A Merda Do Mundo

48
A MERDA DO MUNDO Arcângelo Ferreira - Thiago Roney CAPA - Renata Braga

description

Doc

Transcript of A Merda Do Mundo

Page 1: A Merda Do Mundo

A MERDA DO MUNDO

Arcângelo Ferreira - Thiago Roney

CAPA - Renata Braga

Page 2: A Merda Do Mundo

REVISÃO - Klauber Renan e João BezerraDIAGRAMAÇÃO - Thiago Roney

1ª Edição Janeiro de 2015Manaus – AM

ISBN 978-85-914087-1-9

Publicações editadas pelo editor autor, na Agência Brasileira do ISBN, Thiago Roney Lira Borges.Contato: [email protected]://thysanuraedicoesderua.wordpress.com/

Page 3: A Merda Do Mundo

à memória de Enoque Barbosa, poeta insone.

SUMÁRIO

Nota dos autores

Page 4: A Merda Do Mundo

Pausa

Os minotauros de Pancrácio

Está feito

O cano duplo da anarcossindicalista

O Velázquez de Danúbia

As transfigurações de um tempo imóvel

A merda do mundo

O baile das carnes

A fenda e as pedras

Quando o teu olhar cortou minha memória

Apiemieke?

Sobre os autores

Nota dos autores

Page 5: A Merda Do Mundo

Os contos que compõem este livro começaram a surgir, em 2013, a

partir de dois acontecimentos provenientes de nossa amizade.

Primeiro, quando um, em tom de brincadeira, fez uma intervenção no

escrito literário do outro. Segundo, quando, numa mesa de bar,

despretensiosamente, discorremos sobre a possibilidade estética de

ler/escrever um conto como uma fotografia (aquelas dos álbuns de

família, por exemplo) ou um quadro (como Miséria, de Hahnemann

Bacelar). Começamos, então, a levar a sério as duas propostas. Um

iniciava um conto, construindo o primeiro parágrafo ou uma frase; o

outro seguia e depois devolvia, ou vice-versa. No final, discutíamos o

resultado e reorganizávamos as construções até chegar a um eixo.

Daí desencadeavam os enredos, às vezes, como um mosaico de

imagens inscritas na temporalidade intangível que aos poucos foi se

delineando. Tempo que o leitor atento decifrará através das alegorias

aqui construídas. Não decidíamos antes, portanto, qual temática seria

abordada em cada conto, apenas verificávamos depois o que emergia

das ideias entrelaçadas. Com o processo, à medida que fomos

deixando, de forma subsumida, mas não abandonada, a ideia do

conto como fotografia-quadro, percebemos uma temática forte

compondo e rondando os contos gradativamente construídos. Então,

decidimos seguir a temática. Elaboramos todas as narrativas nessa

perspectiva, com pontos de contato entre si. O curioso é que nunca

lemos, antes de escrever este livro, obra literária de composição

conjunta. Apenas fomos informados, através de resenhas literárias,

ou dialogando com pessoas ligadas à Literatura, sobre experiências

do tipo, como a de Jorge Luiz Borges e Bioy Casares. Enfim, todos os

contos foram escritos a quadro mãos, exceto Pausa e As

transfigurações de um tempo imóvel, de Arcângelo Ferreira, e O cano

duplo da anarcossindicalista e Apiemieke?, de Thiago Roney. Este

último contém algumas frases retiradas na íntegra do 1º Relatório do

Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do

Amazonas enviado à Comissão Nacional da Verdade, o qual virou livro

em agosto de 2014 pela editora Curt Nimuendajú.

Page 6: A Merda Do Mundo

A.F e T.R

Page 7: A Merda Do Mundo

¿El hombre es carne que cubre a una metáfora, ouna metáfora que recubre la carne?

Manuel Scorza

Pausa

Era como se um labirinto descesse do meu nariz.

Horas. Olhares. Escaravelhos. Libélula. Aracnídeos. O Tempo

também pode torturar o tempo. No final, saí dessa reunião com

tonturas. O lenço que segurava em minha mão tinha uma minúscula

poça de sangue. Na rua os meus passos enfraqueceram, e eu percebi

que estava indo embora de minha vida. Jamais seria o mesmo. Antes,

o fundo da sala estava oculto. Lugar que preferi pra fingir meus olhos

fechados. Mas, logo fiquei decepcionado com o impulso repentino.

Acho que fiz a escolha no afã da hora. Sem pensar. Era tarde. Teria

que enfrentar o medo unânime. Iriam abrir cofres. Ver as folhas.

Úmidas apesar do Tempo. As frestas acenderam vozes. Vieram mudas

depois de tanto tempo na surdez ansiosa de chaves. Surgiram no suor

dos passos contínuos. Será que todos estavam preparados pra

auscultar esses corações batendo silenciosamente? Será que o Tempo

estaria preparado? Eles entraram. Todos ficaram de pé. Lembrando

missa e turíbulos. O odor de incenso.

Veio o dia em que você surpreendentemente gritou, Não, não

façam isto, eu falo tudo que vocês quiserem. Imediatamente eu

pensei, a passos de caranguejo, Cagão, filho de uma puta! Eu era

ainda um jovem indeciso. Vi aquele vulto dizendo ao final da fala, Meu

coração está coberto de neve. Todos aplaudiram e emanaram outras

palavras do teu logro. O encanto foi imediato. Os gestos suaves num

discurso feroz como um vaga-lume no breu da noite, veloz. Agora

esta cena horripilante. Mas usei a tática do silêncio. Esperei as folhas

se acalmarem. Meus passos eram invisíveis, após horas me vi deitado

no chão. Fito os olhos naquela fotografia pós-moderna: um vulto num

plano primeiro, segundo, as cores vivas do fim do dia. Logo o homem

Page 8: A Merda Do Mundo

cai de joelhos. Seu gesto sinaliza pavor. Medo da ausência da vida.

Prefere fazer uma opção, nunca mais existir. Não façam isto!

Abri meus olhos. Era preciso depois de tantos anos. Seria

covardia fingir fechados. Sair daquele canto da sala. Estender o brilho

aludido de meus óculos. Alguém puxou palavras escritas e iniciou a

leitura de um manuscrito de 1969. Dragão de três cabeças. À frente,

lança pontiaguda. Mas o silêncio que vinha das palavras continuava

enfiando o vão no buraco do mundo. Outro dia veio. Veio outra vez o

dia em que, clandestinos, chegamos com sonhos eternos. Mas

tínhamos que nos ancorar nos braços de grupos humanos raquíticos

como os nossos para podermos dormir, e acordar, e dormir, e correr,

e gritar, silenciar, furar, ferrar. Lembrei-me do amor que um dia deixei

para trás: assovios sombrios, melódicos, um breu, o fogo de rajadas

ferozes. Pensar, repensar, chorar. Parar de baixo da centenária,

acender, viajar no fruto de um beijo. Os teus? Nunca mais! Meu

primeiro bolero aos dezessete, odores de putas, a foda, 64. Sublime

como uma loba e nunca mais eu serei aquilo que deixei de procurar.

Serei esse Outro que consome minhas lembranças.

Abriram mais uma pasta, após o ranger da gaveta. Um barulho

de ferrugem arrastado pelo ferro na alma daquela gente sedenta,

mas apavorada de tudo. Era preciso ter coragem para ouvir as portas

se abrindo. Possível ver o suor desmoronando os dentes serrados,

escondidos por lábios trêmulos. Gargantas engolindo bocas. 1970.

Foice ceifando olhos juvenis, as tardes e praças abarrotadas de

elmos. Santa gritava, gemendo de dor na imensidão das folhas

policromas. O sol entrando por fissuras como uma claraboia natural.

Às vezes tropeçávamos na luz ínfima. Com cuidado para não pisar em

poças de líquidos densos e leitosos, amarelos como o rio que

escondia monstros imaginários. A caixa se abria, e rezavam nomes

que nasciam da violência subsumida no Tempo. Era como se

pudéssemos ver a cara da morte.

Meus passos se alargavam quando o dia era de reunião.

Encontrava muitas meninas com cores nas mãos e olhos arregalados.

Melhor tempo de uma de minhas personas. Não havia regra.

Page 9: A Merda Do Mundo

Liberdade. Eu tinha muitos irmãos, não os podia contar. Saíamos do

colégio. Depois cinema. Depois a praça. Goles de esperança. Poemas

em prosa. Prosa poética. Dialogávamos com árvores, prédios. Chovia.

Tirávamos as roupas. Corríamos nus. Balançando turíbulos. Odores de

chuva batendo em paralelepípedos. Lambendo nossos desejos. Abri

os olhos. Fumaça. Longos dedos. O labirinto saindo dos meus ouvidos.

A surdez e a memória que vão longe. O sorriso de meu irmão mais

velho. A gargalhada de meu pai à mesa. Minha mãe tão linda. Eu

criança. Apague a luz. Mas não esqueça a salve-rainha.

Uma letra quase ilegível me chamou a atenção. Finalmente eu

havia encontrado? Mas estava difícil decifrar, mesmo para alguém

que já havia feito vários cursos de paleografia. As palavras revelavam

muita dor, latente em um discurso cremado. O movimento das

borboletas ficou dissimulado, manipulado, transpassado de rasuras

propositais.

Saí da sala com o nariz sangrando. Escorria um labirinto de

minha memória. Uma dúvida, aquela assinatura saturada de Tempo

seria do decrépito coronel Pancrácio? O mesmo que havia puxado o

gatilho com o cano mirado para aquela boca da qual eu não ouvi

vaga-lume nenhum dizendo, a plenos pulmões, Vou partir a geleira

azul da solidão.

Tudo é pausa na dança das imagens que, incansável, me

persegue. Qual seria o lugar das lembranças, onde se inscreve a

Memória?

Page 10: A Merda Do Mundo

Os minotauros de Pancrácio

O espelho me partia em dois.

O imprescindível é não parar de calçar os sapatos, meu caro,

seja qual sejam os nós, dizia feito um minotauro com os pés quarenta

e seis se arrumando sobre a cama. A silhueta no espelho denunciava

a imaginação: uma criatura que calçava sapatos. Era, sobretudo, o

Meu caro e o Nós que também confundiam minha cabeça, além da

presteza do vestir a farda, o impiedoso trato com a mulher e a

humanização de Alfrede, o bichano. O mundo ensinou a ele que

sapatos dizem tudo sobre os pés que os calçam. Tinha inveja de

Alfrede. Jamais ele teria que dizer impecavelmente as palavras certas,

dar nós e calçar sapatos pretos, marrons, como se fossem espelhos

sempre a refletir um sisudo olhar. Paradoxalmente, olhar-se nos

espelhos da casa era o momento mais triste do dia. Duro era se ver

trasvestido naquela farda bicolor. O único modo de manter o dia

como um dia normal parecia ser sempre calçar os sapatos, mesmo

com tantos nós.

Eu odiava assistir à televisão, sobretudo aos noticiários. Hoje

não me dou o trabalho de ver o batalhão de solidão, um comboio de

Page 11: A Merda Do Mundo

ressentimento, reprimir sonhos, e atropelar desejos. Cansei de ver

meu minotauro por trás dos pixels irreais da realidade. Não sei, mas

alguma coisa me forçava a assistir àquilo. Algo insólito nesses

primeiros instantes do terceiro milênio, principalmente aqui nesse

lugar emoldurado pela solidão. Talvez o tom espetacular tenha tirado

a atenção que por hora depositava nos meus sapatos brancos.

Olhando a poeira sobre a alvura, uma fresta de ira começara a

crescer dentro de mim quando o brilho da notícia chamou a atenção

de meus olhos. Um monstro de muitas cabeças invadindo a história.

Nesse momento percebi que dentro, bem lá dentro, ainda havia a

latente saudade dos velhos tempos. Até deu vontade de olhar os

espelhos da casa. Vi-me assoviando infinitos hinos. Todos os meus

pelos arrepiaram, um filete daquele sangue quente fez meu pau

crescer. Estava feliz. Finalmente um acontecimento digno de

ressurreições. Cena espetacular, o passado vazando por um furo no

presente. Como uma criança, bati pequeninas palmas. Porque o

passado e o presente são duas mãos do mesmo corpo a aplaudir. E a

vibração sonora dessa palma se bifurca nas Histórias, sobretudo,

fissuradas nas frestas de nossos nós, na nossa pequena história

familiar.

De quando em quando, ao fim do dia, a farda voltava com seu

sapato sujo. Acariciava o Alfrede com um carinho marrom encarnado,

dava uma sapatada injusta na Francisca e restava para mim o pesado

Meu caro da criatura mitológica bêbada descalçando os sapatos.

Noutro dia vinha sempre o calçar, eu olhando e me perguntando até

quando. Acordava sempre com o esfregar de Alfrede devolvendo uma

ternura melancólica. Enquanto isso, lá fora, o Negro rútilo cintilava os

meandros da cidade com a mesma calma de sempre, a fúria subia, de

certo, porém, nos tempos perdidos. O rio só não levava os

sentimentos e ressentimentos. Uma dubiedade, entre o amor e o

ódio, eu nutria pelo filho da puta do minotauro.

Francisca, minha mãe e mãe da gente, fez com que carregasse

um rancor, um trauma. Jamais pude me libertar daquele minotauro

refletido na pupila de Francisca. Foi assim, desde quando era menino.

Page 12: A Merda Do Mundo

Fiquei com medo, mas ela me fez crer que os cadarços são as únicas

coisas que não podemos perder nesses labirintos de muitos

minotauros. Muitas vezes furava a sola e eram os fios, doados por

Francisca, feito Ariadne, que me faziam sair da escuridão. Aliás, o

presente é cheio de quartos escuros. É nessas horas que penso na

importância dos cadarços, Meu caro. Talvez sejam eles que sustentam

a necessidade de calçar os sapatos. Mas como desatar os nós

emaranhados pelo tempo? Como desatar os nós enjaulados nos

buracos do contratempo? Como desatar os nós contorcidos pelo

cotidiano de minotauros maiores que o de casa? Como desatar os nós

que afligem Francisca? Como desatar os nós dos sonhos reprimidos

pelo batalhão de fardas solitárias? Como desatar os nós dos desejos

atropelados por comboios de ressentimento? Como, enfim, desatar o

nó que sai da garganta da História aos pés do tempo ao me olhar

translúcido no vidro polido e metalizado que agora reflete minha luz?

Um minotauro sentado numa cama, fissurada por labirintos, calçando

um sapato branco-marrom e, ao lado, com um sorriso de cão, Alfrede,

balançando lentamente o rabo.

Agora, olhando a farda, os sapatos, os cadarços e todas as

vezes que somente eu, mais ninguém, vê essa estranha criatura

chegar e sentar ao lado, me encarar e depois se esbaldar de rir,

reporto-me à franqueza de Francisca e procuro entender por que,

afinal de contas, a mãe da gente resolveu me chamar de Pancrácio,

desde o dia em que vi pela primeira vez no espelho dos seus

misteriosos olhos graúdos brotar minotauros?

Page 13: A Merda Do Mundo

Está feito

Está feito. Não fui. Fiquei.

Preferi descer duas paradas antes. Não! Por algumas horas…

Parei já caminhando pro destino dúbio.

Aquele cão cansado. Olhar dual. Um albino surdo. Na rua…

Disperso, entro no Acaso.

Diverso na ordem de sempre.

Encontro o Memória, acenou pra mim.

Pedi um pouco, um copo e não me atrevi, não disse, mas bem

que fui tentado. Era evidente, estava velho no seu Futuro. Contudo, o

diálogo descreveu minutos mais tarde, a pujança de seu Presente. A

mesma narina aberta pra todos os odores, olhar fraturado e um pouco

de tudo no sangue. Na linha do progresso, ele disse algo um tanto

incoerente. Sobre um tal baile de carnes. Percebi um golpe de

Page 14: A Merda Do Mundo

pequena solidão naquele gesto. Iniciei, então, pelo gosto dos

conceitos impossíveis, uma conversa poética, para mudar de prosa:

- Descobriu, Memória, o que é…? – sorri para nosso medo.

- O que é o quê, Panta?

- O que é a literatura? – completei.

O gesto de pequena solidão se desfez. Após alguns segundos,

Memória compartilhou o sorriso e respondeu baixinho, com medo dos

policiais de ideias:

- É uma faca pontiaguda, Panta.

- Uma faca pontiaguda? – perguntei incitando o novo no eterno.

- É, Panta, uma faca pontiaguda abrindo uma fenda na

realidade! – respondeu sorrindo. Enquanto entornava o copo,

reconheci a necessidade e a beleza do vagão do Acaso.

Muitos contos se passaram naquele quase.

O rosnar do meiaonze me fez lembrar, Albino! O terror de ser

capturado pelo terrível crime de conversar em grupo, ou, pelo crime

mais abominável de viver.

Memória, sutilmente, percebeu o cincoprasdoze me

perturbando e disse aquilo que eu queria ter fotografado…

À sombra, à luz, o Negro entrando pelas fissuras da cidade

velha, e continuamos, às gargalhadas. Memória recordou meus

rabiscos poéticos da última folha do Dança Imóvel. Tecidos no grafite

do tempo da velha casa dos estudantes por nós compartilhada.

Aquela das histórias enraizadas nas argamassas da alma.

No contratempo do gesto descuidado do garçom, Memória pôs-

se a recitar os riscos:

Deixarei meus registros

Em poemas esquecidos

Entre Scorza e orgias

dionisíacas

Que guardo em gavetas

sem maçanetas

que nunca serão abertas

e descobertas

Page 15: A Merda Do Mundo

O garçom sorriu, encheu os copos e disse com típica expressão

facial: hêiii. E nós, em uníssono, respondemos de volta com um pouco

mais de intensidade: hêêiiiiii. Dialetos boêmios inscrevendo a

eternidade do momento. O tempo aberto e descoberto. E não é que o

filho da puta do Memória abriu as gavetas! À sombra, à luz, o Negro

entrando pelas fissuras da cidade velha, e continuamos, às

gargalhadas.

Nossas costelas estavam quebradas quando à nossa mesa

chegaram salmonelas pululando das mãos sebentas

do infidofinito Teutônico.

Olhei o cão em meu braço. O meianoite já passava das duas. A

onça lá fora já rondava, noutro vagão do tempo, estava forjada. Já

era.

Fiquei. Não fui. Está feito.

O cano duplo da anarcossindicalista

Não que eu estivesse tão incomodado com o fato em si. As

plumas do meu travesseiro continuam confortáveis. A merda é a

memória da quebra de critérios. Além do mais, o céu brindava

sempre comigo. Só depois disso as pálpebras fechavam a visão na

hora do desfalque. Mirar. Pow! A vida resignava, mas com pulsão.

Sentia, por vezes, ser o intangível. As regras comigo sempre foram

claras, não topo: primeiro, crianças; segundo, velhos; terceiro,

escritores; quarto, anarquistas; quinto e último, gente com urina de

cheiro agradável. Descobri, tarde demais, a falta de um sexto critério:

Page 16: A Merda Do Mundo

não trabalhar pra um amigo. André recorreu aos meus serviços.

Fechamos a certeza nos quatro primeiros critérios, faltava o último.

“Um puto como você não pode ter critérios, vai lá e mata”, André

bruto como sempre me disse isso. Não sei, posso não ser polido, mas

acredito ainda no amor.

O cheiro doce de urina lembra o amor de minha mãe. Quando

criança, ela não sabia, mas, de olhos fechados, eu ficava esperando

ela chegar. Entrava devagar, deixava os saltos do lado de fora para o

assoalho não ranger; abria a porta do banheiro e mijava. De lá, e com

ela, vinha o cheiro doce de sua urina e um beijo. Era depois desse

instante que eu dormia. Hoje me recuso a matar quem mija doce, por

isso. Quem mija doce tem amor no coração. Acho que foi o amor de

minha mãe que me fez criterioso. E, talvez, daquele velho anarquista

que, de quando em quando, mijava um cheiro ébrio trazido das

agruras do mundo. Um velho que vivia para organizar os

trabalhadores de sua fábrica para não trabalhar. Nunca entendi isso,

mas aprendi a aceitar o modo de ser do pai, vislumbrando o andar

cambaleante dele, ao sair do banheiro, com aquele cheiro forte no ar

em plena madrugada, para lustrar o revólver guardado em cima do

armário. Na época, eu pensei que o efeito do andar era causado pelo

ímã instalado na arma anarcossindicalista (ele sempre falava essa

palavra a qual associei em certa altura à arma) e outro instalado na

sua cabeça por detrás das ideias mirabolantes.

André me colocou numa forca feita de memória. O pior é que eu

atirei, e veio a tormenta da forca. Estou pendurado na forca de

memória e não estou mais conseguindo matar para morrer. O

tormento da forca é uma fotografia da família reunida em preto e

branco com bastante ruído e gritos abafados nas expressões faciais.

Vejo, da esquerda para a direita, o anarquista, a puta, o metido a

escritor, minha vó com meu sobrinho nos braços e eu olhando para o

revólver no armário do pai. Evidentemente, o meu olhar não pode ser

decifrado por todos que olham a foto, pois, para poder me ver de

frente, o olhar da foto devia ser o olhar do cano da anarcossindicalista

em cima do armário, ou pelo menos próximo ao seu ângulo. Essa é a

Page 17: A Merda Do Mundo

fotografia que não podia ser revelada. E só o fato de matar alguém

com essas características, eternizadas no ruído do negativo da

fotografia, revelaria a foto um tanto guardada e seu núcleo esquecida

numa gaveta da memória. O critério é a fotografia. Porra, o André me

fodeu. Por que ele não conseguiu decifrar nos meus olhos esse sou

matador de aluguel criterioso por amor? Na verdade, a culpa é minha.

A porra é que não aprendi a dizer não para um amigo. Hoje vejo a

necessidade de um sexto critério: não fazer o serviço para um amigo,

nunca.

Logo o Malatesta não imaginava. Acho que é coisa velha do

amor deles, dessas que vêm desde a juventude. André também é

daqueles que havia muito usava as anarcossindicalistas, mas pelas

mãos dos outros, no serviço sujo de sua empresa. Mas, também,

sempre teve ódio de Malatesta. O amor e o ódio sempre nessa dança

dionisíaca. O problema é que ele é esse metido a escritor na

fotografia encardida na parede da memória e, além de tudo, era e

continua sendo amado. Foi ele, inclusive, que me ofertou os primeiros

goles de esperança. Declamava um poema retirado do bolso

esquerdo de sua camisa: nem pátria/nem patrão/o Estado rouba o

pão. E quando descíamos a Alameda das Acácias cantarolava: Vila

esperança, foi lá que conheci Maria Rosa meu primeiro amor. Como

poderia matar o Malatesta, caralho? “Um puto como você não pode

ter critérios, nem coração!”, rangia bruto no meu ouvido André.

Talvez o último critério eu tenha criado para não ter que matar

alguém que representou um vazio preenchido em minha vida, mas o

André foi logo me pedir pra fazer isso. Como matar um homem que

me ensinou a ver o significado das sombras? Como, por outro lado,

não matar para um homem que sugeriu minha profissão ao me

apresentar para seu Orlando Vizzini, depois que aquele general filho

da puta chamado Pancrácio fodeu com meu pai e minha mãe,

naquela noite em que lhe bati a porta pedindo uma cama quente, um

prato de comida e um emprego?

Fiquei mais transtornado ainda quando Malatesta me ligou

naquela noite e me fez um pedido sem saber de nada. Confesso que

Page 18: A Merda Do Mundo

não gostava quando André me chamava de “puto”, só porque não

tive a capacidade ou habilidade de ser um sindicalista nem um

escritor. E depois, minha mãe para além de puta (e qual era o

problema disso?) era minha mãe da urina doce e do beijo de boa

noite, porra! Cabe-se um respeito que André desconsiderava. Na

agonia dos pedidos, recordei a voz de mamãe no café cantando para

me acalmar: Non... rien de rien...Non... je ne regrette rien…Ni le bien

qu’on m’a fait, Ni le mal - tout ça m’est bien égal!. Emaranhados de

cheiros, sons e memórias pululavam no tambor de minha cabeça, ora

me tranquilizavam, ora me atormentavam. Tomei uma resolução.

Marquei um encontro, na Alameda das Acácias, com os dois.

Eu fiz, atirei. Como poderia deixar de ouvir o Malatesta? E seu

pedido? Percebi que a vida é uma anarcossindicalista de dois canos

mirados em uma única direção. É impossível ficar na sombra de uma

fotografia, pois a fotografia é a própria sombra. É imprescindível

escolher a direção do cano. De um lado André, do outro Malatesta. Eu

fiz. Eu atirei. Agora, mesmo assim, sou enforcado pela memória de

uma velha fotografia que tem cheiro de urina doce.

Page 19: A Merda Do Mundo

O Velázquez de Danúbia

Há muito tempo tento sair dos limites desse quadro pintado

por Danúbia; por culpa do silêncio, no entanto, permanecia

enxergando esse quadro absurdo. Depois que ela se fez cores no chão

ao redor do prédio do apartamento sinto como se minhas costas

fossem uma carreta, afundada no asfalto quente, pesando setenta e

nove toneladas de silêncios. O Grito pintado no chão como

autorretrato em cores vivas foi insuportável. Preciso pintar outro

Pancrácio, outro quadro, mais verossímil.

Agora, a luz da luminária denuncia que o velho Pancrácio ainda

se encontra no andar intermediário. É hora de esvaziar a minha

carreta, de sair dos estranhos limites do quadro moldado por

Danúbia. Hesitante, topei no primeiro degrau da escada a caminho do

mezanino. Cambaleei e, de relance, à procura do equilíbrio, dei com a

mão em cima do bigode do Velázquez, primorosamente pintado por

ela, no quadro pendurado a minha esquerda. Eu tenho que contar

tudo a ele, ao velho nojento, o que vi, o que sei. Comecei a subir a

escada como se eu fosse um gato, delicado e arisco, medindo as

curvas do desequilíbrio do silêncio para fugir do medo. Mas a

coragem é uma ponta quase invisível no meio do imenso mar do

medo. Titubeei, estatelei, lembrei, três longos passos eu havia

percorrido, pareciam quilômetros de pensamentos.

Percebi que minhas mãos apertavam com força meus dedos,

que suavam. Será que devo? Meu coração parecia coberto de gelo.

Um náufrago no Amarelo do medo. Com ódio, opróbrio. Como

começaria o diálogo? Eu me perguntava enquanto pensava em

alguma frase poderosa como das placas do caminhão do velho. Mas

nada, estava afundado no asfalto quente com o tortuoso silêncio

censurando as palavras. O caminhão do velho Pancrácio pode até ter

a força de mil novecentos e sessenta e oito cavalos, mas sua carreta

Page 20: A Merda Do Mundo

não pode suportar um homem derramando um silêncio de setenta e

nove toneladas de pútridos sujos oriundos de seu bigode. A escada é

como o sinuoso aclive do tempo esburacado. Em cada degrau, um

buraco; em cada buraco, lembranças; em cada lembrança, silêncios

sujos; e em cada um desses emergia do fundo Danúbia.

“Bia, meu amor, não demora!”.

Mas já vão anos nesse vão entre um degrau e outro.

“Núbia, sei que é difícil, mas...!”.

A escada, o degrau.

A coragem parece se esvair. Ninguém foge do passado. Ele

carrega a fotografia do tempo na fase mais pesada da existência.

Olhar pra trás é como olhar pra trás pelo retrovisor do caminhão de

Pancrácio. O olhar Monalisa de Danúbia nos acompanhando o tempo

todo. Mais um degrau, mais um buraco. Neste vejo As meninas de

Velázquez. A família tentava fazer de Núbia uma Margarita Teresa do

rei Felipe IV, sobretudo, pela luz projetada pelo velho. Pancrácio era o

Velázquez desenhando essa Danúbia; ao fundo na sombra, eu era o

camareiro Dom José deixando um soslaio enquanto subia essa escada

e não sabia.

“O tempo é um Velázquez perverso, Pancrácio. Ele muda a

perspectiva e redesenha as coisas trocando as luzes e as sombras.”

Essa não seria bem uma frase de traseira de caminhão,

reconheço, mas poderia começar a descarregar o silêncio com ela. A

cônica luminosa do mezanino perfaz, parece, o espectro de Danúbia.

Subo mais um degrau. O tempo é mesmo esse poema de amor e ódio

deixado nos muros de Pompeia. O reflexo do retrovisor mostra um

passado infinito, como um deus, o mais triste. É preciso enfrentar o

olhar de Velázquez atravessado no olhar de Teresa. É preciso deixar

de acreditar no imaginário deixado no aço do retrovisor por Danúbia.

Como ela pôde pintar um Pancrácio daquele jeito depois de receber à

força uma carga de sua sujeira? O presente também é pesado. Insisto

em fazer desses degraus vãos eternos. Sei que eles só são vãos. Sei

que um vão é uma caverna de muitas gargantas. Preciso vencer a

Page 21: A Merda Do Mundo

solidão do Tibre, mamar na loba, matar meu medo. Revigoro a

coragem.

“Pancrácio, esse vão é a chave pra mudar o mundo!”.

Bem que posso começar assim, contundente. Desviar um

pouco o foco para no fim quebrar o silêncio de setenta e nove

toneladas. Mas como suportar a presença imponente de seu bigode?

O mesmo bigode sujo pelos desejos da estrada tão bem camuflado na

pintura de Danúbia, que de maneira amável redesenhou como o de

Velázquez, tentando aproximar distâncias, mas a arte não conseguiu

esconder as sujeiras do tempo. Danúbia, irmãzinha besta, como podia

enxergar Pancrácio daquele jeito? Entendo seu fascínio pelo

Velázquez, mas projetá-lo num bruto general nojento disfarçado de

caminhoneiro, depois de tudo aquilo?

O último degrau ficou mais íngreme com a proximidade e

verossimilhança do espectro de Danúbia projetada pela luz da

luminária no mezanino, ou, pela luz pesada do meu silêncio, talvez,

não sei. Não há mais chão que suporte o peso da carreta, o asfalto

cedeu para um abismo. Que tal ser direto e incisivo: “Pai, sabe aquele

dia da Danúbia?”, começo a pisar no último degrau, “pois sei o

motivo de ela ter feito aquilo”, bem ao fundo num canto está o velho

sentado ao lado da mesa com a luminária, “a luz também ofusca,

pai!”, alcanço o mezanino, o silêncio adquire oitenta toneladas, mas a

força da presença do bigode é tão absurda que não consigo dizer

nenhuma dessas frases agonizando em minha cabeça; no entanto,

como que para dar certa leveza ao meu silêncio, algumas palavras

escapam:

“Sabe aqueles olhos graúdos à espreita no chão avermelhado

depois do pulo do prédio?” – ele assustado levanta a cabeça, e

continuo antes que eu veja o seu imponente bigode de frente:

“Os olhos de Núbia, pai, pareciam os velhos olhos graúdos da

avó Francisca...” – ainda de costas, antes que ele virasse, terminei de

descarregar o que deveria ser pintado:

Page 22: A Merda Do Mundo

“... pude ver, pai, no espelho das pupilas de Núbia, a terrível

imagem do senhor que ela não conseguiu pintar em vida, um quadro

sujo e nojento com dejetos pútridos do tempo em seu bigode”

Segurando o cu na mão e com o coração na boca, consegui

encarar o Pai de frente sem pintura alguma pela primeira vez. Ao

cabo, esperando uma reação violenta, espanto-me, no entanto, com o

que vejo. Ao me olhar, sem pronunciar uma palavra,

inesperadamente, como se fossem lágrimas, os filetes do bigode do

velho Pancrácio começaram a cair.

As transfigurações de um tempo imóvel

Quando fui levar a carta pro meu irmão que fazia dois anos

estava em Manaus, estudando na Escola Técnica, vi o rosto de jovens

afixados nas paredes externas do correio. Não entendia o significado

da palavra: PROCURA-SE, parecia com os desenhos animados de

bangue-bangue a que assistíamos na TV do seu Lico. Aos dez anos,

aquilo era mais um mistério.

Em casa ninguém sabia me responder. Mamãe apenas dizia:

“Meu filho, uma criança não deve se preocupar com coisas

estranhas”. Aí que tudo ficava confuso em minha cabeça de menino.

Cinco meses que o Carlos havia sumido. E nós nos

perguntávamos pra onde. Os outros colegas do futebol diziam que ele

tinha ido servir no Exército.

Nem sua mãe dava notícias dele. Tudo que fazia era, após a

missa do domingo, ir chorar lá no cemitério. Diante do caixilho de seu

marido, o professor Tomás Meirelles.

Page 23: A Merda Do Mundo

Até hoje a cidade se pergunta: por que aquele homem distinto

teria um fim tão trágico? Qual o motivo de ter se enforcado em seu

próprio quarto? Nem os policiais conseguiram desvendar esse

mistério.

Certa vez, quando fugi para pular n’água lá no trapiche, ouvi o

Beiço-de-moça-branca dizendo a outros estivadores que o professor

Meirelles era vermelho. Fiquei com medo de perguntar o que isso

significava pro papai. Ele, com certeza, iria querer saber onde eu teria

ouvido aquilo. Guardei por muito tempo aquela dúvida.

Foi essa fotografia que me fez voltar. Há o registro da data no

verso: dezesseis de julho de 1969. Era o dia da Santa. Olhando pra

ela, me vêm ao ouvido inúmeras vozes, em uníssono...

Flor do Carmelo

É alegria

Salve!

Salve!

Maria

Salve!

Salve!

Maria

As lágrimas e os pés descalços de paixão anunciavam a

chegada do andor e da gente, sacros.

Da imagem brotam suas transfigurações irreais: um céu no

entardecer. Um sorriso tímido de menino de dez anos de idade sobre

um cavalinho de pau. Seu pai carregando pipocas e guaraná em mãos

fortes de quem trabalha no pesado o dia inteiro. A mãe ainda jovem

em seu vestido novo, esboçando um instante eterno de alegria. Os

irmãos num sorriso largo.

Caminhamos da casa até o arraial de Nossa Senhora do Carmo.

Foi lá que papai chamou o Sócio pra tirar esse retrato: recordação

daquela infância imóvel. Fiquei muito feliz quando, dias depois, ao

redor da mesa no almoço de domingo, celebramos aquela imagem, já

no álbum da família.

Page 24: A Merda Do Mundo

Quanto ao Carlos, lembro-me bem. Naqueles anos, mesmo

sendo muito mais velho que a gente, parava para jogar no gol.

Costumava carregar, debaixo de braços franzinos, panfletos, sempre

bem escondidos, os quais distribuía na frente das escolas, e um livro,

cujo nome do autor certa vez me esforcei pra ler, mas não consegui.

Nunca vi nenhum nome parecido na biblioteca da escola.

Depois de muito tempo, eu iria saber que se tratava de

Maiakóvski. Entendi também que a poesia era a grande paixão

daquele jovem que um dia optou em torna-se um guerrilheiro.

A merda do mundo

Tudo se abriu em cor, mas ainda não era tempo.

O silêncio, espelho invisível da dor, recuperou um tempo nos

olhos fechados do meu amigo. Um mundo se fechou. Aquele quando

arregalados os olhos. Outro se abriu no escuro das lembranças

transitórias. Sabia que, mas o fez, era proibido abrir as fendas,

mesmo aquelas localizadas na pausa da memória. Logo a Voz Imensa

entrou em seus ouvidos sussurrando ferozmente para abrir,

paradoxalmente, o negro de suas minúsculas pupilas.

Page 25: A Merda Do Mundo

- Que bosta, Argemiro, eu ter deixado cair... a chave no buraco

da fechadura.

Ele não parecia preparado para ver cores além do preto e

branco das maquetes. O colorido da realidade perfurou e torturou

Maro; derrocou seu ordenamento jurídico. Violência, diria ele depois,

correndo o tempo, é quando a chave de um mundo se faz fechadura

de outro; destrói-se tudo. Por isso, hoje, é o dia da celebração da data

mais importante no calendário de Maro, uma cidade sem mármores,

com muitas pedras forjadas ao papelão. Depois da primeira

desaparição, ele fundou a data oficial contra a intromissão absurda do

mundo na cidade-mundo. Maro surgiu justamente como soberania da

presença, do palpável, do concreto, como um peso de porta para a

porta ilusionista 69 do mundo. Neste dia, os dedos da mão firmaram,

como ato, um cortejo dos habitantes que ainda possuíam condição

corpórea em Maro, com uma curiosa dança caminhante, enquanto

percorriam até o edifício de papelão, hibridizado, na performance do

estilete, com um corpo sólido de isopor, da Presidência da República.

Nesse momento, jorraram do céu sem nuvens, ao mesmo tempo,

água e pétalas de areias, de forma programada, a cada segundo.

Quando chegaram, então, ao poderoso e soberbo prédio presidencial,

os marosianos desenvolveram a parte mais importante da cerimônia

mítica do grande dia:

Todos eretos levantaram a mão esquerda no ar, num instante,

sincronicamente, como se fossem inúmeras vozes, serraram os

punhos. A Voz Imensa lhes proibiu que falassem. Mas restavam-lhes

os gestos.

Antes não era assim em Maro. Não havia penetração da Voz

Imensa, nem ilusionistas do Desaparecimento, não havia palco para a

amarga magia do sumiço na cidade forjada pela brincadeira de

nossas mãos no orfanato. Pois ele, na época, queria de qualquer

forma se transfigurar num marosiano, e não num deus. Até o dia que,

desiludido com a possibilidade, deixou Maro uns dias de lado.

Quando, mudando para a casa dos tios, percebeu, aterrorizado, a

Ausência presente também em Maro. Era dado o dia que os malditos

Page 26: A Merda Do Mundo

ilusionistas, guiados pela Voz Imensa, colocaram suas mãos na

cidade-mundo. A data oficial da celebração, então, entrou em vigor

com um forte choro dele, e o meu choro-silêncio, em ecos lutando

para romper a ligação dos dois mundos, este e a cidade-mundo; a

ligação tomou, no entanto, um caminho duplo. A partir daí, os olhos

tiveram que enxergar os fortes feixes da colorida luz saída da boca-

claraboia da Voz Imensa do mundo.

- Argemiro, meu amigo, como podemos ainda brincar com

Maro?

Perguntava-me aflito, naqueles dias.

Após o fim da cerimônia desse ano, ele veio à janela desse

outro mundo. Foi quando o mar passou a seduzir, fazer parte da

vivência, as metamorfoses dos dias iriam ser apreciadas. O céu, alvo,

azul, as nuvens. E os...

... vermes

nascidos para formar angélicas borboletas,...

Amarelas voando como bolhas, brilhando as íris de jovens.

Outro após outros. De súbito voltou, fez uma curva na dança das

cores. Na mesinha tudo era branco em pontos de preto. Esse colorido

parece impossível e insuportável, sempre o foi, desde que a Ausência

atingiu seus pais. A entrada dos pais na caixa do Desaparecimento

executada pelos ilusionistas foi o motivo da existência de Maro e de

nossa amizade. Seus olhos, a partir desse dia, formaram um zíper

fechado lacrando e ferindo a pele da realidade. Causa, talvez, dessa

terrível doença curiosa e ambígua, que fez surgir a criatividade e a

dor. Num primeiro momento, manifestou-se com um fechar de olhos

para o mundo, e um abrir criacional de outro: Maro. Por isso, o

refúgio; preferia o preto e branco que ele criou com isopor, pedaços

de papelão e outros apetrechos encontrados no orfanato, antes de ir

morar na casa dos tios.

Maro, no início, era a cidade–mundo perfeita para ele, porque

instituiu, a partir do Conselho Criacional formado por nós, três únicas

leis, que as considerou pétreas, para reger o microcosmo:

Page 27: A Merda Do Mundo

1- Não haverá nunca Desaparecimento em Maro. Não existirá

essa palavra, portanto, essa prática. Reinará na cidade-mundo a

aparição; o aparecimento; a permanência; a presença perene das

coisas e, sobretudo, dos habitantes dela;

2- É proibido, terminantemente, a entrada, ou o surgimento, de

ilusionistas;

3 – Todos os habitantes de Maro serão felizes.

As três leis funcionaram perfeitamente durante o primeiro ano

de Maro. Era tudo em tom branco e preto. Era um reduto de sombras.

Somente depois do dia da celebração, e, quando ele descobriu, no

rápido correr do tempo, que pétrea era o cu do mundo que pode

deixar de sê-lo com um simples Balé no Pedregulho, foi que Maro

divulgou a sombra como um reduto de inteligência. À sombra, ele

produzia o chá. Tomava e via o preto esfumando o branco. Iam, os

habitantes de Maro, comandados por ele, em passos diáfanos às

festas no Paço. Tateando as fissuras do outro mundo. Amando os

prazeres desprezados por aqueles. Nesse passado disperso e recente,

ele encontrava empatia brincando. A brincadeira era uma arma

quente. O jogo era o fazer mais sério, e temeroso, para aquele mundo

colorido fora de Maro, para qualquer menino ou menina. Os lábios

ficavam pretos de tanto construir jasmins de sobra de lápis que

tonalizavam as praças de Maro. A brincadeira se forjou luta não mais

para fugir da lembrança dos pais; mas, contra a Ausência e a Voz

Imensa. Por isso, o dia da celebração, o rito, o ato e os punhos

serrados dos habitantes de isopor de Maro pela perenidade da

permanência. Na casa dos tios, a lua se transformou em esfera de aço

e sempre brotava à noite. Na escuridão, tecíamos, ao redor das

mesas, um retalho costurado a mãos com poesias coletivas, a partir

dos “Procura-se” e dos nomes das folhas de jornais.

- Argemiro, lembra como era antes de existir o dia da

celebração em Maro?

Perguntava-me. Deixava desabafar. Mas a Voz surgia:

- Não!

- Deixa-o falar, Voz Imensa filha da puta!

Page 28: A Merda Do Mundo

Da força de minha invisibilidade ela se calava ao pé do seu

ouvido, então, ele podia continuar:

- Fazíamos questão de deixar a caixa fechada. Não abríamos ao

mundo por nada. Argemiro, tu sabes muito bem o motivo. Tivemos

que abrir a caixa, mostrar Maro ao mundo, depois daquele dia de

merda. A merda do mundo para o mundo de merda. Desculpa, mas

hoje não é dia de chorar. Vamos já preparar os habitantes de Maro

para o cortejo. Mas, antes, devemos rememorar. Lembra como era

formidável nós dois ao redor da mesa construindo Maro? O mar

noturno, as pedras, os poucos habitantes, o calendário, as praças, as

sombras, o preto e o branco e a lindeza da permanência dos

habitantes? O silêncio encontrado em cada canto? Nossa fuga, nossa

cidade e nossa cumplicidade? Que bosta, celebrar esse dia; mas, por

outro lado, Argemiro, eu ter deixado cair a chave, abrir a caixa,

revelar Maro ao mundo, fez com que a celebração entrasse no

mundo. Promete uma coisa para mim caso eu desapareça do mundo

também? Pensa, faz a História de Maro. Não deixes o Esquecimento,

como agora cobrem papai e mamãe, entrar também na cidade-

mundo. Por favor, meu amigo, por favor.

Maro, desde quando ele deixou a chave cair, caminha pisando

em uma linha finita, escatológica, em busca de Parúsia. Nas escolas

as novas gerações aprendem que haverá um fim e que há cores no

chão. Que as pedras são partes fixas e sólidas, estáticas sem tempo.

Os prédios não têm vida e as janelas estão proibidas de revelar os

segredos que os olhos tateiam quando invadidos por sombras. Na

última cerimônia da data oficial de Maro contra a Ausência e

intromissão do mundo feita pelas mãos dele, os habitantes da cidade-

mundo, além dos punhos serrados, começaram a registrar com

sangue nomes aleatórios de ilusionistas, descobertos através de raros

jornais, na parede do prédio presidencial de isopor. Ele esperava

descobrir, depois que surgiu o dia da celebração, o ilusionista que fez,

ouvindo a Voz Imensa, seus pais desaparecerem. Acreditava que era

preciso registrar os nomes nos muros de Maro, para isso; não

encontrou, no entanto, o ilusionista responsável. Foi então que, puto

Page 29: A Merda Do Mundo

da vida, nomeou, através dos marosianos, a data oficial de quando a

Ausência adentrou Maro como A merda do mundo. Hoje,

enclausurado na multidão, ele carrega a esperança nas

reminiscências de Maro antes do dia da celebração. Tenta recuperar a

caixa perdida quando deixou cair a chave do tempo que o Tempo

insiste em esconder no fundo da memória da Voz Imensa. E, não sei

se ele anda sabendo, mas dizem, por aí, as firmes vozes pequenas,

que Pancrácio é o nome do filho da puta do ilusionista que enfiou

seus pais na Ausência.

Page 30: A Merda Do Mundo

O baile das carnes

A carne se fez homem. O homem se fez carne. Nessa

alucinante dança de um deus na História, alguns homens, percebendo

a vibração da carne como prazer, fizeram-se exímios classificadores.

No quadrado do meu espaço, antes sombrio, foram improvisadas

festas nababescas, com direito a muitas risadas bifurcando a dor ao

prazer, os soluços aos gemidos, orgia plena e completa. Num deles

aconteceu o Grande Baile das Carnes que testemunhei. A

multiplicidade de vozes desses classificadores continua ecoando

dentro de mim, um corpo impresso de registros sonoros iguais aos

grafites, destes que ficam na invisibilidade à espera de uma objetiva

que possa revelar ao mundo as cores do Tempo. Graves sons à

memória na audição de seus protagonistas.

*

Arthur: outro dia saído do apartamento, resolvi deixar de lado

essa vida de camaleão. Fui ao açougue mais próximo e pedi um quilo.

Veio rosada, tinindo de cheirosa. Pus na pedra, peguei o batedor e,

após uma repetição de golpes, verifiquei a maciez. Adicionei, ao

processo, pimentas verdes, vermelhas, quentes como um cu desejado

e jamais degustado. Mas aquela ali, suculenta, era minha e chiando,

ao fogo. Senti-me um verdadeiro chefe. Furei-a qual maduro furando

figura jamais fendida. Com os dentes rasguei. E ri, ri, ri, muito. Farofa,

misturada com olfato, cheiro de pele suína. Como fosse 88, sua

tradução no molde rijo, fitei o suor, porra, saladas jamais! Agora seria

somente carne, no preâmbulo de peles. Foi assim que adentrei no

baile, que eu orquestrava de fora ouvindo a Voz Imensa. No baile das

Page 31: A Merda Do Mundo

carnes. Entre seios, pimentas e cus, araras cantando enroscadas no

pau. À carne dura são necessários choques para melhor amaciar,

quando não umas queimadas com bituca de Hollywood. Mordi meu

prazer até o último limite vendo a língua tentando sodomizar a

mordaça. Quando olhei pra baixo, percebi uma lágrima brotando de

minha virilha.

Pancrácio: era sonsa e riu, riu, até demais, a carne de que mais

gostei. Não quis falar, assim aumentava o prazer. E pensar que um

dia, ontem, eu era vegetariano. Verde somente depois do vermelho.

Mesmo que tenha, às vezes, um cheiro de morte, gosto de comer

carne viva. Detesto-a morta, por isso falarei somente uma vez dessa

terrorista de nossas vidas. Tão moça, normalista que fosse. A

expressão em sua face revelou o ódio e gritava feito aquele pederasta

preto de outro dia. Foi um prazer ver minha garrafa com minha urina

quente em sua boca. Ver os fios fazendo dançar os mamilos da

colegial. O Não sei não saía mais. Eu já não sabia mais como lancinar

aquela pele negra e quanta água eu tive que salivar vendo o bater de

seus dentes. Gozava de prazer, na cara da carne, assistindo ela

chupar a Mamadeira de Subversivo. Não há melhor carne que a carne

filtrada na urina.

Fleury: o baile prometia; o cheiro da carne convidava. Quero,

além do cheiro, a carne da carne. Mordiscar, chupar, saborear,

morder macio para depois morder agressivamente, agressivamente

invasivo. Bituca na buceta. Sou radicalmente carnívoro. Descobri

depois de mordiscar Esther. Foi Esther que me transformou num

classificador sofisticado. Primeiro olho dos pés à cabeça; depois, com

os meus dedos longos, vou medindo palmo a palmo, antes preciso

cheirar; mas também observo os orifícios, tenho fissuras por todos,

principalmente, aqueles que o corpo feminino revela; mas o

masculino também tem seus segredos, descobri depois. Esther, com

esse “h” no meio, eu, voraz à plena voz, vamos para a perdição, quer

dizer, vou, vou e fico alhures, há muito, muito vivo porque sei e aceito

Esther metamorfoseada de carnes revertidas de choros e cores,

Page 32: A Merda Do Mundo

sangue e odores de esquina. Carne sucosa preparada para assar.

Quem não gosta de uma maminha? O perigo, solícito de agora,

desprovido de depois, me enche de coragem. Vou, vou e vou viajando

pelo céu de Esther. Sou esse “h” abrupto dentro de sua estrela que

dança, grita, canta essa tal de revolução. Rá, rá, rá. Revolução é a

Cadeira do Dragão! Deixa a carne que é uma maravilha. Esther,

Esther, Esther. Todas as carnes hão de ser Esther. Todos os seios

suados, Esther. Todas as pernas, Esther. Mesmo se for Sheila, Aline,

Bruna, Ana, há de ser Esther. Algumas mais Esther que outras, mas

sempre Esther. É, deixei de lado a vida sem carne; mas, na verdade,

há vida sem carne? Esther, a carne da teologia da libertação, ensinou-

me: o baile das carnes é vida.

Ailton: fui ao baile porque me prometeram um vitelo. Sou um

classificador que não me recuso a comer carne macia, tenra e clara. A

carne, antes da contaminação vermelha, é garbosa. Não precisa de

muito abate, basta uma bituquinha aqui, outra ali, para verificar a

qualidade pela vibração das cordas vocais. É um ótimo ingrediente

para transfigurar a qualidade da carne-mãe ou da carne-pai. Por isso,

sempre prefiro convidar mais um exímio classificador para juntos

absorvermos todas as carnes de uma família. Há alguns

classificadores com pudor ao uso de vitelo; são poucos, mas há. Rá,

rá, rá. Rimos, rimos e rimos desses, então colocamos logo um vitelo

na mesa, bitucamos, e pronto, basta a carne-mãe do outro lado

berrar, os classificadores cristãos começam a salivar como cães com

fome, e lembram do prazer inequívoco e inesquecível das carnes.

Quanto mais alto os berros melhor a carne. Se for de primeira o som é

insuportável; mas, ao Telefone, minhas mãos falam nos tímpanos

quase surdos de Vésper. Então, tornam-se bem-te-vis inauditos com a

mesma carne de um leão ensurdecedor.

Ednardo: sou um classificador romântico. Gosto de massagear a

carne com leveza. Participo do grupo que acredita que para a carne

ficar macia deve morrer feliz. Por isso, quando minha exímia

massagem não surte efeito, como acontece, às vezes, com algumas

carnes, pego a seringa calabouço e injeto o Soro da Verdade. Sem

Page 33: A Merda Do Mundo

inibições e com sonolência, a carne solta logo as histórias e as fibras

vermelhas mantendo apenas o que há de melhor. Sempre ocorre, no

entanto, os contratempos da técnica. A morte infeliz de algumas

carnes fracas antes do processo completo; mas, mesmo assim,

sempre as colocamos na mesa do baile.

Albert: com o talher de prata eu corto e classifico as carnes

mais nobres. Na Dinamarca aprendi bons hábitos. Vim para o Brasil

vender gás (mas acabei me entrosando com os classificadores). Um

trabalho árduo. Mas havia as horas alegres no final do expediente,

espécie de terapia da ocupação. Meus amigos elmos, como o grande

Ulstra, apresentaram-me os clubes de dança, inferninhos sofisticados.

Eram fantásticos. Ali eu conheci inúmeras belas da tarde, eu vi

mocinhas de pele branquinha, lembrando minhas amigas do leste

europeu, na pista de dancing rebolando, freneticamente, como quem

havia saído de uma geladeira. Jogos insólitos revelavam verdadeiros

campeonatos excêntricos de sedução: encapuçadas, elas eram

mergulhadas em recipiente com bebidas quentes; depois, eu e meus

amigos perguntávamos: com quem você quer ficar, com o rapaz de

azul ou de vermelho? Confesso, sem falsa modéstia, meus olhos me

ajudavam. Mas eu não me iludia, meu dinheiro e status de empresário

do gás abriram muitas portas. Naveguei muito nas águas que

surgiram das chuvas de março. Pau, pedra, fim do caminho, para

mim? Jamais! O Brasil ficou outro. As festas melhoraram. Até as

meninas, duronas, se abriram, gemendo e gritando. Afoguei as

mágoas como um novo rico na Cidade do Sol.

*

As vozes cimentam minha memória. Assim, foram muitos bailes

de carnes em suas várias edições. Da 69 à 74. Meu amigo El Moroco,

por exemplo, contou-me que os bailes de lá ferviam. Por outro lado,

minha amiga Night in Day dizia que baile bom era baile gelado. Já

Page 34: A Merda Do Mundo

meu querido Casablanca falava, em alto e bom som, que baile bom é

baile com merda. Gosto é que nem cu, cada exímio tem o seu.

Centenas eram os exímios classificadores de carnes. Hoje, penso que

só existia um exímio classificador de carne. Na verdade, era uma

exímia, de onde uma Voz Imensa surgia: a Hidra de Lerna à brasileira

com mil cabeças. A dona do baile das carnes. Por sua causa, estou

desmoronando no Tempo e preciso retirar e registrar as

multiplicidades de vozes de dentro de mim. As pessoas passando pela

rua em que fico localizada não imaginam como o meu corpo, agora

na escuridão de um lugar vazio e trancado à memória alheia, guarda

em sua pele as marcas de relatos tão festivos e saudosos de um

Tempo em que ser classificador de carnes era uma profissão honrada.

Naquele tempo esses meus amigos, carinhosamente, chamavam-me

de A Casa da Vovó.

A fenda e as pedras

Nunca imaginei morar com Ana e as pedras. A peculiaridade de

nossa casa não era somente as pedras, mas nossa relação com elas.

Quando a pedra de Ana não aparecia, as lâmpadas devoravam o

escuro. As portas como veludo abraçavam os buracos das paredes. As

janelas, no entanto, amigas confidenciais do vento, à noite,

assobiavam segredos escondidos no buraco mais fundo do inferno.

Nossa cor era lilás, sua cor preferida. Os gestos de Ana calculavam

carinhos. Os carinhos calculavam os gestos de Ana. Até nossas brigas

ruborizavam de ternura. Era o nosso singular clichê dentro de um

Page 35: A Merda Do Mundo

outro clichê. Até que um dia aconteceu o ontem. O ontem era a pedra

de cor obscura que, de tempos em tempos, fazia-se instante.

Estávamos na sala, às gargalhadas, quando, sem aviso prévio, em

uma das últimas ocorrências, entrou o instante:

- Hijos de puta! – Ana gritou levantando do sofá.

Tudo então era pausa.

E ficou assim por longos segundos. Mas era mais uma tática. Os

gestos de Ana eram calculados. Logo o frenesi continuou como

repulsa à pedra. Suor, pele, e dor, amálgamas do tempo inscrito no

agora. Palavras desiguais emboladas com gemidos num sofá.

Vivemos, graças à onça que invadiu a sala, a esquizofrenia

característica do nosso tempo. Não sabia por quê, mas nessas horas

sentia o cheiro do verão. Depois, sempre num certo momento, o

verão se dissipava. Ela corria para o Bolaño, e eu preferia cozinhar

ouvindo Sosa vislumbrando la soledad de Macondo.

Hoje, depois da pausa, o frenesi não deu muito certo como

arma contra a pedra. Ansiosos, lembramo-nos do presente do

Paraguai trazido pelo Leminski. Navegamos no chá. O chaxixe, como

chamamos, abriu para nós o mundo da fome. Fui à cozinha. Quando

cheguei, ri, feliz da vida, de vê-lo. De uma fenda pendurada no ar,

perto da geladeira, surgiu Melquíades. Apareceu dionisíaco à procura

da pedra. Disse, apontando com sua velha espada, que teria sido

transportado “pela luz desta cor”. Disse mais, “o cheiro do chá me

atraiu para ajudar a destruir a pedra”. Ela havia muito estava

viajando no esquecimento, “desde quando, por um descuido deles,

deixaram escapar para a Memória”, soprou o velho raquítico e

barbudo. “Corri perpassando diversas temporalidades até que

cheguei aqui, mas iria imaginar que seria em meio à cena tão banal?

Esperava que a luta contra a pedra fosse algo especialmente mágico.

Mas, pensando bem, não há nada mais mágico como a banalidade

mundana da paixão, qual o flash explosivo de um coquetel”. Depois

aquele velho, aparecido do Nada e quase completamente nu,

desapareceu no Nada deixando a lembrança de sua espada em

Page 36: A Merda Do Mundo

punho, nas costas uma capa tingida de estrelas lilases num fundo

preto. Roubou-nos uma pedra. Depois de horas de sua preleção sobre

o segredo do amor, fez-nos dormir.

Quando Ana despertou, sentiu que ainda tinha uma pedra por

ali e berrou:

- Mierda!

Tudo então era pausa novamente.

Como combater a pedra com a paixão fundamental do ser? Não

houve frenesi dessa vez; nem suor e pele, só dor, uma dor silenciosa.

Ana começou a cantarolar um ponto, feito pombagira, depois um

samba embatucado sobre o 2666. Parecia procurar no calhamaço a

pedra obscura. Não obteve êxito, depois voltou da estante com o

Noturno do Chile na mão. Na cama, pareceu fazer uma oração raivosa

para o padre Urrutia Lacroix, pois, como uma crente encolerizada,

gritou, abrindo outra fenda numa bruma lilás no ar: “su tormenta de

mierda era su silencio, escuchamos su silencio de mierda, su silencio

un tanto empañado!”.

Nosso lilás é uma composição de cores leves, fortes, surreais e

sujas. Foi em mil novecentos e setenta e três que começou a surgir a

pedra para Ana, quando sua mãe, uma militante trotskista,

desapareceu em Santiago. Ana queria fazer desaparecer do mundo de

qualquer forma o general Pinochet, mesmo sabendo que ele estava

preso no Chile. Para isso, tentava utilizar os livros do Bolaño como

arma, A literatura tinha que servir para alguma coisa, dizia, depois

que leu um poema falando que todas as armas são boas. Mas, hoje,

depois das tentativas com os livros, sentiu que não estava

funcionando com aquela pedra que permanecia ali. A pedra obscura

entrou no instante com maior força.

O nosso mundo, então, parou.

Ana olhou a bruma em sua frente, deu dois passos, lentos como

quem espera coragens ancestrais. Cria que um dia isso poderia vir a

acontecer. Lembrou-se de sua mãe: cabelos curtos, olhos miúdos e

Page 37: A Merda Do Mundo

panfletos nas mãos. Aconteceu. Ana desceu no tempo, incrível, por

uma luz ínfima, mas uma luz que a guiava. Avançou a densidade da

bruma, e, pela fenda, viu do outro lado: Allende estava à beira da

morte. Era a anunciação que, tempos mais tarde, no passado, iriam

dissipar sua mãe do mundo para tentarem dissipar as ideias.

Aproximou-se da casa, diáfana como num sonho, viu uma imagem

dúbia. Allende a apontar uma arma contra si próprio e,

simultaneamente, pela janela uma boina militar apontava uma arma

para Allende. A segunda imagem era mais forte; a primeira lembrava

uma lembrança. Depois dessa imagem viu um corpo feminino em

frangalhos cheio de marcas e vísceras de uma história de luta pelo

tempo. Então, gritou desesperada:

- Noooo!

A fenda se fechou. Deixou apenas a sensação opressora da

presença constante da pedra de cor obscura. Corri para a sala de

estar com Ana. Improvisei carinhos que recordassem os outros tons

de antes. Ela foi se acalmando e contando a história. Mas sentia que a

pedra ainda estava lá. Então, eu trouxe à mesa a comida que cozinhei

no dia anterior. Queria de volta seus gestos calculando carinhos.

Queria o frenesi, o cheiro do verão, a nossa peculiar Macondo. De

súbito, no entanto, vi Ana assustada. Seus olhos fitavam um vulto

sobre meus ombros. Pude ler o terror brotando de suas pupilas. Terror

e prazer, mesma sensação presente quando Ana tinha vomitado,

algumas vezes, sua pedra em outros episódios. Com força, veio

novamente o grito do fundo de sua garganta:

- Hijos de puta!

Chupamos, chupamos, comemos, comemos, cheiramos,

cheiramos; em frações de segundo, assustados. A fenda da bruma

não tinha se fechado totalmente, consegui ver: era lilás com bordas

translúcidas, deixada pelo fuller da espada de Melquíades. Só quando

pude enxergar com nitidez, foi que vi, e entendi assombrado, a pedra

que persistia. Melquíades não havia transposto temporalidades para

ajudar Ana a vomitar sua pedra, ela já havia feito isso várias vezes. O

cheiro brotava de mim. A pedra obscura dessa vez é minha. A mim

cabe começar a vomitá-la. Urgentemente, do fundo de minha

Page 38: A Merda Do Mundo

garganta, preciso começar a gritar para poder provocar o primeiro

vômito. Tento, engasgo-me, mas sai:

- Seus filhos da puta!

Page 39: A Merda Do Mundo

Quando o teu olhar cortou minha memória

Passei a procurá-lo nos silêncios daquele apartamento com

vista privilegiada para o infinito.

*

As cores estão gastas. Também já estou aqui há muito tempo.

Com ele aprendi a preparar um passo atrás do outro. Agora

imaginários, desde quando deixei de sentir minhas pernas. Sei que

logo entrarei noutra ausência. A vida é feita disso, aprendi. Como

seria conviver somente com as lembranças? Serpentes que aparecem

cada vez maiores. Fugidias, diluem de memórias impressas em

imagens guardadas em álbuns antigos, baús velhos escondidos em

lugares de onde vazam tristezas que brotam do percurso do tempo.

Agora como um subterfúgio recorria a esta figura feminina. Ela entrou

em minha vida, desmoronada, fiz questão. Fugir de um palco lúgubre,

encenar risos, mesmo que tivesse a certeza de que jamais se

expandiriam as gargalhadas. Bastava-me aquela juventude inusitada,

uma conversa na exata hora de todos os dias. Pelo menos eu fujo de

mim. Até quando? Não poderia precisar.

*

Nunca pensei ser cuidadora de idosos. Minhas manhãs nunca

foram tardes de baralhos. Não sabia manejar jogos para os tempos

acumulados. O que é um idoso senão tessitura de tempo

comprimido? Tempo que se esvazia na troca de instantes até se

perceber finito. Sou cuidadora do transitório. Cuido do tempo no

Tempo do tempo das tardes de buraco. Ouço lembranças costuradas

no tapete de velhas memórias. Gente que ouve o inexistente dizendo

segredos ao pé do ouvido. Pancrácio é o nome do tempo em meus

Page 40: A Merda Do Mundo

cuidados agora. O acúmulo é acurado pelas linhas de expressão do

rosto, esses caminhos sinuosos do Tempo no tempo. Pancrácio,

decrépito, meio surdo, e com cicatrizes estranhas pelo corpo,

ensinou-me, ou tentou me ensinar, a conhecer certos endereços

desse labirinto contando peripécias das rugas. As histórias brotam

dos furúnculos impregnados nas linhas do tapete velho como se

fossem pulgas gordas de sangue, cheias de vida esparramando

lembranças de mortes. Livre como um pássaro, enclausurado na

gaiola do velho corpo, Pancrácio deixa as lembranças fluírem, as

inventa. Aponta um estigma do lado interno das coxas e diz que as

marcas são como os vestígios da existência. Mas aquela não iria

retratar em narrativa, iria ficar nela para todo o sempre, levaria para

o túmulo. Deixaria no arquivo de sua memória individual, para ele

memória coletiva era uma fantasia perversa da Ordem que ajudou a

forjar. “Você está vendo isto aqui?”, perguntou... “A memória nem

sempre é uma gaveta coletiva para todo mundo abrir, ela pode ser

uma gaveta fechada dançando por cima de todos nós, como um

corpo vazando vozes inauditas. Entrou alguém, “já veio medir o

quanto fervo?”, reclamou Pancrácio. Peguei seu braço, então senti o

peso do tempo. “O tempo é um tiro, num ritmo de muitas curvas. O

coração é motor do corpo, mensura tristezas, onde ficarão os homens

como eu, um morto-vivo. Assim como o corpo é o recorte no pedaço

do tempo cumprido, a morte é badalo de tempos múltiplos a se

reinventar. Não há morte, há silêncio transbordado de lembranças.

Você já presenciou a emoção diante da morte, minha filha?”. Com a

mão trêmula, ajudei o rapaz a aferir a pressão dele. Vi as linhas de

suas mãos. Acentuadas. Apesar de não ter tido a emoção diante da

morte, não conseguia pronunciar simplesmente a palavra Não na

frente daquele homem. Como então poderia eu ser cuidadora de

idosos? Como cuidar da tessitura do tempo sem o mínimo de

conhecimento do badalo de tempos múltiplos a se reinventar? Eu me

considerei um disparate naquele instante. Parecia que o mundo virara

às avessas. E quem estava cuidando de alguém ali era ele. O Tempo

fazendo o tempo pensar. Comecei a questionar o badalo. Essa haste

de contratempos suspensa em cada um de nós preparada para bater

Page 41: A Merda Do Mundo

a qualquer instante nos tempos múltiplos. Quem será que foi esse

velho? Por que através do seu olhar eu procurava por mim?

*

Ela não consegue decifrar meus enigmas. Eu não consigo

revelar meu passado. Ele está por toda parte em meu corpo. O asilo

Doutor Thomas escondeu muito bem os rabiscos de minha pele. Seus

dedos olham as linhas de minhas mãos, escorregam da base da

palma, subindo até quase chegar no dedo indicador. Como quem

procura encontrar vestígios do meu destino. Às vezes roçam meu

polegar, em arco, até atingir meu pulso, na busca de indícios sobre

minha vida. Quem é dono do destino? Minha vida é marcada pela

tortura. Não sou digno nem desse olhar juvenil. Agora me vem a

lembrança daqueles olhares, daquelas mãos que, sob minhas ordens,

eu dizia, Decepem, apaguem. Será que um dia ela saberá que por

trás desse ancião existe uma curva no Tempo revelando gestos

horríveis? Hoje me decidi a fugir das cores gastas que,

insistentemente, invadem o meu apartamento.

Page 42: A Merda Do Mundo

Apiemieke?

As vozes rasgaram os grilhões do tempo abrindo múltiplos

caminhos.

- Apiemieke? Apiemieke?

Pancrácio escutava, havia dias, uns gritos estranhos, em

uníssono, sem origem perceptível, depois que sentiu seu bigode

começar a cair com o peso do tempo. Após a conversa com o filho,

não suportou a presença das vozes cada vez mais altas. Já não

conseguia dormir. Com medo de o tempo ter lhe reservado o

Alzheimer, tomou a resolução de lutar contra os monstros de sua

cabeça. Nunca se rendeu para ninguém, muito menos para um

inimigo. Concedeu maior atenção às frases em desespero ecoando do

fundo da cabeça. Remotamente, reconhecia aquelas estranhas vozes

e aquela linguagem híbrida. Pensou no início ser uma perturbação

por causa da morte de Danúbia. Mas não, reconheceria, se fosse o

caso, aquela voz doce, aquele gemido culposo. A insônia tomou de

assalto sua vida. O grito de guerra que perturbava o sono do velho

coronel da reserva do Batalhão de Infantaria de Selva da Amazônia

era sempre o mesmo:

Page 43: A Merda Do Mundo

- Apiemieke? Apiemieke?

O coronel da reserva, depois de dias em claro, não aguentou o

coro de vozes em silêncio e soltou, falando sozinho, a onça no meio

da casa:

- Apiemieke é o caralho! Que merda é essa? É a porra da

velhice? Agora estou feito uma velha chata, pendurado noite e dia no

ar por causa de umas vozes esquisitas. Vamos, suas vozes de merda,

só sabem dizer isso, essa palavra absurda e inexistente,

Apiemiekeeee!? Seus veados! Tenham a honra ao menos de me

encarar, seus putos de merda! E vocês aí, não olhem assim pra mim,

porra! Não estou doido! Vão logo para a cozinha, ou vão varrer a casa,

vocês não têm o que fazer? Eu aqui em casa trancafiado por causa

dessa comissãozinha de bosta. É isso que está me enlouquecendo.

Vou pegar é a estrada. Silva, porra, pegue a chave do caminhão pra

mim. Vou relembrar velhos ventos onde eu ouvia gritos e gemidos,

sim, mas sentia prazer.

Quando chegou próximo da BR-174, o coronel Pancrácio

começou a ouvir novas frases, enquanto dirigia o caminhão, num tom

muito mais forte. Ficou feliz, no princípio, com a diversificação, não

aguentava mais ouvir apenas Apiemieke. Parecia que chegava perto

da origem daquele coro. Queria ver o inimigo de frente. Reconhecê-lo.

As frases invadiram o porão de sua memória, então reconheceu a

língua dos Waimiris.

- Por que kamña matou Kiña? Apiemieke? Apiemieke?

- O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?

- Kamña jogou kawuni, igual a pó que queimou a garganta e

Kiña logo morreu?

Uma dança frenética de calafrios percorreu seu corpo.

Recordou-se da gloriosa década de sessenta e oitenta: da construção

da BR-174; da mineradora Taboca; da hidrelétrica de Pitinga e da

hidrelétrica de Balbina. Que sem o seu essencial trabalho junto a

Parasar e a Sacopã não conseguiriam instalar o progresso na

Amazônia. Os selvagens não deixariam. Saudoso ficou, lembrando os

infinitos prazeres, quando se especializou em cu de índio. Descobriu

Page 44: A Merda Do Mundo

um método, depois de matar centenas dos selvagens, que deixava os

índios menos ferozes, irracionais. Mas funcionava com poucos. O

apaziguamento consistia numa conversa forçada com o cu do índio.

Ficavam mais amáveis e assimilavam os costumes dos civilizados,

depois de uma sessão da terapia. Apesar dos suicídios depois. Era na

conversa que explicava aos Atroaris, os Kiñas, a maravilha que era

uma estrada, a riqueza de uma mineradora e a beleza de uma

hidrelétrica. O coronel lembrou, com isso, que Apiemieke significava

por quê. Então, começou a tentar responder às vozes em coro,

enquanto se dirigia para o local em que havia limpado para o

progresso da Amazônia, ao lado do Alalaú, onde tentou, antes da

limpeza, transformar a todo custo os milhares de indígenas em seres

humanos, mas teve que fundar o cemitério de cus.

- Apiemieke? Vocês perguntam. Ora! Porque era o certo, seus

vermes! Se não aprenderam a serem civilizados, tinham que morrer

mesmo, porra! Por quê? Não viram a importância da civilização?

Porque quem pergunta sou eu, agora, por que não morrem de uma

vez, caralho? Nem pra morrer vocês servem? Vou matá-los

novamente, seus bostas. Quero ouvir de novo os gemidos pungentes

e os soluços anônimos que me deram verdadeiros júbilos. Vocês ainda

têm cu? Desejo escutar os clamores de misericórdia. Pensam que

ainda tem a merda do CIMI e da FUNAI para tentarem proteger vocês?

Não tem mais o bosta do Calleri para procurar um modo mais humano

de civilizar vocês. Nem os professores Schwade para proteger vocês,

seus bostas! É bem o veado do Maiká que está comandando vocês

novamente, ou o filho da puta do Maroaga, aqueles índios escrotos de

merda, difíceis para morrer. “Matar ainda que não seja preciso; morrer

nunca!”, mantenho o lema. Queria ainda ter a disponibilização de

materiais de antes. Dinamite, granadas, bombas de gás

lacrimogêneo, metralhadoras e helicópteros. Para ver se não dava fim

em vocês novamente, suas vozes do inferno!

O general colecionador-de-cu-de-índio, como ficou conhecido na

época, estava resoluto em encontrar a fonte dos gritos. Por causa da

intensidade aumentada, não acreditava que emergia de sua cabeça.

Page 45: A Merda Do Mundo

Ele que, em toda a vida, foi guiado pela Voz Imensa, sabia que

poderia localizar a origem. Seguiu para os arredores da hidrelétrica,

para ver se reconhecia o cemitério de cus. Chegando próximo ao

local, da agonia das vozes foi surgindo uma euforia no seu corpo

decrépito. O coração bombeou os jatos de sangue mais rápido, mas

não conseguiu levantar o pau como antes. Não tinha mais o

imponente bigode que dava força ao corpo. Agora, ralo e em

frangalhos, caíam os últimos filetes a cada frase proferida pela

multidão indígena anônima.

Chegou ao cemitério de cus beirando o anoitecer. Sentiu o

prenúncio do cheiro daquelas noites equatoriais, onde tinha

construído um castelo de prazer colecionando malocas quentes de

índias. Desceu com a mesma postura de quando usava boina,

enfrentando os gritos ensurdecedores em rodopio.

- Apiemieke? Apiemieke?

- Antigamente não tinha doença e morte. Kiña estava com

saúde.

- Olha civilizado aí! Olha civilizado ali! Lá! Acolá! Civilizado

escondido atrás do toco-de-pau! Civilizado matou com bomba.

- Civilizado matou Sere.

- Civilizado matou Podanî.

- Civilizado matou Mani.

- Civilizado matou Akamamî.

- Civilizado matou Priwixi.

- Civilizado matou Tarpiya.

(...)

- Com pau. Feriu.

- Com bomba. Escondido atrás do toco-de-pau! Apiemieke?

- Apiemieke? Apiemieke?

O colecionador-de-cu-de-índio então gritou com a força de

antes:

- Calem a boca, seus merdas! Vocês não existem, porra! Nunca

eram pra ter existido, caralho!

Deram uma pausa.

Page 46: A Merda Do Mundo

As vozes cessaram por um instante como nunca haviam nessas

dezenas de dias. Olhando o horizonte do cemitério que poucos

sabiam a localização, Pancrácio sorriu vitorioso. Sentiu uma brisa que

lembrava o velho Alalaú que banhava os cus dos índios. Ao avistar, ao

longe, os tentáculos de Balbina e um grande descampado, sentiu-se

orgulhoso do protagonismo e de como se deu a construção da

hidrelétrica e da BR-174. Ficou imóvel alguns minutos admirando o

passado no presente. Quando se virou para voltar pro caminhão,

achando que havia vencido as vozes, sentiu uma vertigem e um

calafrio. Rodopiou, mas quando ia cair, foi aparado por um coro de

vozes fortes gritando:

- Por que kamña matou Kiña? Apiemieke? Apiemieke?

Os gritos invadiram o orifício do coronel, o mesmo em que era

especialista nos indígenas. A função anatômica do corpo se

modificou. O cu do colecionador-de-cu-de-índio virou ouvido. As

violentas ondas sonoras começaram a estrangular os órgãos internos

de seu corpo. Terrivelmente, o coro de vozes se encaminhou a

garganta, após o início da queda no chão. O ralo bigode resistente

encontrou a derrocada final. As vozes não saíram pela boca do

coronel Pancrácio. A fuga escolhida pelo coro, para sair daquele

morredouro, foi o labiríntico espaço do buço. Os gritos, numa mistura

trilíngue, pregaram-se entre os orifícios dos fios mais resistentes do

bigode como larvas pegajosas e elásticas, depois alçaram voos

violentos. A cada queda de um filete pútrido do coronel, despontavam

perguntas ante o absurdo da boca do Tempo. Os gritos surgiam ora

em português; ora na língua inaudita e forte dos Kiñas; ora na língua

inconfundível da dor. O coro dos Wamiris-Atroaris invadiu Pancrácio

apenas para saber o Apiemieke. Os gritos só cessaram quando o

corpo do coronel caiu totalmente sem bigode no chão. O silêncio de

ruídos peculiares da floresta pareceu voltar a reinar. O cemitério de

cus, no entanto, já não tinha uma geografia fixa e desconhecida.

Agora, as vozes ganhavam nova morada na Memória, onde as

lembranças, feito fendas, abriam múltiplos caminhos nos silêncios da

História.

Page 47: A Merda Do Mundo

SOBRE OS AUTORES

Arcângelo Ferreira

Page 48: A Merda Do Mundo

Nasceu na cidade de Parintins, Baixo Amazonas,

em 1969. É mestre em Sociedade e Cultura na

Amazônia pela UFAM, professor de História da UEA em

Parintins e coautor dos livros: História, cidade e

sociabilidade e História da saúde e da doença,

ambos pela Editora CasAberta. É membro da Linha

de Pesquisa História, Literatura e Sociedade do

GEHA – Grupo de Estudos Históricos do Amazonas

(UEA/CESP). Possui publicações nas revistas Travessias, Claraboia e

Decifrar. Para melhor compreender a História, elege a literatura como

fonte de pesquisa. Na acepção de que “o homem é um ser para a

morte” constrói e reconstrói suas narrativas.

Thiago Roney

Nasceu na cidade de Boa Vista/RR, em 1985,

radicado em Manaus desde a infância, considera-

se amazonense. Formou-se em Matemática pela

UFAM, em 2010, e estuda Literatura no Mestrado

em Letras e Artes da UEA. Como escritor, publicou

diversos contos em várias revistas literárias como a Trevo, a Germina

e a Acrobata. Publicou o conto A panela velha do mundo pelo selo

digital Formas Breves, coordenado pelo escritor Carlos Henrique

Schroeder, da editora e-galáxia. É autor do livro de contos O estouro

da artéria de um cavalo húngaro, 1ª e 2ª edições pela Editora

Multifoco – RJ e a 3ª edição, de forma independente, pela thysanura

edições de rua.