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1 A METAMORFOSE DOS GOSTOS 1 Pierre Bourdieu P - Como mudam os gostos? Pode-se descrever cientificamente a lógica da transformação dos gostos? - Antes de responder a estas perguntas, é preciso lembrar como se definem os gostos, isto é, as práticas (esportes, atividades de fazer, etc.) e as propriedades (móveis, gravatas, chapéus, livros, quadros, cônjuges, etc.) através dos quais se manifesta o gosto, compreendido como princípio das escolhas assim realizadas. Para que haja gostos, é preciso que haja bens classificados, de "bom" ou "mau" gosto, "distintos" ou "vulgares", classificados e ao mesmo tempo classificantes, hierarquizados e hierarquizantes, e que haja pessoas dotadas de princípios de classificações, de gostos, que Ihes permitam perceber entre estes bens aqueles que Ihes convém, aqueles que são "do seu gosto". Com efeito, pode existir um gosto sem bens (gosto sendo tomado no sentido de princípio de classificação, de princípio de divisão, de capacidade de distinção) e bens sem gosto. Pode-se dizer, por exemplo: "percorri todas as boutiques de Neuchâtel e não encontrei nada de meu gosto". Isto coloca a questão de saber o que é este gosto que pré-existe aos bens capazes de satisfazê-lo (contradizendo o provérbio: ignoti nulla cupido, do desconhecido não há desejo). Mas há também casos em que os bens não encontram os "consumidores" que os considerariam de seu gosto. O exemplo por excelência destes bens que precedem o gosto dos consumidores é o da pintura ou da música de vanguarda que, desde o século XIX, só encontram os gostos pelos quais "chama" muito tempo depois do momento em que foram produzidas, e às vezes até mesmo muito tempo depois da morte de seu produtor. Isto coloca a questão de saber se os bens que precedem os gostos (posto à parte, é claro, o gosto dos produtores) contribuem para formar os gostos: a questão da eficácia simbólica da oferta de bens ou, mais precisamente, do efeito da realização sob forma de bens de um gosto particular, o do artista. 1 Comunicação feita na Universidade de Neuchâtel, em maio de 1980.

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A METAMORFOSE DOS GOSTOS1

Pierre Bourdieu

P - Como mudam os gostos? Pode-se descrever cientif icamente a lógica

da transformação dos gostos?

- Antes de responder a estas perguntas, é preciso lembrar como se definem os

gostos, isto é, as práticas (esportes, atividades de fazer, etc.) e as propriedades

(móveis, gravatas, chapéus, livros, quadros, cônjuges, etc.) através dos quais se

manifesta o gosto, compreendido como princípio das escolhas assim realizadas.

Para que haja gostos, é preciso que haja bens classificados, de "bom" ou

"mau" gosto, "distintos" ou "vulgares", classificados e ao mesmo tempo

classificantes, hierarquizados e hierarquizantes, e que haja pessoas dotadas de

princípios de classificações, de gostos, que Ihes permitam perceber entre estes

bens aqueles que Ihes convém, aqueles que são "do seu gosto". Com efeito, pode

existir um gosto sem bens (gosto sendo tomado no sentido de princípio de

classificação, de princípio de divisão, de capacidade de distinção) e bens sem

gosto. Pode-se dizer, por exemplo: "percorri todas as boutiques de Neuchâtel e não

encontrei nada de meu gosto". Isto coloca a questão de saber o que é este gosto

que pré-existe aos bens capazes de satisfazê-lo (contradizendo o provérbio: ignoti

nulla cupido, do desconhecido não há desejo).

Mas há também casos em que os bens não encontram os "consumidores" que

os considerariam de seu gosto. O exemplo por excelência destes bens que

precedem o gosto dos consumidores é o da pintura ou da música de vanguarda

que, desde o século XIX, só encontram os gostos pelos quais "chama" muito tempo

depois do momento em que foram produzidas, e às vezes até mesmo muito tempo

depois da morte de seu produtor. Isto coloca a questão de saber se os bens que

precedem os gostos (posto à parte, é claro, o gosto dos produtores) contribuem

para formar os gostos: a questão da eficácia simbólica da oferta de bens ou, mais

precisamente, do efeito da realização sob forma de bens de um gosto particular, o

do artista.

1 Comunicação feita na Universidade de Neuchâtel, em maio de 1980.

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Chega-se assim a uma definição provisória: os gostos, entendidos como o

conjunto de práticas e de propriedades de uma pessoa ou de um grupo são

produto de um encontro (de uma harmonia pré-estabelecida) entre bens e um

gosto (quando digo "minha casa é do meu gosto", estou dizendo que encontrei a

casa conveniente para o meu gosto, onde meu gosto se reconhece, se reencontra}.

Entre estes bens, é preciso incluir, com o risco de chocar, todos os objetos de

eleição, de afinidade eletiva, como os objetos de simpatia, de amizade ou de amor.

Ainda há pouco eu colocava a questão de maneira elíptica: em que medida o

bem que é a realização de meu gosto, que é a potencialidade realizada, forma o

gosto que nele se reconhece? O amor à arte fala freqüentemente a mesma

linguagem que o amor: a paixão súbita é o reencontro miraculoso entre uma

espera e sua realização. É também a relação entre um povo e seu profeta ou seu

porta-voz: "você não me procuraria se não tivesse me encontrado". Aquele ao qual

se fala é alguém que tinha em estado potencial alguma coisa a dizer e que só o

sabe .quando isto lhe é dito. De uma certa maneira, o profeta não anuncia nada;

ele só prega aos convertidos. Mas pregar aos convertidos também é fazer alguma

coisa. É realizar esta operação tipicamente social, e quase mágica, este

reencontro entre um já-objetivado e uma espera implícita, entre uma linguagem e

as disposições que só existem em estado prático. Os gostos são o produto deste

encontro entre duas histórias − uma em estado objetivado, outra em estado

incorporado − que se conciliam objetivamente. Daí sem dúvida uma das

dimensões do milagre do encontro com a obra de arte: descobrir uma coisa de seu

gosto, é se descobrir, é descobrir aquilo que se quer ("é exatamente o que eu que-

ria"), aquilo que se tinha a dizer e que não se sabia dizer, e que em conseqüência.

não se sabia.

No encontro entre a obra de arte e o consumidor, existe um terceiro ausente,

aquele que produziu a obra, que fez uma coisa de seu gosto graças a sua

capacidade de transformar seu gosto em objeto, de transformá-lo de estado de

alma ou, mais exatamente, de seu estado de corpo em coisa visível e conforme o

seu gosto. O artista é este profissional da transformação do implícito em explícito,

da objetivação que transforma o gosto em objeto, que realiza o potencial, isto é,

este sentido prático do belo que só pode se conhecer realizando-se. De fato, o

sentido prático do belo é puramente negativo e feito quase que exclusivamente de

recusa. O objetivador do gosto está para o produto de sua objetivação na mesma

relação que o consumidor: ele pode achá-lo ou não de seu gosto. Reconhecemos-

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lhe a competência necessária para objetivar um gosto. Mais exatamente, o artista

é alguém que reconhecemos como tal, reconhecendo-nos naquilo que ele faz,

reconhecendo naquilo que ele fez aquilo que teríamos feito se soubéssemos fazê-

lo. É um "criador", palavra mágica que podemos empregar uma vez definida a

operação artística como operação mágica, isto é, tipicamente social. (Falar de

produtor, como se deve fazer, com muita freqüência, para romper com a

representação comum do artista como criador − privando-se assim de todas as

cumplicidades imediatas que esta linguagem tem certeza de encontrar, tanto entre

os "criadores" quanto entre os consumidores, que gostam de se pensar como

"criadores", com o tema da leitura como recriação −, é correr o risco de esquecer

que o ato artístico é um ato de produção de tipo muito particular pois deve fazer

existir numa forma completa algo que já estava lá, exatamente à espera de sua

aparição, e fazê-lo existir de uma maneira bem diferente, isto é, como uma coisa

sagrada, como objeto de crença).

Os gostos, como conjunto de escolhas feitas por uma pessoa determinada,

são, portanto, o produto de um encontro entre o gosto objetivado do artista e o

gosto do consumidor. Falta compreender por que, a um dado momento do tempo,

existem bens para todos os gostos (ainda que, sem dúvida, não haja gosto para

todos os bens); por que os clientes mais diversos encontram objetos de seu gosto.

(Em toda análise que faço, pode-se substituir mentalmente objeto de arte por bem

ou serviço religioso. A analogia com a Igreja mostra assim que o aggiornamento

um pouco precipitado substituiu uma oferta bastante monolítica por uma oferta

muito diversificada, satisfazendo todos os gostos, missa em francês, latim, de

batina, de roupa civil, etc.). Para dar conta deste ajustamento quase miraculoso da

oferta à procura (com a exceção que representa a oferta maior do que a procura),

poderíamos invocar, como faz Max Weber, a busca consciente do ajustamento, a

transação calculada dos clérigos com as expectativas dos leigos. Assim, isto

significaria supor que o padre de vanguarda que oferece aos moradores de um

subúrbio operário uma missa "Iiberada" ou o padre integrista que reza sua missa

em latim, têm uma relação cínica, ou pelo menos calculada, com sua clientela,

estabelecendo com ela uma relação de oferta e procura inteiramente consciente;

que ele está informado da demanda − não se sabe como, já que ela não sabe se

formular e só se conhece ao se reconhecer em sua objetivação − e que se esforça

para satisfazê-la (há sempre esta suspeita em relação ao escritor de sucesso: seus

livros tiveram sucesso porque ele foi ao encontro das demandas do mercado,

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subentendido aqui as demandas mais baixas, mais fáceis, mais indignas de serem

satisfeitas). Supomos então que por uma espécie de faro mais ou menos cínico ou

sincero, os produtores se ajustem à demanda: quem consegue é quem encontrou

seu "encaixe".

A hipótese que vou propor para dar conta do universo de gostos a um dado

momento do tempo é inteiramente diferente, mesmo que as intenções e as

transações conscientes jamais estejam excluídas, é claro, da produção cultural.

(Alguns setores do espaço de produção − esta é uma de suas propriedades

distintivas − obedecem o mais cinicamente possível à busca calculada do lucro,

portanto do "encaixe": dá-se um tema, seis meses, seis milhões e o "escritor" deve

fazer um romance que será um best-seller). No entanto, o modelo que proponho

rompe com o modelo que se impõe espontaneamente e que tende a fazer do

produtor cultural, escritor, artista, padre, profeta, feiticeiro, jornalista, um calculador

econômico racional que, por uma espécie de estudo de mercado, conseguiria

pressentir e satisfazer necessidades apenas formuladas ou até mesmo ignoradas,

de forma a tirar o maior lucro possível de sua capacidade de antecipar e portanto

de preceder aos concorrentes. De fato, há espaços de produção onde os

produtores trabalham com os olhos voltados muito menos para seus clientes, isto

é, para aquilo que é chamado o público, do que para os seus concorrentes. (Mas

esta ainda é uma formulação finalista que apela demais para estratégia

consciente). Mais exatamente, eles trabalham num espaço onde o que produzem

depende muito estreitamente de sua posição no espaço de produção (aqui eu

peço desculpas àqueles que não estão acostumados com a sociologia: sou

obrigado a avançar uma análise sem poder justificá-la de maneira simples). No

caso do jornalismo, o crítico do .Figaro2 produz com os olhos voltados não para

seu público, mas em referência ao Nouvel Observateur (e reciprocamente). Para

isto, ele não precisa referir-se intencionalmente a seu opositor: basta seguir seu

gosto, suas próprias inclinações, para se definir contra o que diz o crítico do lado

oposto, que também faz a mesma coisa. Ele pensa contra o crítico do Nouvel

Observateur mesmo que isto não seja consciente. Isto pode ser visto em sua

retórica que é a do desmentido antecipado: dirão que sou um velho gagá

conservador porque critico Arrabal, mas compreendo Arrabal o bastante para Ihes

assegurar que ele nada tem para ser compreendido. Ao se tranqüilizar, ele

tranqüiliza seu público, que se inquieta com as obras inquietantes porque

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ininteligíveis − se bem que este público sempre as compreenda o bastante para

sentir que elas querem dizer coisas que ele compreende bem mais. Para falar de

maneira um tanto objetivista e determinista, o produtor em sua produção é

comandado pela posição que ocupa no espaço da produção. Os produtores

produzem produtos diversificados pela própria lógica das coisas e sem procurar a

distinção (é claro que o que tentei mostrar opõe-se diametralmente a todas as

teses sobre o consumo ostentatório que fazem da busca consciente da diferença o

único princípio de mudança da produção e do consumo culturais).

Há, portanto, uma lógica do espaço de produção que faz com que os

produtores, querendo ou não, produzam bens diferentes. As diferenças objetivas

podem, é claro, serem subjetivamente aumentadas e, há muito tempo, os artistas

que são objetivamente distintos, procuram também objetivamente se distinguir −

em particular no estilo, na forma, naquilo que propriamente Ihes pertence, em

oposição ao tema, à função. Dizer, como eu fiz às vezes, que os intelectuais,

assim como os fonemas, só existem pela diferença, não quer dizer que toda

diferença tenha por princípio a procura da diferença: felizmente não basta procurar

a diferença para encontrá-la, e às vezes num universo onde a maioria procura a

diferença, basta não procurá-la para ser muito diferente...

Do lado dos consumidores, como as pessoas fazem suas escolhas? Em

função de seu gosto, isto é, de uma maneira que em geral é negativa (pode-se

sempre dizer o que não se quer, isto é, geralmente o gosto dos outros): gosto que

se constitui na confrontação com os gostos já realizados, que ensina a si próprio o

que ele é ao se reconhecer em objetos que são gostos objetivados.

Compreender os gostos, fazer a sociologia dos gostos que as pessoas têm, de

suas propriedades e suas práticas é, portanto, por um lado conhecer as condições

em que se produzem os produtos oferecidos e por outro as condições em que os

consumidores são produzidos. Assim, para compreender os esportes que as

pessoas praticam, é preciso conhecer suas disposições e também a oferta que é o

produto de invenções históricas. O que significa que o mesmo gosto poderia, num

outro estado da oferta, se exprimir em práticas inteiramente diferentes do ponto de

vista fenomênico, e no entanto serem estruturalmente equivalentes. (É a intuição

prática destas equivalências estruturais entre objetos fenomenicamente diferentes

e, no entanto, praticamente substituíveis, que nos faz dizer que Robbe-Grillet é

para o século XX o que Flaubert era para o século XIX; o que significa que quem

2 N.T. - Le Figaro: jornal de direita.

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escolhia Flaubert na oferta da época estaria numa posição homóloga a de quem

escolhe Robbe-Grillet).

Depois de lembrar como os gostos são engendrados no encontro entre uma

oferta e uma demanda ou, mais precisamente, entre objetos classificados e

sistemas de classificação, podemos examinar como os gostos mudam. Em

primeiro lugar, do lado da produção, da oferta: o campo artístico é o lugar de uma

mudança permanente a tal ponto que, como se viu, para desacreditar um artista,

basta remetê-lo ao passado, mostrando que seu estilo apenas reproduz um estilo

já atestado no passado e que, fóssil ou falsário, ele não passa de um imitador,

consciente ou inconsciente, e totalmente desprovido de valor porque sem qualquer

originalidade.

O campo artístico é o lugar de revoluções parciais que perturbam a estrutura

do campo sem questioná-lo enquanto tal e nem o jogo que aí se joga. No campo

religioso, temos a dialética da ortodoxia e da heresia − ou da "reforma", modelo de

subversão específica. Os inovadores artísticos são, como os reformadores,

pessoas que dizem aos dominantes, "vocês traíram, é preciso retornar às origens,

à mensagem". Por exemplo, as oposições em torno das quais se organizam as

lutas literárias durante todo o século XIX e até nossos dias podem em última

análise se limitar à oposição entre jovens, isto é, os que chegaram por último, os

recém-chegados e os velhos, os estabelecidos, o establishment: obscuro/claro,

difícil/fácil, profundo/superficial, etc., estas oposições opõem definitivamente

idades e gerações artísticas, isto é, posições diferentes no campo artístico que a

linguagem nativa opõe como avançada/ultrapassada, vanguarda/retaguarda, etc.

(Podemos ver, de passagem, que a descrição da estrutura de um campo, das

relações de força específicas que o constituem como tal, inclui uma descrição da

história deste campo). Entrar no jogo da produção, existir intelectualmente, é

marcar uma época e, ao mesmo tempo, remeter ao passado aqueles que, em

outra época, também marcaram a época. (Marcar época é fazer história que é o

produto da luta, que é a própria luta; quando não há mais luta, não há mais

história. Enquanto há luta, há história e, portanto, esperança. Quando não há mais

luta, isto é, resistência dos dominados, há o monopólio dos dominantes e a história

pára. Os dominantes, em todos os campos, vêem sua dominação como o fim da

história − no duplo sentido, de final e de objetivo −, que não possui um após e

portanto se encontra eternizada). Marcar época é, portanto, remeter ao passado,

ao ultrapassado, ao desclassificado, aqueles que foram dominantes durante um

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tempo. Aqueles que são remetidos ao passado, desta maneira, podem se tornar

simplesmente desclassificados, mas podem também se tornar clássicos, isto é,

eternizados (seria preciso examinar, mas não posso fazê-lo aqui, as condições

desta eternização, o papel do sistema escolar, etc.). A alta-costura é o campo onde

o modelo que descrevi pode ser percebido mais claramente, tão claramente que é

quase fácil demais e por isto corremos o risco de compreender rápido demais,

facilmente demais, mas pela metade (caso freqüente nas ciências sociais: a moda

é um destes mecanismos que nunca se compreende porque os compreendemos

facilmente demais). Por exemplo, Bohan, o sucessor de Dior, fala de seus vestidos

na linguagem do bom gosto, da discrição, da moderação, da sobriedade,

condenando implicitamente todas as audácias exageradas dos que se situam à

sua "esquerda" no campo: ele fala de sua esquerda da mesma maneira como o

jornalista do Figaro fala do Libération. Quanto aos costureiros de vanguarda, eles

falam da moda na linguagem da política (a pesquisa foi feita pouco depois de 68),

dizendo que é preciso "fazer a moda descer para as ruas", "colocar a alta-costura

ao alcance de todos", etc. Por aí vemos que há equivalências entre estes espaços

autônomos que fazem com que a linguagem possa passar de um a outro com

sentidos aparentemente idênticos mas realmente diferentes. O que coloca a

questão de saber se, quando se fala de política em certos espaços relativamente

autônomos, não se está fazendo o mesmo que Ungaro ao falar de Dior.

Temos portanto um primeiro fator de mudança. Por outro lado, será que isto

vai continuar? Podemos imaginar um campo de produção levado pelo entusiasmo

e que "semeia" os consumidores. É o caso do campo da produção cultural, ou pelo

menos de alguns de seus setores, desde o século XIX. Mas este também foi o

caso, bem recentemente, do campo religioso: a oferta precedeu a demanda; os

consumidores de bens e serviços religiosos não pediam tanto... Temos aqui um

caso em que a lógica interna do campo se esvazia, verificando-se a tese central

que proponho, ou seja, que a mudança não é o produto de uma procura de

ajustamento à demanda. Sem esquecer este caso de defasagem, pode-se dizer

que, de um modo geral, os dois espaços, o espaço da produção de bens e o

espaço da produção de gostos a grosso modo mudam no mesmo ritmo. Entre os

fatores que determinam a mudança da demanda está, sem dúvida alguma, a

elevação do nível, quantitativo e qualitativo, da demanda que acompanha a

elevação do nível de instrução (ou duração da escolarização) e que faz com que

um número sempre maior de pessoas entrem na corrida pela apropriação de bens

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culturais. O efeito da elevação do nível de instrução se exerce, entre outras coisas,

pela intermediação daquilo que chamo de efeito da assignação estatutária

"Noblese oblige") e que determina que os detentores de um certo título escolar,

que funciona como um título de nobreza, realizam as práticas − freqüentar os

museus, comprar um aparelho de som, ler o Le Monde − inscritas em sua definição

social, poderíamos dizer em sua "essência social". Assim, o prolongamento geral

da escolaridade e, em particular, a intensificação da utilização que as classes que

Já o utilizam bastante podem fazer do sistema escolar explicam o crescimento de

todas as práticas culturais (previsto, no caso do museu, pelo modelo que

construímos em 1966). E dentro da mesma lógica pode-se compreender que a

parte das pessoas que se diz capaz de ler notas de música ou tocar um

instrumento cresce fortemente quando nos dirigimos à gerações mais Jovens. O

papel da mudança da demanda em relação à mudança dos gostos pode ser muito

bem percebido no caso da música onde, com o disco, a elevação do nível da

demanda coincide com um decréscimo do nível da oferta (no domínio, da leitura o

equivalente seria o livro de bolso). A elevação do nível da demanda determina uma

translação da estrutura dos gostos, estrutura hierárquica, que vai do mais raro,

Berg ou Ravel atualmente, ao menos raro, Mozart ou Beethoven; mais

simplesmente, todos os bens oferecidos tendem a perder sua raridade relativa e

seu valor distintivo à medida que cresce o número de consumidores que estão, ao

mesmo tempo, inclinados e aptos para a sua apropriação. A divulgação

desvaloriza; os bens desclassificados já não dão "classe"; bens que pertenciam

aos happy few tornam-se comuns. Os que se reconhecem como happy few, pelo

fato de lerem Éducation Sentimentale ou Proust, devem ir além a Robbe-Grillet, ou

mais ainda, à Claude Simon, Duvert, etc. A raridade do produto e a raridade do

consumidor diminuem paralelamente. É assim que os discos ou os discófilos

"avançam" a raridade do melômano. Opor Panzera a Fischer Diskau, produto

impecável da indústria do disco, como outros oporão Mengelberg à Karajan, é

reintroduzir a raridade abolida. Dentro da mesma lógica, pode-se compreender o

culto dos "78 rotações" ou das gravações "ao vivo". Em todos os casos, trata-se de

reintroduzir a raridade: nada de mais comum do que as valsas de Strauss, mas que

charme quando elas são tocadas por Fürtwangler. E Tchaikowsky por Mengelberg!

Outro exemplo, Chopin, durante muito tempo desqualificado pelas meninas de boa

família, agora encontrou a sua vez e possui defensores inflamados entre os jovens

musicólogos. (Se para ir depressa, temos que empregar uma linguagem finalista e

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estratégica para descrever estes processos, é preciso ter em mente que estas

empresas de reabilitação são inteiramente sinceras e "desinteressadas" e se

devem essencialmente ao fato do que os que reabilitam contra os que

desqualificaram não conheceram as condições contra as quais se levantavam os

que desqualificaram Chopin). A raridade pode portanto vir do modo de escuta

(disco, concerto, ou execução pessoa!), do intérprete, da própria obra: quando ela

é ameaçada por um lado, pode-se reintroduzí-Ia sob uma outra relação. E o fino do

fino pode consistir em brincar com o fogo, seja associando o gosto mais raro pela

música mais refinada às formas mais aceitáveis da música popular, de preferência

exótica, seja saboreando as interpretações estritas e altamente controladas das

obras mais "fáceis" e mais ameaçadas de "vulgaridade". Inútil dizer que os jogos

do consumidor se encontram com alguns jogos dos compositores que, como

Mahler ou Stravinsky, também podem se divertir brincando com o fogo, utilizando

secundariamente músicas populares, ou mesmo "vulgares", emprestadas do

music-hall ou dos bailes de taverna.

Estas são apenas algumas estratégias (na maioria das vezes, inconscientes)

através das quais os consumidores defendem a sua raridade defendendo a

raridade dos produtos que consomem ou da maneira de consumi-los. De fato, a

mais elementar, a mais simples, consiste em fugir dos bens divulgados,

desclassificados, desvalorizados. Sabe-se, através de uma pesquisa realizada em

1979 pelo Institut Français de Démoscopie, que há compositores, como por

exemplo Albinoni, Vivaldi ou Chopin, cujo "consumo" cresce à medida que se vai

em direção às pessoas mais velhas e também às pessoas menos instruídas: as

músicas que por eles oferecem são, ao mesmo tempo, ultrapassadas e

desclassificadas, isto é, banalizadas, comuns.

O abandono das músicas desclassificadas e ultrapassadas se acompanha de

uma fuga para a frente em direção às músicas mais raras no momento

considerado, isto é, evidentemente, em direção às músicas mais modernas: e

observa-se assim que a raridade das músicas, medida pela nota média que

recebem numa amostra representativa de auditores, cresce à medida que se vai

em direção a obras mais modernas, como se a dificuldade objetiva das obras fosse

tanto maior quanto mais elas contivessem história acumulada, mais referências à

história, e exigissem assim uma competência maior para ser adquirida e, portanto,

mais rara. Passa-se de 3,0 sobre 5 para Monteverdi, Bach e Mozart; a 2,8 para

Brahm; 2.4 para Puccini; e, ligeira inversão, 2,3 para Berg (mas tratava-se de

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Lulu); e 1,9 para Ravel, o Concerto para mão esquerda. Em suma, pode-se prever

que o público mais "advertido" vai se deslocar continuamente (e os programas dos

concertos o testemunham) em direção à música moderna. Mas também há o

retorno: vimos o exemplo de Chopin. Ou as renovações: a música barroca tocada

por Harnoncourt ou Malgoire. Daí resultam os ciclos inteiramente parecidos aos da

moda de roupas, a não ser quanto ao período que é mais longo. Nesta lógica,

poderíamos compreender as maneiras sucessivas de tocar Bach, de Busch a

Leonhardt, passando por Muchinger, cada um "reagindo" contra a maneira

precedente.

Podemos ver que as "estratégias" de distinção do produtor e as estratégias de

distinção dos consumidores mais advertidos, isto é, mais distintos, se encontram

sem necessidade de se procurarem. É isto que faz com que o encontro com a obra

seja freqüentemente vivido na lógica do milagre e da paixão súbita. E que a

experiência do amor à arte se exprima e se viva na linguagem do amor.3

Extraído de BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro:

Marco Zero. p. 127-135.

3 Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em: P. Bourdieu, "La

production de Ia croyance, contribution à une économie de biens symboliques", Actes de la recherche

en seiences socieles, 13, 1977.