. Não teve problemas não...

O professor Jadoulle apresenta, portanto, uma versão bastante pacífica e

tranqüila das relações com os comitês científicos de cada volume. No entanto, uma

grave crise aconteceu no coração do comitê cientifico do volume de Construire

l’Histoire do ultimo ano do secundário, dedicado à história do curto século XX...

– Sobre o volume do ultimo ano…

Jean-Louis Jadoulle – [Parecendo desconfortável] Sim…

– Se me lembro bem, eu tinha visto que alguns professores [do comitê

cientifico] eram presentes na primeira versão, mas não nas versões

subseqüentes...

Jean-Louis Jadoulle – Isso! É isso que ia dizer para você! Então, com o volume

4, ao contrario, teve um grande problema com José Gotovitch e Michel

Dumoulin.

No mundo acadêmico da Bélgica francófona, Michel Dumoulin e José Gotovitch

são duas figuras intelectuais e políticas significativas da pesquisa em história

contemporânea. O primeiro, professor de história na Université catholique de Louvain

(UCL), é conhecido por seus numerosos trabalhos em história das relações

internacionais, e particularmente sobre a construção européia16. O segundo, professor da

Université libre de Bruxelles (ULB), é membro fundador do Centre d’Histoire et de

16 Cf. Michel DUMOULIN e Anne-Marie DUTRIEUE. La Ligue européenne de coopération économique

(1946-1981) : un groupe d’étude et de pression dans la construction européenne. Berne: Peter Lang,

1993 ; Michel DUMOULIN. Spaak. Bruxelles: Racine, 1999.

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Sociologie des Gauches (CHSG) e é conhecido por seus trabalhos sobre a Segunda

Guerra Mundial e a história do comunismo na Bélgica17. A integração destes dois

pesquisadores de universidades historicamente concorrentes, que apesar de perspectivas

políticas distintas compartilhavam um mesmo compromisso de rigor cientifico e alguma

simpatia interpessoal, fazia então muito sentido na constituição do comitê cientifico do

volume tratando um período tão politicamente contrastado e conflituoso como foi o

século passado.

Porém, no verão de 2008, na véspera da publicação do último volume de

Construire l’Histoire, os professores Gotovitch e Dumoulin decidiram, sem concertar-

se, de renunciar as suas funções de conselheiros científicos, deixando este volume

dedicado ao século XX órfão de dois dos seus maiores intérpretes belgas francófonos.

Jean-Louis Jadoulle – Então o livro era na impressora, no mês de agosto, e

recebi uma carta de José Gotovitch para dizer-me... Que ele não queria mais

que o nome dele aparece na capa [do livro]. Com dois motivos principais.

Primeiro: a leitura do século XX que se expressa através do livro. Obviamente...

Eles, os conselheiros científicos, recebiam os dossiês de forma irregular.

[Então] era talvez difícil ter uma idéia geral... Portanto, para ele, a leitura da

história do século XX não era conforma a seus ideais [insistindo] políticos.

[Falando mais baixo] Porque ele é comunista – não sei se você sabia – José

Gotovitch. E então... Me lembro muito bem da frase dele: “seria renunciar a

meus ideais que de colocar o meu nome na capa”. E tinha também um segundo

argumento que tinha mais a ver com... curiosamente... o lado precisamente mais

desossado do livro, a ausência de narrativa, a falta de cronologia. [...] E depois,

mesmo coisa, alguns dias depois, Michel Dumoulin me mandou uma carta muito

mais longa onde ele explica que ele quer também tirar o seu nome da capa. [...]

Tem uma parte das razões que tinha a ver com a didática, com o fato que o livro

não tem uma narrativa cronológica. E tem também algo relacionado com a

construção européia. [...] E tem muitos outros argumentos que tenho dificuldade

em entender. Ele é muito nebuloso Michel Dumoulin, eu acho... Enfim, ele

também saiu da aventura neste momento, infelizmente...

17 Cf. José GOTOVITCH e Jules GÉRARD-LIBOIS. L’an 40 : La Belgique occupée. Bruxelles: CRISP,

1971 ; José GOTOVITCH. Du rouge au tricolore : les communistes belges de 1939 à 1944 : un aspect de

l’histoire de la résistance en Belgique. Bruxelles: Labor, 1992.

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Na perspectiva de Jean-Louis Jadoulle, a crise fez irrupção como um trovão em

céu sereno: os motivos dos ex conselheiros científicos ficando de certa forma

incompressíveis para ele. Portanto, dando atenção as palavras dos protagonistas, é

possível entender as raízes desta convergência entre dois historiadores com posições

políticas tão distintas, e reconstruir o sentido de oposição deles à leitura da história

implicitamente defendida por parte do livro didático e dos seus autores.

José Gotovitch – [Folheando as paginas do volume 4] Então... O que

aconteceu? No meu caso... Eu só posso falar de mim, né... Primeiro... [Longo

silencio de reflexão] O seu lado positivo é também o seu lado negativo. [...] Tem

aqui um esforço, que eu reconheço como sendo de uma amplitude

extraordinária. Com uma acumulação de documentos, de sujeitos, com uma

vontade de oferecer um material para reflexão com um luxo fabuloso: com

fotografias, com fotografias em cor, com desenhos, com cartazes... É realmente

excepcional do ponto de vista da documentação. Mas com uma ausência,

seguindo eu, do que da à história o seu valor, isto é, de compreender as causas e

os efeitos. Ou seja, uma história que explica o tempo presente, num processo

histórico, que não é só uma acumulação de objetos, de sujeitos. E muito

rapidamente, eu pessoalmente, comecei a achar que era fornecido aqui um

material para qual tinha de ser solidamente equipado para não se perder. E que

vão fazer os alunos com esta riqueza? É um pouco o aluno frente à internet, que

pode ir em todos os sentidos. Se você não vai construir um quadro para ele, tudo

isso vai perder seu alvo. Ou seja, formar pessoas a compreensão do presente. E

aqui o que sinto, talvez com cada assunto discutido, é que [os autores] fizeram

um grande esforço para oferecer o material mais diversificado possível, mas

recusando-se... à dar um sentido à história.

Confrontado a um livro didático misturando uma vontade quase enciclopédica

com uma forma de ecletismo radical, negando-se a dar explicitamente um sentido à

história – tornando muito mais complexa a tarefa de reconstrução do filo de um

desenvolvimento histórico abordado de forma extremamente fragmentada, como se a

simples justaposição de documentos poderia, por si, contribuir a fazer surgir um sentido

direitamente perceptível, sem qualquer quadro teórico – José Gotovitch vai, no entanto,

conseguir apontar alguns índices da orientação política imperceptivelmente impressa a

leitura da história contemporânea.

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José Gotovitch – [Se lembrando de algo] Tem também algo que nos marcou

bastante... Enfim, que me marcou... É que mesmo se teve um esforço bastante

importante de documentação, a visão da história, contemporânea, era modelado

na leitura da revista L’Histoire. Né. E esta revista L’Histoire, é a história

convencional, das idéias dominantes. São mesmo as idéias dominantes...

Enfim... [Stéphane] Courtois é um dos mentores deles. Para tudo que é o

comunismo, é Courtois que é o mentor. Para... Enfim, é realmente a revista do

salão parisiense, da direita... Mas não da direita absoluta, mas mesmo assim...

Vamos dizer, do vento dominante, do vento convencional dominante, que em

geral é bastante reacionário. Então isso era o mentor né. A quantidade de

citações e de textos chegando de L’Histoire era enorme. Realmente, era

sistemático. Bom, é verdade que L’Histoire forneceu documentos e textos

interessantes, mas bom... Era realmente nesta ótica, que era vista com

dominante. E bom, eu não compartilho [esta visão]. Então isso também me

irritou. Porque contribuía só a reforçar esta visão um pouco tradicional, mesmo

totalmente tradicional, convencional [da história]. Convencional, mesmo.

– E que definição você daria desta concepção da história?

José Gotovitch – [Dando risadas] Vamos dizer... Como poderíamos dizer isso?

Uma definição... Ela é claro em relação com tudo que é o movimento

revolucionário e o comunismo: é o inferno. No fundo... Como vamos dizer?

Para mim, é quase epidérmico. A convenção... As verdades que não estão mais

colocadas em questão. Sobre a morte da classe operária. Vamos dizer, o fato

que os momentos revolucionários estão ultrapassados. Enfim... Que todos os

grandes movimentos revolucionários foram fracassos, que são fracassos. É a

teoria do Goulag universal, né. É um tipo de visão... Como dizer? Conformista,

é isso. É um conformismo da moda, colocando muitas poucas coisas em questão.

Aceitando, finalmente, as correlações de força tal como elas evoluíram e

considerando-as irremediáveis e incontornáveis. E então nada que, no fundo,

poderia colocar um pouco de sal... de contestação ou de provocação para a

interrogação da história, né. No fundo é: explica-se tudo, dá-se tudo. Mas o

despir das coisas...

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– Uma batalha pela interpretação...

José Gotovitch – Isso mesmo ! [...] Era parte de uma concepção muito

tradicional de história. Ou seja, as coisas obvias... Do tipo: “é evidente”... E

isso foi realmente um elemento importante [para mim], não vou esconder isso.

“É evidente, é uma evidencia, que todos os regimes totalitários etsão idênticos,

que não tem diferenças, e que efetivamente, China, União soviética, Hitler,

Mussolini, todo isso está no mesmo nível... os Estados totalitários”. E com esta

noção de totalitário, eu nunca concordei. Não teve possibilidade, vamos dizer,

de modula-la. Isso era uma evidencia. E parecia tão evidente para todos estes

jovens – enfim para todos estes personagens, eles não eram tão jovens – que eu

não tinha... Que eu não conseguia virar a maré. Então eu disse a mim esmo, sem

que houvesse atritos, e achando que essas pessoas se comportaram de modo

muito respeitável [comigo], de maneiro assim muito correto em relação a mim,

eu disse: “eu não posso dar caução para isso”. “Eu não posso assinar uma

coisa onde se afirma que...” – mesmo se isso vai fazer gritar as pessoas –

“Stalin, Lênin, Hitler, Mussolini, são a mesma coisa”. Isso, eu não posso. Para

mim, achei ultrajante defender isso, dessa maneira assim, tão burra. Então

retirei o meu nome. Mas era tarde demais para retirá-lo deste [mostrando o

‘livro do aluno’18], então retiraram o meu nome deste [apontando para o ‘guia

do professor’19], porque ele foi publicado depois. É isso.

O caráter reflexivo das entrevistas realizadas com os principais protagonistas da

crise do comitê cientifico de Construire l’Histoire permite entender que longe da

neutralidade teórica proclamada por parte do novo currículo de história, a lógica

indutiva profundamente enraizada na elaboração deste livro didático acabou – da

mesma forma que Theda Skocpol na sua analise comparada dos processos

revolucionários – “com teorias preexistentes e não explicadas”20 exprimidas nas

evidencias inquestionáveis enfrentadas por José Gotovitch.

18 Claude ALLARD, Coralie SNYERS, Isabelle VAN DER BORGHT, e al. Tome 4, Un monde en mutation

(de 1919 à nos jours). In: Construire l’Histoire. Editado por Jean-Louis JADOULLE e Jean GEORGES.

Namur: Didier Hatier, 2008 19 Claude ALLARD, Jacqueline HENDRICKX, Véronique MAUROY, e al. Tome 4, Un monde en mutation

(de 1919 à nos jours) - Guide de l’enseignant. In: Construire l’Histoire. Editado por Jean-Louis

JADOULLE e Jean GEORGES. Namur: Didier Hatier, 2008. 20 Michael BURAWOY. Two methods in search of science : Skocpol versus Trotsky. op. cit. : p. 779.

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Enquanto as razões da saída do comitê cientifico por parte de José Gotovitch

eram essencialmente motivadas por sua rejeição a comparação simplista entre nazi-

fascismo e stalinismo atravessando Construire l’Histoire e por sua consternação frente a

sua equiparação usando um conceito de totalitarismo vulgarmente definido, o professor

Michel Dumoulin decidiu renunciar da participação no comitê criticando a concepção

muito parcial da história baseada na utilização restrita de documentos, como também do

trágico fechamento das fontes históricas usadas no limite do mundo francófono.

No entanto, estas tensões que eclodiram durante o processo de elaboração do

livro didático desfrutando de uma posição quase-monopolista na Bélgica francófona fica

até hoje invisível para os alunos e os seus docentes. Nem no prefacio, tampouco nos

agradecimentos do livro evocam esta crise que, até agora, não tinha sido objeto de

nenhuma publicação cientifica. Só a misteriosa desaparição dos nomes de José

Gotovitch e Michel Dumoulin entre a primeira edição do ‘livro do aluno’ e a

subseqüente publicação do ‘guia do professor’ era suscetível de fornecer um índice ao

leitor suficientemente atentivo para comparar as diferentes edições do volume 4 de

Construire l’Histoire disponíveis no deposito legal da Bibliothèque Royale de Belgique.

A procura das fontes de inspiração de Construire l’Histoire

As criticas de Construire l’Histoire da parte dos antigos membros do seu comitê

cientifico constituíam-se como índices do fato que “os antolhos não vem das teorias pré-

existentes, mas da incapacidade de reconhecer a necessidade delas”21. Precisa então

descobrir as bases teóricas com as quais os autores reconstruíram a história do século

XX ; ou seja, evidenciar a concepção da sociedade, do seu passado e do seu provável

futuro através da qual estes professores belgas francófonos da metade da década de

2000 queriam orientar o desenvolvimento da consciência política das novas gerações.

No entanto, como conseguir alcançar concretamente a linha teórica e política

atravessando um livro didático que se limita em geral – nas seções “Herança” e

“Documentos” – a apresentar apenas documentos textuais ou iconográficos relativos a

eventos históricos diversos, e que mesmo quando tenta propor algumas sínteses

temáticas – na seção “Referências – Foco sobre...” – se recusa teimosamente a revelar

aos estudantes as fontes de inspiração, em tal ou tal historiador, da leitura da história

21 Ibid. : p. 794.

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apresentados para eles? Diante deste impasse, precisa então dirgir-se mais sutilmente,

atrás a cena, para a linha interpretativa dos documentos proposta aos professores, o

‘guia do professor’ se revelando muito mais falador sobre os seus fundamentos teóricos

do que o ‘livro do aluno’.

Seguindo um dispositivo característico dos dossiês temáticos da revista

L’Histoire, cada capitulo do ‘guia do professor’ tem como conclusão uma seção

bibliográfica intitulado “para mais informações”, oferecendo as referencias que irão

auxiliar os professores a dar sentido aos diferentes documentos apresentados. Na leitura

dos diferentes dossiês que contribuíram tanto ao choque de José Gotovitch – fora a

origem quase exclusivamente francófona dos documentos ali apresentados, como já foi

destacado por parte de Michel Dumoulin – o que fica obvio é presença quase

sistemática de referencias para dossiês temáticos de L’Histoire e para autores sendo

próximos colaboradores desta revista. Em seguida, considerando que L’Histoire é a

única revista a receber um tratamento tão favorável da parte do ‘guia do professor’, a

hipótese do professor Gotovitch seguindo a qual esta revista foi, na verdade, a principal

fonte de documentação do comitê de redação do volume de história contemporânea de

Construire l’Histoire começa a ganhar um peso significativo.

Daí em diante, analisando as referencias apresentadas nas seções “para mais

informações” dos dossiês dedicados tanto à revolução bolchevique que à

contrarrevolução stalinista, destacara-se ao lado de uma historiografia mais tradicional –

de Marc Ferro até Hélène Carrère d’Encausse – a forte presença das grandes figuras de

uma grande ofensiva política que saturou literalmente o horizonte da história

contemporânea no mundo francófono durante a década de noventa: Stéphane Courtois,

ex maoísta que coordenou a publicação do Livro Negro do Comunismo22 ; Nicolas

Werth, que mesmo se ele foi o autor do Livro Negro com as contribuições mais ricas do

ponto de vista historiográfico acabou criticando abertamente o prefacio de Courtois ; e,

como em filigrano, o famoso historiador da Revolução Francesa23 e arrependido

militante do Parti Communiste Français, “François Furet (1927-1997), [que] no auge da

sua glória [tinha] sido cotado para escrever o prefacio [do Livro Negro]”24.

22 Stéphane COURTOIS. O Livro Negro do Comunismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 23 Cf. François FURET. Penser la Révolution française. Paris: Gallimard, 1978. 24 Nicolas WEILL. Rétrocontroverse : 1997, communisme et nazisme, histoire et mémoire. Le Monde, n°

15 août, 2007.

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Queda do muro e restauração cultural francesa

É assim num mundo francófono duramente atingido pelo “maelstrom do

triunfalismo antimarxista que marcou a década de noventa”25 que esta enraizada a linha

interpretativa proposta, por padrão, aos docentes das escolas públicas belgas. A década

seguindo a caída do muro de Berlim foi assim, no mundo francófono, o apogeu da

reação pós-maio 68, que tinha trazida Perry Anderson a dizer que enquanto “durante as

três décadas após a Libertação [da ocupação nazista], a França tinha vivido uma

supremacia cosmopolita no universo marxista, que lembrava de certa forma a sua

maneira a ascendência francesa sobre a época do iluminismo”26, as “conseqüências

drásticas [da] verdadeira debandada de tantos pensadores de esquerda desde 1976”27

tinham agora feitas de “Paris a capital da reação intelectual européia”28.

Portanto é neste verdadeiro clima de “restauração cultural”29 que precisa

procurar as raízes, não só da esmagadora predominância de alguns autores, mas

também, em contraste, da fraqueza da atenção dada aos autores que decidiram

entretanto não capitular diante dessa “poderosa onda anticomunista”30. O boicote da

tradução francesa da Era dos Extremes31 do Eric Hobsbawm por parte dos editores

parisienses durante boa parte a década de noventa constitua assim talvez uma das

maiores expressão desta “exceção política francesa” que Pierre Nora – chefe de coleção

para a prestigiosa editora Gallimard, próximo colaborador da revista L’Histoire e

membro fundador da Fondation Saint-Simon, famoso think tank liberal francês – tinha

tentado defender dizendo:

Tinha muitas razões para pensar – e Eric Hobsbawm é demais

familiarizado com a França para não entender isso – que o seu livro fazia a sua

aparição num ambiente intelectual e histórico pouco favorável. Por isso o pouco

25 Kristen GHODSEE. Tale of "Two Totalitarianisms": The Crisis of Capitalism and the Historical

Memory of Communism. History of the Present : A Journal of Critical History. vol. 4, n° 2, 2014 : p.

120. 26 Perry ANDERSON. In the Tracks of Historical Materialism. Chicago (IL): University of Chicago Press,

1983 : p. 32. 27 Ibid. : p. 32. 28 Ibid. : p. 32. 29 Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Jalons pour l’histoire d'un débat. In: Le totalitarisme. Le XXe siècle

en débat. Paris: Éditions du Seuil, 2001 : p. 85. 30 Ibid. : p. 85. 31 Eric HOBSBAWM. Era dos Extremos - O Breve Século XX : 1914/1991 São Paulo: Companhia das

Letras, 1996.

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de entusiasmo em apostar em suas chances. [Mas] porque este sucesso em

outros países e esta reticência aqui? Porque a França foi o país o mais

longamente e o mais profundamente stalinisado, a descompressão, ao mesmo

tempo, acentuou a hostilidade com tudo que, perto ou longe, poderia lembrar

esta era de filosovietismo ou de pro-comunismo do passado, incluindo o

marxismo o mais aberto.32

Enquanto ignora soberbamente a realidade de outros países onde a Era dos

Extremos já havia sido publicado com sucesso, apesar de uma influência comparável, ou

até mais profunda, dos velhos partidos comunistas que na França – dos eurocomunistas

italianos ou espanhóis, até os mais ferventes partidários gregos ou portugueses da

ortodoxia marxista-leninista – o que Pierre Nora estava fazendo de forma sutil aqui “ao

preço de um equivoco bizarro, quase absurdo” 33, era uma redução do trabalho de

Hobsbawm a uma “apologia da posição comunista ou, o que é ainda mais absurdo, a

uma polêmica pró soviética”34. Assim, continua Nora:

Esta ligação, mesmo distanciada, com a causa revolucionária, Eric

Hobsbawm cultivá-la certamente com um ponto de soberba, uma fidelidade de

orgulho, uma reação contra o espírito da época; mas na França, e neste

momento, isso não passa bem. É assim, não se pode fazer nada [contra isso].

Não é para um grande historiador que precisa lembrar o peso do passado.35

Mas, como evidenciado pelo sucesso estrondoso do livro – que acabou sendo

publicado em francês mais de seis anos depois da sua primeira edição em inglês pela

conjunção dos esforços do Monde Diplomatique e de uma pequena editora belga – a

questão não era na verdade que ele não bem aceito na França, mas o quanto desagradou

os quadros da inteligência parisiense. Ecoando de alguma forma os elogios da revista

L’Histoire para o Livro Negro do Comunismo – qualificado de “best-seller mundial”36

aprofundando as intuições que animavam “O Passado de uma Ilusão de François Furet,

que tinha comovido os intelectuais, confrontados com as contradições dos seus

compromissos passados e presentes”37 – Le Monde Diplomatique vai propor – usando

32 Pierre NORA. Traduire : nécessités et difficultés. Le Débat, n° 93, 1997 : p. 94. 33 Eric HOBSBAWM. Commentaires. Le Débat, n° 93, 1997 : p. 85. 34 Ibid. : pp. 85-86. 35 Pierre NORA. Traduire : nécessités et difficultés. op. cit. : p. 94. 36 Daniel BERMOND. Un best-seller mondial. L’Histoire, n° 247, 2000 : p. 44. 37 Ibid. : p. 44.

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do titulo provocador de “o livro que trás medo aos editores franceses”38 – um resumo

incisivo da posição de Pierre Nora:

Em outras palavras, a Era dos Extremos, que não se alinha ao trabalho

de François Furet [e] se põe contra as esquematizações que são consideradas

na França como história oficial [...], é demais sulfurosa.39

Deste modo, mesmo sob uma perspectiva critica, “é assim, não se pode fazer

nada”: Hobsbawm foi comunista, mas não expiou a sua culpa. Tal como Stéphane

Courtois e François Furet, ele tinha de fazer penitencia se quisesse receber o passe deste

setor crucial da pequena galáxia francófona: o mundo das editoras parisienses. Esta

postura quase inquisitorial – de certa forma comparável as trágicas autocríticas que

dizimou as fileiras dos partidos comunistas em plena stalinização, ou das organizações

maoístas durante a Revolução Cultural – encontrará, contudo, uma reposta ferina de um

dos representantes franceses da corrente de oposição de esquerda ao stalinismo que tentou

resistir ao eclipso do marxismo europeu das décadas de oitenta e noventa, Daniel Bensaïd:

Se Srs Furet ou Le Roy Ladurie, Sra Krigel ou o próprio Sr Courtois

nunca conseguiram superar o seu trabalho de luto, se eles arrastam como uma

cruz a sua má consciência em stalinistas retornados, se a expiação deles fica

perdida no ressentimento, isso é o negocio deles. Mas aqueles que permaneceram

comunistas sem nunca ter celebrado o pai dos povos ou celebrado o pequeno livro

vermelho do grande timoneiro, do que você quer, Sr Courtois, que eles se

arrependam? Eles se enganaram provavelmente às vezes. Mas vendo o mundo

como ele é, eles certamente não se enganaram de causa, nem de adversário.40

Leitura da Revolução Russa em Construire l’Histoire

A leitura de Revolução Russa e dos seus desdobramentos – eventos de disparo

do “breve século XX” seguindo Hobsbawm – por parte de Construire l’Histoire

constituiu-se como um objeto de pesquisa particularmente rico para avaliar as

conseqüências concretas desta ofensiva historiográfica liberal da década de noventa

38 LE MONDE DIPLOMATIQUE. Le livre qui fait peur aux éditeurs français. Le Monde diplomatique, n°

546, septembre 1999 : p. 29. 39 Ibid. : p. 29. 40 Daniel BENSAÏD. Communisme contre stalinisme : Une réponse au "livre noir du communisme".

Rouge, n° 1755, 1997 : p. 3.

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sobre o tipo de material didático proposto aos professores e alunos belgas francófonos.

Praticamente, o livro didático dedica dois dossiês exclusivamente para este tema: o

primeiro dedicado as duas Revoluções Russas41 – período de 1905 até 1924 – e o

segundo sobre o período stalinista42 – de 1924 a 1954. Apresentados como dois

momentos distintos, eles acabam sendo ligados só com algumas palavras da introdução

do segundo dossiê, afirmando que “tomando o poder em 1917, os bolcheviques

prentend[i]am transformar a Rússia e criar um Estado novo”43 e precisando num dossiê

de síntese seguinte que, na verdade, “Lenin, e mais ainda Stalin, instalaram um

totalitarismo de esquerda”44.

Assim, é toda a complexidade do processo e das lutas que marcaram o destino da

revolução que se tornam ausente da leitura da história apresentado aos alunos belgas.

Enquanto um livro como A História da Revolução Russa45 de Trotsky faz parte dos

livros essenciais recomendados por Michael Burawoy aos estudantes de primeiro ano de

ciências sociais em Berkeley, ele vai se revelar totalmente ausente do ‘livro do aluno’

como também do ‘guia do professor’ do único livro didático de história da Bélgica

francófona. E a mesma coisa é verdade para um livro como O ano I da Revolução

Russa46, mesmo o autor sendo um escritor francófono nascido em Bruxelas Vitor Serge.

Além disso, tal como François Furet no Passado de uma Ilusão, nem o ‘livro do

aluno’, nem o ‘guia do professor’ “no seu inventário literário da década de 30 [...] não

cita uma vez A Revolução Traída47 [de Trotsky] nem Os Perigos profissionais do

poder48 de Racovski, e isso mesmo se eram essenciais ao [tratamento deste] assunto”49.

Os alunos e os professores da Bélgica francófona, poucos familiarizados com a

produção cientifica marxista, e ainda menos com as contribuições da Oposição de

Esquerda para a critica da degeneração burocrática da Revolução Russa, estão, portanto,

41 Dossiê Documentos “De la Russie impériale à l’URSS (1905-1924)” e Referências “Les révolutions

russes” in Claude ALLARD e al. Construire l’Histoire (Tome 4). op. cit. : pp. 72-75 et 220-221. 42 Dossiê Documentos “L’URSS de Staline (1924-1953)” in ibid. : pp. 76-79. 43 Ibid. : p. 76. 44 Dossiê Referências “Diversité et séduction de l’autoritarisme” in ibid. : p. 224. 45 Leon TROTSKY. História da Revolução Russa. São Paulo: Sunderman, 2007. 46 Vitor SERGE. Ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007. 47 Leon TROTSKY. A Revolução Traída. São Paulo: Global Editora, 1980. 48 Khristian RACOVSKY. Les dangers professionnels du pouvoir : Une lettre sur les causes de la

dégénérescence du parti et de l'appareil d'État. Paris: Éditions du Parti communiste internationaliste,

1965 (1928). 49 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François : Un nouveau théologien, M. Furet. Rouge, n° 1624,

1994 : p. 4.

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desprovidos de qualquer analise da burocratização do aparelho de Estado soviético

também como do próprio partido bolchevique. Portanto, desprovidos de ferramentas

para entender a fantástica base de apoio que tal burocratização ofereceu para segurar a

vitória da corrente stalinista dentro do jovem estado soviético, tal como no Partido

Comunista de União Soviética (PCUS) e enfim na própria Terceira Internacional.

Mas ao recusar de tratar do surgimento do stalinismo como expressão da

degeneração burocrática de um processo revolucionário – até mesmo forjar uma ligação

genética com o leninismo, e isso mesmo se a “última luta de Lênin”50 foi precisamente

contra as tendências burocráticas que ele observava se desenvolvendo mortalmente no

coração partido e da sociedade russa – é toda a dimensão do stalinismo como

contrarrevolução política que desaparece em seguida, um fio invisível parecendo então

ligar Outubro 1917 com os Processos de Moscovo de 1936-1398.

No entanto, não há necessidade de idealizar os terríveis anos da guerra

civil russa, de ignorar os seus estragos, de minimizar os seus perigos (uma

sociedade traumatizada, uma confusão de exceção e da regra, uma

compensação de cansaço social com um esforço desumano de vontade) para ver

na coletivização forçada, nos expurgos e nas deportações de massa a evidência

brutal de uma contrarrevolução.51

Mas para Construire l’Histoire, o problema que abre a abordagem do stalinismo

como uma forma burocrática de reação “termidoriana”52 que acabou liquidando o

impulso revolucionário de 1917 disfarçando terrivelmente a sua herança é que esta

analise “leva a serio a história do movimento comunista e da sociedade”53. Assim, se

torna muito mais complicado o uso genérico do conceito de “totalitarismo” – noção que

constituía uma categoria política evidente e não questionada por parte dos autores do

livro, como evidenciado pela experiência de José Gotovitch – para equiparar realidades

tão distintas que os fascismos e os comunismos.

De fato, o conceito de totalitarismo ocupa uma posição absolutamente central

em Construire l’Histoire, mesmo totalmente ausente da lista de conceitos integrada a

nova versão do currículo de história votado pelo parlamento da Communauté française

50 Cf. Moshe LEWIN. Le dernier combat de Lénine. Paris: Syllepse, 2015. 51 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 3. 52 Cf. Leon TROTSKY. História da Revolução Russa. op. cit. 53 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 2.

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de Belgique. Como uma evidência, o dossiê de síntese dedicado a comparação dos

novos regimes se consolidando na década de 30 vai tratar do comunismo e do fascismo

como variações de direita ou de esquerda do mesmo principio totalitário, como inimigos

gêmeos da democracia:

Precisa distinguir três Estados totalitários: a Itália, a Alemanha e a

URSS. [...] O totalitarismo de direita identifica-se com o fascismo e é

representado por dois Estados, a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler,

[enquanto na] URSS, Lenin, e mais ainda Staline, installam um totalitarismo de

esquerda.54

Mas para fundamentar a sua posição, Construire l’Histoire se baseia na verdade,

como tínhamos visto, em grande parte sobre referencias teóricas inacessíveis aos alunos,

que neste caso se revelaram profundamente influenciadas pela ofensiva historiográfica

francesa da década de noventa dirigida por Stéphane Courtois e François Furet. É nesta

base que o livro didático propõe, na sua seção “Referencias”, uma definição dos

regimes totalitários aplicável tanto à Itália e à Alemanha que à União Soviética:

Precisa distinguir [os regimes totalitários] dos outros regimes

autoritários pela sua promoção de valores que pretendem definir um “homem

novo” e a implantação de meios de constrangimento de modo a ganhar o apoio

das massas para este modelo. O ideal do totalitarismo é de condicionar a vida

do homem na sua totalidade à traves da propaganda e de um controle absoluto

da vida privada e familiar, do ensino, da imprensa, das crenças, da moral, dos

lazeres, das expressões artísticas...55

A importância do conceito de totalitarismo na leitura do século XX proposto aos

professores e alunos belgas francófonas expressa assim a profunda afinidade eletiva

entre a concepção da história contemporânea defendida pela revisita L’Histoire e as

posições defendidas por parte dos autores de Construire l’Histoire, que poderia ser

resumida nestas palavras de Michel Winock – historiador no Institut d’Études Politiques

de Paris e membro-fundador influente do conselho de direção da revista L’Histoire:

54 Dossiê Referências “Diversité et séduction de l’autoritarisme” in Claude ALLARD e al. Construire

l’Histoire (Tome 4). op. cit. : pp. 224-225. 55 Ibid. : p. 224.

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O século XX foi também caracterizado pelo triunfo dos regimes

totalitaristas. Comunistas como fascistas. Ambos definidos em relação a um

mesmo inimigo: a democracia.56

Assim, seguindo Henry Rousso, coordenador do único livro relativo ao conceito

de totalitarismo citado no ‘guia do professor’:

Na realidade, o termo de totalitarismo, tal como a comparação

espontânea entre o nazismo e o stalinismo, se instalaram definitivamente no

senso comum tal como na linguagem universitária, apesar das reticências ou da

hostilidade que provocam.57

Aporias do conceito de totalitarismo

Porém, a definição teórica e a mobilização concreta do conceito de totalitarismo

em ciências humanas se revelam, na verdade, infinitamente mais complexa que na sua

acentuação de aparência sem equívocos por parte dos colaboradores da revista

L’Histoire. Enzo Traverso, que foi doutorando do Michael Löwy, sugere uma

reconstrução extremamente rica da trajetória histórica e política deste conceito,

acompanhando “o filo de um debate político, filosófico e histórico que marcou

profundamente a cultura do século XX”58. Como conclusão deste trabalho, ele vai

destacar “o seu caráter polimorfo, maleável, elástico e, francamente, ambíguo”59:

Reivindicado pelo fascismo [italiano] e rejeitado tanto pelo comunismo

russo que pelo nacional-socialismo alemão, a noção de totalitarismo foi

largamente usada por seus críticos de todos os tipos – exilados antifascistas

italianos e alemães, opositores de esquerda ao stalinismo, pensadores políticos

liberais, ex comunistas tornados anticomunistas, intelectuais leste-europeu

exilados, marxistas e antimarxistas, libertários e conservadores, ideólogos da

guerra fria e pacifistas – cada um atribuindo para ele significações diferentes,

seguindo as conjunturas, os contextos e as sensibilidades.60

56 Michel WINOCK. Le siècle totalitaire. L’Histoire, n° 226, 1998 : p. 72. 57 Henry ROUSSO. La légitimité d’une comparaison empirique. In: Henry ROUSSO (org.), Stalinisme et

nazisme : Histoire et mémoire comparées. Bruxelles: Éditions Complexe, 1999 : p. 26. 58 Voir : Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Le XXe siècle en débat. Paris: Éditions du Seuil, 2001 : p. 5. 59 Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Histoire et apories d'un concept. L’Homme et la société, n° 129,

1998 : p. 105. 60 Ibid. : p. 105.

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O estranho destino do conceito de totalitarismo é que ele é ao mesmo

tempo inevitável e inutilizável. Incontornável para a teoria política (preocupada

com a definição de uma tipologia das formas de poder) e praticamente

inutilizável para a historiografia e as ciências sociais (confrontadas com

experiências históricas concretas), o seu uso se revela extremamente

problemático numa perspectiva epistemológica pluridisciplinar.61

E isto é precisamente o principal problema que enfrenta Construire l’Histoire

quando tenta confrontar a sua definição abstrata do totalitarismo com realidades

históricas e políticas concretas. Afirmando em primeiro lugar que os regimes

autoritários, cujos regimes totalitários constituiriam um subgênero, “são o resultado

tanto de revoluções (Rússia) ou de golpes tolerados ou apoiados pela classe

dominante”62 – colocando desde o início em pé de igualdade processos políticos

profundamente distintos – o livro didático continua em seguida afirmando:

Todos estes regimes partilham algumas características comuns: a

instalação de um estado de tipo autoritário ou ditatorial liderado por um

"chefe" e, com exceção da URSS, o nacionalismo, o apoio das classes sociais

conservadores, a afirmação dos valores tradicionais (família, casa, trabalho...)

e o anticomunismo. Em muitos casos, estes planos também contam com a Igreja

Católica, como na Espanha, ou ortodoxa, como na Iugoslávia.63

Ao forçar a qualquer custo a comparação entre regimes com genealogias

históricas e políticas radicalmente opostas, o único elemento comum que surge como

conseqüência desta comparação foi a natureza ditatorial e a concentração de poder nas

mãos de um líder – embora com formas fundamentalmente distintas64 – todas as outras

61 Ibid. : p. 97. 62 Dossiê Referências “Diversité et séduction de l’autoritarisme” in Claude ALLARD e al. Construire

l’Histoire (Tome 4). op. cit. : p. 224. 63 Ibid. : p. 224. 64 Enzo Traverso vai precisar que “o carisma de Stalin não tinha as mesmas fontes que [o carisma] de

Hitler ou Mussolini. Se baseava no rigoroso controle do aparelho do partido-estado, como parte de um

regime nascido de uma revolução, onde o militante georgiano só tinha desempenhado um papel marginal,

e que vai sobreviver a sua morte. Stalin, Trotski escreveu, tomou o poder ‘não através de qualidades

pessoais, mas usando uma máquina impessoal’. Ele não era nem um orador nem um escritor, ele era um

homem das sombras, a encarnação de um aparelho que ele não tinha criado. [...] Não é coincidência que

os regimes fascistas e nazistas nascem e morem com seus ditadores, enquanto o sistema soviético

sobreviveu quase quarenta anos após a morte de Stalin.” Cf. Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Jalons

pour l’histoire d'un débat. op. cit. : p. 93.

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– 22 –

características, a primeira das quais o anticomunismo, não se aplicando explicitamente à

União Soviética.

Então, porque esta persistência em querer trazer aos alunos a usar um conceito

cujo valor heurístico é realmente reduzido ao mínimo, por causa das suas aporias

conceituais, políticas e históricas destacadas pelo pesquisador de Cornell University,

Enzo Traverso? Esta questão crucial já foi, na verdade, colocada por Daniel Bensaïd há

mais de vinte anos, durante uma das suas varias intervenções publicas opostas a

ofensiva historiográfica reacionária então em curso na França:

Em que o conceito de totalitarismo permite uma melhor compreensão

dessas tendências e contradições? Como, por exemplo, permitiu uma melhora

previsão da composição interna da URSS? Seus seguidores mais fervorosos

(Morin, Glucksmann, Castoriadis) acenaram – doze anos atrás – a ameaça

militar e a superioridade do arsenal soviético para defender a implantação

urgente de Pershing em nome da distinção querida a Sra. Kirkpatrick entre

estados autoritários (dos quais se pode voltar) e estados totalitários (dos quase

não se poderia voltar). Longe de ser esclarecidos pelo conceito de totalitarismo,

estes pensadores tinham todo errado, sem sentir depois qualquer necessidade de

explicar-se.65

São, finalmente, todas as contradições da concepção positivista da comparação

aplicada a pesquisa histórica que se expressam. Enquanto Ian Kershaw e Moshe Lewin

defendiam que “somente a comparação fornece uma compreensão do caráter único”66

de um fato histórico – seguindo uma lógica reflexiva muito próximo ao de Michael

Burawoy – a concepção profundamente positivista que irriga a definição dos conceitos

de autoritarismo e de totalitarismo por parte de Construire l’Histoire incitam os alunos a

buscarem o menor denominador comum entre nazismo e stalinismo. A comparação é

assim “limitada a uma descrição das formas externas desses regimes, esquecendo

soberbamente o seus conteúdos sociais, as suas evoluções e os seus propósitos”67. Em

outras palavras, como o explicava Bensaïd em sua polêmica contra François Furet:

65 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : pp. 4-5. 66 Moshe LEWIN e Ian KERSHAW. Stalinism and Nazism : dictatorships in comparison. Cambridge:

Cambridge University Press, 1997 : p. 1. 67 Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Jalons pour l’histoire d'un débat. op. cit. : pp. 92-93.

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O comunismo e o fascismo [se tornam] manifestações gêmeas. [...] No

cinzento da irracionalidade, todas as paixões são vermelhas ou marrons, isto é

bem conhecido. A linha de frente entre revolução e contrarrevolução

desaparece. 68

A memória também é um campo de batalha

Assim, não haveria nada para resgatar do legado político de Outubro: enquanto a

Revolução Francesa de 1789 é abordada de forma bastante positiva pelo volume 3 de

Construire l’Histoire como fonte das sociedades democráticas liberais atuais, o

tratamento da Revolução de 1917 pelo livro didático belga parecia muito mais

proclamar, tal como François Furet, que “ ‘Lenin não deixara herança’ [...] o colapso do

stalinismo [valendo] ‘testamento do leninismo’ ” 69. No entanto, com Michael Löwy e

Daniel Bensäid, sempre à procura de uma “abertura do passado”70 que poderiam

contribuir a revelar que “os chamados ‘julgamentos da história’ não tem nada de

definitivo nem de imutável”71, é precisa lembrar que:

Foi um tempo de Restauração, onde os nomes de Robespierre, de Saint-

Just, de Babeuf se tornaram impronunciáveis, um tempo em Berlim, onde não

era mais autorizado invocar a memória de Rosa Luxemburg e de Liebknecht... A

memória também é um campo de batalha. E numa história aberta, o destino do

passado ainda depende do presente e do futuro.72

A memória, tal como as amnésias, possuem natureza fundamentalmente política,

o que o livro didático parece também indiretamente reconhecer. Mas os seus autores se

limitam apenas a chorar as vítimas desprovidas de qualquer capacidade de agir, as

forças políticas que presidiram a o seu destino sendo na realidade totalmente

marginalizadas. A idéia de valorizar as lutas a partir da perspectiva dos derrotados – tão

fortemente defendida pelo marxista judeu alemão Walter Benjamin – parece assim

totalmente fora do quadro político do livro didático belga e dos seus autores, e isso

68 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 2. 69 Daniel BENSAÏD. Une certaine idée du métier d’historien : Une certaine idée du communisme,

répliques à François Furet. Le site Daniel Bensaïd, 1996 (consultado 01/04/2017) : p. 3. 70 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses "Sobre o conceito de

história". São Paulo: Boitempo, 2005 : p. 158. 71 Ibid. : p. 158. 72 Daniel BENSAÏD. Une certaine idée du métier d’historien, op. cit. : p. 3.

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mesmo se a compreensão das lutas perdidas poderia permitir as novas gerações de

imaginar outros caminhos, ajudando-lhes a lidar com as lutas futuras. Assim, como já

tinha destacado Enzo Traverso:

A idéia de totalitarismo parece ter uma nova juventude depois da caída

do muro de Berlim e do colapso da União soviética [ressurgimento tardio que

não é, obviamente, sem relação com a crise do marxismo na Europa e com a

restauração de uma ordem mundial neoliberal]. A teoria do totalitarismo

permite decretar a ordem neoliberal como o melhor dos mundos possíveis frente

às ditaduras do século. Não é por acaso que esta renovação do interesse para

um velho conceito coincidiu com a fabricação do mito hequeliano do “fim da

história”73. Após o totalitarismo, a história parece ter atingido o seu “happy

ending”: o capitalismo e a democracia liberal não têm mais rivais e regem

definindo o horizonte insuperável de uma humanidade feliz e aliviada depois dos

horrores do século XX.74

Michael Löwy estava certo ao apontar que “a relação entre hoje e ontem não é

unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o passado, e o

passado iluminada torna-se uma força no presente”75. Mas no caso de Construire

l’Histoire, a maneira que o presente, através do horizonte histórico e político dos seus

autores, ilumina o passado contribua apenas na construção de “uma concepção

categoricamente fechada da história”76, que reverbera em retorno uma luz

profundamente desvanecida sobre as perspectivas de futuro. Então, quando Jean-Louis

Jadoulle diz que “ancorar o ensino de história hoje é estimular a compreensão do

presente, isto é criar cidadãos que entendem o mundo em que vivem”77, isso significa

acima de tudo, no espírito da educação para a cidadania democrática, definir limites

radicais a imaginação política; ou seja, fazer mergulhar o futuro numa espécie de

escuridão vazia, marcada pelo “fim das utopias, o fim de toda possibilidade de mudança

de paradigma civilizacional”78. Em outras palavras, Construire l’Histoire chega, de fato,

73 Cf. Francis FUKUYAMA. The End of History? The National Interest, n° Summer, 1989. 74 Enzo TRAVERSO. Le totalitarisme. Jalons pour l’histoire d'un débat. op. cit. : p. 87 [ Enzo TRAVERSO.

Le totalitarisme. Histoire et apories d'un concept. op. cit. : p. 104]. 75 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 61. 76 Ibid. : p. 154. 77 Entretien avec Jean-Louis Jadoulle. 78 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 154.

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a compartir o veredicto implacável do Passado de Uma Ilusão, na conclusão do qual

François Furet já defendia com uma voz tonitruante:

A idéia de uma outra sociedade tornou-se quase impossível de pensar, e,

aliás, ninguém propõe sobre esse assunto, no mundo de hoje, nem sequer o

esboço de um conceito novo. Eis-nos condenados a viver no mundo em que

vivemos.79

O que fazer, então, diante de um mundo no qual somos ordenados de “abandonar

o perigoso mito de um outro lugar ou, principalmente, de um diferente”80 ? Que

alternativa à resignação temos ainda num momento em que a “bela utopia” da revolução

socialista seria em última análise reduzida a uma ilusão fatal, um sonho de pesadelo

conduzindo irremediavelmente, de Moscou para Pequim, passando por Havana, na

negação de ideais de liberdade que eram, no entanto, proclamadas?

Em uma carta a Max Horkheimer escrito durante o período de redação das suas

teses Sobre o conceito de história, enquanto “nas palavras de Victor Serge, era ‘meia-

noite no século’ ”81, espantado tanto pela visão apocalíptica do nazismo varrendo a

Europa e pelo trauma ensurdecedor do pacto Molotov-Ribbentrop, Benjamin vai mesmo

assim, de maneira “tão comovente quase extraordinária, se recusar a acreditar que o

resultado da luta de classes deve, agora, ser interpretados do ponto de vista dos

vencedores”82.

Para o marxista judeu alemão, enfrentando a perspectiva aterrorizante do

“cortejo de triunfo que conduz os dominante de hoje [a marcharem] por cima dos que,

hoje, jazem por terra”83 atingidos por uma “catástrofe sem modulação ou trégua”84, a

renuncia deve dar lugar a uma “interrupção messiânica dos acontecimentos”85. Ou seja,

79 François FURET. O Passado de Uma Ilusão. São Paulo: Editora Siciliano, 1995 : p. 587. 80 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 155 (grifos do autor). 81 Ibid. : p. 35. 82 Jean-Maurice MONNOYER. Notice "Sur le concept d’histoire (1940)". In: Écrits français. Editado por

Jean-Maurice MONNOYER. Paris: Gallimard, 1991 : p. 334. 83 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 70 (Tese VII ; Tradução de Jeanne

Marie Gagnebin e Marco Lutz Müller). 84 Walter BENJAMIN. Sur le concept d’histoire. In: Écrits français. Editado por Jean-Maurice

MONNOYER. Paris: Gallimard, 1991 (1940) : p. 343 (Thèse IX ; Tradução francesa de Walter Benjamin ;

Tradução portuguesa minha). 85 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 131.

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o que Benjamin chamou de “Jetztzeit86 – ‘tempo-de-agora’ ou ‘tempo atual’ [...]

definido como ‘material explosivo’ ao qual o materialismo histórico, junta o estopim

[de modo a] fazer explodir o contínuo da história”87. Em contraste com o historicismo

fechado e vazio dos historiadores conformistas, é ao contrario no sentido de uma

abertura da história que precisa perseverar, porque “o pior não é inevitável, a história

continua aberta, ela comporta outras possibilidades, revolucionárias, emancipadoras

e/ou utópicas”88.

O que quer dizer principalmente isto: a variante histórica que triunfou

não era a única possível. Diante da história dos vencedores, da celebração do

fato consumado, das rotas históricas de mão única, da inevitabilidade da vitoria

dos que triunfaram, é preciso retomar esta constatação essencial: cada presente

abre uma multiplicidade de futuros possíveis.89

O que, em seguida, impacta profundamente o analista critica de um livro

didático como Construire l’Histoire é a violência política sem maquiagem de um

conteúdo de aprendizagem que se recusa a fornecer acesso – a uma geração de

estudantes cuja consciência histórica extremamente fragmentária é a anos luz das

profundas convulsões políticas do período de entre guerras – aos vários ramos a quais

foram concretamente confrontados, na Rússia como no resto do mundo, a geração de

revolucionários filhos de Outubro. Assim, embora essas bifurcações históricas abriam

muitas opções políticas diferentes, eles vão, no entanto, ser tratadas como detalhes

desnecessários não merecendo menção nos livros de história, e isso mesmo se as aulas

de história do ensino secundário são muitas vezes as únicas oportunidades para os

alunos descobrirem-se nestes eventos do curto século XX, durante uma experiência

escolar onde “a abertura do passado e a do futuro estão estreitamente associados”90.

Porque, este “detalhe”, é precisamente a política, na qual o presente

coloca constantemente em jogo o passado e o futuro.

86 Seguindo Michael Löwy : “O Jetzeit resume todos os momentos messiânicos do passado, toda a

tradição dos oprimidos é concentrada, como uma força redentora, no momento presente, o do historiador

– ou o do revolucionário”. Ibid. : p. 139. 87 Ibid. : p. 120. 88 Ibid. : p. 152. 89 Ibid. : pp. 157-158. 90 Ibid. : p. 158.

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[Os “detalhes”] são os termos precisos da polêmica entre Lenine e a

Oposição Operária de 1921. Significou, sim, uma restrição da democracia no

partido. Mas como nada é simples, isso também significou uma crítica aos

abusos corporativos de democracia direta, reduzida a uma representação

restritiva da classe operaria, e uma preparação para o lançamento do NEP.

O “detalhe” são as posições exatas presentes na discussão sobre a

militarização dos sindicatos, na qual o que está em jogo não é nada mais,

precisamente, que a preservação da autonomia da sociedade civil em relação ao

estado. O “detalhe” é o confronto entre Stalin e Trótski sobre o Outubro alemão

de 1923, os silêncios do fundador do Exército Vermelho no momento crucial da

sucessão, entre 1924 e 1926. [Os “detalhes”] são ainda as alternativas políticas

defendidas polegada por polegada, sobre a NEP e a coletivização forçada, a

revolução chinesa, a ascensão e a vitória do nazismo [...], as frentes populares e

a guerra de Espanha.

Cada uma dessas batalhas, muitas vezes mortais dentro do movimento

comunista, ilustra outra política não tão reconstruída a posteriori, mas

imediata. Nós podemos desafiar seu realismo e deplorar a trágica dialética das

derrotas. [Mas] o simples fato de que estes confrontos ocorreram, antes de cada

novo passo, contribua pelo menos a salvar uma inteligibilidade prática da luta

num momento ilógico da história humana.91

E é precisamente este início de inteligibilidade que permitiu dar sentido à

Revolução Russa e as lutas fratricidas que seguiram que é simplesmente recusada aos

estudantes. Eles são, portanto, atordoados pela violência da guerra civil e o desastre do

stalinismo, o livro didático apagando completamente a luta política da Oposição de

Esquerda – mencionada só como oposição a NEP ou como concorrente do Stalin –

evacuando no mesmo tempo totalmente a contrarrevolução burocrática, embora ela

desarrolhou em última instância com o extermínio físico de metade do Comitê Central

em 1917 – uma “questão de pesquisa” que teria aberto o tratamento da Revolução Russa

para vias profundamente diferentes daquelas que estão, de fato, pelo livro didático.

Assim poder-se-ia dizer, com Bensaïd, que bem como os historiadores que José

Gotovitch tinha descritos como “mentores” de Construire l’Histoire:

91 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 1.

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Como dizem muito justamente Berger e Maler, a sua demonstração

[parece] “inteiramente dedicada a impossibilidade de ser comunista sem ser

stalinista”92. O que simplesmente repete em frente invertida a máxima pela qual

os stalinistas sempre afirmaram a sua própria legitimidade!93

[Portanto] este grande livro não parra de evitar a questão crucial, para

hoje como para ontem: existia, ou não, uma alternativa de esquerda ao

stalinismo, diferente da renúncia à “desordem estabelecida”?94

O terrível silêncio do manual sobre esta questão vai, portanto, tal como “a

tradição de todas as gerações mortas, oprim[ir] como um pesadelo o cérebro dos

vivos”95, como Marx já tinha comentado sobre o espectro que as falhas dos

revolucionários de 1793-1795 faziam pairar sobre as cabeças daqueles de 1848-1851.

Porque em evocando os custos dramáticos de uma guerra civil que, mesmo se

finalmente vitoriosa parece mesmo assim dar à luz a uma forma abjeta do totalitarismo

burocrático – indo até o ponto de insinuar a existência de uma filiação genética com a

ambição revolucionária original – é em última análise, "a revolução [em si que, em

seguida, parece tornar-se] a mãe de todos os vícios modernos”96.

Do ponto de vista da analise do desenvolvimento dos conceitos – seguindo as

contribuições da psicologia histórico-cultural de Vygotski – esta funesta acentuação

ideológica da noção de revolução – que, como assinalou acertadamente Bensaïd, “não é

um conceito teórico, [mas] sim uma categoria estratégica, prática, política, sempre

singular em sua universalidade”97 – contribua, como limitação das possibilidades de um

desenvolvimento conceitual subterrâneo susceptível de entrar de forma positiva em

sintonia com as futuras experiências políticas dos estudantes. Pior ainda, ele poderia

revelar-se como trava para as suas ações no presente: fazendo da revolução social um

horizonte cataclísmico, e finalmente todo o apelo político de um compromisso com

“outras possibilidades, revolucionárias, emancipadoras e/ou utópicas”98, que está

92 Henri BERGER e Denis MALER. Une certaine idée du communisme : répliques à François Furet.

Paris: Éditions du Félin, 1996. 93 Daniel BENSAÏD. Une certaine idée du métier d’historien, op. cit. : p. 2. 94 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 5. 95 Karl MARX. O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Lisboa: Edições "Avante!", 1984 (1852). 96 Daniel BENSAÏD. La passion selon Saint-François. op. cit. : p. 3. 97 Ibid. : p. 3. 98 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 152.

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enfraquecido, reforçando por seguida a perspectiva seguindo a qual a aceitação da

natureza insuperável das estruturas sociais atuais e a participação na “democracia

realmente existente” constituam o único horizonte histórico possível, ou até imaginável.

Ciências sociais e abertura da imaginação política

Devido a esse fechamento das potencialidades históricas do presente, que pode,

portanto, fazer as ciências sociais? Como poderiam, em outras palavras, contribuir a

estimular esta imaginação política de alternativas, incluindo um futuro de emancipação

pós-capitalista?

Esta questão, na intersecção das preocupações de Gramsci e de Benjamin, vai

encontrar um eco significativo no trabalho de Michael Burawoy, especificamente na

conclusão que ele propõe como balanço da sua trajetória de pesquisa marcado pelas

profundas convulsões da história contemporânea. Para o sociólogo de Berkeley, “os

intelectuais têm [na verdade] uma função analítica, diagnosticar o que é possível, mas

eles também têm uma função ideológica, [de] estimular a imaginação crítica – ou seja,

simultaneamente, diagnosticar os limites do capitalismo e apoiar a idéia de que um

outro mundo é possível” 99. Para responder a essa dupla tarefa, defende Burawoy,

“o etnógrafo deve [portanto] agora assumir o papel especial do arqueólogo social”100.

Devemos, portanto, considerar “experiências concretas – utopias reais, como

estão chamados por Erik [Olin] Wright”101 – susceptíveis de constituir-se como

evidências sociológicas que outra realidade é possível. A pesquisa de campo faz então

sentido na medida em que ela contribua a procurar as fontes do que Gramsci chamou de

“imaginação concreta [capaz] de incentivar e organizar a vontade coletiva”102.

No caso da tese da qual foi tirado esta comunicação, esta perspectiva estimulou a

procura de práticas de ensino que se recusam a abordar a história a partir da perspectiva

de seu terrível confinamento defendida, de fato, através da reforma do currículo de

história e da conceição da educação para a cidadania democrática que lhe está

subjacente. Tratou-se, então, de exumar práticas docentes que abriram os alunos as

99 Michael BURAWOY. Conclusion : The Ethnography of Great Transformations. In: The Extended Case

Method. Berkeley (CA): University of California Press, 2009 : p. 266. 100 Ibid. : p. 265. 101 Ibid. : p. 265. 102 Antonio GRAMSCI. Cahiers de prison - Vol. 3 : Cahiers 10, 11, 12 et 13. Editado por Robert PARIS.

Paris: Gallimard, 1978 : p. 354 (Q13 §1).

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potencialidades não realizadas da sociedade atual, libertando a sua imaginação política e

a sua capacidade de aproveitar da sua “chance revolucionária no combate – hoje – ao

passado oprimido – mas também, sem duvida, ao presente oprimido”103. Em uma

palavra, esta tese foi uma tentativa de implantar uma “etnografia reflexiva capaz de

espalhar a imaginação sociológica, cola profética capaz de ligar utopias reais”104, como

fonte de inspiração para uma outra pratica política docente, para um outro projeto

hegemônico de classe, e então para uma sociedade profundamente diferente.

103 Michael LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio. op. cit. : p. 131. 104 Michael BURAWOY. Epilogue : On Public Ethnography. op. cit. : p. 278.

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