A Metafísica de Platão

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A Metafsica de Plato

Poderamos dizer que a Filosofia comea com uma especulaofsicasobre o princpio da realidade (com os pr-socrticos) e se desenvolve numa especulaometafsica; procurando entender e desvelar no s o princpio, mas fundamentalmente o fim: a finalidade de toda realidade. Mas se comearmos assim, estaremos tomando o termo que define aFilosofia Primeira de Aristtelesda forma como ele foi entendido pelo senso-comum desde que talvez tenha sido cunhado pela primeira vez.Sabemos, no entanto, que foi por ocasio do recolhimento e edio das obras de Aristteles, feita por Andrnico de Rodes (no sec. I a.C.), que esse termo, Metafsica, foi cunhado pela primeira vez; designando ento os escritos do estagirita que vinham logo aps o que ele mesmo havia intitulado como Fsica (ARISTTELES 2006, p. 30)(1).Com Toms de Aquino (LALANDE 1999, p. 668)(2), contudo, a Filosofia Primeira toma a finalidade de justificar racionalmente a existncia do Divino, j que para a Filosofia Crist o Divino que fundamenta toda a realidade sensvel, sendo causa primeira de todas as coisas. Descartes, Kant, j na modernidade, assim como Hegel, Marx, Heidegger, Husserl, Sartre e Merleau-Ponty iro ao longo do tempo nos brindar com outras conotaes e abordagens que, longe de unificar um conceito em torno desse termo e dessa espcie de Filosofia, nos ampliar seu entendimento em diversas direes para um estudo mais profundo da realidade, inclusive negando essa possibilidade.Mas no objeto nosso aqui traar o entendimento controverso e interessado que o termo Metafsica tomou ao longo da histria do pensamento humano, bastando-nos que assumamos por hora o sentido que coloca essa rea da Filosofia como aquela que se preocupa com a questo da Existncia, abstraindo-se aquilo que pode ser considerado acidente ou transitrio, e centralizando sua anlise naquilo que podemos inferir como base e fundamento da realidade: o SER, conforme nos fala o prprio Aristteles:

H uma cincia que investiga o Ser como Ser e as propriedades que lhe so inerentes devido prpria natureza. Essa cincia no nenhuma das chamadas cincias particulares, pois nenhuma delas ocupa-se do Ser geralmente como Ser. (...) Mas visto que buscamos os primeiros princpios e as causas supremas, est claro que devem pertencer a algo em funo da prpria natureza. (...) Portanto, do Ser como Ser que ns tambm temos que apreender as primeiras causas(ARISTTELES 2006, Livro IV - p. 103)

Nesse aspecto, desde que a Filosofia nasceu na Jnia, com Tales de Mileto, poderamos falar numa Metafsica. Eis a, talvez, um dos pontos em que Aristteles poderia ter colocado a Metafsica como Filosofia Primeira em seus escritos, embora no tenha feito. Antes mesmo dos pr-socrticos preocuparem-se com o SER (que tem seu incio em Parmnides), o princpio que fundamenta a realidade foi percorrido por toda cincia jnica incipiente, procurando num nico elemento (ou num conjunto de elementos fundamentais) a derivao de todas as coisas, originando assim a realidade que percebemos sensivelmente. Essa preocupao, tomada no sentido em que colocamos o termo Metafsica, uma preocupao com o fundamento da realidade e seu princpio, como nos define Aristteles, porm sem dar-lhe uma finalidade ou objetivo.Essa preocupao com O QUE e com QUAL o princpio que determina a realidade e a fundamenta, percorreu toda a Filosofia at Scrates; quando a preocupao e as perguntas sobre a natureza centralizaram-se no Homem e sua relao com essa Natureza. O que inaugura ento a Metafsica propriamente dita, cuja preocupao central a identificao do POR QUE as coisas so como so, num sistema unificador explicativo de toda a realidade e de como o Homem poderia ter acesso a ela, so as investigaes de Plato a partir de uma qudrupla influncia que determinaria toda a sua Filosofia:Scrates (fundamentalmente atravs de seus ensinamentos e sua morte em Atenas);Parmnides (e a questo do SER);O Pitagorismo (com seu sistema prtico-tico-religioso-cientfico) eO Orfismo (com sua cosmogonia subversiva do sistema cosmognico oficial de Hesodo).

Plato como Pioneiro da Metafsica

Scrates, mentor, mestre e amigo de Plato tem influncia determinante na forma de pensar de seu discpulo, culminando no desenrolar de toda sua filosofia a partir da perda inestimvel que sofreu com sua condenao em Atenas no ano 399 a.C. Plato dedica-se ento boa parte de sua energia a reproduzir os ensinamentos de Scrates atravs de dilogos onde ele discute a natureza do homem e da sociedade, sua funo, fundamento e seu papel no mundo.Embora haja controvrsias entre estudiosos quanto a delimitar onde Plato descreve os ensinamentos de Scrates de forma fiel e onde ele comea a elaborar sua prpria forma de pensar, h de se julgar que houve um momento em que Plato (sem abandonar o que Scrates lhe ensinou) amplia e estabelece um sistema prprio, elaborando a sua prpria Filosofia. Plato estudou e acompanhou Scrates por dez anos. Tinha vinte e oito anos quando este morreu e continuou escrevendo at os oitenta anos. Cornford nos diz sobre esse fato:

Um filsofo de seu calibre no poderia se limitar a reproduzir o pensamento de um mestre, por maior que este fosse. Sem dvida, o germe central do platonismo, do comeo ao fim, a nova moralidade socrtica da aspirao espiritual, mas nas mos de Plato este germe transformou-se numa rvore cujos galhos cobrem os cus. O platonismo , coisa que a doutrina de Scrates nunca foi, um sistema do mundo, abraando todo aquele domnio da Natureza exterior do qual Scrates se afastara para estudar a natureza e a finalidade do homem.(CORNFORD 2005, p. 50)Lembremos, tambm, que Scrates agiu e pensou como se desistisse de pensar sobre o princpio da Natureza como um todo, limitando suas reflexes a como o Homem, na vida em sociedade, poderia ter acesso a esse conhecimento. As investigaes dos primeiros filsofos jnicos no satisfizeram Scrates, chamando sua ateno apenas o sistema de Anaxgoras que colocava um princpio inteligente como origem das coisas. Mesmo assim decepcionou-se ao deparar-se com esse princpio inteligente dando o incio, mas tudo se concluindo mecanicamente; sem uma inteno deliberada para algo melhor. Era intil, para Scrates, que uma filosofia no se preocupasse ou no desse fundamento para que o homem conhecesse melhor a si mesmo e pudesse desenvolver uma maneira correta de se viver.Scrates ento comea sua inestimvel investigao filosfica sobre a natureza humana e sua finalidade, tentando assim, atravs do conhecimento sobre si mesmo e de como o ser humano poderia chegar verdade, conceber um sistema nico que abarcasse toda a realidade e a natureza. No teve tempo de terminar. No entanto, caberia ao seu mais brilhante discpulo, Plato, tentar ampliar seu escopo investigativo e fechar um entendimento do mundo que desse sentido, finalidade e fundamento a toda realidade. nesse contexto que Plato se circunscreve como pioneiro da Metafsica, embora tenha sido Aristteles a sistematiz-la como rea especfica na Filosofia e desenvolvido uma Metafsica prpria, partindo, inclusive, do prprio Plato. Sua Teoria das Formas ou das Idias, considerada como pensamento e elaborao prpria (mesmo a partir dos ensinamentos de Scrates), marca o incio da Metafsica Clssica, onde procura estabelecer os critrios pelos quais as coisas podem ser consideradas vlidas de fato; tendo como pano de fundo uma teoria sobre a natureza dos conceitos e das definies a serem obtidos(3).Plato, pegando o gancho de Scrates, ampliou seu escopo investigativo e desenvolveu um sistema que, ao contrrio dos pr-socrticos, no se preocupava com a descrio dos princpios que fundamentavam a realidade, e sim com suas causas, razes, finalidades; para entendermos no s como a realidade , mas por que ela da forma como . Concomitante a isso e sem renegar suas razes socrticas, abarca tambm como o homem deve agir perante essa ordem das coisas e como ele teria acesso a conhec-las em toda sua plenitude, numa perspectiva moral e poltica.Para a construo desse sistema Plato vai alm de Scrates e, aps a morte de seu mestre, sai de Atenas e empreende algumas viagens. Conhece na Siclia a filosofia pitagrica (com Arquitas de Tarento) e a escola eleata, tendo contato tambm com Dion, cunhado do tirano de Siracusa, Dionsio I(4). possvel considerar uma fidelidade estrita a Scrates apenas sua em fase inicial, onde escreve os chamados Dilogos Socrticos. Foi aps suas viagens e seu contato com as doutrinas pitagricas e eleatas que Plato desenvolve suaTeoria das Formas, j numa fase intermediria de sua vida e de seus escritos. Na fase madura, porm, ele reformula suas teorias criticando em grande parte o que elas tm de aproximao estreita com a viso parmenediana, estando circunscritas nesse perodo as obrasO SofistaeParmnides, onde o prprio Scrates j deixa de ser personagem principal nos dilogos. (Ver figura 1)Sua influncia do Orfismo(5)est clara em seus prprios escritos, conforme nos relata Grazzinelli(6). A noo e doutrina referente imortalidade da alma e sua transmigrao, embora tambm encerradas na doutrina pitagrica, traz elementos indissociveis ao orfismo, o qual mencionado literalmente em vrios trechos da obra platnica, embora de forma ambivalente: ora tomando alguns rficos como charlates que vendem superstio ora como exemplos de conduta asctica para purificao da alma(7).

Figura 1

Plato e Parmnides

inegvel a influncia de Parmnides em toda filosofia que se tentou fazer depois dele. Seu paradoxo que nega a existncia do devir em virtude de sua transitoriedade foi mote de discusso por muitos filsofos. Parmnides preconiza que o nico conhecimento possvel se d atravs do SER, pois nada podemos extrair do No-Ser: transitrio, mutvel e inseguro para nos dar informaes sobre uma suposta verdade acima das aparncias. A realidade est ento onde possamos vislumbrar o SER: eterno, imvel, homogneo e ntegro. E a Verdade, por conseguinte, s se encontra nesse reino da imutabilidade. Andreas Graeser nos fala sobre isso:

Trata-se da questo de quais as condies preenchidas por algo que existe e que condies presumem o conhecimento da realidade. SER , segundo essa concepo, ser um e contnuo, praticamente no-surgido, permanente, homogneo como um todo, imvel, sem passado nem futuro (D.K.28 B8, 2-49). S formaes desse tipo so, no sentido pleno; e s formaes desse tipo admitemconhecimento. (GRAESER 2002, p. 95)

No entanto a questo da alteridade(8)fica mal resolvida em Parmnides. Segundo Molinaro:

[Parmnides] no empreendeu o exame do modo pelo qual o outro ser sem cessar de ser o outro ou, inversamente, o modo pelo qual o ser tambm o outro sem cessar de ser. (MOLINARO 2004, p. 26)

Esse pensamento seduz Plato e o faz ir alm de Parmnides, conciliando as vises aparentemente opostas entre o eleata e Herclito; cuja nica realidade era justamente o devir constante das coisas, que por sua movimentao incessante nos dava uma noo de permanncia. Contudo, Plato concorda com Parmnides em seus principais postulados, estabelecendo que algo s pudesse ser verdade se for manifestao do que verdadeiro. E o que verdadeiro, necessariamente, precisa ter as caractersticas da imobilidade e perenidade. Estaria criado assim a identidade entre SER e Verdade. para responder como chegar a essa Verdade que Plato ento comea a traar seu sistema. Ele parte do que chama Segunda Navegao(9), em que se cessam as tentativas de uma explicao naturalista da realidade (dada pelos pr-socrticos na Primeira Navegao) e parte-se para uma elaborao pessoal do filsofo que percebe que no se consegue explicar o sensvel a partir do prprio sensvel, sempre mutvel e transitrio, obrigando-o a considerar uma realidade supra-sensvel que encerre a Verdade e uma possibilidade concreta de conhecimento. Para se atingir essa realidade s h um meio: a Razo. A experincia ento negada como mtodo de conhecimento e o sensvel relegado ao Mundo da Aparncia. S o inteligvel capaz de captar esse mundo verdadeiro de causas ulteriores cujos fenmenos se originam: O Mundo das Formas, ou das Idias.Nos textos de sua fase intermediria (verFigura 1), Plato ainda se v atrelado consubstancialmente na questo parmenediana, elaborando uma crtica e flexibilizando seu pensamento somente na fase de sua maturidade, nos textosO SofistaeParmnides., portanto, com sua Teoria da Forma (ou Idia), complementado com a Teoria da Alma (ou Reminiscncia), que Plato ento empreende seu grande sistema metafsico, oficializando essa forma de filosofar.

A Metafsica Platnica

A Gnese do Mundo Sensvel

O Mundo Sensvel, para Plato, tem sua causa no Mundo Inteligvel, onde reside a Verdade. O Mundo Inteligvel composto pelo Um e pela Dade, respectivamente Princpio Formal e Princpio Material. O Um age sobre a Dade sem intermedirios, por participarem ambos da inteligibilidade. As Dades formam e causam as Formas Puras, as Idias, de carter inteligvel que moldar e dar causa matria informe e sensvel que experimentamos na corporeidade.Segundo Plato, quem faz o intermedirio entre a Forma Pura e sua contraparte material no mundo sensvel o Demiurgo. ele quem, do caos, faz surgir o cosmos sensvel por um simples ato de Amor ao Bem.(10)Portanto, sendo o Mundo Sensvel criado pelo Demiurgo a partir do Inteligvel, tudo o que bom o por participar do Bem em Si, tudo o que belo o , por participar do Belo em Si e tudo o que verdadeiro o , por participar da Verdade em Si. E as Coisas em Si, as Formas pelas quais as coisas so, esto no Mundo Inteligvel, que participa do Mundo Sensvel dando-lhe realidade. Aquilo no Mundo Sensvel que no tenha contraparte no Mundo Inteligvel falso e inexistente, isto , aquela margem de irredutibilidade da matria sensvel, segundo Reale: do irracional ao racional.(11)

O Mundo das Idias

O Mundo das Formas Puras, ou das Idias(12)e o prprio conceito de idia sofreu algumas modificaes ao longo da obra de Plato. Em uma concepo mais socrtica em que uma Idia representasse o que h de comum em todas as coisas de uma determinada categoria, oEidosacontece nas coisas e no se constitui um ente apartado: no subsiste de forma autnoma independente das coisas. Podemos ver isso nos dilogos de Plato atMenon, onde por influncia notadamente socrtica, a temtica era tica e humanstica. A concepo de que as coisas participam de umEidosdefinido e independente, autnomo e transcendente que define e d causalidade s coisas, tem sua forma delineada a partir deFdone naPolitia. Szaif nos diz sobre isso:

Conseqentemente, os Eidos ou idias devem formar uma realidade prpria em relao aos objetos sensorialmente dados, at ontologicamente superior a eles, pois os objetos sensoriais eventualmente emprestam das idias seu imperfeito ser-assim apenas por meio de participao tambm interpretada como relao de reproduo (Abbildbeziehung) de figuras. (SZAIF 2002, p. 184)

A Teoria das Formas em Plato tenta dar conta de problemas dos mais variados aspectos, a partir da concepo de um mundo supra-sensvel que d causa e existncia ao sensvel. As dimenses dessa teoria abarcam a questo do Conhecimento, da Psicologia, da tica, da Poltica e da Esttica.

-Conhecimento: O conhecimento do mundo sensvel o conhecimento dado pela experincia e constitui segundo Plato, o campo dadoxa. O conhecimento do mundo intelectivo s pode ser alcanado fora da experincia, pela razo, e se constitui o verdadeiro conhecimento, chamadoepisteme. Entre um e outro no pode haver comunicao, so separados por naturezas distintas. No sensvel s se pode haver opinies sobre o que os sentidos nos informam, no intelectivo reside o conhecimento de fato, verdadeiro, pois tem acesso ao Mundo das Formas, das Idias.

Plato, para exemplificar o mtodo a ser empreendido para a busca desse conhecimento verdadeiro e como ele se d a partir do intelecto humano, elabora duas alegorias em seu livroARepblica: daLinha Divididae daCaverna.Ainda na questo epistemolgica de Plato, o que denota possibilidade de acesso do intelecto ao conhecimento das Idias no supra-sensvel sua Teoria das Reminiscncias, onde aepistemese d pela lembrana do que a Alma imortal viveu antes de se objetivar na corporeidade do mundo sensvel. Segundo Mondin:Na economia geral do sistema de Plato, a doutrina da reminiscncia exerce trs funes muito importantes: fornece prova da preexistncia, da espiritualidade e da imortalidade da alma; estabelece ponte entre a vida antecedente e a vida presente; d valor ao conhecimento sensitivo, reconhecendo-lhe o mrito de despertar a recordao das Idias. (MONDIN 2007, p. 71)

-Psicologia: Em sua origem, o homem em Plato essencialmente Alma e vivia no Mundo das Idias. O corpo a forma acidental de o homem existir no mundo sensvel. No homem convivem trs Almas, as quais Plato exemplifica na alegoria daCarruagem, onde a alma racional o cocheiro, a alma irascvel um cavalo bom e belo e a alma concupiscvel um cavalo mau e feio. Um d trabalho e rebelde, outro obediente ao cocheiro.

Trs argumentos fundamentam em Plato a concepo de alma que ele nos legou: sua origem hiperurnia que lhe confere lembrana e conhecimento das Idias (reminiscncia); sua prevalncia, devido sua origem sobre o corpo; e sua imortalidade por sua participao na Idia da Vida.(13)

-tica: A prtica da virtude como orientao tica do homem em Plato conseqncia lgica de sua viso metafsica e est em consonncia no s com a bvia influncia socrtica de seu pensamento, mas tambm atrelada de forma substancial com as dimenses rficas-pitagricas de sua doutrina. O homem deve renunciar aos prazeres do corpo e s riquezas, buscando sempre a virtude maior que o Bem atravs do conhecimento.

mais feliz o justo no meio dos sofrimentos do que o injusto num mar de delcias.(PLATO, A Repblica 1997)

A dimenso poltica da metafsica platnica est reunida naRepblicae suas anlises estticas. Embora essa dimenso permeie boa parte de suas obras, encontram-se emFedroe emO Sofistaas anlises que mais se aproximam de seu pensamento original e consolidado.

A Alegoria da Caverna

Destaco especialmente essa alegoria platnica(15)por representar um dos temas mais centrais da filosofia de Plato. Ela consta de seu livroA Repblica, Captulo VII (514a-517d)(14)e chamada comumente deO Mito da Caverna. Particularmente eu no gosto desse termo, pois ele facilita uma generalizao equivocada dos termos Mito e Mitologia. Entendo que seu uso tenha a ver como uma metfora, uma alegoria. Mitos so narrativas de fundo histrico que preserva seu aspecto pedaggico de forma alegrica e metafrica. No o caso dessa alegoria e de tantas outras que Plato constri para simbolizar sua metafsica, epistemologia, dialtica, mstica e tica. Segundo Reale(16) o mito que expressa Plato em sua totalidade. Concordo com essa frase substituindo o termo e a noo de mito por alegoria.O poder simblico da alegoria ultrapassa o prprio contedo do ensinamento. Quando Plato se utiliza da figura da Caverna para ambientar as condies de possibilidade da libertao pelo conhecimento, ele se utiliza de um smbolo de grande apelo na Grcia Antiga e que permeou toda a ocidentalidade. A Caverna nos remete no s a um lugar sombrio, mas ao prprio inferno. poca de Plato o Hades grego j havia mudado sua topografia, a qual foi herdada pela cultura crist. Na Grcia Arcaica a morte era apenas um esquecimento, mesmo que a Alma (Eidolon)continuasse vagando como uma imagem plida do falecido. A tradio homrica era carente de uma concepo unitria da personalidade humana, dividindo-a emthyms,phrnenos, que significam respectivamente afetividade, discernimento moral e inteligncia. O que animaria essa natureza tripla humana aPsiqu, que segundo Brando significa sopro vital. Brando nos diz:

(...) morrendo com o corpo, que lhe sobra para a outra vida? Apenas a psykh , uma sombra plida e inconsciente, um edolon trpego e ablico. Ignorando as noes de dever, de conscincia, de mrito ou de falta, a outra vida ignora, ipso facto, prmio ou punio para o homem. Alis, como julgar, punir ou premiar um edolon?(BRANDO, Mitologia Grega 1986, Vol. I, p. 146)

No tendo memria, culpa, recompensa ou castigo, oeidolon(que em vida se constitua a psique) vagava no Hades. Essa crena demonstra a eticidade grega arcaica ligada vida e ao cotidiano, ao respeito polis e poltica, com a ajuda dos deuses e de Mora (a deusa destino).Nos sculos VI a V a.C., em franca oposio religiosidade cvica homrica, surgem no seio da sociedade uma virada radical e uma preocupao premente com a morte a partir do advento do orfismo. Entrando na vida cotidiana dos cidados gregos, o orfismo vem trazer noes soteriolgicas (salvacionistas) e escatolgicas (de fim dos tempos), mudando a prpria topografia do Hades e o destino das almas humanas. Brando ilustra bem isso no seguinte texto:

Se em Homero o Hades um imenso abismo, onde, aps a morte, todas as almas so lanadas, sem prmio nem castigo e para todo o sempre (...) e se em Hesodo (...) j existe uma mudana escatolgica (...) no destino de almas privilegiadas, o Orfismo fixar normas topogrficas definidas e reestruturar tudo quanto diz respeito ao destino ltimo das almas.(BRANDO, Mitologia Grega 2008, Vol. II, p. 162-163)

De um inferno que mais parecia um depsito de cascas vazias e sem conscincia no eterno sono da morte, Hades passa a compor o Trtaro, o rebo e os Campos Elseos, que mais tarde seriam sincretizados pela cultura crist em Inferno, Purgatrio e Paraso. Comea a uma dimenso moral e asctica para a alma vivente, que resiste morte e precisa de salvao.A influncia do orfismo na filosofia platnica atestada por diversos estudiosos e j mencionada nesse trabalho. Sua alegoria, colocando a imagem da caverna como local onde aqueles que vivem na iluso do mundo se encontram, gera um apelo persuasivo efetivo predispondo seus leitores a ouvir sua narrativa dentro de valores estabelecidos socialmente.Portanto, dentro das dimenses que essa alegoria possui, a ambientao e contextualizao cumprem uma funo importante dentro da argumentao platnica. A Caverna simboliza o mundo da aparncia, da iluso, das realidades percebidas apenas parcialmente onde, presos, tomamos como verdadeira as sombras.Do lado de fora da caverna, sob a luz bruxuleante de uma fogueira, homens carregam objetos por cima do muro que encobre a entrada. Esses homens, dentro da alegoria, so os manipuladores que produzem iluses e trabalham para seus prprios confortos.Outra dimenso dessa alegoria traz e examina como se daria a libertao desses prisioneiros da iluso e vtimas dos manipuladores. Danilo Marcondes levanta um questionamento interessante nesse aspecto na medida em que Plato mesmo caracteriza esse processo como doloroso e difcil:

H uma aparente contradio entre libertar-se e ser forado a levantar-se, como se o prisioneiro estivesse sendo forado a libertar-se, sentindo-se em seguida ofuscado e perturbado.(MARCONDES, 2006, p. 66)

No texto deA Repblica, Scrates apenas solicita que Glauco imagine a condio em que um desses homens fosse libertado, mas no diz exatamente como essa libertao se daria. Marcondes encontra essa explicao emFedroe na Teoria da Reminiscncia de Plato e diz que, na verdade, a libertao se d pelo conflito interno que todo homem enfrenta entre, de um lado, o conforto e a acomodao dos costumes e tradies e, de outro, o impulso da curiosidade e do conhecimento, simbolizado por Eros. nesse conflito, dialtico, que o homem encontrar sua libertao das correntes que lhe segura dentro da caverna, de seu inferno pessoal. Esse caminho tortuoso, penoso, mas compensador. Por ele e por adaptaes constantes, o homem liberto conseguir contemplar o Sol: smbolo mximo da realidade e grau mximo da plenitude, como causa primeira de tudo.

Giovane Reale(17)analisa essa alegoria destacando quatro significados para ela:

1 Simboliza os graus em que ontologicamente se divide a realidade e, principalmente, o mundo sensvel (da aparncia) do mundo inteligvel (da Idia);2 Simboliza os graus em que epistemologicamente o homem tem acesso realidade:eikasia(imaginao, iluso),pstis(crena) e a dialtica como processo que leva episteme;3 Simboliza as dimenses da vida humana no sentido asctico ou de purificao mstica, onde a libertao dos sentidos nos levaria pura presena do Esprito, Sol;4 Simboliza a dimenso poltica da libertao, a partir da volta do filsofo-legislador trazendo a possibilidade de libertao para aqueles que ficaram. Este dever, contudo, enfrentar a incompreenso daqueles que ficaram e, sobretudo, o fardo de se readaptar a um mundo com falta de luz, mas cuja volta, paradoxalmente, daria sentido sua prpria existncia.

Notas1 - Segundo notas de Edson Bini, na seo Dados Biogrficos da citada obra.2 - Verbete: Metafsica.3 - (MARCONDES 2006, p. 56)4 - (ibidem, p. 55)5 - Para saber mais sobre Orfismo e Filosofia, consulte o texto do Seminrio de Histria da Filosofia sobre esse tema apresentado por Gilberto Miranda Junior, Andrey Ferreira e Denis Quinteros em 03 de Junho de 2008, disponvel emhttp://gil-jr.discovirtual.uol.com.br/disco_virtual/Filosofia/orfismo_e_a_filosofia.pdf- senha: filosofia6 - (GRAZZINELLI 2007, p. 17 e 18)7 - (ROESSLI 2002, p. 46-48)8 - Alteridade como oposto a identidade. Caracterstica do que outro e no eu. (LALANDE 1999, p. 47)9 - (REALE e Antiseri 1990, p. 134)10 - Em (REALE e Antiseri 1990, p. 143) podemos ver um trecho de Timeu onde Plato justifica a criao pelo Artfice.11 - Idem.12 - Idea ou Eidos cfe. (SZAIF 2002, p. 183)13 - (PLATO, Fdon 2005)14 - (PLATO, A Repblica 1997, VII 514a-517d, p. 225-228)15 - O leitor pode ler a transcrio desse texto no artigoAlegoria da Caverna, aqui no Wiki Filosofia Geral.16 - (REALE e Antiseri 1990, p. 166)17 - Ibidem, p. 167-168

DE MAGISTRO AGOSTINHO DE HIPONA - RESENHA

Introduo

A presente resenha tem por objetivo apresentar a obraDe Magistro(1)de Santo Agostinho e fazer uma breve anlise de sua Teoria da Linguagem, mostrando como ele concebe a linguagem como representao de sinais e tecendo alguns questionamentos para futuras referncias de pesquisa. campo de investigao desse autor, inclusive, a identificao de como nossa mente e memria trabalham na representao e entendimento da realidade. A tese agostiniana emprestada de Plato (s conhecemos aquilo que j sabemos - Teoria da Reminiscncia), porm sem assumir a transmigrao da alma. Essa tese entra em conflito com a tese da Tbua Rasa(2), onde tudo que aprendemos vem do meio e atravs da pura e simples experincia; assim como tambm se contrape s concepes de Wittgenstein, cujo processo de aprendizagem lingstica social, chamada por Medina(3)de abordagem enculturalista.No minha pretenso defender aqui uma ou outra viso, at por que todas tm sustentao em seus argumentos e deixam lacunas que no resolvem todas as questes que giram em torno delas. No entanto, ao longo da explanao, minha pretenso fazer alguns questionamentos que sirvam de reflexo a possveis motes de pesquisas futuras; atravs do entendimento do que Agostinho pensa sobre o assunto.Irei ento, a partir das partes a seguir, contextualizar a produo deDe Magistro, resumir suas principais teses e fazer os questionamentos a que essa resenha se prope.

Contexto de Produo

Difcil entender uma obra numa fase qualquer de um autor se no entendermos sua histria e seus feitos antes dela. A obra o resultado das confluncias histricas de quem a fez, e entender essas confluncias conseguir ir mais a fundo na prpria obra. Entender Agostinho entender sua obra, pois cada escrito seu reflete aquilo que ele viveu numa vida repleta de realizaes, altos e baixos e, sobretudo, uma veemncia que o fez viver com uma intensidade fora do comum tudo o que acreditou.Agostinho nasce em frica, na cidade de Tagasta; atual Souk-Aras da Arglia atual, em 354. A sua busca pelo conhecimento e certezas comea com o incio de sua vida no ensino de retrica em Cartago, Roma e Milo. Embora tenha vivido sempre dentro do cristianismo ensinado por sua me (Mnica imortalizada em suasConfisses), entrega-se ao ambiente de professores e companheiros, vivendo intensamente tudo o que a licenciosidade poderia lhe dar. Envolve-se com uma mulher (que a posteridade esconde o nome), nascendo seu filho Adeodato (com quem dialoga noDe Magistro) e em Milo tem contato com Santo Ambrsio, conhecendo a filosofia de Plotino. Sua busca o leva do maniquesmo ao ceticismo acadmico para depois faz-lo chegar ao cristianismo eclesistico, convertendo-se.Dois anos aps seu batismo cristo, que ele faz juntamente com Alpio e seu filho Adeodato, ele tem por objeto um dilogo com Adeodato, que faleceria pouco depois, escrevendo a obra que resenhamos no presente trabalho.De Magistrocircunscreve-se como o ultimo de seus dilogos; de um Agostinho recm convertido em que as culpas do passado e o remorso j haviam sido diludos, embora em seu corao houvesse ainda uma mcula confessada no Livro 10 deConfisses:

38. Tarde Vos amei, Beleza to antiga e to nova, tarde Vos amei! Eis que habitveis dentro de mim, e eu l fora a procurar-Vos! Disforme, lanava-me sobre estas formosuras que criastes. Estveis comigo, e eu no estava convosco!(AGOSTINHO, Confisses 1996, Cap. 27 - p.285)

Na obra, Agostinho conversa com seu filho Adeodato, brilhante e prodgio, para investigarem a origem e fundamento da linguagem, assim como determinar a possibilidade do aprendizado humano.

Resenha da Obra

Com a clebre pergunta que Agostinho dirige a seu filho Adeodato: Que te parece que queremos levar a efeito, quando falamos? (AGOSTINHO, O Mestre 2006, p. 19), o livro inicia dizendo o motivo pelo qual foi feito. Segundo Horn(4), Agostinho interessa-se pela Filosofia da Linguagem em vrias fases de sua biografia, tendo feito o tratado juvenilDe Dialecticae um escrito perdido intituladoDe Grammatica. Neles, ainda segundo Horn, Agostinho permeia a problemtica da linguagem, mas, no entanto, no intenciona desenvolver propriamente uma Filosofia da Linguagem, tendo como mote a fundamentao de uma realidade divina no falar e pensar humano. Assim, assinala uma pretenso teolgica e no filosfica. de minha opinio, no entanto, que a despeito da pretenso teolgica, Agostinho sempre se preocupa filosoficamente na justificao racional da f. O fato de ele partir de um pressuposto de f para essa justificao, no tira necessariamente o carter filosfico de sua obra, embora nos obrigue a olh-la por esse pressuposto para analis-la e entend-la.Em suas obras precedentes ele discute essa questo de forma assistemtica e isolada e somente noDe Magistro que ele procura uma coerncia que fundamente suas idias. As grandes perguntas que Agostinho procura responder so: como as palavras podem nos dar conhecimento? Como se chegar realidade das coisas mesmas se com as palavras s se aprende as prprias palavras? Como as idias de um homem podem reproduzir-se na alma de outro homem? possvel de fato o ensinamento? A problemtica sobre realidade, conhecimento e linguagem ento permeada pela obra atravs do dilogo mantido com o filho.Agostinho tenta responder essas perguntas de uma forma dialtica com seu filho, e de certa forma dificulta o leitor que espera uma filosofia estruturada e categorizada nos conceitos que expe. Em dado momento ele inclusive engana seu filho para que ele chegue sua concluso; afirmando algo para depois neg-lo na concordncia inocente do rapaz. Engraado notar que, a despeito dos altos elogios que o prprio Agostinho faz da inteligncia de Adeodato emConfisses(5), as concluses do dilogo sempre so levadas a cabo pelo prprio Agostinho, relegando o filho a mero figurante, embora repleto de pertinncia no que diz.

Palavras So Signos (Sinais)

Ele parte da tese de que as palavras so sinais. Ao longo do dilogo, porm, Agostinho nega essa tese postulando que os sinais representam a Vontade de quem diz e no as coisas mesmas. Para que essa Vontade, no entanto, represente as coisas mesmas atravs dos sinais, preciso que o dono dessa Vontade escute seu mestre interior; o Cristo. Para Agostinho, s no carter revelador da f que a realidade poder ser percebida e traduzida por uma Vontade que se utiliza de palavras as quais sero atribudas sinais que se referem s coisas mesmas.Portanto, no so os sinais que ensinam e nem, portanto, as palavras. S possvel a mera comunicao atravs de signos, e no o aprendizado. Se j conheo o significado de um sinal, ele no me ensina nada. Se no conheo o significado, ele prprio tambm no me ensinar. Ou eu aprendo atravs da coisa mesma (significada) ou eu j sei de antemo para identificar o signo que a representa.

Aprender Recordar

Penso que desde que o ser humano humano a questo da fala, do dizer, est em voltas de se adequar o mais fidedignamente com a percepo humana da realidade. Agostinho, a meu ver, quando questiona a linguagem e a possibilidade de conhecimento atravs dela, parte do pressuposto que existe uma realidade que pode ser conhecida objetivamente por ns e que o saber possvel. O que ele questiona apenas se a linguagem daria conta disso, e no se teramos ou no acesso a isso. A influncia platnica, que parte de uma realidade transcendente que confere verdade ao devir a partir de sua participao nessa realidade, patente na argumentao agostiniana.Para Agostinho falamos para ensinar (docere), mas ao falar tambm aprendemos, pois acionamos nossa memria e reafirmamos aquilo que sabemos. No outro, admoestado, ao invs de transferirmos uma idia a ele, fazemos com que ele lembre o que sabe; angariado num estado anterior sua prpria existncia e trazido tona pela admoestao racional. Excetuando-se a questo da transmigrao das almas, no admitida pela doutrina crist, Agostinho assume a Teoria da Reminiscncia platnica para argumentar sobre o inatismo do conhecimento humano.

O Mestre e a Pedagogia do Interior

Se as palavras so sinais que se referem s coisas mesmas e, no entanto, elas nada nos ensinam se j em ns no habitar o conhecimento delas, nenhum homem poderia ser chamado de Mestre, pois ele nada ensina com suas palavras. Mestre ento existe em ns, e atravs dele rememoramos o que sabemos fazendo referncia s palavras que ouvimos. E quem habita em ns Cristo, este , portanto, segundo Agostinho, nosso Mestre Interior.Para dar voz a esseMestre Interiorque nos rememora o que sabemos para nos referenciarmos naquilo que ouvimos, preciso investigar internamente cada palavra dita, procurando sua referncia. Esse ato de rememorar o aprender possvel.Influenciado pelaTeoria das Idiasde Plato atravs de suas leituras de Plotino, Agostinho rejeita o aprendizado oriundo da experincia sensvel preconizado pelas filosofias empiristas.

Existem duas categorias de conhecimento cujo aprendizado adquirido de maneira diversa:

1. Os sensveis conhecemos pela experincia direta. Assim sendo, o professor nada nos ensina pelas palavras, apenas nos rememora o que j sabemos e nos ajuda a associ-las de forma categorizada, atravs de outro tipo de conhecimento, abaixo;

2. Os inteligveis so as relaes matemticas e conceitos genricos e ideais, como homem, cavalo, etc. Segundo Agostinho, compreendemos os inteligveis atravs da luz divina que habita em ns e ilumina nossa razo. A compreenso uma iluminao intelectual cujo objeto tem origem em Deus.

Conclui Agostinho ento que o Mestre no ensina, no um transmissor de verdades a serem apreendidas pelo aluno. Mas sua funo muito importante, pois ele orienta e facilita a descoberta, pelo prprio aluno, de sua verdade interior. Semelhante aspecto podemos observar em Scrates que negava saber algo e apenas inquiria as pessoas para que elas tomassem conscincia de sua prpria ignorncia e pudesse pela maiutica encontrar a verdade.

Concluso

Pode parecer at injusto pegar uma obra contextual de um passado medieval e traz-la luz da contemporaneidade para analis-la. Mas levando em conta que um pensamento filosfico pretende ser uma resposta universal adequada a um fenmeno, podemos ao menos tecer alguns questionamentos com vistas a solues atuais.Agostinho quando parte da pressuposio de que Deus tenha colocado em ns a verdade e que basta consultar esse mestre interior para que rememoremos as coisas e a reconheamos, ele se obriga a admitir que so incompetentes ou distantes de Deus quem no consegue fazer isso. Esse tipo de inferncia no se impe como verdadeira em si mesma, mas somente se tomamos a pressuposio de Agostinho. Digamos que seja uma concluso que salva a premissa e no uma concluso conseqente da mesma.Esse argumento frgil quando aventamos a possibilidade de algum ensinar uma mentira a outro. Quando Hitler implanta a Juventude Nazista e faz uma espcie de aprendizado macio incitando o dio e a discriminao a milhares de jovens alemes, equivaleria a dizer ento que cada dio suscitado era uma verdade divina implantada no corao de cada jovem que aprendeu a odiar os judeus.Logo, conclumos que o aprendizado se d de forma diversa daquela que Agostinho pretende nos dizer. No entanto, seus argumentos so verossmeis quando percebemos que as palavras, em si mesmas e enquanto sinais, nada nos dizem sem que possamos nos referenciar em alguma experincia pr-existente ou mesmo possamos fazer um salto intelectivo em busca de um entendimento daquilo que dito. Mas o entendimento de nvel inteligvel no indica nada alm que no seja fruto de nossa prpria capacidade mental, dada pelas sinapses cerebrais e aes associativas e referenciais de nossos prprios neurnios. Se essa caracterstica vem de uma fonte extracorprea a qual nos foi concedida, apenas uma questo de f.Plato, em sua primeira fase, sob a influncia determinante de Scrates, antes ainda de ter viajado Itlia e conhecido o pitagorismo e o orfismo, ainda no havia dado um aspecto transcendente questo das Idias que definem os gneros. A noo intelectiva de gneros e espcies, que denota a Idia de algo, parece emergir imanentemente do conjunto de aparies fenomnicas das coisas que ns percebemos. Inferimos, por conveno e dialeticamente, aquilo que no acidente, e o definimos como algo em seu fundamento existencial.Se o que a primeira fase platnica nos d a entender for verdade, poderamos dizer que a capacidade cognitiva humana que nos permite perceber o inteligvel, se d por um processo de generalizao indutiva da nossa prpria experincia existencial. Se isso for verdade, no percebemos as coisas a partir de sua participao em um suposto hiperurnio (ou mundo das idias), mas sim compomos esse hiperurnio a partir das inferncias de uma certa regularidade nas coisas, as quais so percebidas e categorizadas a partir dos interesses coletivos e culturais histricos.Isso, no entanto, no exclui e nem deveria excluir qualquer participao divina em ns.

Notas1 Nome original em Latim da obra: AGOSTINHO, Santo.O Mestre.Traduo: Antonio Soares Ribeiro. So Paulo, SP: Landy Editora, 20062 Oposio entre a filosofia que admite a reminiscncia e os empiristas como John Locke. Essa expresso foi usada por Leibniz para ilustrar as idias dos partidrios de Locke que supunham que no comeo a alma vazia de todas as idias. Cf (LALANDE 1999, Verbete Tbua Rasa - p. 1.104)3 Cf. (MEDINA 2007, p. 108)4 (HORN 2006, p.)5 Conf. (AGOSTINHO, Confisses 1996, Parte I - Livro IX n.14 - p. 237), onde se l: H um livro meu que se intitula De Magistro, onde ele (Adeodato) dialoga comigo. Sabeis que todas as opinies que a se inserem, atribudas ao meu interlocutor, eram as dele quando tinha dezesseis anos. Notei nele coisas ainda mais prodigiosas. Aquele talento causava-me calafrios de admirao, pois quem, seno Vs, poderia ser o artista de tais maravilhas?

O Discurso do Mtodo Descartes (resenha temtica)

A Construo da epistemologia cartesianaE sua contextualizao histrica a partir da obra O Discurso do Mtodo.

Esse trabalho, embora se refira a um livro especfico, procura enfatizar o fundamento epistemolgico do pensamento cartesiano, embora resenhe parte da obra em questo.A obra de Descartes, mais especificamente o seuDiscurso do Mtodopode ser vista como uma sistemtica reflexo sobre seu tempo atravs de uma tomada de posio especfica frente a uma crise que, a partir de seu posicionamento, inaugurou uma nova epistemologia e uma nova maneira de olhar a realidade. preciso assumir uma perspectiva hermenutica na leitura da obra de Descartes a partir do momento em que sua poca se desprendia de uma viso de mundo centralizada na autoridade e no poder centralizado da religio. Porm, essa perspectiva hermenutica no pode deixar de levar em conta que o que ele pensou tambm foi assumido pela tradio como forma de conciliar os dogmas religiosos com a cincia que despontava na modernidade. Necessrio salientar que foi um processo gradual essa conciliao.Assumindo, de certa forma, o esprito humanista de sua poca e centralizando-se na capacidade racional humana na busca do conhecimento, Descartes preocupou-se fundamentalmente em construir um modo para que pudssemos chegar a um conhecimento seguro. Esse modo a dvida, o seu mtodo, o caminho.Para esse objetivo, notamos que ele incorporou o esprito que se formava na poca e diferenciou seu discurso dos tratados filosficos medievais impessoais e abstratos, escrevendo na maioria das vezes na primeira pessoa e exemplificando suas idias a partir de suas experincias pessoais.Seu estilo pessoal, quase confessional, mescla sentenas de cunho afirmativo-perceptivo de carter universal e logo em seguida justificada sua validade a partir da narrativa de sua experincia pessoal racional. Vemos esse exemplo nesse trecho:

As maiores almas so capazes dos maiores vcios, como tambm das maiores virtudes, e aqueles que s andam muito devagar podem avanar bem mais, se seguirem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.Quanto a mim, nunca cheguei a supor que meu esprito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros em geral. Muitas vezes cheguei mesmo a desejar ter o pensamento to rpido, ou a imaginao to ntida e diferente, ou a memria to abrangente ou to presente, quanto alguns outros. (DESCARTES 2006, p.13)

com esse tom pessoal e de certa forma intimista, embora tente sempre universalizar os conceitos que decorram de seu raciocnio pessoal, que Descartes comea seuDiscurso do Mtodo, a meu ver, com uma das frases mais emblemticas da modernidade; no tanto por seu carter axiomtico, mas por seu carter aforstico:

O bom senso a coisa do mundo mais bem distribuda, porquanto cada um acredita estar to bem provido dele que, mesmo aqueles que so os mais difceis de contentar em qualquer outra coisa, no costumam desejar t-lo mais do que j o tm. (DESCARTES 2006, p.13)

Descartes usa esse enunciado para argumentar a idia de que todos so dotados igualmente de razo e que s chegam a opinies diferentes por que no possuem um mtodo adequado. claro que, embora aforisticamente seja interessante, difcil imaginar que cada homem no veja necessidade de ter mais bom senso do que julga ter como evidncia de que todos de fato tenha. Mas essa idia se configura como pedra basilar de um consenso que se forma na poca, j formulado no final do medievo por Nicolau de Cusa: o homem seria um microcosmo, reproduzindo em si, sinteticamente, a totalidade da natureza. com esse mote que, na modernidade, Descartes introduz a temtica dosujeito que conhece como fundamento de sua epistemologia. Essa temtica ir deslocar o questionamento sobre o Objeto que se mostra a uma razo capaz de captar a ordem efetiva das coisas para o Sujeito que volitivamente se direciona para o Objeto na inteno de captar essa ordem. A preocupao moderna, inaugurada por Descartes como esse Sujeito pode assegurar um conhecimento verdadeiro e seguro do Objeto.Descartes ento parte da premissa que, antes de voltar-se ao Objeto, esse Sujeito precisa voltar-se para si mesmo e fundamentar nele a possibilidade desse conhecimento.

- Quem esse sujeito que conhece?- Quais suas potencialidades e limitaes?- possvel sair do ceticismo e alcanar a verdade sobre algo?

Eis os pontos tematizados a partir de Descartes em seu Discurso do Mtodo.A perspectiva ontolgica que Descartes tematiza sobre o Sujeito do Conhecimento s seria abandonada pelo empirismo e depois por Kant. Descartes confia na capacidade fundante da Razo como possibilidade de conhecer e descarta a possibilidade de qualquer conhecimento seguro a partir do sensvel, reeditando a tradio iniciada em Plato.Embora Descartes liberte a epistemologia da fundamentao teolgica, centralizando no racionalismo toda a nossa possibilidade de conhecimento (inclusive o teolgico), ainda postula uma participao divina em ns, e a exemplo de Plato, separa o Sujeito em duas instncias substanciais que formam o Ser Humano: ares cogitanse ares extensa.A fundamentao racional desse dualismo contribuir para avanos cientficos, onde a noo de corpo como uma mquina a servio da alma racional, ir proporcionar a permisso para autpsias, por exemplo.Descartes chega a seu mtodo assumindo uma postura ctica, porm postula um ceticismo que no duvida para negar, e sim para chegar atravs da dvida metdica ao verdadeiro conhecimento. Seu mtodo estabelece que tanto os sentidos quanto a percepo no se configuram como um conhecimento seguro, e estabelece o caminho para esse segurana por quatro preceitos bsicos:

1.Evidncia: aquilo que aparece imediatamente ao entendimento;2.Anlise: diviso do problema em partes menores;3.Sntese: ordenar o pensamento do mais simples ao mais complexo;4.Evidncia do Conjunto ou Intuio Geral: enumerao dos dados e revises gerais.

O caminho ctico proposto por Descartes procura desestruturar a prpria postura ctica ao usar o ceticismo para buscar algo que fundamente a possibilidade do conhecimento seguro. Ela, portanto, propedutica. Para isso ele cria o argumento doCogito, cujo objetivo estabelecer os fundamentos do conhecimento e encontrar uma certeza imune a qualquer questionamento ctico.Propondo esvaziar-se de todas as crenas e conhecimento adquiridos, Descartes encontra a questo que garante a certeza segura de algo: Penso, logo existo. A existncia, a partir dessa constatao, se torna a pedra basilar da certeza de que podemos conhecer de fato algo sem qualquer tipo de questionamento que possa neg-lo: se soubermos que pensamos, por que necessariamente existimos.O Cogito, portanto, a partir da descoberta de uma realidade primria, necessria e indubitvel, nos dar a base para a construo do conhecimento possvel humano. A existncia de Deus, para Descartes, a partir da constatao do Eu Penso, se circunscreve a partir da idia que temos dela. com essa constatao que Descartes chega seuArgumento Ontolgico: sendo o nico mtodo possvel de conhecimento a dvida metdica, duvidar menos perfeito que conhecer. Ao no possuirmos um conhecimento direto que nos exime da dvida como mtodo, s poderamos ter idia da perfeio se houvesse alguma natureza que fosse mais perfeita e acima de ns. Essa natureza seria Deus. No sou s eu que existo, pois no sou perfeito e se tenho idia da perfeio, alm de mim devem existir outras coisas.A ponte entre o pensamento subjetivo na busca de uma certeza indubitvel e o pensamento objetivo que pode proferir conhecimento sobre um objeto est na fundamentao ltima da realidade que independe da experincia sensvel, isto , na razo pura inata. S haver cincia quando a razo puder explicar atravs de leis e princpios indubitveis como a realidade se configura e funciona. A ponte para fora de si mesmo e o rompimento com o solipsismo no pensamento cartesiano sua argumentao sobre a existncia de Deus. Deus existindo, as coisas existem fora do meu pensamento, e caminhando em direo a Deus atravs de minha razo que posso conhecer as coisas.Nesse ponto h uma crtica escolstica aristotlica que preconizava chegarmos a Deus atravs do sensvel. Descartes na continuidade de seu livro ainda fala e discorre sobre a alma e o corpo, o homem e o animal, fechando seu discurso num apelo aos leitores.Nunca mais a cincia seria a mesma com a publicao do Discurso do Mtodo de Descartes, embora o empirismo fosse dar um carter comprobatrio mais robusto ao conhecimento possvel humano.

O Humanismo e Renascimento

Introduo

O presente trabalho tem como objetivo o entendimento do perodo da Idade Moderna iniciada a partir do desgaste das respostas construdas pela Idade Mdia para a questo do homem, da verdade e da sociedade. Entendendo que o olhar filosfico sobre a Histria sempre tem como objeto a construo de um sentido argumentado de uma leitura, apresento nesse trabalho apenas uma resenha e a anlise dos textos escolhidos e com apoio de outros textos e autores que tive a oportunidade de consultar.Os autores consultados so unnimes no entendimento de que o termo Renascena, embora tenha como caracterstica fundamental a busca de referncia na antiguidade, se coloca a partir dela e no nela para se firmar enquanto movimento. A busca de referncias antigas, perdidas ou com enfoque diverso na Idade Mdia, desloca a noo de Homem, enquanto gnero ou espcie, de mero reprodutor e legitimador de uma estrutura hierarquizada, cujo topo se encontra o clero e a nobreza, para valorizar o gnero como um todo em sua capacidade de inovao (criativa, intelectual e espiritual); inclusive para interpretar seu modo essa realidade que agora sai da mo da autoridade para se tornar propriedade do Homem dentro da Histria.O ser humano como microcosmo que reproduz em si a perfeio do universo criado, tema recorrente nesse pensamento. Embora haja certa controvrsia em termos de datas em que teria se iniciado esse perodo histrico, possvel detectar aspectos que identifiquem sua incipincia. O humanismo enquanto concepo do mundo centralizada no Homem um trao fundamental do perodo renascentista e sobre isso os autores concordam. A mudana ento, a despeito de datas ou algum marco especfico, identifica-se por um deslocamento cosmovisionrio teocntrico para antropocntrico.

Caracterizando Idias

O Renascimento um movimento amplo, cultural e urbano, que se inicia na Itlia, mas circunscreve-se a toda Europa Ocidental e que procura retomar os valores da cultura clssica greco-romana. Sua amplitude se inscreve tambm em mudanas polticas e econmicas, que vai desde a mudana de regime poltico a uma transio do feudalismo medieval para o capitalismo propriamente dito como modo de produo (passando pelo metalismo e pelo mercantilismo).O Humanismo, poderamos dizer, teria sido a base epistemolgica desse perodo; o tipo de olhar lanado a toda historicidade que caracteriza o perodo renascentista. A valorizao do Homem, do indivduo, do discurso plural e muitas vezes direcionado e setorizado, rivalizaram com a tentativa de sistemas totalizantes de explicaes, e por esse motivo muitos acharam que o Humanismo no se enquadraria numa escola filosfica especfica. No entanto, mesmo no havendo sistemas totalizantes de interpretaes sistemticas da realidade, a congruncia de um olhar voltado a partir da realidade humana para se explicar o mundo, mesmo que de forma fragmentada, nos coloca na evidncia de ao menos conceb-lo como uma corrente filosfica.A perspectiva de uma tendncia secular crescente dada pelo deslumbre da vida nas cidades, fez com que banqueiros ricos, mercadores e comerciantes abastados voltassem seu olhar para o desfrute dessa vida em contrapartida a uma expectativa de salvao numa vida futura (PERRY 2002, p. 220). Isso no significa um atesmo latente, mas uma clara dicotomia entre o discurso hegemnico religioso catlico e a realidade da vida mundana que se abria para quem tinha recursos na efervescncia cultural das cidades renascentistas. A intelectualidade crescente e a busca de outras referncias que justificassem o usufruto de uma nova posio social de uma classe emergente que diferia do clero, dos nobres e do povo comum, deflagram um movimento cultural que se centra no homem como porta-voz daquilo que deve se constituir a forma de se viver e explicar a realidade. Apesar das polmicas, o Humanismo como movimento dentro da Renascena se constitui uma gama de olhares que influencia e influenciado por uma filosofia multifacetada que se delineia a partir desse novo olhar.

Ruptura ou Continuidade?

Embora o Humanismo dentro do Renascimento constitua um dos traos mais caractersticos desse perodo, chegando inclusive a ter uma influncia determinante no pensamento moderno (MARCONDES 2006, p. 141), o Renascimento vai alm do Humanismo e abarca o prprio Naturalismo, inserindo o homem na histria e na natureza como forma de dispor de seu prprio destino.Giovanne Reale traz duas concepes opostas de autores que procuraram definir as caractersticas desse perodo com base na dicotomia entre ruptura e continuidade; Kristeller e Garin (REALE e ANTISERI 2002, p. 18-24). No entanto Danilo Marcondes recorre anlise e diviso histrica de Hegel (MARCONDES 2006, p. 139-141), e delimita o incio da Filosofia Moderna e da prpria noo de Moderno, a partir deidias centraisefatos importantesque reforaram essas idias e que desembocaram numa forma de pensar caracterstica. A noo dialtica da Histria percorre o caminho da sntese entre os dois caminhos dicotomizados e o caracteriza no prprio fluxo dos contextos histricos.Segundo essa concepo, no prprio perodo precedente que deve conter os elementos de sua prpria superao, que provocar a dialtica necessria a prxima etapa histrica. Nessa concepo podemos reunir ento as idias e fatos que contriburam para a passagem da medievalidade para a modernidade.

Idias centrais:

a.Idia de Progresso: que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avanado que o antigo (MARCONDES 2006, p.140), e para isso o resgate do pensamento da antiguidade clssica Greco-Romana se fez necessrio;b.Valorizao do Individuo: ou da subjetividade, como lugar da certeza e da verdade, e origem de valores, em oposio tradio, isto , ao saber adquirido, s instituies, autoridade externa. (MARCONDES 2006, p.140). Ou ainda nas palavras de Abagnano: reconheceu o valor do homem como ser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da histria, capaz de nele forjar o prprio destino. O homem a quem se reconhece um tal valor um ser racional e finito, cuja integrao na natureza e na sociedade no constitui condenao nem exlio mas antes um instrumento de liberdade o que por essa razo pode obter no meio da natureza, e entre os homens a sua formao e a sua felicidade. (ABBAGNANO 1970, p. 15-16)

Fatos Importantes:

a. Humanismo renascentista iniciado no sec. XIV (como movimento cultural amplo, intelectual, educacional, artstico e literrio - Petrarca)b. Inveno dos tipos mveis por Gutenberg no sec. XIVc. Descoberta do Novo Mundo sec. XVd. Reforma Protestante do sec. XVIe. Revoluo Cientfica do sec. XVII

Tanto Reale, ao final de sua comparao das vises entre Kristeller e Garin, quanto Abagnano em sua introduo do vol. V de sua Histria da Filosofia parecem concordar mais com a tese de Garin, embora salientem que essa ruptura, esse novo, traga tambm em seu bojo certa continuidade do antigo. O olhar renascentista lanado ao passado, tanto d continuidade a uma tendncia j identificada na medievalidade tardia (prenunciada em Guilherme de Ockham), quanto tambm vai alm do olhar antigo para o estabelecimento de novas concepes que os clssicos no tinham. Abagnano se expressa sobre isso da seguinte maneira:

No possvel considerar o Renascimento meramente como a afirmao da imanncia em contraste com a transcendncia medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do sensualismo e do cepticismo em contraposio religiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo da Idade Mdia. No faltam e at abundam no Renascimento motivos francamente religiosos, afirmaes enrgicas de transcendncia e certas retomadas de elementos cristos e dogmticos; muitas vezes esses motivos e elementos aparecem entrelaados com elementos e motivos opostos, formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido completo so difceis de determinar. (ABBAGNANO 1970, p.10)

Mesmo assim, particularmente, a tese de Garin a que mais faz sentido sob um olhar contemporneo para o que foi o incio da modernidade a partir do trmino do movimento renascentista. Hoje entendemos o pensamento filosfico no mais restrito a um pensamento explicativo totalizador da realidade. Onde alguns poderiam chamar de diletantismo filosfico (como Kristeller, citado por Reale), outros enxergam tentativas filosficas legtimas de tatear a realidade como a nica filosofia possvel num mundo fragmentado onde a Verdade no se constitui mais algo a ser colhido no objeto, mas sim a ser construdo no sujeito em sua relao com o objeto.Nesse aspecto, Garin se manifesta no livro de Reale nos seguintes termos:

A razo ntima daquela condenao do significado filosfico do humanismo (... est no) amor sobrevivente por uma viso de filosofia constantemente combatida pelo pensamento do sculo XV. Aquilo cuja perda lamentada por tantos justamente o que os humanistas quiseram destruir, isto , a construo de grandes 'catedrais de idias', das grandes sistematizaes lgico-teolgicas: a filosofia que submete todo problema e toda pesquisa questo teolgica, que organiza e encerra toda possibilidade na trama de uma ordem lgica preestabelecida. Essa filosofia, ignorada no perodo do humanismo como v e intil, substituda por pesquisas concretas, definidas e precisas na direo das cincias morais (tica, poltica, economia, esttica, lgica e retrica) e das cincias da natureza (...) cultivadas iuxtaprpria principia, fora de qualquer vnculo e de qualquer auctoritas (...) Eugnio Garin, apud in (REALE e ANTISERI 2002, p.20)

O fato que, a partir da leitura dos textos referenciados, no fica claro em nenhum deles uma relao de causalidade entre uma nova concepo de mundo engendrando a historicidade das mudanas, ou a historicidade das mudanas engendrando novas formas de se pensar. Se a descoberta das Amricas pde ter como origem a retomada de pensamentos que previam outro olhar ao mundo e que proporcionaram as viagens de Colombo, Vasco da Gama e Cabral, no h dvida que a prpria viagem e descoberta das Amricas proporcionaram novas vises de mundo e pesquisas que mudaram a percepo da realidade e do homem como Sujeito Histrico. O Esprito moderno parece ter-se feito dialeticamente, como preconizaria Hegel em suaFenomenologia do Espritotrs sculos depois do incio da Renascena.Em minha leitura particular desse perodo, o que parece caracteriz-lo como nenhum outro antes dele, a capacidade de abrigar, a despeito da resistncia do sistema totalizador quase agonizante que ainda insistia em controlar as mentes vidas por conhecimento, a pluralidade e a diversidade de concepes e olhares sobre o passado. Buscavam-se os antigos, os clssicos, em toda sua multicolorida concepo de mundo, coexistindo tanto um olhar voltado ao ceticismo e o relativismo dos sofistas, quanto um olhar totalizante e metafsico platnico, porm levando-se em conta seus prprios contextos histricos.No entanto, notamos em comum tanto na antiguidade quanto na medievalidade e na renascena um mesmomodus operandisde voltar-se ao passado: a busca de confirmaes de suas prprias aspiraes. Plato e Aristteles quando se voltaram aos filsofos que os precederam e at aos seus contemporneos, sempre os olharam a partir de suas prprias vises, pincelando em suas consideraes apenas aquilo que pudessem confirmar suas prprias idias ou fornecerem contrapontos que pudessem ser refutados sem maiores problemas. O que os renascentistas criticavam na escolstica, quando se voltava ao passado para pincelar o que confirmariam suas prprias concepes, eles prprios faziam isso agora; com a iluso de que conhecendo mais amplamente aquilo que foi escamoteado pela medievalidade pudessem abrir luzes que proporcionariam uma viso mais ampla da realidade.Portanto, com o pano de fundo do Humanismo os renascentistas fizeram a mesma coisa. Nesse aspecto podemos falar em continuidade, embora haja uma clara ruptura entre as duas formas de se conceber o mundo, o homem e a prpria realidade. De certa forma proporcionou uma nova maneira de se fazer histria, sem, contudo, mudar a forma de buscar na histria os elementos de mudana.

Abagnano se refere a essa dicotomia entre continuidade/ruptura da seguinte forma:

com o humanismo que surge pela primeira vez a exigncia do reconhecimento da dimenso histrica dos acontecimentos. A Idade Mdia tinha ignorado por completo tal dimenso. certo que j ento se conhecia o se utilizava a cultura clssica; esta era porm assimilada poca e tornada contempornea. Factos, figuras e doutrinas no possuam para os escritores da Idade Mdia uma fisionomia bem definida, individualizada e irrepetvel: o seu mrito residia apenas na validade que lhes pudesse ser reconhecida relativamente ao universo de raciocnios no qual se moviam os ditos escritores. Sob este ponto de vista eram inteis a geografia e a cronologia como instrumentos de averiguao histrica. Todas essas figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que no era outra seno a delineada pelos interesses fundamentais da poca, apresentando-se por isso como contemporneas dessa mesma esfera. Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autntico e no por aquele que vinha sendo transmitido atravs de uma tradio deformante o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade da perspectiva histrica, isto , da separao e da contraposio do objecto histrico, relativamente ao presente historiogrfico. (ABBAGNANO 1970, p. 12-13)

Essa dimenso histrica da busca do passado que a Renascena resgata, a coloca num posicionamento diferente daquela adotada na medievalidade, portanto, promove uma ruptura que amplia em muito a viso de mundo dos homens renascentistas. Mesmo assim isso no os exime de cometerem equvocos, e conforme nos relata Reale, o nvel histrico-crtico dos renascentistas assumiu como verdadeiros textos tardios e modificados no mesmo nvel daqueles que eles criticaram em sua utilizao pela Escolstica. (REALE e ANTISERI 2002, p. 32-43)Do ponto de vista filosfico, embora tradicionalmente as Histrias da Filosofia no reconhecessem o perodo renascentista como importante e especfico, sendo considerado apenas uma transio entre a Idade Mdia e a Modernidade, ele possui um identidade prpria caracterstica e um estilo de filosofar que rompe de fato com a Escolstica Medieval (MARCONDES 2006, p. 141), e circunscreve na histria a concepo humanstica que influencia em grande parte toda a Modernidade. O Renascimento, termo utilizado pela primeira vez por Giorgio Vasari(1), tomado tanto por Reale quanto por Abagnano como um perodo caracterstico e prprio, embora no se possa confundi-lo com a Filosofia Moderna e a prpria modernidade; inaugurada por Descartes e Bacon.Essa noo de ultrapassamento, de ruptura para o melhor, de progresso e da formulao de sistemas que nos aproximasse mais da realidade como ela e de como o homem deva agir em relao a ela, parece ser revista apenas na contemporaneidade, na modernidade tardia ou como atualmente tentam designar; no ps-modernismo. Ver-se como novo, sem os pressupostos da superao, do melhoramento, algo que rompe o paradigma do historicismo e inaugura de fato novos problemas filosficos a que devemos nos debruar a partir da segunda metade do sec. XX. A pretenso da modernidade em trazer Luzes pressupe um acesso a uma verdade to inferida quanto a do perodo a que eles se referiram posteriormente como de trevas, com a diferena que, a partir dos fatos histricos deflagrados a partir da perda da autoridade de sistemas totalizantes, inaugura-se o embate de discursos que pretende traduzir essa verdade, confluindo para o discurso cientfico; que tem como ponto comum a capacidade de se demonstrar empiricamente aquilo que tenta explicar da realidade.

Concluso

O termo Humanismo, nas palavras de Catharina E. R. Alves tem um ponto em comum entre os filsofos que tentam defini-lo: o de que o humanismo, enquanto um movimento histrico, varia historicamente e ainda hoje objeto de polmica (ALVES 2008, p. 46).Entre uma concepo que prega a realizao da pessoa humana em busca da explorao ampla de suas potencialidades que traduza uma aspirao de ser perfeito e total, e uma concepo que o conhecimento do mundo no um sistema fixo concludo e que o homem o que pode chegar mais perto da compreenso total dos mistrios da natureza, os diversos pensamentos que formam a concepo humanista (que nasce na Renascena e vai permear toda a modernidade) ir desembocar na cincia como forma do ser humano fundamentar o nico conhecimento do qual ele possa dizer que tem.Na concepo humanista no advento da Cincia com base emprica que o ser humano se realizar enquanto tal na certeza que a cincia lhe d de sua capacidade de transformar a natureza para atender seus intentos e necessidades. A idia de controle, domnio e reprodutibilidade que o homem sente-se senhor de seu destino e pleno de realizao de suas potencialidades.Mesmo a prpria Modernidade questionando essa aspirao de perfeio do humanismo que desemboca na Cincia, a idia arraigada de que nos bastamos e somos senhores da natureza est na iminncia de nos extinguir do planeta. Entre ser Sujeito da Histria e um ilustre coadjuvante que garanta o curso natural da histria, o homem sempre precisar interferir no meio para se impor como espcie e continuar sua saga.A Modernidade e a Ps-Modernidade se ocuparo, mesmo negando os princpios humanistas, do papel do Ser Humano na Histria e no planeta, discutindo e repensando essa posio luz das necessidades.

Obras CitadasABBAGNANO, Nicola.Histria da Filosofia.Traduo: NUNO VALADAS e ANTNIO RAMOS ROSA. Vol. V. 14 vols. Lisboa: Presena, 1970.ALVES, Catharina E. Rodrigues. Humanismo: Definies e Interpretaes Histrico-Filosficas.Revista Cientfica SER - Saber, Educao e Reflexo(FAAG - Faculdade de Agudos), Jan-Jun 2008: 45-55.MARCONDES, Danilo.Iniciao Histria da Filosofia - dos Pr-Socrticos a Wittgenstein.Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2006.PERRY, Marvin.Civilizao Ocidental: uma histria concida.3 Edio. Traduo: Waltensir Dutra e Silvana Vieira. So Paulo, SP: Martins Fontes, 2002.REALE, Giovanne, e Dario ANTISERI.Histria da Filosofia - Do Humanismo a Kant.5a. Vol. II. 3 vols. So Paulo, SP: Paullus, 2002.

RESENHA: FUNDAMENTAO DA METAFSICA DOS COSTUMESDe Immanuel Kant

Introduo Pensamento Kantiano e Contexto da Obra

Kant nasceu e morreu na cidade de Knigsberg, uma pequena cidade da Prssia e nunca saiu de l. Tinha uma rotina rgida e um estilo de vida sistemtico e metdico. No casou nem teve filhos, passando a vida investigando o universo espiritual humano e tendo como motivao a fundamentao ltima de critrios universais e necessrios para o conhecimento e para a ao humana.Assim como Plato tentara conciliar, em um sistema metafsico, nico tanto o devir quanto a permanncia (o Uno e a Diversidade) a partir das filosofias pr-socrticas de Herclito e Parmnides, Kant se constitui tambm como ponto de convergncia da maior parte das reflexes da modernidade; tenta conciliar a perspectiva racionalista e a empirista na fundamentao da possibilidade do conhecimento e do agir humano. Esse impulso de conciliao e de anlise crtica nasce, sobretudo, pela admirao ao pensamento de Rousseau (1712-1778) e da impresso causada pelas obras de David Hume (1711-1776).At a publicao de sua maior obra,Crtica da Razo Pura, sua preocupao girava em torno das cincias naturais, embora seus trabalhos exibissem indcios de seu pensamento posterior(1). A partir de 1.781, publicada aCrtica, Kant se torna um pensador original que articula Filosofia da Religio, Moral, Arte, Histria e Cincia, provocando um efeito semelhante ao de Scrates, onde a filosofia comea a ser designadaprepsseu pensamento.Toda a sua obra, preocupada criticamente com o universo espiritual humano, centra-se de forma sinttica em duas grandes questes(2):

O conhecimento, suas possibilidades, limites e esferas de aplicao;A ao humana, a moralidade e o dever para alcanar o bem e a felicidade.

Segundo Kant, a tarefa da Filosofia seria responder quatro perguntas(3): o que posso saber (Conhecimento), o que devo saber (tica), o que posso esperar (Religio), o que o Homem (Antropologia).E para desenvolver esses dois grandes temas e responder essas perguntas em sua obra, Kant inaugura o mtodo que ir percorrer todo o seu pensamento: o criticismo. Crtica para Kant um convite razo:

para de novo empreender a mais difcil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constituio de um tribunal que lhe assegure as pretenses legtimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunes infundadas. (KANT, Crtica da Razo Pura 2001, Prefcio Primeira Edio de 1781 - A12, p. 31)

Minha viso particular sobre essa tentativa de Kant o aproxima ainda mais de Plato na medida em que todo o pano de fundo de suas idias se circunscreve na intencionalidade de justificar e fundamentar a Metafsica como uma cincia, com seu processo racional apriorstico como verdadeiro conhecimento. Assim como Plato, que hierarquiza Parmnides em relao a Herclito, Kant privilegia o racionalismo em relao ao empirismo, embora ambos tentem concili-los pelas evidncias reais que tanto o devir quanto a experincia trazem ao conhecimento e ao agir humano.Portanto, a preocupao crtica de Kant, que permeia as duas questes centrais de seu pensamento (a saber: o conhecimento e a ao humana), circunscreve-se numa intencionalidade que procura justificar o pensamento puro,a priori, como fundamentao ltima do conhecimento verdadeiro e da moralidade. Porm, embora supere o ceticismo de Hume, Kant no chega a uma indubitabilidade possvel a partir da Metafsica sem o apoio da sensibilidade para gerar um conhecimento verdadeiro, nem tampouco concerne s proposies metafsicas suficincia para dar ao homem o agir moral que garanta sua felicidade, como veremos em nossa concluso da presente anlise crtica resenhada.Kant, mesmo rejeitando o suposto conhecimento metafsico que explicaria a coisa em si (onoumenon), argumenta a favor do conhecimento puro,a priori, independente da experincia, porm adquirido ou construdo a partir de um sujeito que experimenta o mundo e emite juzos sintticosa priorisobre ele. Ou seja, para Kant o conhecimento legtimo s pode ser construdo a partir da intuio sensvel espao-temporal; enquanto superao transcendental numa sntese apriorstica dos elementos empricos. A experincia sensvel s nos forneceria conhecimento particular e contingente, e somente o juzo sintticoa prioripode constituir as condies para a experincia conhecer o singular e o contingente (percebidos a partir da estrutura inerente de nossa mente), e, a partir deles, emitir juzos necessrios e universais. Para Kant somente esses juzos podem ser conhecimento.O ato de conhecer, ento, limita-se pela intuio sensvel, mesmo que ela se da priori. Portanto a Metafsica, segundo Kant, na medida em que pretende emitir juzos a partir donoumenon(da coisa em si) e utilizar as categoriasa priorido conhecimento fora da intuio sensvel, acabaria por emitir afirmaes ilegtimas; no pode ser inserida como conhecimento cientfico, ao contrrio da Matemtica e da Fsica. Se nossa capacidade de conhecer nos insere na intuio sensvel do tempo e do espao, conceitos como absoluto e coisa em si (que independem dessa sensibilidade apriorstica e da percepo do tempo e do espao), no so possveis de conhecimento humano; embora faam parte da pretenso metafsica de dizer como a realidade se fundamenta. A metafsica ento s seria possvel como estudo das formasa priorida razo e no para conhecer o que estaria fora dela, como o mundo, a alma e Deus, por exemplo(4).Em suma, Kant exclui do conhecimento seguro tanto os juzos sintticosa posteriori(pois so empricos e experimentais, portanto particulares e contingentes), quanto os juzos analticos (que embora necessrios e universais, seriam redundantes na medida em que o predicado se encontra inserido no sujeito). Somente ento, os juzos sintticosa prioriuniriam a universalidade e necessidade dos juzos analticos com a comprobabilidade emprica dos juzos sintticosa posteriori.Kant resolve, na Razo Pura, a primeira questo a qual se debrua: o conhecimento possvel. Com ela, fundamenta a impossibilidade do conhecimento terico a partir da Metafsica. No entanto, ainda na busca de dar um fundamento Metafsica, postula que ela pode dar conta de sua existncia respondendo as questes sobre as aes humanas prticas atravs da crtica de uma razo voltada para o problema moral e do dever. Nessa busca, Kant procura fundamentar uma metafsica dos costumes (1785) e posteriormente faz uma crtica da razo prtica (1788), segundo ele, responsvel pela ao humana. Com isso a razo no somente terica e direcionada ao conhecimento, ela tambm prtica, determinando seu objeto atravs da ao: a Metafsica s poderia encontrar fundamentao no domnio do mundo moral.Para Kant a razo sempre universal, seja ela pura (terica) ou prtica; a mesma para todos os homens, podendo variar seus contedos no espao e no tempo, mas no sua forma enquanto atividade racional(5). Isso o afasta definitivamente dos empiristas e o coloca ao lado do racionalismo platnico e cartesiano(6) embora, postulando o conhecimento a partir da subjetividade, esteja mais prximo de Descartes.O agir humano e a moralidade so abordados, alm da obra em que nos debruaremos em nossa anlise, em sua segunda crtica;Crtica da Razo Prtica, onde ele, ao contrrio da fundamentao da Razo Pura a partir da sensibilidade espao-temporal, postula a Razo Prtica destituda de qualquer determinao sensvel(7), tendo sua fundamentao noImperativo Categrico.O escopo de presente trabalho se circunscreve em uma anlise crtica da obra de Kant;Fundamentao da Metafsica dos Costumes(8) que, segundo Marilena Chau(9) traz uma abordagem diferente na questo da liberdade. Enquanto que naCritica da Razo Prtica, Kant postula que a lei moral parte da idia de liberdade, unindo assim a razo pura e a prtica (a razo pura, por si s seria prtica tambm), naFundamentao da Metafsica dos Costumes, a lei moral rege a ao; por meio da vida moral que se pode conhecer a liberdade, j que a razo prtica solicitaria da razo pura prtica os fundamentos que validem a autonomia da vontade humana, e esse fundamento, para Kant, a liberdade. De qualquer forma, a lei moral a condioa priorida Vontade humana, seja essa Vontade fruto da liberdade ou condio para que a liberdade seja conhecida.AFundamentao da Metafsica dos Costumes o primeiro livro de Kant que, de forma sistemtica, volta-se para o problema da moralidade humana. Nessa obra Kant procura identificar e postular o que seria o Juzo SintticoA Priorifundamental (o supremo princpio da moralidade(10) o qual toda ao humana deve se submeter: oImperativo Categrico.

A seguir abordaremos suas idias principais nessa obra, procurando entender sua argumentao e investigar at que ponto ela legitima o que Kant pretende desenvolver. bvio que as pretenses do presente trabalho no esto relacionadas com uma anlise extensa e completa do pensamento kantiano, mas na medida do possvel tentaremos trazer alguma reflexo que contribua para uma abordagem diferenciada dentro de nossa perspectiva principal que se insere numa referncia introdutria da mesma.

FUNDAMENTAO DA METAFSICA DOS COSTUMES

Por fundamentao de uma metafsica dos costumes, Kant pretende estabelecer as condies de possibilidade de uma Lei Moral Universal dirigindo a ao do homem emancipado que manifesta sua autonomia a partir da razo pura prtica que identifica condiesa prioride sua vontade.Para entendermos como ele fundamenta essas condies, dividiremos a anlise de acordo com as partes do texto desenvolvido pelo prprio Kant, ou seja:

Prlogo ou PrefcioPrimeira Seo: Transio do conhecimento moral da razo comum para o conhecimento filosficoSegunda Seo: Transio da filosofia moral popular para a metafsica dos costumesTerceira Seo: Transio da metafsica dos costumes para a crtica da razo prtica pura

Prlogo ou Prefcio

no prlogo que Kant apresenta seu projeto de identificao e estabelecimento do princpio supremoa priorida moralidade humana, justificando-o e definindo tanto o tema quanto a estrutura e o mtodo a serem utilizados.A partir da diviso que se faziam da antiga filosofia grega, Kant identifica os princpios pelos quais cada uma das divises se baseava a fim de justificar seu projeto. Ele comea postulando que todo conhecimento racional ou materialou formal, isto , ocupa-se dos objetos ou da forma que a razo, em si mesma, pode conhecer-los; independente deles.AFilosofia Materialse ocupa, na diviso da antiga filosofia grega, daFsica(ocupando-se dos objetos materiais e das leis que os regem) e datica(ocupando-se das leis que regem a liberdade e o agir humano). Por sua vez, aFilosofia Formalse ocupa daLgica.A Filosofia Material possui uma parte emprica tanto se tratando da Fsica quanto da tica; ambas s voltas de como a natureza afetada pelas Leis da Fsica assim como a natureza afeta a moralidade humana. AFsicatrata de como as coisas acontecem e aticade como elas deveriam acontecer. Essa parte emprica dessas cincias baseia-se em princpios da experincia e objeto daFilosofia Emprica.No entanto Kant menciona outra parte da qual a Filosofia deva apresentar suas teorias derivando-as exclusivamente de princpios apriorsticos, denominando-aFilosofia Pura. A Filosofia Formal no possui parte alguma emprica, j que a Lgica o cnone pelo qual a razo conhece o mundo, independente de qualquer experincia sensvel, ela , por excelncia, Filosofia Pura. Porm, dentro da Filosofia Formal existem investigaes que se limitam a determinados objetos do entendimento, que recebe o nome, segundo Kant, de Metafsica.Dentro da Filosofia Material, ento, na sua parte no emprica, Kant constri a idia de uma dupla metafsica, a Metafsica da Natureza e a Metafsica dos Costumes e dessa forma delimita seu objeto de estudo do qual partir suas investigaes para o encontro de sua fundamentao.Atravs de uma analogia com a eficincia da diviso do trabalho nas indstrias, Kant justifica sua separao da Metafsica dos Costumes como um objeto especfico que se justifica pela melhor abordagem a ser dada dessa forma, partindo ento para justificar o projeto como um todo.Seu projeto identificar uma Filosofia Pura Moral que se desvincule da Antropologia, isto , abstraia o carter particular e contingente da ao moral tomada a partir do homem em sua relao com o mundo e consiga depur-la ao ponto de estabelecer princpios apodcticos; exprimir uma necessidade lgica absoluta, cuja validade seja universal. Para Kant inconcebvel uma Lei Moral que tenha qualquer um de seus fundamentos apoiados em bases empricas. Toda Filosofia Moral deve se apoiar somente em sua parte pura, ou seja, somente em sua parte formal e metafsica, extrada de si mesma, de forma lgica e racional.O surgimento do ato moral precisa ter seu fundamento de forma necessria e universal, logo, livre das condies empricas histricas, sociais, psicolgicas e antropolgicas. Uma cincia que busca o fundamento do ato moral precisa partir da razo pura e estabelecer seus princpios de forma absoluta, isto , como dever imposto a uma razo que entende e tem seus prprios princpios baseados no fundamento legal da moralidade que assume.Por fim, Kant situa o presente livro como uma fundamentao que serviria de plo de unio de uma razo nica, tanto pura quanto prtica e partindo de si mesma a ser desenvolvida posteriormente em suaCrtica da Razo Prtica(1788) e mais adiante na prpriaMetafsica dos Costumes(1797).Kant termina seu prlogo afirmando que escolhera o mtodo que melhor lhe pareceu conveniente, pois sua pretenso seria percorrer o caminho do conhecimento comum para a determinao do princpio supremo desse conhecimento de forma analtica, para depois executar o exame desse princpio para a sua aplicao no conhecimento vulgar de forma sinttica(11).

Primeira Seo Transio do conhecimento moral da razo comum para o conhecimento filosfico

Kant inicia sua Primeira Seo afirmando que nada poderia ser pensado como bom que no fosse a Boa Vontade, pois s ela no teria limitaes. Seria a Boa Vontade o grande regulador do bom uso dos talentos do esprito. Com isso pretende dizer que uma ao s seria moral se ela valesse por si mesma e no pelo efeito que se atinge atravs dela. E uma ao para valer por si prpria deve ser efeito de uma Boa Vontade tomada como norma de conduta a partir de um princpio racional, incondicionado, portantoa priori.Segundo Kant, a Boa Vontade constitui a condio indispensvel do fato mesmo de sermos dignos da felicidade(12). Portanto s ela pode ser considerada boa ou m, pois ela agiria a partir de um princpio. Embora o senso comum tome como bons ou maus os efeitos desse princpio, nenhum contedo pode ser julgado dessa forma, e sim apenas o princpio que os reja e lhe d causa. Dessa forma a Boa Vontade que deve ser julgada, sempre por si mesma, independente de qualquer fruto gerado por ela ou qualquer proveito que a soma de nossas inclinaes tirem de seus resultados.Kant argumenta que o senso comum j toma a Boa Vontade como boa em si mesma, fato que apenas deva ser esclarecido, no precisando sequer ser ensinado. O senso comum teria a justa medida de como agir atravs da prtica de uma razo que no precisa da teorizao para estabelecer uma regra, embora a razo o possa fazer para que lhe garanta esclarecimento e estabilidade, extraindo-lhe e explicitando-lhe seus princpios norteadores.Fosse apenas fim da moral a felicidade humana, bastaria apenas ao homem ser regido pelos seus instintos naturais para que suas aes estivessem em consonncia com uma natureza que deveria dotar-nos da ordem mais adequada em nossas disposies para a finalidade a que se destina. No entanto, o homem solto aos seus instintos no sabe priorizar aquilo que lhe traga uma felicidade duradoura e entrega-se a toda sorte de prazeres efmeros que o desvia da felicidade como bem: a busca da felicidade acaba virando um mal para um bem inatingvel.A razo, portanto, seria o que no homem teria condies de estabelecer um princpio norteador para sua Vontade de modo a reger suas aes na busca de um bem no s atingvel como tambm duradouro. No entanto, somente sendo estabelecida a partir da razo, essa Boa Vontade valeria por si mesma, assentando-se na sua prpria necessidade de existir e no em sua utilidade. Uma razo emprica que se coloca no gozo da vida e da felicidade como fim, isto , uma razo que se coloca como instrumento e no como forma de estabelecer o bem em si de uma Boa Vontade, causa afastamento da verdadeira satisfao. a razo pura prtica que desloca a motivao humana de uma razo instrumental emprica para o exerccio autnomo da liberdade, construindo uma Vontade Boa em si mesma como norteadora das aes atravs dodever; no se prendendo ao fruto dessas aes, mas nas aes em si e em seus fundamentos apriorsticos.Kant exemplifica essa questo caracterizando o que seria um ato moral. O homem que conserva sua vidaconforme o dever, no pratica um ato moral, mas o homem que conserva sua vidapor dever, pratica um ato moral. Teria um contedo moral, por exemplo, os atos que levariam um homem insistir em viver mesmo que, afetado por todo desgosto e desesperana na vida, no tivesse medo de morrer e ainda desejasse a morte, mas, contudo, permanecesse vivo por dever.Praticar algo por inclinao, mesmo que esteja conforme o dever, no faz do ato um ato moral. Uma ao de autntico valor moral s pode ser considerada assim ao ser praticada sem qualquer inclinao que traga satisfao instintiva, portanto, praticada apenas pelo dever que se impe a ela; por ela prpria.Aquele que tem seus atos regidos por suas inclinaes (que impulsionam o ser humano a fazer o que lhe causa felicidade imediata e prazer), mesmo estando conforme seu dever, no pratica atos morais.Se o ato moral se configura nesses termos, no possvel exerc-lo dando voz s nossas inclinaes, e somente a partir de uma firme Boa Vontade estabelecida por princpios racionais de universalidade e necessidade que nos tornaramos homens ticos.Kant cumpre o que se props fundamentando a transio do conhecimento moral da razo comum para o conhecimento filosfico atravs de quatro proposies:Somente as aes que possuem seu valor incondicionado que podem ser consideradas como atos morais. Propsitos que motivam aes, alimentados pelo que elas proporcionam, no geram aes consideradas atos morais, portanto somente atravs de uma Vontade que se deve agir;Por sua vez, a vontade humana determinante de atos considerados morais somente quando essa vontade tiver o seu valor fora do propsito que se queira alcanar por ela, isto , que o valor dessa vontade se circunscreva em um princpio incondicionadoa priori. A vontade se situa entre um princpio formal e um princpio material. O ato moral s pode ser considerado como tal se circunscrito numa vontade cujo valor esteja no princpio formal que a norteia: o direcionamento dessa vontade atravs da razo pura assume o cumprimento do dever e o dever a necessidade de uma ao por respeito lei(13).A lei mxima a que toda vontade humana deve obedecer e que se constitui na Boa Vontade, a lei segundo a qual nossas aes, em conformidade com ela, tenham carter universal. Isso significa que minha vontade deve engendrar somente atos que podem ser assumidos por todos em relao a mim.Segundo Kant a razo cobra-nos, naturalmente, um respeito para com uma Lei Universal. Uma Lei Universal aquela que queremos que todos cumpram, pois o cumprimento dela por todos nos beneficia. Se quisermos que todos a cumpram, surge um dever para que ns tambm a cumpramos.Lei Universal > Dever > Vontade > Ato Moral.Percebemos naturalmente que o valor de uma Lei Universal excede em muito o valor de qualquer inclinao. O respeito Lei faz com que haja uma ao necessria que se constitui no dever. E esse dever que constitui a condio de nossa vontade, cujo valor supera a tudo, j que ela incondicionada valendo por si mesma pelo apriorismo de sua gnese. destino da razo, segundo Kant, direcionar a vontade para um dever que valha por si mesmo e independa totalmente das inclinaes humanas: a razo deve prevalecer sobre os instintos. Por isso, para o homem, a vontade deve ser o bem supremo; s assim a razo poder ser exclusiva em sua determinao, mesmo que essa determinao v contra nossos instintos e inclinaes. A razo deve, portanto, encarar o dever e assumi-lo para si como princpioa prioriem seu direcionamento da vontade humana. O dever precisa ser encarado como uma Lei, que resulta da mxima que regula nossas aes de forma que elas se tornem Lei Universal.Dessa forma Kant faz a transio entre o conhecimento moral da razo comum para o conhecimento filosfico dessa moralidade praticada pela razo pura prtica do homem vulgar. Ao promover uma anlise da moral vulgar, que j julga a Boa Vontade como um bem em si mesmo, Kant demonstra que, por traz da prtica corrente comum, a Boa Vontade age por um dever imposto por uma mxima (princpio subjetivo do querer) que pode se tornar uma Lei Universal. No entanto alega que a razo comum precisa sair de sua prtica inconsciente, embora correta, e buscar fundamento na Filosofia Prtica a qual determinaria seus princpios de atuao.

Segunda Seo: Transio da filosofia moral popular para a metafsica dos costumes

Kant inicia a Segunda Seo argumentando que a razo prtica comum dificilmente consegue distinguir uma ao que foi praticada por dever e uma ao praticada motivada pelos seus efeitos, por isso ficaria duvidoso o julgamento da mesma no que concerne se ela se constitui um ato moral ou no. Ele argumenta ainda que, por esse motivo, os filsofos em geral sempre atriburam o agir humano a atos utilitrios e egostas, embora admitissem que a razo fosse autnoma para identificar a necessidade conceitual da moralidade.O advento de uma Metafsica dos Costumes como transio da Filosofia Moral Popular, se baseia substancialmente da necessidade da lei valer para todo ser racional em geral e no somente para os homens; homens que, poca de Kant, vivam num tempo de ceticismo e rejeio metafsica.Segundo Kant, impossvel determinar por experincia (empiricamente) um caso sequer em que a mxima de uma ao, mesmo conformada com um dever, tenha como fundamento exclusivo uma moralidade com base no dever em si. Sua inteno nesta Seo, portanto, demonstrar a existncia de uma lei objetiva que garanta o cumprimento do dever sem que a vontade se guie pelos efeitos da ao.Dessa forma a razo pode e deve determinar a vontade humana a partir de motivosa priori, mesmo que as aes efetivas sejam feitas por inclinaes empricas que contradizem essa vontade determinada pela razo. A razo pura e ao mesmo tempo prtica concebea prioria lei mxima do dever e universaliza uma necessidade a todo ser racional, mesmo que os atos em si no sejam feitos por dever e sim pelos prprios frutos das aes.A razo pura e ao mesmo tempo prtica porque, alm dela conseguir determinara prioria universalidade e a necessidade das aes, determina a vontade de forma a torn-la executvel por meio de aes que tragam conformidade como a mxima contingente e particular, que busca empiricamente motivos para sua execuo. Portanto a ao, se no for feita por dever de forma prtica conforme o dever, pois seu fundamento est assentado num princpio apriorstico.A razo pura nos mostra com clareza que, para ser universal e necessria a todo ser racional, uma ao no pode ter base no que contingente e particular. Logo, mesmo atos justificados pela experincia tm sua origem em um sentimento de dever anterior que no se baseia no fruto da ao, e se estabelece em si mesmo de forma apriorstica atravs de uma vontade determinada pela razo pura prtica. de todo preceito filosfico extrado da razo prtica em conformidade com os princpios identificadosa priori, que se torna possvel estabelecer uma Metafsica dos Costumes que coloque esses preceitos de forma a serem seguidos. Essa Metafsica dos Costumes est acima de toda antropologia, teologia e fsica e se assenta no conhecimento filosfico abstrado e fundamentado a partir da razo prtica que age de acordo com princpios puros e anteriores a qualquer experincia.No entanto, o homem, por viver dentro da contingncia e de sua subjetividade (particularid