A Milesima Segunda Noite Na Av Paulista [Joel Silveira]

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7/14/2019 A Milesima Segunda Noite Na Av Paulista [Joel Silveira] http://slidepdf.com/reader/full/a-milesima-segunda-noite-na-av-paulista-joel-silveira 1/113 PARTE 01 JOEL SILVEIRA A milésima segunda noite da avenida Paulista e outras reportagens Posfácio Fernando Morais COMPANHIA DAS LETRAS Copyright @ 2003 by Joel Silveira Copyright do posfácio @ 2003 by Femando Morais  Indicação editorial Flávio Pinheiro Ricardo A. Setti Capa João Baptista da Costa Aguiar Preparação Eugenio Vnci de Moraes  Índice remissivo Todos os esforços foram feitos para determinar a origem das imagens reproduzidas neste livro. Nem sempre isso foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes, caso se manifestem. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil Silveira, Joel A milésima segunda noite da Avenida Paulista Joel Silveira;  posfácio Fernando Morais. -São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ISBN 85-359-0405-0 1. Crônicas brasileiras 2. Jornalismo e literatura Repórteres e reportagens. I. Título. Literatura brasileira 869 93 

Transcript of A Milesima Segunda Noite Na Av Paulista [Joel Silveira]

  • PARTE 01 JOEL SILVEIRA

    A milsima segunda noite da avenida Paulista e outras reportagens

    Posfcio Fernando Morais COMPANHIA DAS LETRAS

    Copyright @ 2003 by Joel Silveira Copyright do posfcio @ 2003 by Femando Morais Indicao editorial

    Flvio Pinheiro Ricardo A. Setti Capa Joo Baptista da Costa Aguiar

    Preparao Eugenio Vnci de Moraes ndice remissivo

    Todos os esforos foram feitos para determinar a origem das imagens reproduzidas neste livro. Nem sempre isso foi possvel. Teremos prazer

    em creditar as fontes, caso se manifestem.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Cmara Brasileira do Livro, sP, Brasil Silveira, Joel

    A milsima segunda noite da Avenida Paulista Joel Silveira; posfcio Fernando Morais. -So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

    ISBN 85-359-0405-0

    1. Crnicas brasileiras 2. Jornalismo e literatura

    Reprteres e reportagens. I. Ttulo.

    Literatura brasileira 869 93

  • [2003] Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA

    Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br .

    Sumrio 1943: Eram assim os gr-finos em So Paulo 7 A milsima segunda noite da avenida Paulista 29 Agripino Grieco, 1943: "Vi Mussolini de perto, conversei com ele. Um palhao' 39 Dezoito poetisas contra o mundo em chamas 51 Encontro com Chat 59 As muitas guerras de Monteiro Lobato 75 Conversa franca com os bandidos de Lampio 89 Vida, prises, glria e morte de Graciliano 99 Manuel Bandeira, 13 de maro de 1966, em Terespolis:

    "Venham ver! A vaca est comendo as flores do Rodriguinho. No vai sobrar uma. Que beleza!" 113 Nssara: a cincia de ser carioca 116 Portinari: "Sou o sujeito mais triste do universo:' 122 Dois instantes de Joo Cabral de MeIo Neto 131 Di Cavalcanti, pintor, poeta e mgico, pouco antes do fim 145 Paulo Mendes Campos: um erudito sem erudio 161

    Gilberto Freyre: confisses em Apipucos 170 O anjo torto e o poeta radical 189 Posfcio A V1Dora est viva -Fernando Morais 197 lndice remissivo 207 1943: Eram assim os gr-finos em So Paulo Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de So Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaos de fruta dentro, depois uma carreira rpida de automvel. Estive em jantares fascinantes. As mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no Centro da cidade. O dono era um rapaz que eu no conhecia e que possivelmente talvez ainda no saiba quem sou e o que fui l fazer. Fui de mistura com outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e

  • telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lel. Recebem tambm telefonemas de Fifi, de Lili e de Lel. Conversei longamente com um rapaz, inteligente e vivo, que eu conhecera de caminhadas pela Lapa e discusses de madrugada, aqui no Rio de Janeiro. Est irreconhecvel. Fez roupas novas (o feitio de cada, me garantiu, no custa menos de um conto e duzentos), adquiriu novos hbitos. Um dos hbitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequiti.

    So Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente gr-fino. coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, sabido, vem de suas fbricas. Agora as fbricas esto trabalhando ainda mais, porque a guerra exigente. Dia e noite, os motores no param. H uma turma de operrios que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansar at de madrugada.

    A PERA

    Ento, as cifras vo crescendo. A gente l os relatrios, to frios, conversa com homens ricos, olha para as vitrines onde as peles e os brilhantes so cada vez mais caros -e tudo isso nos est dizendo que So Paulo est cada vez mais rico. As mulheres compram as peles, compram os brilhantes, os homens jogam na Bolsa pequenas fortunas, jogam no Automvel Club o dinheiro que ganharam hoje, que ganharo amanh.

    O dinheiro torna tudo belo: o mundo elegante de So Paulo, neste ano de 1943, est num dos seus momentos de maior esplendor. H uma atmosfera de conforto em tudo: as mulheres, como as orqudeas que nascem de dezenas de enxertos, no podero ser mais requintadas e preciosas. como se fosse uma apoteose. Nas peras a gente v coisas mais ou menos semelhantes: o libreto vai, vai e, perto do fim, tudo se torna grande e maravilhoso. Depois a pera acaba. O MAIOR DA AMRICA DO SUL

    Um dia desses um rapaz paulista, faminto e desempregado, resolveu se matar. Subiu at o ltimo andar do edifcio Martinelli -pularia l de cima. Mas a altura era enorme e o rapaz vacilou. L embaixo, impaciente e aflita, a multido esperava que o rapaz se decidisse. Mas o rapaz resolveu no se matar. Os jornais anunciaram, se o rapaz pulasse, aquele seria o mais sensacional suicdio da Amrica do Sul. O edifcio de onde o rapaz ia saltar o maior da Amrica do Sul. Mas no o ser dentro em breve: ao seu lado j est crescendo outro, que ser maior do que o maior da Amrica do Sul.

    H coisas muito estranhas em So Paulo: os cafs no tm cadeiras nem mesinhas, dessas onde a gente costuma sentar e conversar. O trnsito das ruas dirigido por guardas rigorosos, como nas outras cidades importantes. E nas salas do Automvel Club homens muito ricos jogam razoveis fortunas, em alegres jogos de carta. Um financista de So Paulo, dono de vrias fbricas e vrias empresas,

  • homem sensvel e inteligente, muito culto, que adora livros e faz versos. Seu rosto cor-de-rosa, como o rosto das crianas. Seus cabelos esto alvos, porque a vida cheia de trabalho do milionrio os fez assim. Mas no existe dio nem raiva na voz do financista: ele conversa sobre livros, l suas tradues de poemas clssicos e sua voz suave e absorvente, como uma esponja. A FLOR

    Mas os milionrios so muitos. Raros so os milionrios poetas em So Paulo, mas h muitos outros que no fazem ver- sos. Uma noite, no Jequiti-Bar, conheci alguns deles: o milionrio Lafer, o milionrio Pignatari, o milionrio Matarazzo, o milionrio Crespi. Era uma festa somente para milionrios, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a fora paulista de hoje. Por detrs dos sobrenomes, h um mundo incrvel: centenas de fbricas, milhares de chamins, milhares de motores, milhares de operrios. Era um grupo terrvel, avassalador. Com um gesto de mo, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, l na rua. Mas os milionrios apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas. Alguns daqueles homens, os pais de quase todos eles, haviam chegado pobres ao Brasil. Mas So Paulo os estava esperando, e hoje eles so donos das fbricas, das indstrias e dos lucros paulistas.

    noite e So Paulo rico est resumido ali na pista do Jequiti-Bar. Durante o dia, as mulheres fizeram coisas inteis: acordaram tarde, almoaram em bloco, jogaram pife-pafe, compraram a revista Sombra, tomaram ch na Livraria Jaragu, jantaram na Papote e falaram das amigas.

    Os homens ganharam dinheiro. Alguns no fizeram muito esforo para isso: apenas assinaram alguns papis. Outros estiveram nas fbricas, conversaram com o gerente, telefonaram para o Rio. tarde foram ao Automvel Club, um lugar triste como um cemitrio. Perderam algum dinheiro em jogos inocentes; mas o que perderam nem chega a representar uma humilde frao dos lucros que conquistaram durante o dia.

    O Jequiti o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possveis tristezas e decepes se diluem e se inutilizam. O "COIN DES BOUQUINS"

    o ch na Jaragu faz parte do ritual gr-fino. Lili no o dispensa. Zez e Lel fazem tudo, adiam tudo, mas no podem perder o ch na Jaragu. O leitor, geralmente desprevenido, estar pensando, sem dvida, que a Jaragu apenas uma casa de ch. No. A Jaragu tambm livraria.

    Um dos seus freqentadores, alis, me corrigiu: -A Jaragu uma livraria. Apenas nos fundos existe um lugar onde se pode tomar ch

    e conversar sobre livros e quadros. A inteno -inteno de alguns artistas e escritores -era muito boa. Mas me parece

    que o gr-finismo est estragando o plano. A verdade que a Jaragu, que os seus idealizadores planejavam tornar imprescindvel no mundo artstico e cultural de So

  • Paulo, hoje, apenas, mais um ponto de reunio do grfinismo, um ponto onde Fifi marca encontro com Lel para falar mal de Zuzu.

    Um dos autores do plano da Jaragu me explicou: -Ns fizemos aqui o que existe na Inglaterra. Voc sabe [eu no sabia] que em

    Londres e outras cidades inglesas, principalmente Cambridge e Oxford, h o que se chama a "livraria com sala de ch". O objetivo dos ingleses, em Paris tambm existem muitas livrarias idnticas, criar um ponto de reunio de artistas e intelectuais, enfim, um coin des bouquins, voc sabe.

    -O qu? -Um coin des bouquins como aquele de que fala Anatole France no M. Bergeret, que

    encontrava os companheiros de prosa "chez M. Paillor, libraire, enseigne de St. Margueritte". Outro objetivo da livraria o de vender bons livros antigos e modernos, livros de arte, boas edies e encadernaes. Depois o Lo Vaz, sempre cheio de idias, sugeriu a Bolsa do Livro.

    Em poucas palavras, a Bolsa do Livro um pedao de cartolina pregado numa parede da livraria. Um cavalheiro que tenha um livro raro para vender escreve o nome do livro e o preo na cartolina. Outro cavalheiro, que deseje adquirir uma raridade, faz a mesma coisa. Na tarde em que estive na Jaragu, visitei a cartolina: o lado das preciosidades ofertadas estava repleto.

    o SOBRENOME

    Alm do "quarto grupo" gr-fino, o grupo de Alfredo Mesquita e Roberto Moreira, existem outros trs grupos, cada qual com suas caractersticas prprias. O primeiro grupo formado pelos gr-finos de pedigree, os tais paulistas de quatrocentos anos, e representa o pinculo do gr-finismo. So criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores hericos e sem muitos escrpulos que rasgaram as matas de So Paulo, vadearam os rios, descobriram as montanhas e fizeram as primeiras cidades. Morreram todos, esto enterrados na histria, mas deixaram aos seus descendentes um presente rgio: deixaram um carto de visita, espcie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves Lima podem entrar em tudo sem pagar nada.

    Podemos citar alguns nomes femininos, os mais requintados e sugestivos, que formam a gelia gr-fina paulista: as Alves Lima, sras. Nlia, Beb, Vera e Stela, e as sras. Fifi Assuno, Iolanda Penteado, Carminha da Silva Teles, Marjorie da Silva Prado, Belinha Sodr, Alice Mendona e muitas outras. Em qualquer festa de importncia, podemos encontrar todas elas, um grupo parte, impermeveis como se estivessem enroladas em papel celofane.

    Cintilantes de jias, as senhoras do segundo grupo, o grupo "reserva", tm olhos derramados sobre a gente de pedi- gree. o grupo das filhas dos italianos ricos, o grupo de d. Odete Matarazzo, d. Dbora Zampari, d. Rose Frontini, d. Irene Crespi, d. Mimosa Pignatari, d. Helena Noquosi. O pai

  • de d. Odete, por exemplo, veio ver o que havia por aqui, e por aqui havia muito. D. Odete casou-se com um homem muito rico. O que mais: tem um sobrenome, e

    os sobrenomes, quatro ou cinco deles, so os donos de So Paulo. D. Odete tem atrs de si fbricas e exrcitos de operrios. uma senhora muito poderosa.

    DINHEIRO

    D. Fifi Assuno e d. Iolanda Penteado so muito mais paulistas do que d. Irene Crespi. So paulistas de quatrocentos anos. Vocs, que apenas so capixabas do princpio do sculo, no sabem o que significa, em So Paulo, ser um paulista de quatrocentos anos. mais importante do que ter uma esttua em praa pblica. O poeta Olegrio Mariano tem uma esttua em praa pblica e passa despercebido na rua do Ouvidor. Um paulista de quatrocentos anos jamais ser confundido na multido da rua Direita.

    Apesar de tudo, d. Irene Crespi quem tem o dinheiro. As qualidades genealgicas de d. Iolanda e de d. Marjorie no podem ver com bons

    olhos o passado um tanto rstico dos maridos da turma do segundo grupo. Mas o dinheiro est no segundo grupo, e o dinheiro tem voz eloqente e poderosa. O dinheiro a grande arma do segundo grupo: a arma que d qualidade ao trabalho dos esforados italianos, que os credencia na sociedade, que lhes abre e s suas cintilantes esposas as inacessveis portas dos solares de Piratininga. O dinheiro atrai o primeiro grupo, e os quatrocentos anos de qualquer Prado ou Leme se derretem nos milhes do conde Matarazzo como manteiga em cima de uma chapa quente.

    o "ESTRIBO" E O "PENACHO"

    Mas h o terceiro grupo, um grupo lamentvel e melanclico. uma gente que no vem l de longe. Uma gente que nasceu por a, de famlia recente, de mdicos de Barretos ou comerciantes de Bauru. Uma gente que no tem dinheiro. Os homens vivem dos seus pequenos ganchos e comisses. Alguns escrevem em jornais uma literatura precria. Mas a serpente do gr-finismo tomou conta de todos, dos homens e das mulheres. As mulheres sacrificam os maridos, fazem milagres no oramento mensalcontanto que se tornem dignas do Roof ou do Jequiti. o grupo do "estribo" e o grupo do "penacho". Os homens se dependuram na vida mundana de So Paulo como se estivessem num bonde cheio. As mulheres usam terrveis penachos, porque acreditam ser essa a caracterstica principal da gr-fina, como o dente de ouro caracterstico em todo turco.

    E fazem coisas terrveis: quando, por exemplo, a turma do primeiro grupo telefona, princpio da noite, para o Jequiti, pedindo mesa, o gerente infalvel na resposta:

    -No mais possvel, cavalheiro. Todas as mesas de pista esto tomadas. que o grupo do "penacho" foi na frente e, com uma diligncia tpica, recrutou para

    seus prazeres o que havia de melhor na boate. Por isso, leitor amigo, nunca se iluda: se voc quer conhecer a gr-finagem paulista e for uma noite ao Jequiti ou ao Roof, no se

  • deixe levar pelos arrogantes e coloridos penachos, nem pelos envernizados cavalheiros das primeiras mesas. Eles no so os tais. Os tais esto atrs, possivelmente nos piores lugares.

    o grupo do "estribo" se orgulha muito de suas relaes com a gente chique. Diz sempre: "Ontem almocei com Sicrana. Hoje tarde tomarei ch com Fifi. Lel me telefonou. Oh!, diabo, esqueci de telefonar para Zuzu". Vivem disso, boiando num falso mar de grandeza.

    JERRY, O ORCULO

    Quando um ilustre casal paulista d uma recepo em sua casa, j sabe para quem deve mandar os primeiros convites: para os maiorais do gr-finismo, os tais de quatrocentos anos, e para os dois cronistas sociais mais importantes de So Paulo: Jerry e Bilm.

    O verdadeiro nome de Jerry Cornlio Procpio. um rapazinho risonho, larga fronte brilhante, com um bigode reto e fino. Usa tima dentadura e timo sorriso. Diariamente, na Folha da Manh, Jerry aparece atravs de sua literatura cor-derosa. Se Jerry, na noite passada, esteve numa festa elegante, descreve como foi a festa, fala dos vestidos que viu, aplica adjetivos prprios aos melhores encantos femininos e masculinos, pulveriza inocentes ironiazinhas sobre tudo aquilo que no lhe agradou ao olfato e vista. Um gr-fino me disse:

    -Para que uma festa no seja um fracasso, tem que contar com a presena de duas pessoas: do Jerry e da Stela Alves Lima.

    Jerry tem algumas credenciais importantes: possui a tal histria dos quatrocentos anos, e sua famlia, ainda hoje, dona de alguns recursos. Sua conversa macia, sem espinhos. Os problemas do mundo no chegam at ele, e se chegassem Cornlio saberia como enfrent-los: faria um muxoxo e telefonaria para Fifi, Fifi sem problemas nem angstias. No mundo elegante de So Paulo, Jerry mais importante do que d. Odete Matarazzo ou d. Irene Crespi. D. Odete tem fbrica, d. Irene tem dinheiro. Mas Jerry tem uma coluna diria na Folha da Manh que o orculo da elegncia paulista. A coluna de Jerry consagra ou pe abaixo qualquer pretenso gr-fina. Mas sua linguagem sempre amena, porque um gr-fino nunca se compromete. O estilo de Jerry como sua dentadura: uma coisa certa e limpa. Impossvel , porm, algum saber se Jerry nasceu assim, com bons dentes, ou se o seu sorriso realizao de algum odontlogo caro. A embaixo vai uma amostra do estilo de Jerry. Trata-se de uma crnica que ele publicou h pouco no seu jornal sob o ttulo de "Guaruj". Diz assim:

    O tempo no quis fazer um papelo. No quis tambm que todos ficassem desapontados. A princpio relutou com ameaas bruscas de nuvens baixas e acinzentadas. Pingos grossos de chuva chegaram mesmo a cair. Depois, de repente, num abrir e fechar de olhos, um sol de ouro resolveu assumir a supremacia naquele cu sereno e azul cor de turquesa. E o Guaruj viveu seus momentos de grande

  • animao. A praia encheu, o cassino ferveu. Um movimento intenso reinou naquele ambiente simptico, cheio de sol, de vivacidade, de alegria e de espontneo entusiasmo.

    Os casais Fbio da Silva Prado, Edgard Conceio, Alberto Bianchi, Evaldo Foz, Vtor Meireles, Francisco de Sousa Dantas, Vtor e Eduardo Simonsen, Remo Prada, Roberto Ferreira, Lus Campeio, os condes Slvio Penteado e Raul Crespi...

    Deslizava pela superfcie azulada de um mar muito calmo e muito manso a silhueta alvssima do Albacora, o iate bonito do casal Jorge da Silva Prado, que carregava amigos para as delcias calmas de longo cruzeiro.

    Foi para que as tonalidades combinassem numa perfeita harmonia de cores que a sra. Horcio Lafer trazia um elegantssimo slack em albene branco, d. Marjorie da Silva Prado, em amarelo e

    azul plido, a sra. Evaristo Almeida ainda de branco e vermelho vivo... A silhueta esguia dos coqueiros desgrenhados, ao longo das praias alvas, parecia

    inclinar-se beira d'gua para melhor ouvir o murmrio suave das ondas esverdeadas que na areia vinham morrer...

    Debaixo de amendoeiras frondosas, indiretamente iluminadas, em mesinhas de quatro, no ambiente simptico daquela casa normanda, o sr. e a sra. Francisco Ramos de Azevedo conversam com os amigos num finissimo jantar que a um grupo grande de pessoas tiveram a amabilidade de oferecer.

    Os casais Armando Penteado, Eurico Sodr, Mariano Procpio, Evaristo de Almeida, Jorge da Silva Prado...

    O vinho corria louro e generoso como a alegria franca da reunio, como as chamas ainda mais louras daquelas pequeninas velas que iluminavam as mesas, como a amabilidade cativante de d. Zuleika, que, elegante num slack marrom e rubi, a todos distribufa atenes e incalculveis gentilezas.

    BILM

    Bilm, a outra cronista mundana, muito diferente de Jerry. Seu verdadeiro nome Irene de Bojano. Jerry escreve pela manh, Bilm escreve tarde, na edio vespertina da Folha. Bilm muito mais seca do que Jerry. E tambm mais literata. Seu estilo, uma coleo de lugares-comuns regados a adjetivos prprios, prefere cuidar das coisas do esprito: versos, teatro, msica. Constantemente Bilm cita poemas dos seus poetas prediletos, nacionais e estrangeiros. E suas preferncias so muito instveis. Bilm j gostou muito de Alberto de Oliveira. Hoje prefere Vinicius de Moraes.

    Faamos uma demonstrao prtica: h uma festa em So Paulo, uma festa numa casa particular, msica, champanha e comidas. prato para Jerry. No outro dia, acontece qualquer coisa supergr-fina no Theatro Municipal, como uma apresentao do grupo Cega-Rega ou o concerto de um pianista clebre: prato para Bilm. Tal distino faz com

  • que Jerry nunca entre em atrito com Bilm. Cornlio e Irene so bons amigos, com raios de ao delimitados. Jerry conhece todas as cores do batom. Bilm est perfeitamente a par de todas as prenderes de sucesso na Broadway.

    LITERATOS DA FINESSE

    O gr-finismo tambm tem os seus "intelectuais", os seus literatos. Para qualquer gr-fino paulista, por exemplo, o maior escritor de So Paulo o sr. Ren Thiollier. Ren Thiollier j um cidado bastante velho. Mas continua rico e elegante. Sua residncia muito famosa: chama-se Vila Fortunata e possui, entre outras surpresas, uma torre fina como um minarete. l em cima da torre, num pequeno gabinete, que Thiollier faz sua literatura, uma mistura de versos acomodados e ensaios histricos sem grandes ousadias. Um dos cargos de Ren: o de secretrio perptuo da Academia Paulista de Letras.

    Literato gr-fino Guilherme de Almeida. Atualmente, apesar de uma seo meio mundana que mantm na Folha da Manh, Guilherme anda meio poltico com o gr-finismo paulista. que ele cometeu o bruto erro de afirmar, numa reunio elegante, que estava se inclinando para o socialismo. Houve um espanto geral e Guilherme perdeu alguns por cento de seu cartaz. De qualquer maneira, suas crnicas dirias no so melhores nem piores do que as do Jerry. As vezes so piores. Guilherme veste-se como um gr-fino do tempo em que Oswald de Andrade era gr-fino: polainas, p-de-arroz no rosto e olhar vago.

    Outro literato do gr-finismo o nosso j conhecido Roberto Moreira, que fez, h vinte anos passados, uma conferncia sobre Bilac. De l para c, em centenas de oportunidades mundanas, tem repetido a conferncia para algumas geraes grfinas de So Paulo. Ainda no tive oportunidade de ouvir uma palestra do dr. Roberto. Mas um amigo me garantiu que na mesma existe mais recitativo do que na Biblioteca do ar do sr. Csar Ladeira.

    A especialidade de Paulo Assuno, outro "intelectual" da haute gomme, so os brindes. Ningum faz um brinde melhor do que ele, particularmente os brindes de aniversrio. O gr -finismo paulista tem seu historiador oficial: o "es~ritor" Yan de Almeida Prado. Um dos seus poetas preferidos o constante jovem Oliveira Ribeiro Neto, cuja rvore genealgica, no entanto, nasce em comprometedor solo sergipano.

    Outro literato da finesse: Eurico Sodr. Eurico sonetista e diretor da Light. Em 1912 publicou o seu primeiro e ltimo livro de sonetos. Mas foi o bastante, pois que nessas coisas literrias o gr-finismo no muito exigente.

    Figura mpar na elegncia dourada de Piratininga o dr. Roberto Simonsen, proprietrio de algumas das mais robustas cifras nacionais. Nas horas vagas, o sr. Simonsen escreve livros, artigos e discursos sobre a "promissora situao financeira do Brasil", da qual ele um dos sustentculos. O sr. Simonsen tambm conhecido e admirado pelo seu amor ao vernculo. Seus discursos e livros so primores de correo gramatical. verdade que o milionrio Simonsen, to cheio de afazeres lucrativos, no tem tempo para perder com as vrgulas e pronomes. Simonsen possui um gramtico especial e particular, o sr. Marques da Cruz, que recebe mensalmente um ordenado convidativo apenas

  • para pr em alto estilo as consideraes do seu patro e espartilhar nas leis de Cndido de Figueiredo possveis liberalidades lingsticas do financista.

    Oswald de Andrade tambm j pertenceu nata elegante de So Paulo. Mas foi expulso da finesse quando perdeu sua primeira fortuna. Depois disso, o finalmente romancista de Marco Zero surgiu como dono de vrias outras fortunas. Mas o gr-finismo no pode receber em seu seio um cavalheiro que vive assim em altos e baixos econmicos. O que caracteriza um gr-fino do primeiro e segundo grupos a sua posio econmica absolutamente estvel. Durante muito tempo, Oswald de Andrade fez uma bruta fora para voltar ao seio da haute gomme. Mas foi impossvel. Hoje sua posio a de um cidado amargurado e revoltado com os seus antigos colegas de vida mundana. O que no quer dizer que, de vez em quando e a pedido das circunstncias, o inquieto humorista no corteje alguns dos poderosos sobrenomes paulistas.

    Menotti deI Picchia tambm pertenceu ao gr-finismo. Mas hoje os gr-finos no o suportam. Naturalmente, Menotti, que tanta coisa j fez contra tantos, deve ter feito tambm algo contra os gr-finos.

    O gr-finismo paulista no perdoa a Semana de Arte Moderna, que lhe roubou alguns dos seus elementos mais brilhantes. Antes da Semana, a vida social de So Paulo era muito acomodada. A Semana, idia do gr-fino Graa Aranha, trouxe os primeiros desentendimentos e os primeiros atritos. O nico elemento da Semana que a haute gomme militante de So Paulo no perdeu foi Guilherme de Almeida. Mas a verdade que Guilherme entrou na revoluo modernista pensando que se tratava apenas de um outro ch das cinco. Recuou a tempo. O desenhista Belmonte conseguiu introduzir algumas cunhas na finesse. quase sempre convidado para as festas e os chs. D-se perfeita- mente bem com o pedigree e os sobrenomes. Suas charges, sempre bem-comportadas e geralmente a favor dos mais fortes, tmno ajudado muito na sua carreira vitoriosa. Creio que Belmonte o nico caricaturista (?) no Brasil que conseguiu juntar dinheiro com sua arte.

    o COLAR DA PRINCESA

    Mas nem sempre a vida de um gr-fino plcida e rsea. De vez em quando acontecem tormentas e pequenas tempestades. Recentemente, por exemplo, o gr-finismo paulista sofreu um bruto golpe. Foi o caso do colar da princesa. A histria pode ser contada em rpidas palavras: quando d. Duarte Nuno veio fazer a Amrica aqui no Brasil, e resolveu casar com a melanclica princesa brasileira d. Maria Francisca, com o objetivo de consolidar as questes monrquicas entre Portugal e Brasil, o grfinismo paulista saudou o acontecimento com entusiasmo e alegria. Afinal de contas, teramos em Petrpolis o momento mais alto da elegncia nacional. Um prncipe de verdade, embora cabeudo e meio falido, iria casar com uma princesa moda da casa. Imediatamente uma lista comeou a correr os meios da finessede So Paulo: os gr-finos resolveram dar um rico presente aos nubentes, um precioso colar de diamantes, e a lista pedia donativos.

  • Houve gr-finos bem estabelecidos na praa que no pestanejaram: com uma penada rpida assinaram dez e vinte contos. Outros assinaram apenas cinco. Outros ainda, um tanto encabulados, s puderam dar trs. O colar foi comprado: parece que custou a razovel quantia de trezentos contos (foi antes dos cruzeiros).

    Depois fizeram-se os preparativos para o casamento. Os gr-finos mandaram fazer casacas especiais, compraram novos pares de sapatos de verniz ou polainas, e as mulheres gastaram fortunas em vestidos e enfeites. Um carro especial da Central, com lavatrio completo, levaria a finesse at o Rio de Janeiro. Poucos dias antes do casamento miguelista, os gr-finos j estavam todos prontos. Esperavam apenas os convites individuais. Mas a aconteceu a tragdia. Os convites chegaram um dia, mas no chegaram para todos. Chegaram apenas para os que haviam assinado quantia mais grossa: a gente dos dez e vinte contos. Foi uma decepo geral! Senhoras sensveis tiveram ruidosos ataques de choro. Uma senhora criou olheiras. Um rapaz, visivelmente abatido, retirou-se durante meses para uma fazenda do interior.

    Antes do caso do colar, a monarquia gozava de real prestgio no seio da finesse paulista. Mas parece que d. Duarte no bom poltico. Com a sua falta de ateno to lusitana, o prncipe de testa olmpica bombardeou seu prestgio entre os elegantes de So Paulo. Os monarquistas formam hoje uma minoria insignificante. Quando esteve em So Paulo, d. Duarte foi tratado muito friamente. Em companhia do pintor Di Cavalcanti, o jovem nobre visitou vrios lugares histricos: o Museu do Ipiranga e os andaimes da S. No museu aconteceu um detalhe pitoresco: que os funcionrios da casa tomaram o pintor Di Cavalcanti pelo prncipe, prodigalizando-lhe atenes e reverncias. O prncipe, um tanto amuado, foi esquecido entre as relquias histricas e os apetrechos indgenas. Nem chegou a visitar o Ja.

    E por falar no pintor Di Cavalcanti, definamo-lo como um dos casos mais esquisitos do gr-finismo paulista. O casal Di Cavalcanti, Di propriamente dito e a esplndida pintora Nomia, so queridssimos nas rodas elegantes de So Paulo. O apartamento de Di, no Centro da cidade, est sempre povoado da melhor fauna local. Di recebe telefonemas e convites para as melhores festas e as mais disputadas reunies. Todo gr-fino e gr-finapaulistas anseiam ser pintados pela Nomia. a mesma coisa que almoar na Pipote. coqueluche, como eles dizem. No entanto, apesar de perfeitamente acomodados na finesse, os dois no perderam nenhuma de suas qualidades. Nomia uma das pessoas mais vivas que eu conheo. E Di, no fundo, quem mais se diverte com aquilo tudo e de vez em quando consegue vender uma tela sua a algum gr-fino. No se trata, portanto, de um diletante.

    AS CONSIDERAES DE POLICARPO

    Quase todos os cavalheiros da haute gomme paulista so donos de fbricas ou vice-presidentes de empresas importantes. Ser vice-presidente de qualquer coisa uma das principais condies para o livre ingresso no perfumado mundo social de So Paulo. Existe

  • at o caso de um escritor, dominado nestes dois ltimos anos pelo gr-finismo, que fez uma bruta fora, h pouco tempo, para ser eleito vice-presidente da Sociedade de Escritores Paulistas. Um ttulo assim, num carto de visita, teria algum efeito.

    Os gr-finos paulistas no suportam o Rio de Janeiro. Tm um ar de absoluto desprezo para tudo que carioca. Quando acontece aqui qualquer coisa elegante e fora do comum, eles ficam l em polvorosa e providenciam logo uma funo idntica em Piratininga, com mais lantejoulas e mais esplendor. Todo artista clebre e elegante que desembarca no Rio imediatamente convidado a ir a So Paulo. Quando havia transporte fcil e o mundo estava melhor do que hoje, os donos das fbricas e as senhoras ricas pouco ligavam ao Rio: tomavam os transatlnticos e iam para a Frana ou para a Itlia. Os Matarazzo, por exemplo, no tempo em que a escola era risonha e franca, nunca passaram um ano sem uma regular dose de luar de Verona e pombos na praa de So Marcos. A Itlia e o fascismo estavam no seu sangue. O ltimo desespero da finesse paulista foi o Cega-Rega, que algumas senhoras jeitosas realizaram aqui no Rio. O povo carioca j est acostumado com esses desperdcios e no liga muito para os diletantes do Municipal. O carioca pega a coisa no ar, faz um trocadilho irnico, e esquece. Mesmo porque a finesse daqui finesse de praia. De calo de banho impossvel a gente distinguir quem o milionrio Carlos Guinle ou o bookmaker da avenida. Ambos possuem o mesmo fsico e a mesma lbia.

    Mas a haute gomme paulista macia como um bloco bem unido: seus assuntos so seus assuntos, e preciso ateno e carinho para eles. Quando tivemos aqui o Joujoux e Balangands, os paulistas bateram com o p e disseram que tambm queriam. Ento os balangands foram para l. Agora, com o Cega-Rega, aconteceu a mesma coisa. A hora em que estamos dedilhando essas consideraes, chega-nos o eco dos primeiros sucessos dos gr-finos da praia no planalto. Os cronistas mundanos esto vivendo grandes dias. Jerry se derrete num mar de gozo. Bilm tem feito um tremendo uso da sua cultura.

    Mas houve tambm vozes discordantes. Uma delas foi a do jornalista Policarpo Conceio, um pseudnimo, lgico, no Dirio de S. Paulo, que teceu alguns comentrios pouco alegres sobre a farra gr-fina. Policarpo de opinio, logo de incio, que o Cega-Rega no tem motivo de ser. Diz ele que no instante preciso em que as classes mdia e proletria sofrem na pele as conseqncias da guerra (no h acar, no h carne e os gneros esto cada vez mais caros), no direito que as senhoras pouco compreensivas gastem quantias fabulosas em vestidos de seda e veludo para satisfazerem pequenas veleidades artsticas. Policarpo diz mais: se o objetivo filantrpico do Cega-Rega auxiliar a Cruz Vermelha, por qu, em vez de representao no palco das gr-finas bem-vestidas, no se entregou quela instituio o que seria gasto com as sedas e os veludos? No h razo para ostentao e para luxos descabidos, futilidades ostensivas que devem contrariar muito os que, como os operrios das fbricas paulistas, esto suando em bicas nas indstrias de guerra do pas. As consideraes de Policarpo, apesar de um tanto grises, como diria Jerry, so bastante lgicas.

    Mas as consideraes de Policarpo no chegaram ao mundo cor-de-rosa do gr-finismo paulista.

  • O Cega-Rega teve l uma brilhante estria. o que nos dizem os cronistas sociais cariocas, que tambm fizeram parte do elegante cortejo ferrovirio que, nestes bicudos tempos de guerra, foram a Piratininga mostrar suas brilhantes inutilidades. Um reprter bem informado nos declarou h poucos dias que a viagem daqui para l, no comboio da alegria, foi uma verdadeira sucesso de prazeres e encantos. As senhoritas recitaram, os rapazes cantaram coisas formosas, e houve at ligeiros ensaios o trem varava a noite, apitava nas curvas, furava tneis e c dentro era um mundo de coisas cheirosas e gostosas.

    Em So Paulo, a turma do Cega-Rega desembarcou como um batalho de heris. A gr-finagem paulista estava toda na estao. Jerry, algo nervoso, o passinho curto multiplicando suas parcas possibilidades de pedestre, contava com a pontinha do indicador as figuras que iam descendo: se alguma houvesse faltado por motivos reumticos ou gripais, aquilo seria uma punhalada no frgil corao de Jerry.

    Mas ningum faltou. Gripes e reumatismos foram adiados. Quando o palco do Municipal se abriu, de noite, qualquer reformador simplista poderia perfeitamente, com uma simples bomba, colher uma esplndida e completa safra: ali dentro havia material suficiente para satisfazer a um batalho de terroristas. Ali estava a condessa Amlia Matarazzo, debaixo de uma chuva de cintilaes; ali estava d. Ernestina Alves de Almeida, ali estava d. Maria Helena Ramos. E mais uma poro: d. Julieta Alves Lima, a condessa Maringela Matarazzo, d. Mimi Lafer, d. Renata Crespi Prado. A comisso de recepo no podia ser mais legal: d. Albertina Spengler, d. Belinha Sodr, d. Carmem da Silva Teles, d. Ana Alves Lima, d. Ester Cardoso de Almeida, d. Fifi Assuno, d. Raquel

    Simonsen e d. Iolanda Penteado. E por detrs de tais poderosas casamatas, todo um batalho de inquietos e encadernados jovens.

    No dia seguinte, a mesma fauna estava toda reunida no palacete (palacete vrgula, palcio) dos condes Matarazzo, na avenida Paulista (a avenida Paulista tambm pertence aos condes); Henrique Liberal & Cia, na sua melhor maneira rococ, transformara os sales carcamanos dos condes em "osis ednicos", como afirmou, num repente de entusiasmo, um cronista carioca. O cronista afirmou tambm que, naquela noite, "a residncia dos condes Matarazzo honrava qualquer capital civilizada)~ e nos deixou de gua na boca quando se referiu aos ((candelabros raros e aos quadros de valor inestimvel".

    VERBAS PARA o GR-FINISMO

    Comento, com Fifi, a vida mundana de So Paulo, e ela me diz na sua vozinha: -Est adorvel! Nunca tivemos uma vida social to in-

    tensa. que os motores das fbricas esto trabalhando muito. J no h horas vagas nos

    domnios dos Matarazzo e dos Crespi. Os enormes portes da Mooca no se fecham: expulsam, de manh cedo, uma turma de gente cansada e cinzenta, engolem mais gente que se cansar durante o dia. Os relatrios, sempre exatos, nos contam coisas muito importantes. Dizem, por exemplo, que os lucros de Matarazzo no ano passado foram de 700 milhes de cruzeiros. muito

  • dinheiro e com ele os Matarazzo podem fazer grandes e belas coisas. Algum dia (quem sabe?), Matarazzo far um refeitrio ventilado e claro para seus operrios. Far tambm uma maternidade para as mulheres dos operrios, no uma maternidade elegante e cara, a melhor da Amrica do Sul, como a que ele ergueu l para os lados da avenida Nove de Julho; apenas uma maternidade sbria, mas que seja de graa. O Cotonifcio Rodolfo Crespi S.A. teve, em 1942, um lucro sobre o capital de mais de 56%. A Nitro Qumica, em 1942, teve um lucro de Cr$ 28330000,00 e alguns centavos. Em 1940 e 1941, os principais bancos reunidos somaram um lucro de Cr$ 123263456,00. E os bancos pertencem aos homens que so donos das fbricas e das indstrias. A Fiao, Tecelagem e Estamparia Jafet fez bons negcios em 1940, 1941 e 1942; a Jafet deu um balano e seus donos foram presenteados com um esplndido resultado: um lucro de Cr$ 16297000,00, 181% sobre o capital. A Pirelli S.A. ganhou, em 1942, perto de 22 milhes de cruzeiros, 72,5% sobre o capital. A S.A. Moinho Santista ganhou, no mesmo ano, perto de 39 milhes de cruzeiros, 53,5% sobre o capital.

    Sobre nmeros assim, to eloqentes, que repousa o esplendor da haute gomme paulista. O Brasil est vivendo uma era de fartura. Uma fartura que, na verdade, no chega para todos. Mas chega para Fifi, para Lel e para Mimi, orqudeas raras. De noite, quando se acendem as luzes de So Paulo, a cidade fica ainda mais imponente. Os anncios luminosos rasgam o cu: so anncios das melhores e mais poderosas coisas da Amrica do Sul. H centenas de indstrias em So Paulo. Cada anncio luminoso, um anncio alegre. Cada indstria pede centenas de motores, cada motor pede dezenas de operrios. Dia e noite os operrios manejam os motores. Os motores fazem dinheiro. Os olhos e o sorriso de Jerry se derramaram satisfeitos sobre Fifi, como se Fifi fosse uma criao da sua coluna mundana na Folha da Manh. Amanh ele escrever:

    Na boiserie alta e clara, de carvalho natural, da sua sala de jantar, a sra. Stela Penteado Maurel sempre gostou de enfeitar as rendas creme da sua toalha de mesa com o colorido quente de rosas cor de rubi. Cinco candelabros antigos de prata acariciavam a suavidade do ambiente estilizado com a luz fosca das suas chamas pequeninas. Cupidos brancos de Saxe ofereciam flores por entre os personagens medievais de uma tapearia de Aubusson, e os sorrisos amveis de todos os convidados.

    Todos esto muito elegantes e adorveis. E Jerry j sabe o que dir, amanh, de cada um:

    A sra. Maria Penteado de Camargo pensava em reabrir aquele salo moderno de d. Olivia, escondido entre as sombras e folhagens escuras. Guilherme de Almeida recordava a sua recente viagem a Ouro Preto; os srs. Lavanchy e Henry Gueyrand falavam da Sua; o casal Jacques Pilon, de uma fazenda em Campinas... As sras. Maria Furtado Alves e Lima e Beb Nogueira sorriam por entre as espirais azuladas de seus perfumadssimos Luckies... A noite mida de fora escoava-se serena, por entre as luzes mortias dos sales franceses. Como seria bom se pudessem eternizar momentos assim...

  • , Jerry, seria muito bom. Seria adorvel. Mas eu acredito no ser possvel.

    A milsima segunda noite da avenida Paulista

    Confesso que, durante toda uma semana, em So Paulo, andei esfaimado atrs de um convite para o casamento da filha do conde Francisco Matarazzo Jnior com o "pracinha" Joo Lage. Dois ou trs elementos da finesse, mesmo cnscios da traio que iriam praticar, me prometeram o ingresso disputadssimo, mas falharam completamente. Um deles, visivelmente encabulado, me procurou no domingo, vspera da fase mais importante do acontecimento, e tentou suavizar meu desespero com a seguinte promessa:

    -No se aborrea. Voc no vai, mas eu vou e lhe conto tudo. A bem da verdade, digamos que o gr-fino cumpriu com sua palavra: a

    descrio da festa que me desfiou, na tera-feira, foi a mais completa e detalhada possvel. Sem surpresas, porm. que a imaginao do reprter, mais ou menos a par dos arrebatamentos da fortuna, j havia criado, para uso prprio, uma verso antecipada daquela milsima segunda noite da avenida Paulista. Houve apenas um ou outro incidente no previsto, como o leve atrito entre o dr. Marques dos Reis e um conviva, por motivos desconhecidos, e a acalorada discusso poltica entre o falangista Garcia Conde, representante de Franco no Brasil, e um progressista big shot de nossas indstrias. No mais, o meu amigo me confessou que voltou da lantejoulante noitada um tanto indignado com o comportamento e ao dos quinhentos "tiras" (na realidade, cem) contratados pelo conde para o policiamento do casrio.

    -A gente no podia dar um passo, que no sentisse uma poro de olhos espetados em nossas costas. Quando a gente se aproximava, ento, de um objeto de valor, era uma coisa afrontosa: um rapaz elegante e bem penteado logo se aproximava e ficava disfarando. Horroroso.

    Talvez tenha sido afrontoso, mas foi prtico. Na noite do dia 10 ltimo, ao contrrio do que vinha acontecendo em anteriores festejos organizados pelo conde, nenhuma jia desapareceu no palcio, nem ao menos um par de talheres de suas baixelas. O que os convivas trouxeram de l (canetas-tinteiro de ouro, broches de brilhantes, cotillons prateados e dourados, mil ricas lembranas outras) foram ddivas friamente distribudas pelo conde e perfeitamente enquadradas nas possibilidades, quase ilimitadas, dos seus lucros extraordinrios.

    Como teria nascido a idia da "mais brilhante festa j realizada no Brasil"? Dizem-me que foi de uma conversa, no Rio de Janeiro, entre o conde e elementos da sociedade carioca. Os referidos elementos haviam chamado a ateno do conde para a necessidade de uma "festa brasileira, uma festa que deixasse seu brilho nos anais dos nossos

  • acontecimentos". Particularmente, qualquer coisa que deslustrasse, com suas luzes, o ferico acontecimento que foram os esponsais do cabeudo d. Nuno com a melanclica d. Teresa. E quem, no Brasil, poderia ser o organizador de tal empreitada? Somente o conde Francisco Matarazzo Jnior, feliz arrecadador de lucros avaliados em 400 milhes de cruzeiros anuais. O conde teria retrucado no ter jeito para aquilo, no que foi respondido que onde h dinheiro no preciso jeito. E que motivo melhor para a "bela festa" do que o prximo casamento de sua filha Filly? O tema Filly foi habilmente desenvolvido pelos referidos elementos (a maioria deles tinha interesses particulares na festa: interesses profissionais e comerciais, principalmente) e os msculos sentimentais do conde acabaram por relaxar. Naquela noite, quando o conde garantiu que seria realizada "a mais bela festa do Brasil", uma fada mgica bateu com sua prdiga varinha na cabea de vrios cavalheiros nacionais. Houve telefonemas na madrugada, houve consultas e intrigas, e dez ou vinte senhores adormeceram, os que conseguiram, certos de que seus capitais, por magia do conde, iriam ser aumentados, e que timos negcios encerrariam as atividades deste ano de 1945. De resto, o ano da Vitria.

    "A mais bela festa do Brasil" no foi, contudo, apenas um espetculo. Mais do que isso, foi uma sucesso de espetculos e acontecimentos mundanos. Nenhum paulista poder esquecer aquela semana, um desfilar ininterrupto de recepes, jantares, ceias, bailes e festas. O Jequiti e o Roof foram tomados de assalto, o Esplanada viveu os seus dias mais intensos e brilhantes, nunca havia lugar para ns (falo dos mortais comuns) no Papote ou no Spadoni. Era, a bem dizer, o congresso da gr-finagem nacional, antes to dispersa nos seus movimentos e que, agora, atrada pela fora magntica do conde Matarazzo, se confundia num bloco interestadual, poderoso e aurifulgente. "Os prprios cronistas sociais se acharam numa trapalhada louca para identificar os granfas", me informou um rapaz paulista, e eu mesmo tive ocasio de ver, numa das fases preparatrias do casrio, como o mundanssimo sr. Gilberto Trompowsky se emaranhava, o lapisinho nervoso sobre o caderno de notas, no meio da complicada floresta de elegncia.

    Um balano honesto, pacientemente colecionado durante a semana dourada, nos diz, ento, que antes, e margem do casamento, mas a ele ligado, houve o seguinte: 26 jantares em residncias particulares; oito recepes; dezesseis ceias no Jequiti e sete no Roof, no falando de uma srie de pequenos incidentes mundanos: coquetis, chs com torradas, encontros fortuitos, coisas assim. Somem-se a isso os tremendos quarenta dias que antecederam o enlace, com aquele desespero aflito tomando conta dos cavalheiros e das senhoras, com as mil consultas a alfaiates, chapeleiros, modistas etc., e a uma concluso lgica se chegar: a de que nunca, em nenhum tempo, a elegncia nacional viveu instantes to absolutos. "Trabalhei mais nestes ltimos trinta dias do que em dez anos de minha vida", teria confessado o sr. Henrique Liberal a um amigo. E no era outra coisa o que dizia sua fisionomia naquela noite em que o fui surpreender no Spadoni, ao lado dos noivos ilustres, nas vsperas do acontecimento. Eu havia perguntado ao garom por que razo o conde estava ali com sua filha, seu futuro genro e mais alguns convivas almoando num restaurante, quando poderia ter ficado no seu palacete, onde naturalmente os cardpios so melhores. O garom me informou que "o palcio da avenida Paulista j estava todo arrumado e que, por causa disso, o pessoal de l tinha que fazer as refeies nos restaurantes". Disseme mais: "Ontem eles comeram no Papote, hoje almoaram e jantaram aqui. Tem que ser assim at o dia do casamento". Outro detalhe era aquele brao esquerdo do sr. Liberal metido numa tipia, como se o famoso decorador tivesse sado, mutilado mas vitorioso, de uma cruenta batalha. "Parece que ele caiu de uma escada,

  • quando pregava umas cortinas", foi o que me informaram numa redao. Quanto ao noivo, o antigo pracinha Joo Lage, era, ali no Spadoni, a segunda ou

    terceira vez que eu o via. A primeira fora naquela tremenda PorretaTerme,* no Norte italiano, no frgido janeiro. Algum me apresentara ao pracinha-milionrio, e creio que conversamos quatro ou cinco minutos sobre coisas gerais: naturalmente sobre a neve, o Brasil e os alemes. Vi-o novamente, em Florena, no hotel dos nossos soldados. E o via novamente ali, no restaurante de luxo, o cabelo bem penteado, o olhar alto, o terno bem cortado e a gravata discreta. L no front, o pracinha Lage se dissolvia e se inutilizava entre os seus outros 20 mil companheiros de luta; mas nestes dias de agora, seu vulto comprido e moo jamais poder ser confundido com o de qualquer outro rapaz brasileiro. Dissertei esta filosofia para o meu companheiro de mesa, que concordou com gravidade.

    - isso mesmo. Nuvem pesada e negra, ameaando um desastre total, foi aquela que caiu dez dias

    antes das festas, sobre o mundanismo paulista: em forma de boato terrorista, a nuvem informava que a srta. Filly Matarazzo havia sido mordida por um cachorrinho de raa, e suspeitava-se de que o cachorrinho estava doente. Diziase mais: que a noiva fora entregue aos cuidados de todo um corpo clnico, que lhe vinha ministrando injees especiais e exigentes. Em suma: talvez o casamento tivesse que ser adiado.

    "O casamento seria adiado!" Como a mais potente das bombas atmicas, a notcia desesperada ps-se a estremecer os alicerces da Nagasaki mundana de So Paulo e do Rio de Janeiro. Os jornais telefonaram aflitos para os mdicos conhecidos e alguns reprteres, mais ingnuos, tentaram chegar ao mundo proibido do palcio da avenida Paulista. Mas, de positivo, nada se soube. A notcia transformou-se, dias depois, numa revelao

    * PorretaTerrne era um quartel-general avanado na Itlia, do qual o Exrcito brasileiro partiu para a conquista de Monte Castelo, em 22 de fevereiro de 1945. (N. E.) mais alentadora: de fato, a noiva havia sido mordida, mas de qualquer maneira o casamento seria realizado. Depois, ento, se cuidaria do resto. Eu estava no Jequiti uma noite, quando a nuvem negra e pesada se transformou num puro e leve floco de algodo, nuvem de anjo. Um cavalheiro entrou esbaforido na boate, sentou-se numa mesa do primeiro plano, segredou qualquer coisa para o cavalheiro vizinho. O cavalheiro vizinho passou a notcia para a senhora ao lado, a senhora para o outro cavalheiro, e assim por diante. Quatro ou seis minutos depois, a nuvenzinha branca, talvez cor-de-rosa, chegava at mim:

    -No ser adiado! A coisa me pegou de surpresa. Deixei de mastigar o amendoim, perguntei: -Adiado o qu? O pleito eleitoral? -No. O casamento! No ser adiado! E l se foi a nuvenzinha, de ouvido em ouvido, tangida pela brisa mais feliz e mais

    amiga. Passou a nuvem pesada, realizou-se o casamento, os noivos esto agora na mais confortvel das luasde-mel, mas um enigma perdura: o mistrio do cachorrinho doente. A noiva teria ou no sido mordida? O cachorro estava ou no doente? Ou, como me disse um

  • amigo, o termo "mordido" se referia apenas a uma ao simblica? Espesso mistrio. "A mais bela festa do Brasil", propriamente dita, durou precisamente dois dias, trs

    noites e trs madrugadas. Comeou precisamente no sbado, 8, s nove e meia da noite, quando foram realizadas as bodas civis, com apenas dez convidados, a gente mais eleita. L estava a famlia Martinez de Hoz, l estava o baro de Saavedra, alm de um redator especial de conhecida agncia telegrfica estrangeira. Depois da cerimnia, foi o baile. meia-noite, os noivos danaram a primeira valsa. "O conde tinha um sorriso de pomba nos lbios", informou um cronista. O palcio resplandecia, mil luzes, mil reflexos, as fontes luminosas l fora, o povaru, annimo e friorento, se acumulando paciente no sereno. Depois, as Slfides. Gentis e airosas, as bailarinas do Municipal, sob o compasso de uma orquestra de cem msicos, amaciaram e encantaram os privilegiados coraes presentes com a msica chopiniana. Jacinto de Thormes, que sabe ser comedido, escreveu que nunca viu uma coisa to impressionante. O prprio conde, que nunca ligou muito para a msica, ficou embevecido no seu lugar, mergulhado noutro mundo. Seiscentos mil cruzeiros havia custado aquela formosura: 200 mil cruzeiros para a orquestra, trazida especialmente do Rio, e outros 400 mil para d. Maria Olenewa, as bailarinas e a apresentao do espetculo.

    Nessa noite, antes de se retirarem, os convidados (oitocentos, precisamente) deixaram suas assinaturas no mais esplendoroso "livro de ponto" j conhecido: capa folheada a ouro e papel da qualidade mais difcil. Antes e depois das Silfides (a que o dr. Marques dos Reis no assistiu), foram as danas, que comearam s onze da noite e terminaram nas ltimas horas da madrugada do dia 10. Houve um intervalo nos festejos, entre a primeira fase da dana e o comeo do bal, para que o conde, irresistivelmente prdigo, distribusse entre os convidados ricos cotillons. Peguei num deles: uma caneta-tinteiro de ouro com o nome do agraciado gravado -aquilo no devia ter custado menos de 4 mil cruzeiros. Oitocentos convidados, oitocentos cotillons. A nota mais colorida da noite do dia 10 foi, no entanto, a chuva pirotcnica que caiu sobre os jardins do palcio Matarazzo, precisamente quando o bal (antes somente representado para o sr. Getulio Vargas) ia na sua metade. "O conde gastou, s em fogos de artifcio, trezentos mil cruzeiros", o que me revela figura insuspeita e bem informada.

    O casamento religioso foi na segunda-feira (o domingo constituiu uma meia trgua, com uma pequena recepo e outro baile noite), e de uma certa maneira seu brilhantismo, com a igreja toda ornamentada, deixou na sombra os festejos com que os paulistas, naqueles dias, costumam agraciar o imaculado Corao de Maria. D. Alosio Masela foi levado do Rio para a igreja Nossa Senhora do Carmo, na capital paulista, onde j se encontravam trs bispos. Quando, depois de tudo acabado, os noivos seguiram, na tera-feira, para a sua lua-de-mel, e o dr. Pranchini Neto, exausto, recolheu-se sua residncia (ele foi o mestre-de-cerimnias de todo o esplendor, para o que, dizem, recebeu 300 mil cruzeiros), o conde havia despendido pouco mais de 6 milhes de cruzeiros. No falando, lgico, nas ddivas especiais que ofertou sua filha e ao seu genro. Somente um colar de pedras, tremeluzindo no colo de d. Pilly, custou 3,5 milhes de cruzeiros.

    Duas orquestras num total de perto de 150 msicos; caas raras mandadas vir de matas do Paran; cozinheiros carssimos (inclusive o mestre-cuca do Automvel Club); fogos de artifcio especiais; o penteador Gervais, que andou distribuindo suas mos mgicas pelas enternecedoras cabecinhas paulistas (o penteado que ele construiu para a noiva custou 2300 cruzeiros); litros de champanha, usque, mil bebidas outras; cem tiras da Ordem Social e smokings alugados para os mesmos; mobilizao da Polcia do Trnsito;

  • quatrocentos apartamentos alugados nos mais importantes hotis da capital; 200 mil cruzeiros de vestidos; todo o melhor conjunto coreogrfico do pas para uma exibio de pouco menos de duas horas; o dr. Pranchini, com suas maneiras; perto de 500 mil cruzeiros em decoraes realizadas pelo gnio inventivo, agora um tanto gasto e repetido, do sr. Liberal; 80 milhes de cruzeiros de dote; 200 mil cruzeiros por um souvenir oferecido noiva pelos diretores do grupo Matarazzo; um nncio e trs bispos; coral com a melhor msica sacra de Palestrina -tanta coisa mais, meu Deus, que teria acontecido com o conde Francisco Matarazzo Jnior? Que teria acontecido? Antes to pacato, metido l com os seus negcios, de casa para suas fbricas, das fbricas para o macio arranha-cu vizinho ao viaduto do Ch e, de repente, por artes diablicas, o demnio da ostentao toma conta do seu esprito e o obriga quele espalhafato todo.

    "No sei no, meu senhor, mas acho que o conde Chiquinho est gastando dinheiro demais", foi o que me disse, na redao do Dirio de S. Paulo, d. alivia Figueira Ramos, me de uma outra noiva, imensamente mais modesta. Ela fora ali, atrada pela publicidade que o jornal vinha dando ao imponente casrio, e nos aparecia armada de uma lgica ingnua e simples. Disse:

    -Leio todos os dias notcias do casamento da filha do conde e pensei que os senhores podiam publicar uma notinha qualquer sobre o noivado de minha filha. Ela se casa sbado.

    Como d. alivia chegara num momento bastante oportuno, teve mais do que "uma notinha'; teve toda uma reportagem. Em companhia de Maurcio Loureiro Gama, estive na humilde casa da Vila Romana, onde se realizou o matrimnio da moa Nadir Figueira Ramos, operria de uma das fbricas Matarazzo, com o rapaz Jos Todeschi, torneiro-mecnico. Quando voltaram da igreja, na cidade, ela de azul, ele de marrom, encontraram o seu pequeno lar enfeitado com algumas flores de papel crepom e outras naturais; duas cortinas brancas na janela, po doce, goiabada, refresco de laranja, quatro ou cinco garrafas de cerveja e algum guaran. as mveis eram rsticos, e ainda no esto pagos. E depois do casamento, no dia seguinte, Nadir voltou para sua fbrica e Jos para sua oficina. Lua-de-mel, sim, mas depois das poderosas chamins da Matarazw gritarem o fim do segundo expediente do dia.

    "Moo, ser que s a filha do Matarazzo tem o direito de ver ,o seu

    casamento noticiado pelos jornais? Gente pobre tambm no casa?", perguntou d. Olvia ao reprter. E l fomos ns para o casamento de sua filha. Era, afinal, uma compensao, um tanto melanclica, para quem no pde romper a terrvel e impraticvel parede que separa o mundo dourado do palcio da avenida Paulista e o mundo prosaico da rua, o nosso mundo. E de tais compensaes vivem os reprteres otimistas.

  • Agripino Grieco, 1943: Vi Mussolini de perto, conversei com ele. Um palhao." Aps umas duas horas de movimentada e incandescente conversa, na qual pulava de

    um assunto a outro, Agripino levantou-se: -Vamos l dentro ver minha livralhada. So mais de 40 mil livros enchendo at o forro duas salas dos fundos da casa

    nmero 86, na rua Aristides Caire, no Mier. -H uns trinta anos coleciono livros. Aqui voc encontra de tudo. Desde

    Homero at a Histria do caf, de Taunay. Antes, " era quase tudo brochura. Mas resolvi encadernar o que merece

    ser encadernado, cuidar melhor de quem merece ser cuidado. Creio que em matria de livro sou um milionrio! um legado que pretendo deixar para os meus filhos, j que no posso lhes deixar propriedades nem poos de petrleo.

    Segundo contas que mentalmente fao ali mesmo, a concluso que Grieco deve ter gasto uma fortuna para encadernar aqueles milhares de volumes. No esquecendo ainda que a maioria das encadernaes de bom gosto, cheirando arte do encadernador Valele. -De fato, me custou um dinheiro. Meti aqui uma boa parte dos lucros das minhas

    conferncias. Algum j havia me dito que Agripino Grieco j havia ganho mais de quinhentos

    contos com as conferncias que vem pronunciando pelo Brasil, sobre os mais vrios temas literrios -particularmente sobre a vida e a obra de Castro Alves, seu carro-chefe. Pergunto se isso verdade:

    -Mais de quinhentos contos? Um sorriso um tanto malandro: -Mais, meu caro ToeI, muito mais. Voc nem pode calcular o negoo que fazer

    conferncia no Brasil de hoje. Sempre que eu quero ajudar algum intelectual mais jovem, aconselho: "Faam conferncias, sobre qualquer coisa. uma indstria". Numa s conferncia eu ganho o que toda a edio de um livro no me d. Por a voc v. uma coisa formidvel. Quinhentos contos! Mais, muito mais!

    -Quanto, ento? -Ah! Isso no digo. segredo profissional. E tem o imposto de renda a querer sempre

    levar mais.

    A ARTE DA CONFERNCIA

    Agripino Grieco tem suas idias prprias a respeito da arte de fazer conferncias. Diz ele:

    -Uma conferncia deve ser como uma pera. O conferencista o tenor. Mas uma pera brejeira, um tanto bufa, assim como O barbeiro de Sevilha, por exemplo. Ora, toda pera tem suas rias preferidas. Pois ento martelar nessas rias! O tenor, isto , o conferencista, no precisa andar de um lugar para outro carregando na pasta quilos e quilos de parti-

  • turas diferentes. Duas peras, quero dizer, duas conferncias bem improvisadas e bem decoradas, nada mais salutar e previdente do que um improviso bem improvisado, so o suficiente para toda uma turn pelo Brasil inteiro. Ou quase inteiro. Com uma palestra cuidadosamente preparada sobre Castro Alves e outra sobre a poesia portuguesa, com muito recitativo de Cames, eu posso correr cinco estados. Ambas causam sempre grande efeito. Alm disso, no esquea, uma conferncia no exige despesas com orquestra, coro, figurantes e cenrio. Sou eu somente, e mais algum para cuidar da publicidade, da venda dos ingressos, da visita antecipada aos jornais, da escolha do local onde a coisa ir acontecer. E para isso tenho o Salomo Jorge, uma fera que defende com olhos e dentes os quarenta por cento que lhe pago. No pode haver negcio mais seguro.

    Tudo isso, contado assim com o jeito de Grieco conversar, aos brados e em grandes gestos, um encanto. Para cada pergunta, mesmo a mais inconveniente, ele tem uma resposta pronta, quase sempre irnica ou sarcstica. Quando, por exemplo, lhe pergunto quais os requisitos necessrios a um conferencista, ele no hesita:

    -Primeiro, talento. Segundo, contar com graa o que est contando. Ter cultura. E, principalmente, no ser chato. Veja o caso do Pedro Calmon, que doido para falar em pblico. Mas como enervante. J dormi vrias vezes em conferncias dele. Numa delas, cheguei a roncar. Outro exemplo de mau conferencista: o adiposo senhor Filinto de Almeida, outro teimoso falastro. Mas, quando abre a boca, dela no sai nada que valha a pena ser ouvido. "UM CONFERENCISTA NO DEVE DEMORAR MAIS DE DOIS DIAS NUMA CIDADE

    Grieco me revela como teve inicio a sua fase de conferencista: -Anos atrs o Assis Chateaubriand me pediu que eu escrevesse qualquer coisa para

    comemorar o aniversrio da morte de Martins Fontes. Depois resolveu que em vez de um artigo eu fizesse uma conferncia sobre o poeta santista, conferncia que seria pronunciada l mesmo, em Santos. Concordei. Fui para Santos e fiz a conferncia. Durante o transcorrer da palestra, notei que um certo senhor, postado numa cadeira da frente, no tirava os olhos de mim, todo atento, como que pesando e medindo as minhas palavras. Ao terminar a conferncia, fui procurado por ele. Tratava-se do poeta Salomo Jorge, autor de poemas "orientais". Me abraou forte e foi logo me dizendo: "O senhor, seu Grieco, dono de um rico dom. Precisamos os dois explorar esse dom!". E sugeriu que eu fizesse uma turn de conferncias de inicio por Minas e So Paulo, em seguida por outros estados, tudo com entrada paga. Ele, Salomo, me acompanharia: venderia os bilhetes, conversaria com o prefeito, cuidaria de arranjar local. Levaria uma comisso, claro. A principio, confesso, achei que no ia dar certo. Mas Salomo um exmio homem de negcios, entende de dinheiro como mais ningum. E tudo deu certo. Ganhamos os dois, com as conferncias, andando ai pelo Brasil das capitais e do interior, muito dinheiro. At hoje costumo dizer que eu sou "as minas do Salomo':

    Uma pausa, Grieco esfrega as mos, prossegue: -J lhe disse que o segredo da coisa a gente virar tenor. Mas h outro segredo: um

    conferencista no deve demorar mais que dois dias numa cidade. a tal histria: a

  • intimidade acaba com a aurola. V embolsando o dinheiro e dando o fora. o que sempre fao, ou fazia, e isso tambm por conselho do Salomo, que nunca erra. Em resumo, as conferncias itinerantes resolveram meu problema financeiro. E principalmente os do Salomo. O desgraado est mais rico do que eu! Rico, eu? Dinheiro quem tem ele.

    "MUSSOLINI VAI ACABAR COM A ITLIA"

    Na Itlia, o pai de Agripino Grieco era um admirador fervoroso de Garibaldi e Mazzini, o que dele fez um ardente maom e mais ardente ainda republicano. No incio do fascismo, quando Mussolini mandou fechar a maonaria e passou a perseguir sem pena os maons, o tintureiro Pascoal Grieco enfureceu-se e no cansava de dizer, em discursos-relmpago ou l na sua tinturaria, ao atnito pessoal de Paraiba do Sul, para onde emigrou, correndo do fascismo, e onde nasceu seu filho Agripino:

    -Mussolini vai acabar com a Itlia! Vai matar a Itlia! um estpido, um fanfarro! Agripino, o filho mais velho do tintureiro Pascoal Grieco, assim define Paraiba do Sul,

    sua terra natal: -Uma cidadezinha pobre, sem indstria, sem nada a no ser a fonte de gua mineral

    Salutaris. Mas a Salutaris no d nada cidade: um tesouro explorado por senhores riqussimos aqui do Rio que nunca aparecem por l. Mas o povo de Paraba do Sul, que no tolo, sabe como se vingar: s bebe gua Caxambu ou So Loureno.

    E mais: -Hoje, Parala do Sul um lugar de espritas e de funcionrios pblicos aposentados.

    Mas no foi assim no passado. No tempo do Imprio, Paraba era um formigueiro de revolucionrios exaltadssimos, e a voc v que meu pai, ao deixar a Itlia, no a escolheu em vo para sua nova moradia. Revoluo ou "revoluo" rebentava l como tufo de capim numa rua de Botafogo, dessas onde o asfalto ainda no chegou. Basta dizer que certa vez Paraba chegou a ser capital da provncia. A coisa demorou somente um dia, de forma que quando vrios cidados irredentistas vieram nova capital, para festejar a vitria, tiveram que voltar s pressas, antes que a polcia lhes deitasse a mo: a capital no era mais capital. Mas o fato que a Paraba do Sul de hoje, apesar de tanto esprita e tanto aposentado, continua a ser uma cidadezinha cheia de malcia e um tanto belicosa. Creio que este meu temperamento extrovertido, essa minha lngua solta que incomoda tanta gente, eu herdei da gente de l e no da minha famlia "carcamana". Meu pai nasceu na Basilicata, no sul da Itlia, uma regio agreste e fechada, clebre apenas pelos seus bandoleiros.

    DE TINTUREIRO A TELEGRAFISTA DA CENTRAL

    A infncia de Agripino Grieco, em Paraba do Sul, no foi das mais risonhas. Ainda bem moo, dele apoderou-se uma insacivel sede de leitura, o que o levava a enfurnar-se horas inteiras na biblioteca da Cmara Municipal, a devorar tudo o que lhe aparecia pela frente, de Jlio Verne a Paulo de Kock. O pai queria que ele fosse bacharel, "s para contrariar os ricos da cidade". Mas o fato que Grieco no teve outra instruo alm da

  • primria, a que se seguiu um curso de telegrafia. Em Paraba, quando ele no estava ajudando o pai na tinturaria (lavava os panos, junto com os outros empregados, nas guas do Paraba), ia para a biblioteca ou ficava em casa escrevendo. Iniciou vrios romances, enchendo pginas e mais pginas de velhos livros de escriturao mercantil. Eram histrias nas quais os personagens cen- trais eram bandidos terrveis que, na imaginao do romancista adolescente, inquietavam e aterrorizavam a pacata vidinha de Paraba do Sul, "uma cidade onde s existem mesmo, alm dos espritas e aposentados, mosquitos e muita pedra".

    Foi em 1906, aos dezoito anos, que Grieco resolveu mudar de vida: inscreveu-se no concurso para telegrafista da Central do Brasil. Foi classificado e veio para o Rio. Guardadas as distncias, sua vida no Rio no mudou muito. Trabalhava e lia. A biblioteca que freqentava era agora mais dotada ("ficava no largo da Lapa, creio que no existe mais"). L se metia Grieco, quando das horas vagas, e mergulhado nos livros ia varando a noite, at que o funcionrio do turno da noite anunciava, a voz grossa e pesada "Vai fechar!".

    LAUDELINO FREIRE FOI O SUJEITO MAIS BURRO QUE CONHECI EM MINHA

    VIDA"

    Em 1910, Grieco publica seu primeiro livro, nforas, versos ainda escritos em sua quase totalidade em Paraba do Sul.

    -A princpio -me diz Grieco -tentei publicar o livro numa tipografia de Barra do Pira, mas o dono da tipografia pediu um adiantamento de 200 mil-ris, dinheiro que eu no tinha. Acabei imprimindo-o aqui no Rio, numa edio de mil exemplares, que pretendia vender aos amigos. Se a luta para vender foi uma dureza, calcule o que no foi para cobrar os que ficaram devendo, a maioria deles. No consegui passar mais de uns trezentos exemplares. O resto ficou encalhado l em casa, embora o livro no fosse de todo ruim, tanto assim que mereceu elogios de Raimundo Correia e Jos Verissimo.

    O segundo livro -Esttuas mutiladas - de 1913, uma coletnea de contos: -A maioria das histrias do livro se passa em Florena, e noutras cidades italianas que

    eu jamais vira e que s iria conhecer muitos anos depois, j bem maduro. Mas a imaginao no tem fronteiras. E tambm pouco ou nada entende de geografia.

    Confessa-me Grieco que, publicado seu segundo livro, sentiu-se como se no tivesse nada mais a escrever. " como se tudo dentro de mim estivesse vazio."

    "Eu no seria mais, para o resto da vida, seno um burocrati', pensava comigo mesmo. Ento me mudei para uma casinha em Terra Nova, um subrbio bem distante [ainda hoje ], da Linha Auxiliar, levei comigo meus livros, que ento j eram centenas, e at 1920 fui levando aquela vidinha: da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Mas jamais perdi o contato com os livros. E tambm com as livrarias, que sempre visitava. Passava na Schettino, batia um papo com um e outro literatos, depois dava um pulo at a Quaresma, ia at a Garnier, e isso quase que diariamente. Depois, casa. E mergulho sem pausa na leitura, at dez, onze, meia-noite. No lia at mais tarde porque tinha que acordar cedo: o emprego na Central comeava s oito horas e Terra Nova fica nos cafunds.

    Mas estava escrito que Agripino Grieco no seria apenas um burocrata. Todos os dias ele se encontrava com Lima Barreto na Livraria Schettino, que ficava na rua Sachet, mais tarde travessa do Ouvidor.

  • -Lima Barreto -me diz -andava sempre encharcado de cerveja, mas jamais perdia a lucidez.

    Outro amigo da poca, tambm freqentador da Schettino, foi Coelho Cavalcanti, a cujo "imenso talento" Grieco refere-se com entusiasmo.

    Com Coelho Cavalcanti, Grieco dirigiu um panfleto -A Pua -, que no passou do primeiro nmero. Logo depois, os dois fizeram um outro semanrio, que tambm no foi alm do nmero um.

    -De um certo modo, sou um especialista em primeiros nmeros. O fato, porm, que os dois panfletos haviam revelado um Grieco at ento

    desconhecido: um Grieco definitivamente desligado dos seus compromissos dannunzianos, dono agora de uma prosa corrente. E, principalmente, um Grieco irreverente que logo depois se mostraria, por inteiro, no ABC, recentemente fundado por Fernando Borla.

    -Entre 1913 e 1920 eu tinha lido muito, desordenadamente, tinha lido tudo. Era tambm de descarregar tudo o que havia lido e aprendido. Particularmente, era tempo de separar o joio do trigo, dizer do que gostava e do que no gostava. E isso sem meias palavras. Comecei a malhar os medalhes. E o primeiro deles foi o Laudelino Freire. Sei, Joel, que Laudelino sergipano, como voc. Mas que besta! Pode escrever a, com todas as letras: Laudelino Freire foi o sujeito mais burro que conheci em minha vida!

    PACINCIA COM OS NOVOS

    Quando Tristo de Atade deixou o rodap de crtica literria que assinava em O jornal indicou Grieco para substitu-lo. E esse rodap que iria consagrar de vez Agripino Grieco. O seu jeito ferino, sarcstico, impiedoso com os medalhes e paciente com os novos deu-lhe fama imediata.

    Sente-se que Grieco tem uma visceral ojeriza pelos velhos, particularmente os velhos medocres. "Todo medalho medocre. Quem tem talento nunca vira medalho:'

    -Nunca ataquei um novo, um principiante. Para os que estriam deve-se proceder como os bancos fazem com um cliente faltoso: dar um prazo para que se reabilitem, paguem seu dbito. Se depois do primeiro livro de versos, do primeiro romance, o rapaz voltar com um segundo pior que o primeiro, ento, sim, lenha nele. assim que procedo, e creio que estou certo. Como tambm creio estar certo quando me volto, e com toda fria, contra os julgamentos aparentemente cristalizados. Para escndalo de muitos, fui o primeiro a dizer que Lima Barreto o maior de todos os nossos romancistas. E quando Raul de Leoni apareceu, fiz um bruto barulho em torno dele.

    Grieco senta num degrau da escada movedia, encostada num dos cantos de sua enorme biblioteca, diz:

    -No sei bajular ningum. Se no fosse assim, h muito tempo que estaria na Academia. Convite que no tem me faltado. Mas sei por que me querem l; apenas para que eu segure a minha lngua, comece a falar bem dos que me elegeram, o que seria para mim pior que a prpria morte. Voc j calculou eu escrevendo um artigo de elogio aos poemas do serfico senhor Alosio de Castro? A elogiar o Cludio de Sousa, o Osvaldo Orico, o Filinto de Almeida?

    Segundo Grieco, "ou a Academia se renova, ou morre de vez". -Quem devia estar l, numa nova Academia, era o Alvaro Moreyra, o Marques

  • Rebelo, o Jos Lins do Rego, o Graciliano Ramos, o Jorge Amado, a RacheI de Queiroz.* Eles deviam invadir numa tarde de quinta-feira aquilo l e botar para fora, a chicote, aquela velharia toda, e passar a ocupar as cadeiras vazias. Que vazias j esto mesmo quando ocupadas pelos seus medocres ocupantes atuais. No uma idia?

    * Todos esses autores acabariam sendo eleitos para a Academia, com exceo de Graciliano Ramos. (N. E.) MUSSOLINI: UM PALHAO

    Em 1936, o governo fascista de Mussolini andou recrutando escritores brasileiros para uma viagem Itlia. Grieco foi um dos convidados. "Claro que aceitei sem vacilar. Voc j calculou uma viagem Itlia, terra do meu pai, com tudo pago?"

    Com ele seguiram Henrique Pongetti, Jorge Maia, Licurgo Costa, Abner Mouro, outros mais.

    -O embaixador italiano nos reuniu aqui no Rio em torno de um monumental espaguete. Mas a massa estava ruim, insossa, e de comida italiana eu entendo. Pensei comigo mesmo: "Macarro sem gosto e malfeito na prpria embaixada da Itlia mau sinal: o tal do fascismo no podia ser l grande coisa". Bem, l fomos, mas para mim, como j previa, a viagem foi uma decepo. Fui l para ver Florena, Veneza, Npoles, e acabei no vendo nada disso. S mquinas, canhes, colheita de trigo, e discursos e mais discursos, e "Viva il Ducef', e a inflada cara dele pregada em tudo que era muro, em tudo que era parede. Certo dia, acompanhados por Alfieri, um dos gerarcas* fascistas, fomos finalmente presena do "grande homem", l no Palazzo Venelia. Atravessamos salas e mais salas: aqui, uma repleta de livros; mais adiante, outra pejada de quadros. Na ltima, quase do tamanho do largo da Carioca, l estava ele, Il Duce, em p por detrs de uma mesa sem tamanho, os braos cruzados, todo empertigado. Ao nos ter mais prximos, gritou, isso mesmo: gritou!, para Alfieri: "J mostrou tudo? J deu aos nossos visitantes uma idia da grandeza do fa:scismo?". Ah, ia esquecendo. Antes dessa interpelao, ele havia soltado outro berro: "Quem so? Que querem?", como se o truo no soubesse quem ramos e o que ali estvamos fazendo. Um tanto trmulo, Alfieri entregou ao chefe um papel com a programao de nossa visita. Entre-

    * Gerarca: nome dado aos dirigentes fascistas na Itlia. (N. E.) gou uma maneira de dizer. Na verdade, Mussolini arrancou, num safano, o papel da mo de Alfieri, passou os olhos rapidamente para o que nele estava escrito, gritou mais uma vez: " Benissimo.r: E voltou a berrar: "No deixem de ir a Herculanum.* Tm que ir! Em nenhum lugar da Itlia se encontram traos to profundos de romanidade". Depois comeou a falar do Brasil, de Matarazzo, dos portugueses, do seu amigo Salazar, da raa latina, da tal de romanidade, e de canhes, avies, cada vez mais berrante. E foi s, a coisa toda no demorou mais que dez minutos, talvez menos. De repente, deu-nos as costas e foi postar-se diante do janelo atrs dele e dali ficou a olhar a praa l embaixo. Era como se no existssemos. Com um gesto, Alfieri sugeriu que era hora de darmos o fora. E l fomos

  • ns, o Alfieri quase na ponta dos ps. Esse o Mussolini que vi de perto: que grande palhao! Alis, o fascismo inteiro, com aquelas fardas de pera, aquelas encenaes de papelo, aqueles pobres balillas** com suas espingardinhas, aquele conde Ciano, to enfatuado quanto o prprio Mussolini, seu sogro, tudo no passava de uma grande palhaada! Ao voltar ao Brasil, logo na primeira escala, em Recife, ao ser procurado pelos jornalistas locais, fui categrico: "Fui Itlia e no conheci a Itlia. Mas pretendo juntar dinheiro e voltar l, depois da queda do fascismo. Pois vocs no tenham dvida: aquilo no vai demorar muito". E ento, ao chegarmos ao Rio, o embaixador italiano ofereceu um grande almoo a todos que estavam voltando de sua terra. Todos, menos eu. Em suma, ToeI, meu pai tinha razo: o fascismo vai acabar matando a Itlia. A no ser que a Itlia, a verdadeira, a dos museus, a dos pintores e escultores, acorde e mate o fascismo.

    * Regio do sul da Itlia, em Npoles, que junto com Pompia foi soterrada pelas lavas do Vesvio. (N. E.) ** Balilla: na Itlia durante o fascismo, rapaz entre oito e catorze anos que pertencia a organizaes fascistas de carter paramilitar. (N. E.) Dezoito poetisas contra o mundo em chamas Rio de Janeiro, junho de 1944.

    Ao meu lado, no largo salo do Liceu Literrio Portugus, est um cavalheiro magro e inquieto, embrulhos domsticos equilibrados sobre as pernas. Seu entusiasmo, diante do interminvel recitativo, vai num decrescendo: ele teve palmas calorosas para o primeiro discurso de d. Iveta Ribeiro, para as senhoras e os senhores que passaram a ocupar lugares na mesa de honra, para as mensagens lidas pela cantora dubl de poetisa Maria Silva Pinto. Mas agora suas palmas so quase flcidas, a festa literria j lhe trouxe dois bocejos, e ele no pode esconder sua contrariedade quando o pequeno embrulho de manteiga escorrega e vai se esborrachar no cho. Vira-se para mim e diz:

    -Em que diabo eu vim me meter! Cheguei aqui para esperar a hora do nibus, pois tarde impossvel a gente pegar lugar. Mas estas moas no param de falar e no sei como sair.

    Puxa o relgio do bolsinho da cala (um relgio grosso e azinhavrado), suspira: -Vou chegar em casa meia-noite! um homem tmido; sugiro-lhe que deslize at a porta de sada, ganhe a rua livre. Ele

    relanceia os olhos em derredor, sente-se derrotado: -Como que posso fazer isto com tanta gente assim? Arruma novamente os pequenos embrulhos, passa o leno

    pela testa suada, acomoda-se dentro de sua pacincia e de sua timidez: -Vou esperar. Estas madames no vo ficar aqui a vida inteira.

  • PARTE 02 A MILSIMA SEGUNDA NOITE DA AVENIDA PAULISTA

    D. IVETA SOFRE DERROTAS

    E aqui esto, no grande salo, um reprter encolhido, um cavalheiro tmido que sofre, e senhoras, dezenas delas, que recitam, cantam e discursam. uma tarde de quinta-feira, calor de fim de inverno, e d. Iveta Ribeiro, fundadora proprietria, coordenadora e incentivadora do Clube das Vitrias-Rgias, vive um dos seus grandes dias. Ou talvez seja exagero nosso, pois muito possvel que, nesta tarde de quinta-feira, a antiga diretora do Brasil-Feminino esteja sofrendo uma de suas derrotas mais srias. Os jornais haviam me informado que naquela tarde e naquele salo as senhoras do famoso clube se reuniriam em grande estilo, para uma homenagem poetisa Gabriela Mistral e ao embaixador do Chile. Mas d. Iveta (ela est afogada num luminoso vestido preto, continhas brilhantes sobre o colo macio), uma peninha vermelha e comprida fugindo do chapu quase microscpico, abre a sesso e revela duas grandes melancolias:

    -Minhas senhoras e meus senhores, gentis "Vitrias", uma notcia triste: a poetisa Gabriela Mistral no pde comparecer, por motivo de sade. Mandou-nos, no entanto, uma mensagem que a poetisa Georgina Abrn, sua representante, nos ler no correr da sesso.

    Entrevejo alguns rostos decepcionados, e uma senhora que est minha frente resmunga para o marido, um senhor de calva cor-de-rosa:

    -Motivo de sade! Pois sim. Eu bem sabia que a Gabriela no viria. A outra, melanclica: -Tambm o senhor embaixador do Chile no pde comparecer. Tem um encontro

    marcado precisamente para esta hora, o que acaba de nos informar o seu secretrio, que assumir a presidncia da sesso..

    E o secretrio nada mais, nada menos, que o meu amigo Rodrigo Gonzlez Allende, indubitavelmente um mrtir da diplomacia. Jogam-no em cima de uma alta e larga cadeira, sobre o estrado central. D. Iveta, diligente e desembaraada, cochicha alguma coisa no ouvido do secretrio, passa-lhe um papel datilografado. Dentro de mais alguns segundos, a dona do clube, primeira oradora inscrita, levanta-se do seu lugar e diz ir explicar os motivos daquela reunio.

    o OSIS E O MATERIALISMO

    Ento, o salo j est repleto. Vejo caras conhecidas, os mesmos penachos, os mesmos tremendos chapus com montanhas de fitas, flores e plumas, os olhos lnguidos da poetisa Maria Sabina, os mesmos "lagos" encadernados nas suas roupas graves, o olhar embaciado do poeta Murilo Arajo, slidas colees de anos se escondendo, em vo, sob as

  • deficientes possibilidades do batom e do p-de-arroz. Uma fauna conhecida e gasta, desco- bertos astros do velho sistema planetrio que, h anos, d. Iveta vem comandando como o sol de todos os dias. As senhoras so minhas antigas conhecidas, mas serei sincero dizendo que nestes ltimos quatro anos nenhuma delas mudou muito: a velhice cristalizou-se em quase todas, e possivelmente daqui a vinte ou trinta anos d. Maria Sabina ter os mesmos olhos amassados e as mesmas olheiras castigadas. Estar mais gorda d. Iveta? No saberei dizer, mas o lorgnon, equilibrado no nariz grosso, certamente ser o mesmo. A voz tambm (uma voz gutural e meio fanhosa que me ficou para sempre na lembrana depois de um discurso integralista na rua Sachet), e tambm a perorao que em suas linhas gerais a repetio dos velhos slogans de antes de 1938.

    Cochicha a senhora ao meu lado, novamente debruada sobre o cavalheiro de calva rsea:

    -A Iveta no faz um discurso sem falar em materialismo. que o materialismo tem sido o inimigo cotidiano de d. Iveta,

    e para ela "materialista" todo aquele ou tudo aquilo que condena suas artimanhas polticas ou no leva a srio seus recitativos semanais. Mas a persistncia a sua grande arma, e aqui est ela a repetir o que vem dizendo sempre em comcios, em quadrinhas e em chs beneficentes:

    -Esta festa um osis dentro do materialismo em que se afoga o mundo.. A guerra est rebentando l fora, mas ns, as "Vitrias-Rgias", no nos deixamos dominar pelos maus instintos. O mundo brbaro no nos contaminar, porque nossa poesia mais forte que as espadas dos homens. Nesta solenidade de hoje, um mar de rosas sobre a cabea da poetisa Gabriela Mistral, ns afirmaremos mais uma vez, atravs de nossos versos, que no nos deixaremos matar pelo materialismo.

    O magnsio do meu companheiro Celso Moniz rebenta bem em cima da oratria de d. Iveta, mas ela no se altera. Estira os braos, numa tpica posio de ginstica pelo rdio, e termina:

    -Esta, portanto, gentis "Vitrias", a nossa misso: ficarmos sempre ao largo das baixezas e das brutalidades do mundo, guardadas dentro do cofre dos nossos versos.

    O escritor Silvio Jlio aplaude com veemncia, diz qualquer coisa ao ouvido da senhora argentina (ou peruana, ou chilena, ou paraguaia). A senhora sorri e responde:

    -Oh! Silvio, usted es incansable. O fim do discurso de d. Iveta apenas uma ligeira trgua: ela se senta, mas o meu

    amigo Allende lhe d novamente a palavra, e agorad. Iveta se derrama numa saudao em versos. A saudao para Gabriela Mistral, que as "Vitrias" acreditam presente em esprito, e os versos so maus. Quadrinhas rurais, cvicas e campestres, um amontoado de fceis rimas em im, o e ante. As rimas batidas servem de patins poticos, e armada deles a musa de d. Iveta, durante dez minutos, escorrega tranqila sobre uma lmpida e glacial superfcie de lugares-comuns. Guardo dois ou trs versos: "Boninas do campo", "Gentis jasmins", "Nosso Brasil verde-amarelo", "Salve mestra das mestras".

  • AO XTASE SUCEDE O RECITATIVO

    Mas a propsito de d. Maria Sabina, s me lembro de uma fogueira que ela trazia cabea, maneira de chapu, e do seu olhar esttico (um misto de resignao e sofrimento, como o olhar de certas mulheres que encontramos nas filas da carne e do leite), solidamente derramado sobre a assistncia. Ela permanece assim contemplativa durante alguns minutos, as mos cadas ao comprido, e estou me recordando agora de uma lio sua, em 1941, quando, numa entrevista, lhe fiz qualquer per- gunta sobre a arte de dizer: "Ao xtase sucede o recitativo, nunca antes".

    A voz de d. Maria Sabina tem a fora penetrante das coisas finas: enche a sala em linhas retas, atravessa as bambinelas, grita aos ouvidos do poeta Cames que faz pontaria no fundo do salo, naturalmente deve estar sendo escutada l fora, no mundo em chamas dos jornaleiros e das manchetes. Mas se trata de uma voz intil, como a dos camels: d. Maria Sabina fala de um riacho tranqilo, bordado de nenfares, de um cu azul "como no h outro igual no mundo", de bosques encantadores. A poetisa se esfora para nos convencer de que tudo bonito e feliz, mas os maiores inimigos de sua convico so os seus prprios olhos amarrotados.

    UMA SENHORA DO CONTRA

    As palmas desabam sobre um cndido e modesto sorriso de d. Maria Sabina, e ainda dentro delas ergue-se a cantora Maria Silva Pinto, a conhecida virtuose dos gorjeios e chilreios. Lembro-me do programa de estdio da pesada emissora, e tremo: no, no, d. Maria no nos far isto! De fato no nos far -ler apenas, a pedido de d. Iveta, algumas mensagens chegadas reunio, e a maioria delas so de "Vitrias" que por motivo de sade no puderam comparecer. So os tais achaques do outono. Aqui est um gentil carto da poetisa Matilde de Almeida, aqui est um longo memorial da "intelectualidade feminina do estado do Rio" que no pde chegar a tempo em vista do novo horrio da barca Terceira. As escritoras paranaenses mandam, em duas robustas folhas datilografadas, elogios para a homenageada e para d. Iveta, e para elas d. Iveta (vem na mensagem) uma "frondosa rvore sempre dadivosa".

    Novamente as poetisas se sucedem sobre o estrado mas agora pouco posso divis-Ias, j que o fotgrafo Celso Moniz, com o seu magnsio (h falta de lmpadas no mercado), transformou o salo num retalho do mundo em chamas que est l fora. A densa fumaa se esparrama, joga uma nuvem grossa de encontro ao teto, e as senhoras e cavalheiros esto discretamente levantando os lenos boca. Escuto, por detrs da fumaceira, a voz da representante do Par, que balbucia a sua "Terra amazonense": "Que linda paisagem!/ Que lindo arrebol!".

    Escuto, graciosa, a vozinha da poetisa ln Secundino: "Sou um pssaro". Mais fortes, rompem a trincheira de fumaa os versos da poetisa baiana, escondida

    atrs de uma surpreendente indumentria verde e cor de abbora: "Trabalhai, trabalhai,/

  • Quem trabalha vive feliz". Conselhos, de resto, que no encontraro acolhida ou refgio nos pontos de vista

    daquelas senhoras, inimigas declaradas do tric e do ferro de passar. Este o meu pensamento, e tambm assim deve pensar a senhora minha frente -mais uma vez ela encosta os lbios untados de batom no ouvido do marido, e murmura num timbre acessvel:

    -Trabalhar! E por que ela no fica em casa tomando conta dos netos?

    A FUGA

    A reunio possivelmente se estender por mais de uma hora ou duas, pois consulto o programa e vejo que ainda no se fizeram ouvir nove ou dez musas estaduais. Mas Celso Moniz, do lado de fora, me acena com o trip: est satisfeito e vai dar o fora. Levanto-me com cuidado, e j era tempo: meu amigo Rodrigo Gonzlez Allende acabava de convidar d. Maria Silva Pinto para um nmero de canto. Saio na ponta dos ps e levo comigo o homem que veio esperar a hora do nibus. Na porta, afogado no mar de embrulhos, ele desabotoa o colarinho, afrouxa a gravata e me diz:

    -Nunca mais eu caio noutra! Encontro com Chat Foi na segunda semana de julho de 1944. Com a sua desenvoltura aristocrtica, de quem estava acostumado a andar, Virglio de MeIo Franco abriu decidido a porta da sala, no quarto andar do velho edifcio da rua Sacadura Cabral, no Rio, e j no interior do amplo gabinete foi me empurrando com as pontas dos dedos da mo direita, at me levar mesa, l nos fundos, atrs da qual um senhor um tanto grisalho enchia velozmente, escrevendo a lpis, laudas de papel de jornal.

    Virglio interrompeu-o: -Assis, aqui est o Joel, a vbora que voc tanto queria. Faa dele bom proveito, e

    espero que os dois se dem bem. Despediu-se rpido: -No posso demorar, Assis, estou cheio de trabalho. Nos encontraremos no Jquei. Quando Assis Chateaubriand, em cujos jornais eu iria trabalhar, ergueu-se e me

    estirou a mo, pensei comigo mesmo: " mais baixo do que eu imaginava". Surpreendeu-me igualmente o tamanho do nariz, grande

    demais para o corpo pequeno; a testa larga contrastava com a quase ausncia do pescoo. Mas a voz, com o carregado sotaque nordestino, em nada me surpreendeu. Ao contrrio, era a voz que eu esperava ser a dele, a que melhor se ajustava ao aspecto fsico do nordestino atarracado.

    -Seu Silveira, finalmente c est o senhor. Demorou mas veio. Pois bem, seu Silveira, faa desta casa seu serpentrio.

  • Estirou-me mais uma vez a mo, que logo recolheu; e em seguida, num tom imperativo, me deu a primeira ordem:

    -Procure o senhor Carlos Lacerda, a no segundo andar. a senhor ficar s suas ordens, ele lhe dir o que fazer.

    E j sentado, novamente de lpis em punho: -E s, seu Silveira. V, seu Silveira. Temos muito trabalho! Muito trabalho!

    Sentado atrs da mesa entulhada de papis, Carlos Lacerda me explicou: -A partir de hoje voc funcionrio, ou seja, reprter, da Agncia Meridional, da qual

    sou diretor. de mim que voc receber ordens, mas no se limite a esperar por elas. Voc j deve ter algumas idias para reportagens. Sente ali na mquina e bote tudo no papel, faa uma lista de assuntos. Depois veremos.

    Eu tinha algumas idias, de forma que no custei em entregar a Carlos as minhas sugestes. Ele foi lendo, fazia um ou outro comentrio, vez por outra resmungava:

    -Bom, muito bom. Mas esta aqui, no sei no... Talvez d galho. De qualquer maneira, meta os peitos. Tera-feira (estvamos na sexta) me traga a primeira reportagem. Suas matrias sero publicadas, aqui no Rio, na ltima pgina de O Jornal (capitnia dos Associados, com sede e mquinas ali mesmo, no casaro da Sacadura Cabral). Em So Paulo, saem no mesmo dia, quinta-feira, no Dirio de S. Paulo e tambm na ltima pgina do jornal.

    Despedimo-nos amveis, risonhos -e fui luta.

    O substantivo (mais adjetivo que substantivo) "vbora", com que Virglio de MeIo Franco me havia apresentado a Chat, quando daquele nosso primeiro encontro, no me causou surpresas. Eu j sabia, porque o dr. Virgilio, como eu o chamava, j havia me contado mais de uma vez que era assim que Chateaubriand se referia a mim desde que havia lido uma reportagem que eu fizera sobre a gr-finagem paulista e que Diretrizes, o semanrio de Samuel Wainer, onde eu trabalhava, havia publicado numa de suas edies de maro ou abril de 1944. Vez por outra, ele, Chat, insistia com o amigo Virglio:

    -E a vbora, seu Virgilio, vem ou no vem? Traga-me a vbora, seu Virgilio. Preciso da vbora, seu Virgilio.

    E o dr. Virgilio dizia isto imitando com perfeio o modo de falar do poderoso chefe dos Dirios Associados. Eu ria, desconversava. De fato, como podia eu, que vinha trabalhando em Diretrizes desde quase sua fundao, abandon-Ia assim, de repente? E, mais ainda, afastar-me dos amigos que tinha l? Alm disso, ~odos ns, esquerdes e esquerdinhas, inocentes e inteis do Partido, centralizvamos na figura de Assis Chateaubriand o que a imprensa tinha de mais nefasto, de mais abominvel.

    Virglio de MeIo Franco no concordava: -No concordo. Chat um grande brasileiro e jornalista. E est no "nosso" lado. E acrescentava: -Mas j sabe. A hora que quiser, levo-o ao homem.

  • No tempo em que Diretrizes era apenas uma publicao mensal franzina e de

    poucos leitores, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), o rgo criado pelo Estado Novo de Getulio para controlar a imprensa, pouco se importava com ela. A partir de 1942, no entanto, Diretrizes deu um pulo e passou a semanrio de sucesso, o que foi possvel com a ajuda de empresrios "progressistas': aliciados por Maurcio G