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1 A MENTALIDADE CONSERVADORA Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor Emérito da ECEME. [email protected] Se eu fosse conservador, os amigos leitores poderiam duvidar da objetividade com que farei esta caracterização da mentalidade conservadora. No entanto, justamente pelo fato de que sou um liberal de convicção, os meus leitores podem estar seguros de que não farei "história participante" segundo a expressão do filósofo paulista Luís Washington Vita (1921-1968), ou seja, não farei uma apologia da mencionada atitude mental. Tentarei descreve-la como quem observa friamente um fenômeno social, sem a paixão de quem está defendendo um ponto de vista. De outro lado, acho de grande importância abrir espaço, hoje, para o estudo sistemático da mencionada mentalidade. Em primeiro lugar, porque o predomínio da esquerda acadêmica terminou privando os alunos brasileiros desse tipo de abordagem, ao longo da “Nova República” que emergiu com o fim do ciclo militar. Em segundo lugar, pelo fato de o Brasil ser, majoritariamente, um país conservador, dramaticamente polarizado por elites ditas “progressistas” que se envergonham de reconhecer essa característica da nossa sociedade, radicalmente ancorada em tradições sedimentadas ao longo dos séculos. Tematizar a mentalidade conservadora é, contudo, tarefa difícil. Como acertadamente frisa o historiador João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973) na sua obra Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido Conservador 1 , "não é fácil definir o que seja o conservadorismo, antes um estado de espírito do que um sistema racionalmente fundamentado, podendo dizer a mesma coisa das posições que lhe são opostas. Muitos autores já o estudaram e tentaram fixar em vários pontos descritivos a situação conservadora, mas que dificilmente destacam a devida posição". 1 TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido Conservador. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

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A MENTALIDADE CONSERVADORA

Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.

Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Professor Emérito da ECEME.

[email protected]

Se eu fosse conservador, os amigos leitores poderiam duvidar da objetividade

com que farei esta caracterização da mentalidade conservadora. No entanto,

justamente pelo fato de que sou um liberal de convicção, os meus leitores podem

estar seguros de que não farei "história participante" segundo a expressão do filósofo

paulista Luís Washington Vita (1921-1968), ou seja, não farei uma apologia da

mencionada atitude mental. Tentarei descreve-la como quem observa friamente um

fenômeno social, sem a paixão de quem está defendendo um ponto de vista.

De outro lado, acho de grande importância abrir espaço, hoje, para o estudo

sistemático da mencionada mentalidade. Em primeiro lugar, porque o predomínio da

esquerda acadêmica terminou privando os alunos brasileiros desse tipo de abordagem,

ao longo da “Nova República” que emergiu com o fim do ciclo militar. Em segundo

lugar, pelo fato de o Brasil ser, majoritariamente, um país conservador,

dramaticamente polarizado por elites ditas “progressistas” que se envergonham de

reconhecer essa característica da nossa sociedade, radicalmente ancorada em

tradições sedimentadas ao longo dos séculos.

Tematizar a mentalidade conservadora é, contudo, tarefa difícil. Como

acertadamente frisa o historiador João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973) na sua

obra Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido Conservador 1, "não é fácil

definir o que seja o conservadorismo, antes um estado de espírito do que um sistema

racionalmente fundamentado, podendo dizer a mesma coisa das posições que lhe são

opostas. Muitos autores já o estudaram e tentaram fixar em vários pontos descritivos

a situação conservadora, mas que dificilmente destacam a devida posição".

1TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império - Ideias e lutas do Partido

Conservador. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

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Apesar dessa dificuldade que provém, sem dúvida, da índole não sistemática da

mentalidade conservadora, tentarei uma caracterização dos pontos que, a meu ver,

tornam sui generis essa atitude, notadamente no terreno político. De forma mais

ampla tratei desse ponto no meu livro intitulado: Liberalismo y conservatismo en

América Latina. 2

Em quatro notas podem ser agrupadas as características fundamentais da

mentalidade conservadora: 1 - Ateorização e antieconomismo, ou seja, a desconfiança

em face do papel teórico atribuído pelo liberalismo à razão e o menosprezo em relação

às atividades do homo oeconomicus. 2 - Reação, ou seja, a tendência a estruturar uma

anti-utopia que sirva para a própria orientação e a defesa. 3 - Identificação da

verdade com algo concreto, ou "com a ideia enraizada na realidade viva do aqui e

agora e se exprimindo concretamente nela". 3 4 - Descoberta do tempo como criador

de valor ontológico e de ordem.

I - Ateorização e antieconomismo.

O conservadorismo professa desconfiança em face do papel teórico atribuído

pelo liberalismo à razão e em face, também das atividades do homo

oeconomicus. Estas características concretizam-se claramente naquilo que poderíamos

denominar de "uma concepção nobiliárquica da vida", que floresce na civilização

ibérica e ibero-americana.

Em relação à inserção do indivíduo no mundo, o Liberalismo destaca dois ideais

básicos, notadamente a partir da síntese efetivada por John Locke (1632-1704) no final

do século XVII nas suas obras fundamentais: Ensaio sobre o entendimento

humano (1689) 4 e Dois tratados sobre o governo civil (1690) 5. Em primeiro lugar, a

razão joga um papel de primeira ordem na orientação do indivíduo para cumprir com a

missão de conquistar o mundo. Em segundo lugar, a presença do homem no mundo

possui uma única finalidade: se apropriar da natureza mediante o trabalho,

transformá-la e, dessa forma, fazer uma obra digna da glória de Deus, que no contexto

calvinista em que essa ideia surge, constitui uma sinal da predestinação. Os

proprietários são, para a filosofia liberal clássica, "filhos de Deus", pois somente neles

encarnou-se o ideal de incorporar à corporeidade humana a natureza transformada

pelo trabalho.

2 VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Liberalismo y conservatismo en América Latina. Bogotá: Tercer Mundo /

Ediciones Universidades Simón Bolívar, Libre de Pereira y Medellín. 1978. Coleção "Universidad y Pueblo". 3 MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, Madrid: Aguilar, 1966, p. 302.

4 LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. (Tradução, apresentação e notas de Pedro Paulo

Garrido Pimenta; revisão técnica de Bento Prado). São Paulo: Martins Fontes, 2012. 5 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Tradução de Julio Fischer; prefácio, introdução e notas

de Peter Laslett). São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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A razão é, para a tradição liberal, uma luz natural que guia o indivíduo sem

necessidade de recorrer a uma iluminação sobrenatural, ao contrário do que tinham

salientado as grandes sínteses teológico-filosóficas da Idade Média. A razão é,

também, uma faculdade não especulativa e eminentemente prática. No denominado

"estado de natureza" corresponde à faculdade ou ao poder de legislar do "estado de

sociedade" e é a lei que orienta o indivíduo na defesa dos seus direitos inalienáveis

que, segundo John Locke, se identificam com a vida, a liberdade e as posses. A razão

natural é, portanto um bom senso inato que guia o indivíduo ao longo da sua

passagem pelo mundo e que lhe assinala a forma de fazer valer os seus direitos

inalienáveis.

Quando o indivíduo entra em sociedade, mediante o pacto social, o bom senso

originário que repousa nos indivíduos, essa luz natural que a todos assistia no "estado

de natureza", converte-se na faculdade de legislar, que se realiza mediante a sujeição

da sociedade à vontade da maioria. É, pois, a maioria dos indivíduos que se fazem

representar, a depositária da racionalidade social, de tal forma que resulta irracional se

opor a ela. A racionalidade social, que Thomas Hobbes (1588-1678) tinha concentrado

no Leviatã,6 Locke a faz repousar na maioria daqueles que se fazem representar no

Parlamento. Mas, de uma ou outra forma, a razão do indivíduo se alargou deste ao

poder que dá unidade à sociedade. Essa concepção, que privilegia a razão individual,

na concepção hobbesiana ou lockeana, é adotada integralmente pelas versões

americana e francesa do liberalismo político.

Ecoando o primado da razão individual na filosofia cartesiana, os filósofos

franceses do século XVIII, Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Montesquieu

(1689-1755), Rousseau (1712-1778) e todos aqueles sob cuja inspiração se gesta e se

desenvolve o complexo fenômeno econômico-político-cultural que foi denominado de

Revolução Francesa (1789), destacam o papel orientador da razão, que é interpretada,

como em Descartes (1596-1650), não apenas como razão especulativa, mas

basicamente como razão prática que ilumina ao homem no processo de se

assenhorear do mundo. Segundo este pensador, no plano da temporalidade compete

ao homem uma missão fundamental: se apropriar da natureza, seguindo as leis que

lhe são próprias, ou seja, as leis do movimento. E é a razão prática a encarregada de

guiar o homem nessa tarefa.

Dentro desse contexto situam-se também os pensadores da época da

Revolução Americana (1776). George Washington (1732-1799), Thomas Jefferson

(1743-1826), James Madison (1751-1836), John Jay (1745-1829), Alexander Hamilton

(1755-1804), etc., serão enfáticos ao reivindicar o posto que corresponde à razão

individual na vida do homem em sociedade. Ao longo dos anos que se seguem à

6 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. (Tradução de

João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). 4ª. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

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Convenção de Filadélfia (1786) e por causa da necessidade política de ratificar essa

Convenção nos diferentes Estados mediante a aprovação, pelas Assembleias

Provinciais, da Constituição votada em Filadélfia, desenvolve-se uma intensa atividade

jornalística que divulga as idéias fundamentais inspiradoras dos constituintes

americanos. É nessa série de artigos de imprensa, especialmente nos compilados no

livro denominado de O Federalista,7 que condensa a discussão efetivada na área de

Nova Iorque, onde encontramos de novo as ideias lockeanas acerca do papel

orientador da razão na organização da sociedade. Aparece ali o princípio da maioria

dos que se fazem representar, como norma reitora da racionalidade social.

Só que, como destacou Alexis de Tocqueville (1805-1859) 8, na América se

amplia o âmbito da representação. Enquanto que para John Locke, que se inspira na

mais pura tradição do puritanismo, somente se pode fazer representar o proprietário,

que é o único que recebeu um sinal da sua predestinação, pelo fato de ter efetivado,

mediante o trabalho, uma obra digna da glória de Deus, para os americanos é válida

uma ampliação do conceito de representação, que termina por se cristalizar na

instituição do sufrágio universal. Agiram, aqui, as ideias do liberalismo posterior à era

das revoluções do século XVII na Holanda e na Inglaterra, como é, por exemplo, a

síntese de John Stuart Mill (1806-1873) 9, que incorpora a mencionada ampliação do

conceito de representação.

Para John Locke, somente o proprietário era o autêntico detentor do bom

senso que deveria reger a organização da sociedade. Para os liberais posteriores ao

século XVII, na Inglaterra, e para os liberais americanos e franceses, todo indivíduo é

potencialmente suscetível de encarnar o bom senso, sendo necessário apenas um reto

processo educativo, fato que é destacado especialmente por Stuart Mill. Mas para

todos os ideólogos liberais é um princípio aceito que a racionalidade social encarna-se

na vontade da maioria. A razão da maioria constitui a fonte da organização social. O

pensador suíço-francês Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), precursor

dos doutrinários, considerava, no entanto, que a vontade geral expressa no

conceito de soberania, não podia ser entendida como algo absoluto. Era limitada, por

essência, se circunscrevendo apenas à organização política da sociedade, sem que

pudesse se apropriar de todos os aspectos da vida individual. Constant de Rebecque

fazia, na sua obra Princípios de Política 10, uma crítica severa à forma ilimitada em que

Rousseau entendia a vontade geral.

7 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. (Tradução de A. Della Nina. Seleção

de textos de Francisco Weffort). São Paulo: Abril Cultural, 1973. 8 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). Belo

Horizonte: Itatiaia, 1977. 9 MILL, John Stuart. Ensaio sobre a liberdade. (tradução de Rita de Cássia Gondim Neiva). São Paulo:

Escala, 2006. 10

CONSTANT DE REBECQUE, Henri-Benjamin. Princípios de Política. (Tradução espanhola de Josefa Hernández Junco, introdução de José Alvarez Junco). Madrid: Aguilar, 1970, p. 7-18.

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Contrapondo-se ao papel preponderante que a filosofia liberal atribui à razão

do indivíduo e como reação contra a torta evolução do liberalismo ao longo do século

XVIII em todos os campos: filosófico, econômico e político, sendo a principal

manifestação desse processo a Revolução Francesa, os ideólogos conservadores são

unânimes ao manifestar a sua profunda desconfiança em face da razão individual,

geradora de tantos males.

Tal é a sincera reação dos pensadores que criticam a Revolução Francesa como

Edmund Burke (1729-1797), Joseph de Maistre (1753-1821) ou o conde Louis de

Bonald (1754-1840). Todos eles destacam a necessidade de uma tutela para a razão

individual que, deixada por si só, produziu tantas aberrações. Essa tutela identificar-se-

á com uma volta à tradição e com a imposição de uma elite que é o seu fiel intérprete.

E, em alguns casos, será exigida, no contexto do regresso desse elemento tradicional, a

presença da fé como um dos elementos constitutivos fundamentais da civilização. É

isso o que encontramos no tradicionalismo francês de inspiração católica, que deita

raízes na obra de Maistre e de Bonald.

Um exemplo do tradicionalismo leigo é encontrado, na América espanhola, na

influência do krausismo com a sua insistência no controle da razão individual pela

tradição espiritualista contrária ao homo oeconomicus e que se torna presente numa

rígida hierarquia social, à cuja testa devem estar os educadores e os artistas. Tal é, por

exemplo, o pensamento dos liberais espanhóis da década de 1890 na Espanha, um de

cujos principais expositores foi Francisco Giner de los Ríos (1839-1915) 11, fundador da

Instituição Livre de Ensino. A obra dos krausistas hispânicos foi divulgada, na América

espanhola, por José Enrique Rodó (1872-1917) e, no Brasil, por Carlos Mariano Galvão

Bueno (1834-1883).

Essa volta à tradição como epokhé da soberba razão individual se reveste de

um caráter de cruzada moral para salvar a sociedade, na obra de Augusto Comte

(1798-1857), 12 que ensina que os males sociais serão curados na medida em que seja

combatida a desordem no terreno mental e no dos costumes, mediante a volta da

tradição, graças a um processo educacional: "os vivos devem ser governados pelos

mortos", defendia o filósofo de Montpellier. Tal afirmação conduziu, no Brasil, à

instauração da ditadura positivista que durou mais de três décadas no Rio Grande do

Sul (1891-1930) e que teve continuidade no governo autocrático de Getúlio Vargas

(1883-1954) entre 1930 e 1945, no plano nacional.

11

Cf. GINER DE LOS RÍOS, Francisco. Ensayos sobre educación. Buenos Aires: Losada, 1945. 12

Cf. COMTE, Auguste. Apelo aos conservadores. (Tradução de Miguel Lemos). Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899. Do mesmo autor, Discurso sobre o espírito positivo. (Tradução de José Arthur Giannotti). São Paulo: Abril Cultural, 1973, coleção “Os Pensadores” e La science sociale. (Apresentação e introdução de Angele Kremer-Marietti). Paris: Gallimard, 1972.

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Uma original concepção conservadora do papel da razão foi legado por Alexis

de Tocqueville (1805-1859). Este pensador, com a sua obra clássica: A democracia na

América deu ensejo, na França, a uma nova ciência política. Quais os contornos que a

definem? Em primeiro lugar, Tocqueville estava animado por uma autêntica modéstia

epistemológica. Para ele, se é verdade que o absolutismo, em política, é irmão gêmeo

do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que essa atitude mental de

modéstia é pressuposto do liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade

e da tolerância ali onde se professam verdades intocáveis, no que tange à concepção

do homem e do mundo.

Eis o que Tocqueville escrevia, em 1831, ao seu amigo Charles Stöffels (1809-

1886): “Para a imensa maioria dos pontos que nos interessa conhecer, nós não temos

mais do que verossimilhanças, aproximações. Desesperar-se porque as coisas são

assim é desesperar-se pelo fato de ser homem; pois essa é uma das mais inflexíveis leis

da nossa natureza (...). Sempre considerei a metafísica e todas as ciências puramente

teóricas, que de nada servem na realidade da vida, como um tormento voluntário que

o homem consentia em se impor”. 13

Em 1858, Tocqueville explicava ao filósofo Hervé Bouchitté (1795-1861) 14 que

a mais refinada metafísica não era mais clara que o simples senso comum acerca do

sentido do mundo e, especialmente, em relação “(...) à razão do destino deste ser

singular que chamamos homem, ao qual foi dada justamente tanta luz quanto era

necessária para lhe mostrar as misérias de sua condição e insuficiente para muda-la”. 15 Passagem de verdadeira inspiração pascaliana segundo Françoise Mélonio, que

escreve a respeito: “Que miséria que é o homem... Tocqueville retoma a crítica

pascaliana dos limites da Razão, atualizando-a para dirigi-la contra todos aqueles que

identificam o discurso racional com o real. A hostilidade futura de Tocqueville a Hegel

não terá outra fonte diferente desta rejeição a um providencialismo secularizado,

junto com o desgosto dos espíritos finos em relação às coisas especulativas, fora do

uso comum”. 16

Na trilha que acaba de ser mencionada, Tocqueville situa sua crítica ao

historicismo. Esta tendência, para ele, termina sacrificando a liberdade e a pessoa no

altar da abstração histórica. Tocqueville considerava que esse era um vício próprio dos

historiadores que vivem em “séculos democráticos”, preocupados mais em serem lidos

com facilidade pelas grandes multidões do que em fazer uma análise verdadeira dos

fatos concretos. Antecipava-se genialmente Tocqueville, destarte, da crítica que os 13

Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Paris: Aubier, 1993, p. 31. 14

Cf. BOUCHITTÉ, Hervé. Histoire des preuves de l´existence de Dieu considerées dans leurs principes

les plus généraux jusq´au Monologium d´Anselme de Cantorbéry, Paris, 1846. Edição fac-similar pela Universidade de Toronto: https://archive.org/details/histoiredespreuv00bouc [consulta em 01/05/2014]. 15

Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Ob. cit., ibid. 16

Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Ob. cit., ibid.

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neokantianos, com Heinrich Rickert (1863-1936) à testa, deflagraram, na virada do

século XIX para o XX, à tendência abstrata da Escola Histórica alemã de Friedrich Carl

von Savigny (1779-1861). Crítica que, aliás, confronta Tocqueville com os românticos

alemães que farão, como mostrarei logo mais adiante, a apologia da Escola Histórica.

A respeito da historiografia que se pratica nos “séculos democráticos”,

Tocqueville escreve o seguinte, diferenciando-a da historiografia que se pratica nos

“séculos aristocráticos”: “Os historiadores que vivem nos séculos democráticos

mostram tendências inteiramente contrárias. A maior parte deles quase não atribui

influência alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie, nem aos cidadãos sobre a

sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos

particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores dos

séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira coisa que

nele percebem é um pequeno número de atores principais, que conduzem toda a

peça. Esses grandes personagens, que se mantêm à frente da cena, detêm sua visão e

a fixam: ao passo que se aplicam a revelar os motivos secretos que fazem com que

ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas que veem alguns

homens fazer dá-lhes uma ideia exagerada da influência que pode exercer um homem

e naturalmente os dispõe a crer que é sempre necessário remontar à ação particular

de um indivíduo para explicar os movimentos da multidão (...) Quando, ao contrário,

todos os cidadãos são independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se

descobre nenhum que exerça um poder muito grande nem, sobretudo, muito durável,

sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos parecem absolutamente impotentes

sobre ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo concurso livre e

espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito

humano a procurar a razão geral que pode assim atingir a um tempo tantas

inteligências e volta-las simultaneamente para o mesmo lado”. 17

O principal defeito que Tocqueville enxergava na historiografia dos tempos

democráticos consistia no fato de tal modelo se alicerçar numa concepção fatalista da

história, que pressupõe, em primeiro lugar, uma concepção abstrata e determinista do

homem. A respeito escreve: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos

não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino

do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e

os submeterem ora a uma Providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade.

Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus

antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam

modificar. Tornam as gerações solidárias umas às outras e, remontando assim, de

época em época, de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à

origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa que envolve todo o gênero

17

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução e Introdução de Neil Ribeiro da Silva). 2ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p. 375.

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humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos: comprazem-se

ainda em mostrar que não podiam se ter dado de outra forma. Consideram uma nação

que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o

caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido

fazer para seguir um melhor caminho”. 18

Tocqueville, pensador definidamente liberal-conservador, rejeita de plano tal

historiografia por considerar que essa concepção nega a liberdade humana, base da

“dignidade das almas”. Tratava-se de superar as desgraças da Revolução e do Terror,

não de conduzir a Nação Francesa à sua definitiva destruição. O nosso autor

identificava, alto e bom som, o caminho que deveria ser seguido: o da liberdade

concreta, ou melhor, o da conquista da efetiva liberdade para todos os franceses. Mais

do que uma dádiva “revolucionária”, a consolidação da liberdade dependeria de

reformas conservadoras que não rompessem com o passado, mas que o tivessem,

sempre, presente, como pano de fundo de garantia da continuidade das novas

instituições.

O principal pecado da Revolução Francesa, segundo Tocqueville, foi este: ter

pretendido romper os vínculos com o passado, caindo no abismo de uma abstração

com o nome de “igualdade”. Não se trataria, pois, para remediar esse mal, de

renunciar à conquista da democracia liberal. Tratar-se-ia, melhor, de conquistar este

anseio, de forma segura, restabelecendo as pontes com o passado mediante o

aprofundado conhecimento das tradições francesas e, de outro lado, partindo para a

construção de instituições firmemente ancoradas nesse legado. Esse é o cerne da obra

de Tocqueville intitulada: O Antigo Regime e a Revolução. 19

Karl Mannheim (1893-1947), em Ideología y Utopía 20 estudou a desconfiança

da mentalidade conservadora em relação à razão individual. Para ele, é claro que,

segundo essa mentalidade, a razão não possui nenhuma predisposição para teorizar. O

homem, efetivamente, não é levado a teorizar acerca das situações humanas reais em

que vive, enquanto se encontrar perfeitamente ajustado a elas. Nessas condições, a

existência do ser humano considera aquilo que o rodeia como parte de uma ordem

universal natural que, por tal motivo, não é problemática. Em virtude disso, Mannheim

frisa que a mentalidade conservadora não possui nenhuma utopia, entendida como

construção ideal que vai além daquilo que é dado na concreção do momento histórico.

"Idealmente - frisa - está, pela sua mesma estrutura, em completa harmonia com a

realidade que, no momento, dominou. Carece de todas aquelas reflexões e

iluminações do processo histórico que provêm de um impulso progressivo". Por tal

18

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Ob. cit., p. 376. 19

TOCQUEVILLE, Alexis de. L´Ancien Régime et la Révolution. (Introdução, organização e notas de Françoise Mélonio). Paris: Flammarion, 1988. 20

MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 302-303.

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motivo, Mannheim destaca que o tipo conservador de conhecimento é originalmente

uma classe de saber que outorga um domínio prático.

Trata-se de uma série de orientações habituais e, algumas vezes, reflexivas,

acerca dos fatores que são imanentes à reflexão. Os elementos ideais que, na nossa

vida diária, se opõem ao concretamente dado são restos da tensão dos períodos

primitivos, quando ainda não havia completa estabilização no mundo; mas a sua

atuação no presente é apenas ideológica, como crenças, mitos e religiões, que devem

ser situados no campo que lhes corresponde: para além da história. "Nesta etapa -

frisa Mannheim - o pensamento (...) inclina-se a aceitar o contorno total na concreção

acidental em que ocorre, como se essa fosse a ordem exata do mundo e tivesse que

ser pressuposta e não apresentar nenhum problema (...)." Nessa perspectiva, a razão

individual não possui nenhuma possibilidade para realizar uma construção segundo os

seus próprios desejos. Está encadeada à concreção do momento e daí não pode sair. É

uma tutela exercida pela dimensão ôntica.

O caráter débil da razão liberal, para os conservadores, é expresso assim por

Mannheim: "Os conservadores consideraram a ideia liberal que caracterizou o período

da Ilustração como algo vaporoso e carente de concreção. E foi a partir desse ângulo

por onde iniciaram o seu ataque contra ela e a desvalorizaram. Hegel enxergava nela

nada mais do que uma simples opinião - uma pura imagem - uma possibilidade apenas

por trás da qual alguém se refugia, se salva a si mesmo e elude as exigências do

momento". 21

A sujeição da razão humana à concreção histórica foi caracterizada por Charles

Wright Mills (1916-1962) da seguinte forma, ao analisar o modo em que se dá no meio

norte-americano contemporâneo: "(...) Aquilo que (os intelectuais conservadores

norte-americanos) descobriram é a falta de inteligência e de moralidade na vida

pública de nosso tempo e o que conseguiram criar é uma simples elaboração do seu

próprio estado de ânimo conservador. É um estado de ânimo muito adequado para

homens que vivem num vazio político. No fundo dessa atitude há um sentimento de

importância sem angústia, e uma sensação de pseudo-poder baseada unicamente

numa falsa segurança. Quebrando a vontade política, esse estado de ânimo ou humor

permite que os homens aceitem a depravação pública sem nenhum sentido íntimo de

ultraje, e sem renunciar à meta essencial do humanismo ocidental, tão fortemente

sentida na experiência norte-americana do século XIX: o presunçoso domínio do

destino do homem pela razão" 22.

De outro lado, a mentalidade conservadora reage contra a visão econômica do

homem típica do liberalismo (que afirmava, como vimos, na visão clássica de Locke

inspirada no calvinismo, que o homem está na terra para fazer, com o seu trabalho, 21

MANNHEIM, Ideología y Utopía, ob. cit., p. 306. 22

MILLS, Charles Wright. La élite del poder, México: Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 303.

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uma obra digna da gloria de Deus). Os conservadores reivindicam uma concepção do

homem espiritualista e desinteressada. Trata-se de uma nova epokhé em que o

conservadorismo submerge o ser humano, desta vez do ângulo da liberdade e do agir.

Onde mais nitidamente apareceu esta reação foi na Espanha; ali não houve influência

do puritanismo calvinista, tendo-se consolidado, ao contrário, um espiritualismo de

inspiração medieval.

O historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-), na sua obra: El

pensamiento colombiano en el siglo XIX, analisou este fenômeno. Na Espanha surge,

desde fins da Idade Média, um tipo cultural diametralmente oposto ao homo

oeconomicus, que desde início da modernidade foi-se enraizando na Europa,

acompanhando o fenômeno do nascimento e expansão das cidades, origem da

nascente burguesia. As características do tipo castelhano, do cavaleiro cristão que

Manuel García Morente (1886-1942) define como defensor de uma causa e possuidor

de virtudes nobiliárquicas como ânsia de grandeza, coragem, altivez, palpite e não

cálculo, personalismo e culto à morte, modelaram-se ao longo da história da Espanha,

sobretudo durante o episódio tão decisivo na vida do povo espanhol que foi a luta de

vários séculos contra os muçulmanos, em defesa da sua própria existência e da

cristandade.

Essa defesa da cultura hispânica em face do invasor foi apreendida pelo povo,

desde o início, como a defesa de si próprio. "Ao terminar essa contenda - escreve

Jaramillo Uribe - e ao se iniciar a Época Moderna, que já vinha se gestando e

amadurecendo no Continente e nas Ilhas Britânicas, tinha-se constituído na meseta

castelhana um tipo de homens cujas virtudes não eram as do homo oeconomicus. A

descoberta da América e a luta pelo Império que inesperadamente lhes doava a

História firmaram o seu caráter cavalheiresco e terminaram por frustrar,

definitivamente, a formação em Castela do tipo que construiu a economia moderna do

capitalismo, e com isso a possibilidade de que Espanha assimilasse o espírito das novas

formas de vida, sobretudo o moderno ethos do trabalho". 23

Analisemos em detalhe duas notas que Jaramillo Uribe destaca acerca do

caráter espanhol, no texto que acaba de ser citado: a sua afirmação por cima do

invasor árabe e a sua afirmação sobre o Novo Mundo. Ao submeter o elemento

alienígena depois da Reconquista espanhola e ainda durante a última parte da Idade

Média, o espanhol encontrou dois grupos sociais, mouros e judeus, que o substituíram

nas fainas econômicas. O judeu, nos trabalhos comerciais, bancários e financeiros e o

mouro nos trabalhos agrícolas e artesanais. "O trabalho - frisa Jaramillo Uribe -

praticado assim por grupos considerados inferiores religiosa e politicamente, recebeu

23

JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. 2ª edição. Bogotá: Temis, 1974, p. 10.

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os mesmos estigmas que o caracterizavam naquelas sociedades onde era exercido por

escravos. Foi uma ocupação de párias e não de senhores".

Entre os historiadores houve muita discussão acerca das implicações

decorrentes da expulsão de árabes e judeus sobre a economia da Espanha. Ocorreram

controvérsias acerca da importância que alguns autores deram aos elementos árabe e

judeu e acerca do número de indivíduos que abandonaram a Península quando se

produziram os Editos de Estranhamento. No entanto, todos os autores estão de acordo

em afirmar que ambos, mouros e judeus, eram pilares da atividade econômica na

Espanha. Américo Castro (1885-1972) 24 faz um balanço dos termos relativos a

atividades urbanas e rurais provenientes do árabe, nas línguas castelhana e

portuguesa. A farta presença desses termos, no vocabulário corrente, indica que

mouros e judeus foram os fatores mais importantes nesses campos dos quais, por

outro lado, estiveram ausentes os espanhóis e os portugueses.

Paralelamente à sua afirmação nobiliárquica sobre judeus e mouros, o caráter

espanhol firmou-se no Novo Mundo de uma forma que nega as virtudes do homo

oeconomicus. A conquista predatória do solo americano, impulsionada pela

mentalidade aventureira e a lenda do El Dorado, foi o marco econômico que presidiu a

obra da Espanha no Novo Mundo. O ouro e a prata que chegaram a torrentes da

América produziram inflação crescente numa economia cuja produção de bens de

consumo permanecia estática. Por isso é lícito concluir com Jaramillo Uribe que, longe

de ter constituído a saída dos mouros e judeus da Espanha a oportunidade para que o

24

CASTRO, Américo. España en su historia. Buenos Aires: Labor, 1950. Em relação à grande quantidade de termos herdados do árabe pelas línguas castelhana e portuguesa, frisa o autor español: "(...) Essas importações de termos referem-se a muito diversas zonas da vida: agricultura, construção de prédios, artes e ofícios, comércio, administração pública, ciências, guerra. Já é significativo que tarea (tarefa, em português), seja árabe. Os alarifes planejavam as casas e os albañiles (pedreiros) as construíam; e por isso são arabismos alcácer, alcova, azulejo, azotea (terraço), baldosa, saguão, aldrava, alfeizar, fivela; a grande técnica no manejo da água aparece em acequia, aljube (que adota o francês com a forma de ogive), alverca, e em multidão de outras palavras. Porque os sastres eram mouros se chamavam de alfayates (português alfaiates); os barbeiros eram alfajemes; as mercadorias eram transportadas por arrieros (tropeiros) y recueros (recoveiros); eram vendidas nos zocos (zoicos)e azoguejos (açougues),em armazéns, alhóndigas e almonedas; pagavam direitos nas aduanas, eram pesadas e medidas por arrobas, arreldes, quintais, adarmes, fanegas, almudes, celemines, cahices, azumbres, que eram inspecionados pelo zabazoque (azoque) e o almotacén (almotacé); o almojarife (almoxarife) recebia os impostos que eram pagos em maravedis, ou em meticales. Cidades e castelos eram regidos por alcaides, alcaldes, zalmedinas (almedinas) e alguaciles. As contas eram feitas com cifras e guarismos (algoritmos) ou com álgebra; os alquimistas destilavam o álcool nos seus alambiques e alquitaras, ou preparavam álcalis, elixires ou jarabes (xaropes), que eram vertidos em redomas. As cidades constavam de bairros e arrabaldes, e as pessoas comiam açúcar, arroz, laranjas, limões, toronjas, berinjelas, cenouras, albaricoques, sandias, altramuces, alcachofres, alcauciles, albérchigos, alfónsigos, almôndegas, escabeche, alfajores e muitas outras coisas. As plantas antes mencionadas eram cultivadas em terras de regadio, e como na Espanha chove pouco (exceto na região do Norte), a irrigação precisa de muito trabalho e arte para canalizar e distribuir a água para lavar o corpo e para fertilizar a terra. Mencionei antes alverca, aljube, acequia, mas o vocabulário relativo à irrigação do campo é muito amplo; eis aqui uma amostra: nória, arcaduz, açude, almatrixe, alcantilara, atarjes, atanor, alcorque, etc”.

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espanhol mudasse a sua atitude perante o trabalho, "(...) nessa conjuntura, a história

lhe deparou o Novo Mundo, continuou exigindo-lhe virtudes heroicas e colocou à sua

disposição uma nova classe pária: as populações indígenas americanas, classe que

continuou criando riquezas para o povo senhorial e conferindo à atividade econômica

um caráter não nobre". 25

O espiritualismo de inspiração medieval que faz do cavaleiro espanhol um

conservador das tradições nobiliárquicas sobre o ethos do trabalho e que desconfia da

razão individual, foi muito bem caracterizado por Américo Castro no seguinte trecho:

"O cavaleiro espanhol (...) precisava se rodear de um halo de transcendência, de um

prestígio religioso, régio ou de honra. Tinha de se sentir num além-mágico e como

suspenso sobre a face da terra. Daí o desdém pelas atividades mecânicas, comerciais

ou de pura razão". 26

2 - Reação, ou seja, a tendência a estruturar uma anti-utopia que sirva para a própria

orientação e a defesa.

A estruturação da mentalidade conservadora se dá como anti-utopia que serve

para a auto-orientação e para a defesa e como uma reação contra a hierarquização –

baseada na riqueza - da sociedade burguesa, numa tentativa de revalorizar um

espiritualismo de inspiração medieval, reconhecendo uma hierarquização social de

tipo espiritual. Analisarei aqui esses aspectos.

Para Mannheim, 27 a mentalidade conservadora é obrigada a elaborar as suas

reflexões histórico-filosóficas, só a partir do contra-ataque em face das agressões

perpetradas pelas classes opostas, que pretendem derrubar a ordem existente. Isso é

tão certo que, se não se tivesse dado o prévio ataque das classes progressistas, os

conservadores teriam permanecido inconscientes em face da sua própria ideologia, e

“a concepção conservadora permaneceria no nível da conduta inconsciente”. Portanto,

a mentalidade conservadora descobre a sua própria identidade só “ex post facto”. As

ideologias conservadoras, especialmente na Europa, aparecem como reação contra a

progressiva ascensão de agressivos grupos liberais, que já desde o início da Idade

Moderna foram tomando força graças ao desenvolvimento do comércio, na luta que

travaram contra as classes dominantes tradicionais, o clero e a nobreza. Assim, o

conservadorismo é uma reação contra a ascensão do liberalismo. Desta forma,

encontramos esse fenômeno na França e na Alemanha, e assim também o podemos

observar na América espanhola. Não é casual que na Nova Granada, a primeira

plataforma conservadora tenha aparecido em 1849, um ano depois de que a burguesia

comerciante e exportadora tivesse iniciado, em 1848, profundos câmbios econômicos

25

JARAMILLO Uribe, El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 11. 26

CASTRO, Américo, España en su historia, ob. cit., p. 34. 27

MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 303-305.

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e sociais que afetavam às classes tradicionais: o clero e a aristocracia latifundiária de

origem colonial.

Mannheim destaca de que forma na Alemanha a classe social conservadora que

adquiriu estabilidade mediante a posse da terra, não conseguiu estruturar uma

interpretação teórica da sua própria existência, e que a descoberta da ideia

conservadora foi devida a um grupo de ideólogos que apoiaram os conservadores. Tal

foi o trabalho dos românticos, especialmente de Hegel, que ofereceu às antigas classes

conservadoras uma interpretação coerente do sentido da existência. Por este motivo,

frisa Mannheim que: “(...) A grande realização de Hegel foi edificar, contra a ideia

liberal, outra proposta conservadora, não no sentido de purificar artificialmente certa

atitude e certo modo de conduta, mas no sentido de elevar uma forma de experiência

já existente até um nível intelectual e sublinhar as características distintivas que a

contrapunham à atitude liberal perante o mundo”. O mesmo Hegel dá testemunho da

sua valorização do conservadorismo, ao afirmar que a ideia de uma realidade histórica

consegue se tornar visível somente numa segunda etapa, quando o mundo conseguiu

adotar uma forma interna fixa e determinada.

No famoso parágrafo final do prefácio de Hegel (1770-1831) à Filosofia do

Direito, o filósofo alemão frisa: “Só uma palavra mais relativa ao desejo de ensinar ao

mundo o que deveria ser. Para semelhante propósito, a filosofia, pelo menos, chega

sempre tarde demais. A filosofia, como pensamento do mundo, não aparece até que a

realidade tenha completado o seu processo formativo e tenha se preparado a si

mesma. Desse modo, a história corrobora aquilo que ensina a concepção de que o

ideal só aparece na maturidade da realidade, como algo oposto ao real. Apreende o

mundo real na sua substância e o configura num reino intelectual. Quando a filosofia

desenha com cores cinza uma forma de vida, tornou-se velha e não pode ser

rejuvenescida por esse cinza, mas somente conhecida. A coruja de Minerva levanta o

voo unicamente quando as sombras da noite se aproximam”. 28 Mannheim destaca,

também, que enquanto a ideia liberal, traduzida em termos racionalistas, insiste mais

naquilo que é normativo ou no dever-ser, “(...) o conservadorismo translada a ênfase à

realidade existente, àquilo que é. O fato da simples existência de uma coisa outorga-

lhe o mais alto valor (...)”. 29

No relacionado ao segundo aspecto da reação como característica da

mentalidade conservadora, dizíamos que nega a estratificação da sociedade burguesa

baseada no poder econômico e pretende levantar a bandeira de um igualitarismo de

inspiração medieval, que não se opõe ao reconhecimento da hierarquização espiritual

da sociedade. Jaime Jaramillo Uribe 30 destacou que a nobreza europeia foi reagindo,

28

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia do Direito, cit. por MANNHEIM, in: Ideología y utopía, ob. cit., p. 304. 29

MANNHEIM, Ideología y utopía, ob. cit., p. 308. 30

JARAMILLO Uribe, El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 3-7.

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nos países do continente, em face do avanço da burguesia. É claro que isso não

aconteceu em um meio como as Ilhas Britânicas, onde a própria nobreza assumiu a

escala de valores da burguesia, tendo-se tornado comerciante. Mas o romantismo

alemão, por exemplo, que aglutinava tantas figuras nobres, manifesta a sua

desadaptação diante da concepção burguesa do mundo. O protesto dos nobres

franceses, de outro lado, se manifestou no nobre aventureiro, no emigrado

mercenário e no pensador arcaizante e antidemocrático do tipo encarnado pelo

combativo Joseph de Maîstre. Mas onde mais clara se manifestou esse protesto

nobiliário foi na Espanha, o país nobre por excelência, digno das tradições de Dom

Quixote.

Jaramillo Uribe não duvida em afirmar que este “(...) foi o caso extremado

desse protesto nobiliário contra o mundo que começava a configurar o homem

burguês. Com uma circunstância especial que constitui a chave de toda a evolução

posterior da nação espanhola e da sua dificuldade para se adaptar às formas do viver

moderno (...). Na Espanha, o próprio povo adquiriu a concepção nobiliária da vida, e

situada fora desta somente restou uma burguesia minoritária que não conseguiu ter

influência política nem espiritual e que, por outro lado, esteve circunscrita aos

contornos regionais da Catalunha e da Vascônia. A fidalguia espanhola, presente até

nos seus vagabundos e mendigos, é integrada por categorias nobiliárias de vida,

particularmente por aquelas que, em relação à economia e ao trabalho, possuem um

forte conteúdo anticapitalista e antiburguês: a hospitalidade, a prodigalidade nos

gastos, a ausência de previsão para o amanhã, o menosprezo pelo dinheiro e o amor

ao ócio”.

Em contraste com essa concepção nobiliária que comporta um igualitarismo da

sociedade, é importante destacar que o “anarquismo” social hispânico reconhece

hierarquias espirituais. Se bem é certo que, como frisa Ramiro de Maeztu (1874-1936),

na sua obra La defensa de la hispanidad: 31 “(...) aos olhos do espanhol, todo homem,

qualquer que seja a sua posição social, o seu saber, o seu caráter, a sua nação ou a sua

raça, é sempre um homem; mesmo com aparência humilde, ele é o rei da criação;

mesmo desfrutando de alta posição, ele é uma criatura pecadora e débil”, no entanto,

o espanhol reconhece as hierarquias espirituais que regem a sociedade: a Igreja e a

Monarquia, como expressões máximas da alma espanhola.

Isso para não falar em tendências doutrinárias altamente hierarquizantes e

espiritualistas, como os krausistas, por exemplo.32 Os krausistas espanhóis defendiam

a denominada “selectocracia”, que reconhece a superioridade das minorias de

intelectuais e artistas, os únicos que, segundo essa corrente, se elevaram

31

MAEZTU, Ramiro de. La defensa de la hispanidad. 5ª edição, Madri: Gráfica González, 1946, p. 64. 32

Cf. MORILLAS, Juan López, El krausismo español, 1ª edição, México: Fondo de Cultura Económica, 1956; RÍOS, Francisco Giner de los, Ensayos, Madrid: Alianza, 1969.

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definitivamente por cima da animalidade e que têm a missão de educar as massas

incultas no cultivo dos valores espirituais, responsáveis pela humanização do homem. 33

Alexis de Tocqueville considerava que, na França, a ação deletéria da

Revolução, do Terror jacobino e, já no século XIX, dos socialistas, terminaram por

erradicar progressivamente o ideal de uma burocracia desinteressada que era

integrada, como se sabe, pelos nobres no Antigo Regime. A Monarquia restabelecida

na França pelos Bourbons e, depois, a Segunda República, deram ensejo a uma

centralização cada vez maior e a uma gestão despótica e corrupta dos negócios

públicos, tendo sido banido o ideal do serviço de qualidade. Tocqueville considerava

que ficou um vácuo nesse espaço antes ocupado pela nobreza, tendo-se instalado ali o

reinado da mediocridade e das benesses burocráticas. A República converteu-se no

reino dos aventureiros de todos os matizes, absolutamente descompromissados com o

bem-estar do povo. A respeito Tocqueville escrevia, ao ensejo dos eventos de 1848:

“As revoluções nascem espontaneamente de uma doença geral dos espíritos, induzida

de repente ao estado de crise por uma circunstância fortuita que ninguém previu;

quanto aos pretensos inventores ou condutores dessas revoluções, nada inventam ou

conduzem; seu único mérito é o dos aventureiros, que descobriram a maior parte das

terras desconhecidas: atrever-se a ir sempre em linha reta, para a frente, com o vento

a favor”. 34

3 - Identificação da verdade com algo concreto, ou, como frisa Mannheim, "com a

ideia enraizada na realidade viva do aqui e agora e se exprimindo concretamente

nela". 35 Esta morfofania da verdade encontra a sua expressão, por exemplo, no tema

do agrarismo como leitmotiv da literatura e da filosofia, na Espanha e em

Iberoamérica. Aparece, também, na morfologia goethiana, que insiste na utilização da

percepção intuitiva como instrumento científico, método que também utiliza a Escola

Histórica, na Alemanha. Detenhamo-nos nas duas expressões da morfofania da

verdade que mencionamos.

O agrarismo, ou seja, o exprimir a problemática da vida do homem não em

termos abstratos, mas através de formas plásticas tiradas da natureza, é uma

tendência profundamente conservadora. Em primeiro lugar, porque é um intento de

encadear a razão ao dado imediato da experiência, é um esforço de concreção daquela

no meio circundante. Em segundo lugar, em decorrência do caráter não utilitarista de

33

Cf. PIKE, Frederik B. “Making the Spanish World safe from Democracy: Spanish Liberals and Hispanismo”, The Review of Politics, julho 1971, pgs. 307-322. Escrevi uma síntese das idéias educacionais e políticas dos krausistas na minha obra intitulada: El Hispanismo o Liberalismo

Conservador legado por los Krausistas españoles. Medellín: Instituto de Integración Cultural, 1977. 34

TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848 – As jornadas revolucionárias em Paris. (Tradução de Modesto Florenzano; introdução de Renato Janine Ribeiro; prefácio de Fernand Braudel). São Paulo: Companhia das Letras / Penguin, 2011, p. 73. 35

MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 302.

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apreciação da terra, fundamento da vida agrária. A terra reveste-se aqui de uma áurea

de mistério, parecendo que ocultasse em si uma realidade exemplar, jamais esgotável

nos estreitos limites da apreciação humana. A morfofania caracteriza-se, assim, como

a nota típica do conservadorismo.

Para Espanha, a terra possui um valor sacro, porque é dela de onde provém e

onde se dissolve toda forma biológica. 36 Aquele que possui a terra, em termos

hispânicos, possui a vida. É a terra a única capaz de nos transmitir segurança. Para John

Locke, também, a terra joga um papel essencial na vida humana: é a fonte da

segurança e da liberdade. No entanto, há uma diferença abissal entre a forma em que

Locke e a mentalidade espanhola interpretam a relação do homem com a terra. O

pensador inglês a entende como posse por excelência, à qual o homem chega

mediante o seu trabalho, que projeta o próprio corpo sobre a natureza tornando-a,

assim, algo próprio.

A mentalidade espanhola extasia-se na posse da terra, fazendo dela algo

representativo, como se o homem se relacionasse com ela não através do trabalho

apenas, mas mediante a contemplação. Para o espanhol, a terra é a mãe da qual deriva

o seu sustento e que o acolhe desde o nascimento até a morte. Para o inglês, a terra é

meio de sustento e base da comercialização, que dá vazão aos interesses individuais. O

espanhol não entende a terra em termos comerciais, mas vitais. “O tráfico comercial –

frisa Américo Castro – (...) desenraiza o homem da própria terra, o desintegra, o afasta

da natureza e o induz a incorrer em fraude. Em tais sulcos cai a semente de que

brotarão, mais tarde, os sonhos da Idade de Ouro, o menosprezo do cultivo e do canto

à vida rústica, da novela pastoril, bem como o horror de Dom Quixote às armas de

fogo. Aqueles que não derivam toda a sua substância da terra em que vivem, esses

terminam por deixar de serem eles mesmos, se desintegram”. 37 Por tal motivo, o

ministro de Carlos III (1716-1788), Gaspar Melchor de Jovellanos (1744-1811), dirá que

a posse da terra, na Espanha, acontece “somente como uma especulação de orgulho e

vaidade”. 38

O agrarismo espanhol passa a Iberoamérica. O elogio do rústico é um dos

leitmotivs da literatura colombiana do século XIX. O sentimento rural fazia valorizar a

literatura virgiliana entre as classes cultas da Colônia e da República. A respeito deste

ponto frisa Jaramillo Uribe: “O sentimento a que fazemos referência é sentimento

específico da terra, como aquilo que não perece, aquilo que é autêntico. Não é

36

Cf. MANNHEIM, Ideología y utopía, ob. cit., p. 14-19. 37

CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 35. 38

JOVELLANOS, Gaspar Melchor de. Informe sobre la Ley Agraria. Madrid: I. Sancha, 1820. Edição digital http://www.cervantesvirtual.com/obra/informe-sobre-la-ley-agraria--0/ [Consultada em 25-04-2014].

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sentimento da natureza à maneira renascentista ou segundo o estilo exótico, de certo

tipo de alma romântica”. 39

Essa morfofania do espírito ibérico que se exprime na posse nobiliárquica da

terra, é acompanhada de outras formas concretas para representar um papel social.

Elas são descritas da seguinte forma por Jaramillo Uribe: “A burocracia, o serviço

eclesiástico e o exército – as armas e as letras – eram as formas de vida preferidas pelo

espanhol. A superabundância de empregados, o séquito nobiliárquico e os

funcionários eclesiásticos, quer dizer, as classes improdutivas constituíam, desde a

Idade Média, um traço característico da vida peninsular”. 40

A morfofania como expressão do espírito racional aparece também no Brasil,

onde o espírito conservador se manifestou durante o século XIX, numa valorização

muito forte da vida camponesa e da vinculação à terra, e no culto à figura do

Imperador como personificação viva da Nação. Eis as palavras com que João Camillo de

Oliveira Torres caracterizava este fenômeno: “(Os conservadores brasileiros) não

negavam a liberdade, nem a amavam menos do que os outros. Somente sabiam que a

liberdade não se preserva unicamente com palavras, gestos e hinos, mas que requer

condições efetivas e bem fundadas na realidade (...). Pelas suas relações mais íntimas

com as bases rurais da vida nacional, pelo seu realismo e a sua objetividade, que os

tornavam imunes ao lado perigoso do liberalismo, que é a retórica, os Saquaremas, no

fundo, defendiam uma política mais consistente, mais autêntica. Lendo um Uruguai,

sentimos literalmente o cheiro da terra. Eram homens que viviam a realidade concreta

do país em que estavam, não do país em que gostariam de estar (...). Nada prova

melhor a disposição mais fiel dos conservadores em relação à realidade nacional, que a

sua defesa do Poder Moderador, quer dizer, da autoridade do Imperador. Os liberais

queriam um parlamentarismo de estilo inglês, que reduzisse o Imperador à posição de

meio juiz do jogo, que governasse de acordo com as maiorias parlamentares. Mas

acontece que por força das condições puramente sociais do país (densidade

demográfica, população praticamente rural, etc.), a vida eleitoral era impraticável.

Faltava o que havia na Inglaterra: uma população urbana densa, uma classe média

sólida. Ora, o Imperador (além de ser um tipo de autoridade sensível à imaginação

popular, e respeitada), podia substituir como primeiro representante da nação o corpo

eleitoral, que de fato não tínhamos. E que tampouco poderíamos ter”. 41

Na Alemanha, a busca pela morfofania como meio de expressão do espírito

nacional foi efetivada por Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832) e a Escola

Histórica. Contrastando com a pretensão liberal de identificar a ideia com uma

construção abstrata da mente e de buscar ali a racionalidade do mundo, os

39

JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 19, nota 22. 40

JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 14-15. 41

TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. XIV-XV.

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conservadores alemães do século XVIII buscavam a racionalidade, ou melhor, o sentido

da realidade, em dois tipos de concreção morfológica: o espírito subjetivo e as criações

culturais.

A primeira tendência é representada, por exemplo, por Adam Heinrich Müller

(1779-1829), que afirmava que nada pode substituir o espírito de um povo, como

fonte de toda a vida social e cultural. A propósito, escrevia: “A constituição dos Estados

não pode ser inventada, o cálculo mais lúcido neste assunto é tão fútil quanto a

ignorância total. Não existe nenhum substituto para o espírito de um povo, nada pode

substituir a força e a ordem que dele procedem, e não se pode encontrar nada de

parecido nem sequer nos espíritos mais brilhantes nem nos maiores gênios”.42 Esta

ideia é expressada, em termos mais amplos, por Friedrich Carl von Savigny (1779-

1861), para quem o sentido da realidade humana provém do espírito que está em nós

como uma força que trabalha silenciosamente e que agiu, através de nós, para realizar

as nossas obras.

A busca alemã pelo sentido da realidade na concreção morfológica das criações

culturais é realizada por Hegel, mas principalmente é Goethe quem se situa nessa

perspectiva e a desenvolve. Segundo Mannheim, o espírito humano, em tal

perspectiva, está presente em nós como uma enteléquia43, “(...) que se desenvolveu a

si mesma nas criações coletivas da comunidade, do povo, da nação e do Estado, como

uma forma interna que, na maior parte das vezes, pode ser apreendida

morfologicamente. A perspectiva morfológica, focalizada em direção à linguagem, à

arte e ao Estado, se desenvolve a partir deste momento. E mais ou menos ao mesmo

tempo em que a ideia liberal traduzia a ordem existente em movimento e estimulava a

especulação construtiva, Goethe renunciava a esse método ativista para se dedicar à

contemplação: à morfologia”. 44 É efetivamente com ele que começa a utilização da

percepção intuitiva à maneira de instrumento científico. Em alguns aspectos, o método

seguido pela Escola Histórica, na Alemanha, é semelhante ao de Goethe. Ambos vão

rastreando a emanação das “ideias”, mediante a observação de diferentes

manifestações culturais como a linguagem, os costumes, o direito, etc., e não através

de generalizações abstratas, “(...) mas preferentemente por intuição simpática e

descrição morfológica”.

42

MÜLLER, Adam Heinrich. Uber König Friedrich II, und die Natur, Würde, und Bestimmung der

preussischen Monarchie. Berlin: Sander, 1810, p. 49, cit. por MANNHEIM, Karl, Ideología y utopía, ob. cit., 307-308. 43

É em face desta entelequia, interpretada (à maneira espinosana) como uma força supra individual que age nos seres humanos, que se insurge Alexis de Tocqueville. Por esse motivo, o pensador francês rejeita a Escola Histórica alemã. 44

MANNHEIM, Karl, Ideología y utopía, ob. cit., p. 306-308.

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4 - Descoberta do tempo como criador de valor ontológico e de ordem.

No conservadorismo se dá a descoberta do tempo como criador de valor óntico

e de ordem. Uma frase de Giuseppe Salvioli (1883-1950) exprime muito bem essa

ideia: “O presente, mesmo depois das mais profundas revoluções morais e sociais, se

liga ao passado por vínculos de tal natureza que não se poderiam romper sem torna-lo

um enigma”. 45

A mesma ideia acerca do tempo como gerador de valor óntico e de ordem é

formulada por João Camillo de Oliveira Torres desta forma: “Poderíamos definir o

conservadorismo da seguinte maneira: é uma posição política que reconhece que a

existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que as mudanças

sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o

passado e o futuro. Podemos afirmar que o traço mais característico da psicologia

conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as

transformações e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica. Mais

ainda: o conservador considera impraticáveis e condenadas ao suicídio, todas as

reformas fundadas unicamente na vontade humana, sem respeito pelas condições

preexistentes. Podemos reformar, mediante um processo de cautelosa adaptação

daquilo que existe às novas condições. Mas não poderemos conseguir nunca o

estabelecimento de algo radicalmente novo”. 46

O que pretende uma posição autenticamente conservadora? A esta pergunta,

responde Oliveira Torres: “(...) Uma política autenticamente conservadora não

pretende mais do que exigir que a história seja respeitada. Não tomando a iniciativa de

reformas, a menos que isso seja uma condição de preservação, uma reforma para

evitar uma revolução. O conservadorismo busca acompanhar as transformações de

forma a defender o princípio de que, como frisa justamente Augusto Comte, o

progresso seja o desenvolvimento da ordem. O conservadorismo se justifica pela

convicção, perfeitamente legítima, de que há valores permanentes na vida social e de

que certos bens devem ser preservados”. 47

Karl Mannheim enfatiza que o sentido do tempo para a mentalidade

conservadora é completamente oposto ao do liberalismo. Enquanto que, para este, o

futuro é tudo, “(...) a forma conservadora de experimentar o tempo encontrou a

melhor corroboração de seu sentido da determinação, na descoberta da importância

do passado, na descoberta do tempo como criador de valor (...). Para o

conservadorismo, tudo quanto existe possui um valor nominal e positivo,

simplesmente porque chegou a existir lenta e gradualmente. Em consequência,

45

Apud MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, epígrafe. 46

TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 1-2. 47

TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 5-9.

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ademais de que a atenção se volta para o passado e para o esforço de resgatá-lo do

esquecimento, aquilo que há de presente e de imediato no conjunto do passado

converte-se numa experiência real”. 48

Essa valoração do passado como criador de valor óntico e de ordem, leva a uma

conclusão no plano da exigência de uma ordem hierárquica na sociedade. Charles

Wright Mills, ao comentar este aspecto da mentalidade conservadora, frisa: “Se não

destruirmos a ordem natural das classes e a hierarquia dos poderes, teremos

superiores e caudilhos” que nos orientem. 49 Isto equivale a afirmar que, para a

mentalidade conservadora, constitui um princípio indiscutivelmente válido aceitar,

com gratidão, a direção de uma série de homens considerados como uma minoria

consagrada, como frisa Russel Kirk (1918-1994) na sua clássica obra intitulada: The

Conservative Mind. 50

Reforçando essa valoração do passado como garantia de ordem e de

sobrevivência, conservadores como Burke se levantam contra o “espírito de

novidade”, como muito bem sintetizou Robert Nisbet (1913-1996), na bela obrinha

intitulada Conservadorismo. A respeito escreve: “Aquilo que Burke e os seus

sucessores combateram é o que ele denominou de espírito inovador. Ou seja, a

adoração vã da mudança em si mesma, a necessidade superficial, mas penetrante, que

sentem as massas de distração e excitação através de novidades sem fim. O espírito de

inovação é particularmente letal quando se aplica às instituições humanas”. 51

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), no clássico livro

intitulado: La rebelión de las masas, já tinha traçado um quadro bastante amplo desse

imediatismo, no contexto da caracterização do denominado homem-massa, que

passou a ocupar todos os espaços sociais após as grandes reformas econômicas e

políticas acontecidas na Europa ao longo do século XIX e que se espraiaram pelo

mundo afora no decorrer do século passado. A mais completa fotografia desse homem

se dá no seio da politização total que, à maneira gramsciana, tomou conta do universo

social ao longo do século XX.

Eis o quadro verdadeiramente trágico que Ortega desenha desse ser humano

massificado, imediatista e efêmero, no seu Prólogo para Franceses: “O politicismo

integral, a absorção de todas as coisas e de todo o homem pela política é a mesma

coisa que o fenômeno da rebelião das massas descrito aqui. A massa rebelde perdeu

toda a capacidade de religião e de conhecimento. Não pode conter mais que política,

uma política exacerbada, frenética, fora de si, visto que pretende suplantar a religião, a

48

MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía, ob. cit., p. 308. 49

MILLS, Charles Wright. La elite del poder. Ob. cit., p. 303. 50

KIRK, Russell. The Conservative Mind: from Burke to Santayana. 1ª edição. Chicago: Henry Regnery Company, 1953. 51

NISBET, Robert. Conservadurismo. (Tradução espanhola de Diana Goldberg Mayo). Madrid: Alianza Editorial, 1995, p. 46.

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sagesse, enfim, as únicas coisas que por seu conteúdo estão aptas a ocupar o centro

da mente humana. A política priva o homem de solidão e de intimidade, e por isso a

pregação do politicismo integral é uma das técnicas usadas para socializa-lo”. 52

Quadro, aliás, bastante fiel do homem massa brasileiro, moldado nos

laboratórios do lulopetismo nestes últimos onze anos, no contexto de uma

nauseabunda degradação do espírito público ensejada pelo maior processo de

corrupção conhecido na história brasileira.

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