A Missão Da Tecnologia

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A MISSÃO DA TECNOLOGIA Valdemar W. Setzer Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo www.ime.usp.br/~vwsetzer Original: 24/11/07; esta versão, ampliada: 2/10/14 1. Introdução Este artigo foi escrito para aqueles que se preocupam com o rumo que a tecnologia, como definida no item 3, há muito tempo está tomando, em sua grande parte: dominando e destruindo os seres humanos e a natureza. Essa dominação provém de um verdadeiro endeusamento da ciência e de sua filha, a tecnologia; um verdadeiro fanatismo por elas. Sou totalmente contra qualquer fanatismo, em particular o de se achar que tudo que é científico e tecnológico é ótimo. Obviamente, também sou contra o fanatismo oposto, o fundamentalismo religioso. Sou totalmente a favor da busca da compreensão dos fenômenos, e de ações nela baseadas, enriquecida pela intuição dos sentimentos (já que não podemos ter um conhecimento total de nada, a não ser na Matemática, mesmo assim com algumas restrições), e levando em conta as ações e experiências passadas. Nesse sentido, não tenho crença ou fé. Ou, levando em conta que muitas de minhas ações são A missão da tecnologia 1

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Artigo interessantíssimo de Valdemar Stetzer, professor da USP ( cíência da computação ) , no qual critica os excessos do nosso uso da tecnologia, entre outros temas.

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A MISSÃO DA TECNOLOGIA

Valdemar W. Setzer

Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo

www.ime.usp.br/~vwsetzer

Original: 24/11/07; esta versão, ampliada: 2/10/14

1. Introdução

Este artigo foi escrito para aqueles que se preocupam com o rumo que a

tecnologia, como definida no item 3, há muito tempo está tomando, em sua

grande parte: dominando e destruindo os seres humanos e a natureza. Essa

dominação provém de um verdadeiro endeusamento da ciência e de sua

filha, a tecnologia; um verdadeiro fanatismo por elas. Sou totalmente contra

qualquer fanatismo, em particular o de se achar que tudo que é científico e

tecnológico é ótimo. Obviamente, também sou contra o fanatismo oposto, o

fundamentalismo religioso. Sou totalmente a favor da busca da

compreensão dos fenômenos, e de ações nela baseadas, enriquecida pela

intuição dos sentimentos (já que não podemos ter um conhecimento total de

nada, a não ser na Matemática, mesmo assim com algumas restrições), e

levando em conta as ações e experiências passadas. Nesse sentido, não

tenho crença ou fé. Ou, levando em conta que muitas de minhas ações são

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ditadas pelo meu inconsciente – como o impulso de reescrever este artigo –,

procuro não as ter. Note-se que falei de ações baseadas não só em

compreensão, de modo que não me considero um puro racionalista.

Apesar de quase todos os cientistas serem contra o fanatismo religioso, é

preciso reconhecer que o fanatismo pela ciência e pela tecnologia é que está

destruindo o ser humano e a natureza. O fanatismo religioso só destrói

alguns indivíduos, sendo portanto razoavelmente limitado. A poluição

atmosférica e talvez uma de suas consequências, o aquecimento global, a

poluição dos alimentos, a medicação descontrolada, o desastre ecológico e

humano que se avizinha devido à modificação genética de plantas e animais

(criando seres vivos que jamais existiram), o condicionamento pela TV e

pelos video games, e muitos outros fenômenos, são amostras da

mencionada destruição.

Preciso colocar logo de início que não sou contra a tecnologia; não sou,

portanto, um neoluddita. (Luddites eram pessoas que, entre 1811 e 1816,

eram contra a mecanização das indústrias na Inglaterra e formavam bandos

para quebrar máquinas; eles diziam que seguiam uma figura simbólica, o

"rei" Ned Lud.) De fato, formei-me em engenharia eletrônica (ITA, 1963) e

minha vida profissional foi baseada na tecnologia (Ciência da Computação).

Estou usando um computador para compor este texto – mas isso é uma

necessidade, já que pretendo colocar este artigo em meu site.Sou

radioamador classe A (PY2EH – infelizmente inativo, pois a Internet quase

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acabou com o radioamadorismo), mas para isso não havia necessidade

nenhuma.

Certamente parecerá a muitos estranho que a tecnologia possa ter uma

missão, pois aparentemente ela é neutra. Em geral crê-se que os benefícios

ou malefícios que ela produz dependem do seu uso. No item 3 mostro que,

ao contrário, a tecnologia não é neutra. Posso falar de uma missão da

tecnologia, tratada no item 4, devido à minha concepção de mundo, que

exponho no item 2. No item 5 caracterizo como se podem compreender os

aspectos do Mal e do Bem, para poder compreender o papel da tecnologia

em relação à liberdade humana. No item 6 mostro como a tecnologia está

sendo mal usada, para no item 7 abordar o que compreendo como sua

missão para a humanidade. No item 8 dou algumas diretrizes no sentido de

cada pessoa tomar uma atitude que considero positiva em relação à

tecnologia, para no item 9 colocar uma breve conclusão. Finalmente, o item

10 contém as referências bibliográficas.

No texto, não serão inseridos vínculos para páginas da Internet, para que o

leitor não tenha o impulso de interromper a leitura e desviar para outra

página, perdendo assim o fio da meada. Esses vínculos estão nas

referências, com o nome citado no texto.

2. Minha concepção de mundo

Há duas visões de mundo mutuamente exclusivas: o materialismo e o que

vou denominar de espiritualismo. Materialismo é a concepção de que só

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existem matéria e processos físicos no universo (processos químicos são

hoje em dia reduzidos a processos físicos). Muitos materialistas chamam

esses processos de “naturais”, não admitindo a existência de nenhum

processo “sobrenatural”, isto é, que não possa ser totalmente reduzido a

processos naturais. A grande maioria dos cientistas hoje em dia são

materialistas. Denomino de espiritualismo uma concepção de mundo que

admite que existem “substâncias” e processos e não físicos no universo,

eventualmente influenciando processos físicos. Denomino de espiritualismo

científico o espiritualismo que admite a existência de “substâncias” e

processos não físicos apenas como umahipótese de trabalho. Uso a

expressão “não físico” para indicar algo que existe fora do mundo físico, e

que não pode ser reduzido a fenômenos físicos. Estou ciente do problema de

definir algo por negação, mas é a maneira mais simples que encontrei para

expressar o que estou caracterizando.

Note-se a ênfase que dei à expressão “hipótese de trabalho”. Se alguém

acredita piamente que há processos não físicos não o considero um

espiritualista científico. Hipóteses devem sempre ser temporárias, sujeitas a

revisão. Além disso, deve-se sempre buscar a sua comprovação, devem ser

formuladas para se compreender algo e servir para se construir uma teoria

coerente. Já crenças em geral são permanentes, fixas, e não estão sujeitas

nem a compreensão e nem a comprovação, e não servem para se construir,

a partir delas, uma teoria coerente. Para mais detalhes sobre materialismo e

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espiritualismo, vejam-se meus artigos “Ciência, religião e espiritualidade” e

“Consequências do materialismo”; no primeiro denominei de

espiritualismo-crença aquele que se baseia, pelo menos em parte, em

crenças ou fé.

Um materialista e um espiritualista caracterizam-se por sua maneira de

pensar. Tipicamente, um materialista procura e usa somente alguma

explicação física para qualquer fenômeno. Já um espiritualista deve admitir a

existência de fatores não físicos que possam influenciar alguns fenômenos

físicos, principalmente os que envolvem os seres vivos.

Não é por uma pessoa ficar colocando a causa de alguns fenômenos em uma

entidade não física como a que se costuma chamar de Deus, que a considero

um espiritualista científico no sentido que acabei de dar. A razão disso é que

essa entidade e sua maneira de agir não podem ser observadas e

compreendidas, pois ela se tornou uma mera abstração. Assim, tipicamente,

esse tipo de pessoa, que em geral denomina a si própria de “religiosa”, não

procura compreender esses fenômenos, atribuindo como sua causa a

atuação do que chama de Deus. Uma das características dessa falta de

compreensão é a falta de uma explicação de como essa entidade,

claramente não física, poderia influenciar, por exemplo, as ações dos seres

vivos. No sentido que dei, todo espiritualista tem religiosidade, mas nem

toda pessoa religiosa é espiritualista científica. Pelo contrário, pela maneira

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de pensar, nota-se que muitos dos que se dizem “religiosos” são, no fundo,

materialistas.

Há muitas evidências que sugerem que a concepção de mundo espiritualista

é razoável. Não vou me alongar nesse aspecto e em muitos outros, pois

escrevi um artigo que aborda isso extensamente, “Por que sou

espiritualista”. Nele, exponho também minha teoria de como processos não

físicos podem agir sobre o mundo físico. Como se verá no item 4, é

justamente pelo fato de adotar a hipótese espiritualista que posso falar de

uma “missão” da tecnologia.

3. A tecnologia e sua não neutralidade

A palavra “tecnologia” deveria referir-se a “conhecimento da técnica”. O

Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI traz a definição “Conjunto de

conhecimentos, esp[ecialmente] princípios científicos, que se aplicam a um

determinado ramo de atividade.” Neste artigo, usarei o termo “tecnologia”

no sentido que se dá popularmente a ele em inglês, isto é, referindo-se a

qualquer artefato, especialmente instrumentos e máquinas.

Nenhuma tecnologia é neutra. De fato, tome-se na mão um martelo, e

veja-se qual a atitude interior que ele inspira: certamente, a de bater, às

vezes com violência, em alguma coisa, provavelmente um prego. Agora,

tome-se um travesseiro; a atitude que ele inspira certamente é de calma, de

aconchego, de descanso – a menos de crianças que gostam de fazer uma

divertida guerra de travesseiros, mas mesmo nesse caso a atitude induzida

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por ele não é de machucar outra pessoa com violência. Portanto, esses dois

artefatos induzem uma determinada atitude interior e certos sentimentos. O

filósofo Martin Heidegger escreveu “Assim, jamais vivenciaremos nossa

relação para com a essência da tecnologia, na medida em que nós

meramente concebermos e promovermos o tecnológico, aturarmo-lo ou

fugirmos dele. Mas somos entregues à tecnologia da pior maneira possível,

quando nós a encaramos como algo neutro; pois essa concepção, a qual

hoje em dia gostamos especialmente de prestar homenagem, torna-nos

totalmente cegos à essência da tecnologia.” [Heidegger 1954, minha

tradução]. Na verdade, é preciso reconhecer que nada no mundo é neutro

em relação ao ser humano, pois este incorpora todas as suas vivências. De

fato, o leitor não será exatamente o mesmo depois de ter lido este artigo,

comparando com o que era antes de tê-lo lido: terá entrado em contato com

algumas ideias novas, terá tido algumas reflexões, e tudo isso ficará

“gravado” para sempre, pelo menos em seu subconsciente. Certamente ele

não lembrará de tudo o que leu, mas se for hipnotizado, poderá repetir

muito do que terá esquecido.

Vou dar mais quatro exemplos da não-neutralidade da tecnologia, usando

meus alvos preferidos. Em primeiro lugar, examinemos a TV. Imagine-se o

que significa ter guardado no inconsciente ou no subconsciente todo o lixo

mental televisivo que foi assistido. Certamente isso deve ter alguma

influência na maneira de pensar, nos sentimentos e nas ações dos

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telespectadores (um jovem, ao entrar na universidade, já assistiu em média

pelo menos 20.000 horas de TV). É por isso que houve um casamento

perfeito entre a TV e a propaganda. Nunca se gastou tanto em propaganda

quanto depois do advento da TV, e esse é o veículo para o qual é canalizada

a maior parte dos recursos em publicidade. No Brasil, em 2010 66,2%, isto

é, 2/3 de todos os gastos com publicidade foram canalizados para a TV

[Mídia 2011, p. 51]. Poder-se-ia achar que esses gastos são canalizados

para ela pois é o veículo de comunicação mais difundido; de fato, está

presente em praticamente todos os lares brasileiros (a estimativa é de 98%

[idem, p. 60]), a tal ponto que não é possível fazer uma pesquisa usando

algum grupo de controle que não vê TV, pois ele quase não existe. Mas o

fato é que, se a propaganda pela TV não funcionasse, condicionando os

telespectadores a comprarem os produtos anunciados ou transmitidos, as

grandes empresas não gastariam as fábulas que gastam com propaganda

pela TV – afinal, não são idiotas para jogarem dinheiro fora. Para se ter uma

ideia da dimensão desses gastos, cito Susan Linn, que em seu excelente

livro Crianças do Consumo: a Infância Roubada, traz o dado de que em 2002

a rede McDonald’s gastou 510,5 milhões de dólares em propaganda somente

na TV americana [Linn 2006, p. 132]. A luta dos partidos políticos por um

minuto extra de propaganda política na TV também é uma demonstração do

poder de condicionamento que ela tem, conforme exponho em meu artigo

“Um minuto a mais na TV”. Um outro caso interessante é o relatado por

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Hancox [2004] e colaboradores, que fizeram uma pesquisa longitudinal

seguindo os sujeitos da pesquisa desde a idade infantil até 21 anos. Eles

verificaram que, na Nova Zelândia, apesar de a propaganda de cigarros pela

TV ter sido proibida em 1963, adultos de 21 anos que, quando crianças,

viram muita TV, tinham 17% mais chance de serem fumantes na idade

jovem adulta, devido simplesmente a terem assistido programas em que

pessoas apareciam fumando, como em entrevistas ou filmes [Hancox 2004].

(Ver detalhes desse e outros estudos aqui citados, em meu artigo “Os efeitos

negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.)

Esses dois casos demonstram que a TV condiciona e, portanto, não é de

modo algum um veículo de comunicação neutro.

Se a TV não é neutra, imagine-se então um video game. Nesse caso, o

condicionamento não é só pela imagem, mas também pela ação. Por

exemplo, já está mais do que provado que jogos eletrônicos violentos

induzem atitudes agressivas a curto, médio e longo prazo, e

dessensibilização social, isto é, diminuição da empatia (ver, por exemplo,

[Anderson 2000, Bushman 2009]). Um outro caso de não-neutralidade de

uma máquina é o caso do computador. Há várias pesquisas mostrando que,

quanto mais uma criança ou adolescente usa um computador, seja em casa

como na escola, pior seu rendimento escolar (ver citações dessas pesquisas

em meu artigo “Considerações sobre o projeto um laptop por criança”).

Popularmente, justifica-se esse fato considerando-se que a criança ou jovem

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acabam perdendo muito tempo usando o computador, em lugar de estudar

ou mesmo fazer seus deveres escolares. Obviamente isso é um fato, mas eu

também dou importância essencial à influência do computador na maneira

de pensar, prejudicando o pensamento criativo amplo, pois ele força um

raciocínio matemático, lógico simbólico. Crianças não devem exercer esse

tipo de pensamento, que vai contra o seu pensamento não formal, flexível,

intuitivo e diretamente ligado com a realidade ou a fantasia.

O impacto negativo dos computadores atingiu níveis extraordinários com o

uso da Internet, especialmente com o advento dos smartphones e tablets.

Com eles, pode-se fazer acesso à Internet a qualquer momento em qualquer

lugar, o que acaba provocando sérios distúrbios, desde físicos até

psicológicos, inclusive dependência [Young 2011]. Adultos não estão se

controlando, usando a Internet exageradamente e para finalidades idiotas,

imagine-se o que acontece então com crianças e adolescentes, que estão

ainda desenvolvendo seu autocontrole!

Finalmente, um último exemplo de não-neutralidade da tecnologia: os

transgênicos, que também considerarei aqui como artefatos, pois não

existem originalmente na natureza. Já está provado que vários deles

provocam problemas, por exemplo o fato de que bactérias são usadas na

transposição de genes e com isso quebra-se a barreira genética entre

espécies diferentes, como documentado por Jeffrey Smith em seu excelente

livro [Smith 2007, pp. 123 ff.]. Em uma palestra sua que assisti em outubro

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de 2007, ele afirmou que considerava os alimentos geneticamente

modificados como um desastre ecológico muito maior do que o aquecimento

global e o lixo nuclear.

4. A questão da “missão” – determinismo e acaso

Como coloquei no item 2, não tenho (ou, como já disse, procuro não ter)

crenças. Uma das primeiras crenças que não tenho é no acaso. Uma de

minhas hipóteses fundamentais é de que existe uma causa para qualquer

fenômeno. Consigo fazer essa hipótese devido à minha concepção

espiritualista de mundo: algumas causas podem não ser físicas. Por

exemplo, tome-se a simetria das orelhas de uma pessoa. Se a forma das

orelhas de uma pessoa for comparada com as de outra, a diferença em geral

é muito grande; relativamente a essa diferença, em geral a que existe entre

as duas orelhas de uma mesma pessoa é insignificante. Acontece que as

orelhas crescem continuamente. Como é que elas preservam a sua grande

simetria? Não é possível imaginar que uma célula de uma orelha, ao se

subdividir para promover o crescimento do tecido onde ela se encontra,

“comunique” fisicamente à célula correspondente na outra orelha que ela vai

subdividir-se, e em que direção, de modo que esta também se subdivida e

posicione as suas duas células resultantes na posição simétrica das

produzidas pela primeira. Sem admitir-se essa comunicação, resta a

explicação física de que o crescimento é aleatório, regulado por uma

misteriosa “programação”, quem sabe existente no código genético: o

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ambiente de uma célula faz com que o “programa” seja executado de uma

maneira diferente dependendo da localização da mesma. Mas nesse caso é

necessário supor que o ambiente é o mesmo na vizinhança das duas células

simétricas antes da subdivisão. Se o código genético é o mesmo, como é

produzida uma simetria? Além disso, haverá necessariamente uma certa

aleatoriedade, pois o momento da subdivisão pode variar entre as duas

células correspondentes e o ambiente delas obviamente não é exatamente o

mesmo; provavelmente nem mesmo existe a simetria perfeita no nível

celular. No entanto, observando-se as orelhas de uma pessoa, a simetria

parece ser grande demais para que haja um acaso no crescimento dos

tecidos; qualquer aleatoriedade quebraria pelo menos um pouco da simetria

(o que seria facilmente perceptível) e isso se propagaria posteriormente,

causando mais quebras da simetria, o que obviamente não ocorre. Uma

outra hipótese é que existe um modelo regulando o crescimento das orelhas.

Só que esse modelo obviamente não pode ser físico, senão teríamos que

andar com moldes encaixados nas orelhas; pior, esses moldes deveriam ser

dinâmicos, frequentemente modificados, à medida que as orelhas fossem

crescendo. Portanto, os modelos simétricos das orelhas, que controlam seu

crescimento até o nível das células, talvez das moléculas e átomos, são

modelos mentais, ideias.

Não se deve estranhar a existência de modelos que são ideias: por exemplo,

ao projetar uma casa um arquiteto tem a ideia da mesma em sua mente,

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antes de representá-la fisicamente num papel e de concretizá-la na

construção. Todos os entes matemáticos são ideias, como por exemplo a de

uma circunferência perfeita (que nunca ninguém viu, o que se vê em objetos

com forma de círculo são representações aproximadas dessa ideia).

Justamente por eu admitir a concepção espiritualista de mundo posso fazer

a hipótese da existência de modelos mentais para as nossas orelhas: as

ideias, os modelos mentais, existem em um mundo platônico, não físico, das

ideias. Para muito mais detalhes, inclusive com fotos de plantas e

borboletas, mostrando formas e simetrias, veja-se o meu artigo “Por que

sou espiritualista” onde, como já citei, exponho uma teoria de como esses

modelos mentais podem atuar no mundo físico, por exemplo determinando o

momento e a direção de uma subdivisão celular. Note-se que não há

problema algum em se supor que um modelo mental seja dinâmico, isto é,

no caso das orelhas, ele vai modificando-se conforme o crescimento delas.

Por exemplo, em um bebê as orelhas ainda não têm precisamente a forma,

em miniatura, que adquirirão na idade adulta. Aliás, todo bebê tem formas

quase universais, em geral tendendo para a esfericidade – por isso cada

pessoa da família próxima pode dizer que o bebê é parecido com ela... O

que citei para as orelhas vale obviamente para todos os órgãos simétricos,

como as mãos, pés, sobrancelhas etc.

O conhecido biólogo Richard Lewontin, em seu livro The Triple Helix, mostra

com grande ênfase que os genes e o ambiente não são suficientes para

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prever o crescimento de seres vivos e a sua forma. Ele considera que deve

existir um terceiro fator (daí a “tripla hélice”), que ele denomina “noisy

development”, desenvolvimento com ruído, ou aleatório [Lewontin 2000, p.

36]. Na minha concepção, não se trata de um processo aleatório de

desenvolvimento, e sim a conformação de um organismo vivo a um modelo

não físico.

Observe-se a ênfase que dou para a simetria nos seres vivos como uma

forte indicação da existência, neles, de processos não físicos. Note-se que

não se deve confundir acaso com imprecisão em medidas, pois estas são

resultado da própria imprecisão dos aparelhos ou a influência destes sobre

os fenômenos que medem, o que é claro nos níveis molecular e atômico

(daí, em parte, a Mecânica Quântica, sobre a qual discorro no artigo “Por

que sou espiritualista”). Um materialista deve necessariamente fazer a

hipótese de existência do acaso, pois não pode admitir a existência de um

mundo platônico das ideias influenciando o mundo físico. De fato, o acaso é

extensamente usado nos raciocínios científicos, desde a teoria da evolução

neodarwinista (mutações e encontros casuais, estes últimos levando à

seleção natural) até as teorias atômicas e cosmogônicas. Assim, o que

aparentemente é uma aleatoriedade no mundo físico, pode deixar de sê-lo

ao se admitir a influência de um mundo não físico. A atuação de modelos

não físicos não torna o aparente não determinismo físico em um

determinismo, pois esse conceito não existe no mundo não físico, onde tudo

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é dinâmico, eventualmente dentro de certos limites. Essa é uma dificuldade

de Jacques Monod em seu livro [Monod 1972], pois ele, sendo materialista,

não consegue admitir a hipótese do mundo não físico: “Puro acaso,

totalmente livre e cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução:

este conceito central da biologia moderna não é mais uma dentre hipóteses

possíveis ou mesmo imagináveis. Hoje em dia é a única hipótese concebível,

a única que se ajusta a fatos observados e testados” (pp. 112-113 da edição

em inglês, minha tradução). Curiosamente, apesar de seu pensamento ser

materialista, pois quer reduzir todo o fenômeno biológico a uma “filosofia

natural”, em seu livro ele fala de Deus, afirmando que a admissão dessa

entidade deve ter finalidades puramente morais. Em meus artigos e livros,

eu não apelo para essa entidade que, como visto no item 2, tornou-se uma

mera abstração.

Pois bem, como fui radical e escrevi no início deste item que não admito a

hipótese da existência do acaso, a existência da tecnologia também não

deve ser um acaso. (Eu poderia ter sido um pouco mais politicamente

correto e ter admitido a existência do acaso em casos particulares, como já

fiz alhures em relação à evolução neodarwinista, mas em minha velhice já

não me importo tanto em ser politicamente correto...) Vejamos qual poderia

ser sua razão de ser, isto é, sua missão para a humanidade, também de um

ponto de vista espiritualista. Mas antes disso é necessário discorrer sobre a

livre arbítrio e o que é necessário para que ele exista.

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5. Livre arbítrio – mal e bem

Um materialista não pode falar em livre arbítrio, pois para ele só existem

matéria e energia físicas no universo. Estas só podem estar sujeitas às

assim denominadas “leis físicas”. Não vou entrar aqui na discussão se

existem ou não leis físicas; se houver dúvida quanto a isso, poder-se-ia

considerar “condições e forças físicas” em lugar das “leis”. Essas “leis” são

inexoráveis: sempre se aplicam, caso contrário não haveria as engenharias

civil, mecânica, elétrica etc. Para mim, um materialista que fala em livre

arbítrio do ser humano – e suas consequências, como a responsabilidade, a

moral e o altruísmo consciente – não é uma pessoa coerente. Um antigo

raciocínio é o seguinte: se existem apenas forças físicas, certamente um

átomo não pode ser livre. Portanto, um grupo de átomos, formando uma

molécula, não pode ser livre. Idem para um grupo de moléculas, formando

uma célula. O mesmo para um grupo de células formado um tecido, o

mesmo para um grupo de tecidos formando um órgão, e portanto um grupo

de órgãos formando um ser humano também não pode ser livre.

De onde, então, adviria o livre arbítrio do ser humano? Impossível que ele

venha da matéria. Para um espiritualista, não há absolutamente nenhum

problema em admitir a hipótese de que o ser humano pode ter livre arbítrio,

pois ele parte da hipótese da existência de fenômenos não físicos, e estes

obviamente não estão sujeitos às “leis” físicas. No meu artigo já citado, “Por

que sou espiritualista”, mostro como, sem infringir as “leis” físicas, o ser

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humano pode ter livre arbítrio, e dou até exercícios (mentais) para que cada

um observe que pode ter liberdade em seu pensamento. Isso dá confiança

na admissão da hipótese de haver livre arbítrio e, portanto, da existência de

uma parte não física ligada a qualquer ser humano, isto é, interagindo com

seu corpo físico. Do ponto de vista humano, só pode haver livre arbítrio se

houver possibilidade de se escolher conscientemente, em cada momento,

uma dentre pelo menos duas possíveis ações, inclusive mentais, como o

controle do pensamento.

Digamos que, em uma dada situação, há duas ações que podem ser

executadas, uma “boa”, e outra “má”. Por exemplo, uma que seja benéfica

ao meio ambiente e à própria pessoa, como ir à pé até o supermercado

próximo, em lugar de uma ação maléfica como ir de automóvel (supondo,

por absurdo neste Brasil miserável, que se indo a pé tenha-se menos perigo

de assalto do que ir de automóvel), já que isso iria produzir poluição, iria

isolar a pessoa de seu meio ambiente, iria signifcar uma quase total

ausência de exercíco físico, iria forçar a absorção de uma avalanche de

imagens, produzir nervosismo no trânsito etc. Estou ignorando aqui o caso

particular de a pessoa ter muita pressa e ter que cortar o tempo gasto

usando um automóvel. Podemos dizer que a pessoa, escolhendo ir a pé, faz

assim um “bem”, em lugar de fazer um “mal”.

É justamente a possibilidade de fazer algo “bom” ou algo “mau” que dá ao

ser humano o livre arbítrio. Se só pudéssemos fazer o bem, não teríamos a

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possibilidade de decidir. Estaríamos em um estado correspondendo à

magnífica imagem bíblica do Paraíso: não teríamos autoconsciência e nem

liberdade. A “expulsão do Paraíso” pode ser interpretada como uma imagem

para a “queda” do ser humano na matéria. Note-se a fantástica imagem:

Adão e Eva, representando a humanidade, comem do fruto da “árvore do

conhecimento do bem e do mal” [Gen 2:17, 3:6], e logo depois disso

adquirem autoconsciência, “Então foram abertos os olhos de ambos e

conheceram que estavam nus” [3:7]. Note-se que uma criança pequena não

tem ainda a autoconsciência desenvolvida, e não percebe que está nua. A

propósito, se antes desse ato Adão e Eva não tinham autoconsciência, não

tinham “conhecimento”, não poderiam ter cedido a uma “tentação” e

cometido um “pecado”, pois não tinham possibilidade de escolher e de errar.

Assim, parece-me que a expressão Pecado Original, introduzida por Santo

Agostinho, está totalmente mal colocada. Note-se que em alemão a

expressão é Erbsünde, isto é, “Pecado Herdado”, o que tem um pouco mais

de cabimento, pois pelo menos a “herança” faz sentido: uma vez “caída” na

matéria, a humanidade permanece nela por hereditariedade. É precisamente

essa “queda” na matéria, e a consequente aquisição de autoconsciência, de

individualidade, que faz o ser humano, que antes estava apenas no mundo

não físico, poder cometer erros e portanto poder ter livre arbítrio.

Portanto, a existência de forças não físicas do bem e do mal (uma parte

destas últimas representada pelo interessante símbolo bíblico da serpente no

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Paraíso), algo que para o materialismo não faz nenhum sentido, é que

permite ao ser humano poder ter livre arbítrio. Porém, é importante notar

que a influência do mal acaba gerando vários bens essenciais: além da

possibilidade de liberdade, também a autoconsciência e a individualidade.

Isso lembra a famosa frase de Mefistófeles na cena do escritório

(Studierzimmer) na Parte I do Fausto de Goethe, respondendo à pergunta

de Fausto, sobre quem ele era: “Ein Teil von jener Kraft, die stets das Böse

will und stets das Gute Schafft” [Goethe, p. 172], isto é, “Uma parte daquela

força, que sempre quer o mal e sempre cria o bem” (minha tradução literal).

Os Maniqueus tinham um dito que mostra qual deveria se nossa atitude

frente ao mal: “Ame bem o mal”, isto é, o mal deve ser redimido,

transformado em bem, e não eliminado [Haub 1996, p. 31]. Nesse sentido,

uma maneira interessante de encarar o mal é como se fosse um bem

deslocado, no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma volta ao passado

(como querem quaisquer fundamentalistas religiosos) é um mal, mas

também o é um adiantamento indevido do futuro (como, por exemplo,

dar-se liberdade exagerada antes de a humanidade estar preparada para

isso; parece-me que a Internet é um desses casos). De qualquer modo,

devemos ser gratos ao mal, pois se ele não existisse, ainda estaríamos no

estado do “Paraíso”, ou como dizia o Dr. Rudolf Lanz, “Estaríamos no Céu,

vestidos de bata cor-de-rosa tocando lira, que monotonia!”.

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Note-se que os animais e as plantas obviamente não têm uma

individualidade que transcende sua hereditariedade e as influências do meio

ambiente, pois não têm nem autoconsciência nem aquilo que cada ser

humano tem e que chamarei, sem discorrer sobre isso, pois fugiria ao

escopo deste artigo, uma “individualidade superior”. Esta é uma

individualidade que transcende a corpórea, a de sentimentos, da memória

etc. É devido a ela, por exemplo, que gêmeos univitelinos criados no mesmo

ambiente em geral têm ideais diferentes e tomam rumos totalmente

diferentes em sua vida. É interessante notar que a ciência materialista reduz

a individualidade do ser humano à hereditariedade e à influência do meio

ambiente, isto é, não é capaz de considerar que o ser humano tem algo

essencialmente diferente dos animais. Considerando-se o ser humano como

um animal, não se deveria falar, em relação a ele, de livre arbítrio,

responsabilidade e moral, que os animais obviamente não têm. A propósito,

note-se a ênfase que está se dando, principalmente nos meios científicos, à

influência genética, muitas vezes desprezando o meio ambiente, desde o de

uma célula até o externo ao ser vivo. A respeito disso, veja-se meu artigo

“Desmistificação da onda do DNA”.

O leitor deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com a

tecnologia. Vamos chegando lá.

6. O uso da tecnologia

A missão da tecnologia 20 

Page 21: A Missão Da Tecnologia

Como mostrei no item 3, a tecnologia não é neutra. Portanto, seu uso

deveria ser feito com extremo cuidado, o que implica um uso consciente.

Mas, em geral, esse não é absolutamente o caso. Estamos em uma era em

que, como citei logo no início deste artigo, está havendo um verdadeiro

endeusamento da tecnologia. Em geral, pensa-se que tudo o que é

tecnológico é bom. Isso é devido ao fato de a tecnologia ser uma aplicação

direta da ciência, e ambas terem tido desde o século passado resultados

fenomenais em termos de conhecimento e domínio sobre a natureza.

Acontece que, quanto maior o conhecimento e o domínio sobre a natureza,

mais mal pode ser feito com eles.

A ciência nasceu com a separação do ser humano em relação à natureza.

Sem uma grande capacidade de abstração em relação à realidade, não há

curiosidade em compreendê-la. Por exemplo, a perspectiva linear consciente

apareceu somente no início do século XV [Zajonc 1993, p. 58], época que

marca não só o surgimento da Renascença, mas dos descobrimentos e do

desenvolvimento científico – uma verdadeira descontinuidade no

desenvolvimento da capacidade mental e no sentimento de individualidade

do ser humano. Antes disso, uma estrada reta era representada por linhas

paralelas, pois na realidade as suas margens não se encontram. É preciso

fazer uma grande abstração em relação à realidade para representar o que é

percebido com a visão, isto é, as duas margens da estrada convergindo para

o ponto de fuga. Antes dessa época, não ocorria uma individualidade como

A missão da tecnologia 21 

Page 22: A Missão Da Tecnologia

por exemplo a de Hamlet, com seus destino e problemas únicos; em geral,

não se sabia quem era o particular pintor de uma obra produzida em uma

oficina e muitos outros casos. Aquela curiosidade é a fonte primordial do

impulso de se fazer ciência. E a tecnologia visava trazer um bem. Hoje em

dia, isso mudou completamente. Obviamente, alguns idealistas ainda fazem

ciência movidos pela sede de conhecer algo ou para transmitirem seu

conhecimento a seus alunos e para o público. Mas a maioria dos cientistas

faz ciência em busca de prestígio ou de uma atividade em que não se sintam

tolhidos pelas imposições de uma empresa. Ultimamente, vários cientistas

almejam desenvolver algo que possa ser produzido e vendido no mercado e,

assim, abrir uma empresa própria. Por outro lado, muita ciência é feita por

encomenda de empresas, ou por equipes delas próprias, visando unicamente

o lucro. Por exemplo, o aparecimento de plantas transgênicas deu-se

precisamente nesse paradigma. Um outro caso é citado no livro de Susan

Linn mencionado no item 3: ela conta que nos EUA empresas de propaganda

fazem mais pesquisa em psicologia aplicada do que universidades e

institutos de pesquisa, visando desenvolver técnicas para convencer

crianças, adolescentes e adultos a comprarem o que é anunciado [Linn, p.

46]. A propósito, caracterizo a propaganda como a arte, a ciência e a técnica

de influenciar pessoas a fazerem aquilo que não fariam sem essa influência.

É isso, por exemplo, que leva as pessoas a comprarem o que não

A missão da tecnologia 22 

Page 23: A Missão Da Tecnologia

necessitam, o que é mais caro ou de qualidade inferior; isso é feito por meio

de condicionamentos, isto é, de diminuição da liberdade individual.

Portanto, boa parte da ciência e quase a totalidade da tecnologia visam hoje

em dia satisfazer ambições e egoísmos. Acontece que ambos são

antissociais. O que estamos vendo como resultado desses impulsos é a

destruição do ser humano e da natureza. A destruição desta é visível, mas

em muitos casos a destruição do ser humano é subreptícia, por exemplo

quando a constituição psicológica é atacada, como discorri para o caso dos

meios eletrônicos no item 3. Infelizmente, parece-me que a quase totalidade

da humanidade não está consciente dos problemas da tecnologia ou, se

está, sente-se impotente diante dela, acabando assim por usá-la ou, ainda,

usa-a por inércia ou comodismo, não querendo pensar sobre os malefícios

que ela traz. Uma das consciências fundamentais que, parece-me, a

humanidade deveria ter em relação à tecnologia é a sua missão.

7. A missão da tecnologia

Como coloquei no item 4, a tecnologia não deve existir por acaso, e deve ter

uma finalidade, uma missão para a humanidade. Como vimos no item 5,

uma de minhas hipóteses fundamentais, com fortes indícios de ser

verdadeira, é a de que o ser humano pode ter livre arbítrio. Para mim, a

missão da tecnologia é de dar liberdade ao ser humano, livrando-o de forças

e capacidades restritivas internas ou externas a ele.

A missão da tecnologia 23 

Page 24: A Missão Da Tecnologia

Por exemplo, o avião é uma tecnologia que dá liberdade a uma pessoa de se

deslocar rapidamente a grandes distâncias, suplantando assim as limitações

de sua velocidade de andar ou correr, mesmo fazendo-o a cavalo. O telefone

permite a comunicação verbal entre pessoas distantes entre si. Um edifício

dá a pessoas a liberdade de se abrigarem e de se reunirem, mesmo se lá

fora estiver chovendo ou fazendo muito frio. No entanto, em geral a

tecnologia está funcionando justamente às avessas dessa missão: em lugar

de libertar o ser humano de forças internas ou externas a ele, ela o está

aprisionando. Muitas vezes algumas vantagens que ela fornece é

acompanhada de muito mais desvantagens. Assim, o automóvel deu uma

tremenda liberdade de locomoção a médias e mesmo longa distâncias. No

entanto, permitiu que pessoas morassem longe de seu local de trabalho ou

de estudo, perdendo muito tempo no trajeto, com consequências

psicológicas nefastas; permitiu o inchaço das cidades, transformadas mais

em vias de trânsito do que em moradias e vielas agradáveis para se ir a pé

de um lugar para outro; permitiu que não houvesse transporte coletivo

suficiente, com menos desvantagens do que os automóveis. O resultado

pode ser visto em São Paulo: uma cidade sufocada pelo trânsito, tanto do

ponto de vista da qualidade do ar quanto do aspecto psicológico dos

motoristas e passageiros, obrigados a enfrentar diariamente o nervosismo

advindo de um trânsito literalmente infernal (estastística no site do DETRAN

A missão da tecnologia 24 

Page 25: A Missão Da Tecnologia

diz que em 12/2013 foram lacrados 33.494 veículos na cidade de São

Paulo).

Quantas pessoas tornaram-se prisioneiras da Internet, essa rede eletrônica

que envolveu uma boa parte da humanidade? Por exemplo, eu próprio sou

obrigado a consultar minha caixa postal de e-mails a cada dia, pois senão

ocorrem duas coisas: acumulam-se correspondências em demasia, e

pessoas que me escreveram começam a achar que eu as desprezei pois não

lhes respondi imediatamente. Sugiro ao leitor, que certamente usa a

Internet, examinar-se a si próprio e verificar quantos dias é capaz de ficar

sem usá-la. Se não for mais do que um ou dois dias, isso já caracteriza uma

dependência; o número de dependentes da Internet, desses que ficam horas

seguidas usando-a todos os dias, é enorme, principalmente entre

adolescentes. Uma pesquisa de 2006 mostrou que 12,5% dos americanos

são dependentes da Internet; estudos com estudantes universitários

resultaram em uma estimativa de 10 a 14% desses dependentes [Young, p.

20]. A rede eletrônica realmente capturou uma boa parte da humanidade!

8. O que fazer?

8.1 Em primeiro lugar, deve haver uma conscientização do que é cada

tecnologia. Isso significa compreender o funcionamento, pelo menos básico,

de cada instrumento e máquina, e os efeitos que eles produzem nos seus

usuários. Infelizmente, como as máquinas estão cada vez mais complexas,

por exemplo com a incorporação de pastilhas com circuitos eletrônicos

A missão da tecnologia 25 

Page 26: A Missão Da Tecnologia

(chips), seu funcionamento está tornando-se cada vez mais incompreensível.

Um exemplo disso é o automóvel: antes da injeção eletrônica, um mecânico

eletricista e mesmo um usuário comum podia compreender perfeitamente

todo o funcionamento do motor e das outras partes de um carro. Com a

incorporação de pastilhas eletrônicas, algumas verdadeiros computadores, o

funcionamento ficou incompreensível. Além disso, um defeito em uma

dessas pastilhas obriga a troca da mesma; antes, muitas peças, mesmo as

elétricas, podiam ser feitas numa oficina para substituir uma quebrada. A

velha imagem de um marciano vindo à Terra e desmontando uma máquina

para compreendê-la já não vale mais: é impossível desmontar uma pastilha

eletrônica para verificar como é seu circuito e descobrir seu funcionamento,

pois isso a destruiria. A “caixa preta” tornou-se inviolável. Parece-me

também impossível tentar descobrir como ela funciona simplesmente

introduzindo nela impulsos elétricos em alguns contatos e medindo o que sai

em outros, devido à complexidade do seu funcionamento lógico.

No entanto, muitas máquinas, pelo menos em seu funcionamento básico,

podem ser compreendidas; essa compreensão deveria ser uma das tarefas

mais importantes do ensino secundário, por meio de disciplinas de

“laboratório de tecnologia”. Foi com essa intenção que elaborei um currículo

de introdução de computadores nesse ensino (ver meu artigo

“Computadores na Educação: por que, quando e como” [Setzer 2005, p. 85,

ou na Internet]. Infelizmente, não há em geral consciência dessa

A missão da tecnologia 26 

Page 27: A Missão Da Tecnologia

necessidade, a menos dos ensinos médios Waldorf, pois o fundador dessa

pedagogia, Rudolf Steiner, já para a primeira escola Waldorf, fundada em

Stuttgart em 1919, recomendou a introdução dessa disciplina, que desde

então faz parte do currículo Waldorf no mundo todo [Stockmeyer 1965, Vol.

II, p. 278, Bideau 1951, p. 149].

A constatação da falta, em geral, de conhecimento básico sobre as máquinas

é muito simples. Por exemplo, será que o leitor destas linhas sabe por que

um avião voa e não cai? Os dois efeitos que levam à sustentação (inclinação

da asa e diferença de velocidade do ar acima e abaixo dela; esse último

efeito pode ser demonstrado facilmente, soprando-se abaixo e acima de

uma folha de papel leve) são fáceis de serem compreendidos. Isso me leva a

uma consideração que considero importante. Quantas pessoas veem um

avião voando, não sabem por que ele se sustenta no ar, e não têm a

curiosidade de investigar ou aprender por que isso acontece?

Provavelmente, devem achar que a explicação deve ser difícil demais, ou

então nem chegam a formular a pergunta a si próprios. Para mim, isso é

uma indicação de uma verdadeira paralisia mental. O normal de um ser

humano, quando tem alguma representação mental devida a uma percepção

sensorial e não consegue associar a ela um conceito, é ficar irrequieto, em

busca dessa associação, dando-lhe a compreensão de causa e efeito de um

fenômeno. Por exemplo, suponhamos que, em um jardim sem nenhum

vento, uma pessoa vê um galho de uma moita mover-se. Ela imediatamente

A missão da tecnologia 27 

Page 28: A Missão Da Tecnologia

deve achar o caso muito estranho, e aproxima-se da moita para verificar a

causa do fenômeno. Ao dar alguns passos, um passarinho que estava

pousado no galho, mas escondido pelas folhas, alça voo. A pessoa

compreende então por que o galho havia se mexido, e fica intelectualmente

satisfeita. O aumento da complexidade das máquinas, e a ausência de

ensino no sentido de explicar o funcionamento básico das mesmas,

produzem aquela paralisia mental: as pessoas deixam de ser curiosas, de

investigar, e de fazer um esforço para compreender. Tornam-se, assim,

menos humanas.

Voltando à conscientização da tecnologia, citei como a segunda parte da

mesma a compreensão do efeito que ela produz em seus usuários.

Retornando aos meus alvos preferidos, isso significaria, no caso da TV,

compreender que ela coloca normalmente o telespectador em um estado de

sonolência, semi-hipnótico; daí a maioria de suas consequências funestas,

especialmente o condicionamento. No caso dos video games, especialmente

os de ação/reação, compreender que o usuário tem que desligar totalmente

seu pensamento consciente, e passar a agir automaticamente. Isso leva a

um profundo condicionamento das ações, principalmente em casos de

inconsciência, como stress, medo extremo, raiva, falta de sono etc. No caso

dos computadores, compreender o fato de eles forçarem o uso de uma

linguagem formal e um raciocínio lógico simbólico, algorítmico. No seu uso, é

necessário exercer um pensamento que pode ser transmitido à máquina e

A missão da tecnologia 28 

Page 29: A Missão Da Tecnologia

corretamente interpretado por esta, o que denomino de “Pensamento

Maquinal”. Para mais detalhes sobre esses e outros aspectos desses três

aparelhos, vejam-se meus artigos “Os meios eletrônicos e a educação:

televisão, jogo eletrônico e computador” (Setzer 2005, p. 15, e na Internet),

e outros nesse livro e em meu site, especialmente “Os efeitos negativos dos

meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.

Uma das consequências da paralisia mental citada acima é fazer com que o

usuário não se preocupe ou não se interesse pelo estado em que ele é

colocado pelas máquinas que usa.

8.2 Em segundo lugar, baseado no conhecimento do princípio básico de

funcionamento e do efeito que a tecnologia produz nos seus usuários,

dever-se-ia ter permanente consciência no seu uso, em particular com

relação ao que caracterizei como “missão da tecnologia” no item 7 acima.

Nesse último aspecto, isso significaria usar alguma máquina e

constantemente se fazer o questionamento se ela está cerceando a liberdade

pessoal ou está ajudando a se obter alguma liberdade. Um outro aspecto

fundamental é pesarem-se constantemente os benefícios e os malefícios

pessoais que advêm do uso de uma tecnologia.

8.3 Em terceiro lugar, é preciso usar as tecnologias não só com consciência

pessoal, mas também com consciência social e global. Isso significa avaliar

se o uso de alguma tecnologia beneficia ou prejudica outras pessoas e o

mundo em geral. Aqui cabe a consideração de uma tecnologia cercear ou

A missão da tecnologia 29 

Page 30: A Missão Da Tecnologia

não a liberdade dos outros. Porém, não é só a liberdade que deve ser levada

em conta, mas também a igualdade (direitos humanos) e a fraternidade, a

solidariedade. Sobre esses três aspectos, ver meu artigo “Liberdade,

igualdade e fraternidade: presente, passado e futuro”. Além disso, muito

importante é considerar-se se o uso de alguma tecnologia diminui ou não a

consciência das pessoas.

Em termos de consciência do impacto no mundo em geral, isso pode

significar mudanças de hábitos, por exemplo tomarem-se banhos os mais

curtos possíveis, para não se gastar a cada vez mais preciosa água em um

prazer dispensável. Chamo a atenção para o grau de consciência que se

deve ter no uso da tecnologia: nesse exemplo, quem sabe, de vez em

quando, em casos de uma grande necessidade de relaxamento, talvez valha

a pena prolongar um bom banho quente... O importante é que a escolha

seja consciente.

8.4 Em quarto lugar, deve-se conscientizar as pessoas para os malefícios e

benefícios da tecnologia. É o que tenho feito em grande parte com meus

artigos, livros, palestras e cursos. É o que fez maravilhosamente Susan Linn

em seu livro já citado, em relação ao consumismo induzido pela TV [Linn

2006]. No entanto, é impressionante ler nesse livro que a autora, apesar de

sua posição crítica em relação à TV, e como em geral é o caso de pessoas

que criticam esse meio, não tem a coragem de afirmar que não se deve ver

TV, a menos de casos excepcionais. Em minha experiência, esses casos

A missão da tecnologia 30 

Page 31: A Missão Da Tecnologia

quase nunca ocorrem: tenho uma TV, mas ao escrever estas linhas não

lembro a última vez que assisti algum programa; a propósito, não tive TV

em casa até minha filha menor tornar-se adulta. Por exemplo, Susan Linn

queixa-se de que a filha adolescente ficava sendo influenciada pela

propaganda televisiva; ora bolas, por que não tira a TV da sua casa ou

tranca-a para só destrancá-la quando, conscientemente, a família decidir

que vale a pena assistir um programa especial? Já Manfred Sptizer, em seu

extraordinário livro Vorsicht, Bildschirm! (“Cuidado, Tela!”) declarou que

tinha 5 filhos mas não tinha TV em casa, justamente devido às suas crianças

[Spitzer 2005, p. 250]. Já que citei esse autor, vale a pena citar seu

segundo livro, com uma quantidade imensa de citações de artigos científicos

citando os malefícios dos meios eletrônicos [Spitzer 2012]; o título

(Demência Digital) pode parecer bombástico, mas deve-se lembrar que o

autor é o diretor da clínica de psiquiatria da Universidade de Ulm, na

Alemanha.

8.5 A questão da coragem leva-me ao quinto ponto. Uma das consequências

que deduzo de meus conceitos em relação aos aparelhos eletrônicos e a

minha concepção do ser humano é o fato de aqueles prejudicarem a força de

vontade. De fato, não é preciso fazer nenhum esforço para ver TV ou jogar

um jogo eletrônico, talvez mesmo navegar pela Internet ou ler e-mails e

mensagens recebidas por ela. O grande esforço que deve ser feito é para

desligar os aparelhos. Assim, recomendo que se exercite interromper

A missão da tecnologia 31 

Page 32: A Missão Da Tecnologia

periodicamente o uso dessas e de quaisquer outras tecnologias, na medida

em que isso for possível (espero que algum leitor entusiasta pelas minhas

ideias – coisa rara, pois são em geral incômodas – não desligue o seu carro

no meio do trânsito!). A esse respeito, vejam-se as recomendações que dou

em meu artigo “O que a Internet está fazendo com nossas mentes”.

Parece-me também que se deveria exercitar consistente e conscientemente

a vontade, para contrabalançar o prejuízo que ela tem sofrido com a

tecnologia moderna, por exemplo no comodismo que ela muitas vezes

proporciona. Para isso, posso recomendar o exercício de se treinar mudança

de hábitos. Por exemplo, se a pessoa adora tomar um café quente de

manhã, deixar de fazê-lo de vez em quando; se adora tomar suco (espero

que seja pelo menos natural!) nas refeições, tomar água de vez em quando.

Se está acostumado a usar um relógio, deixar às vezes de fazê-lo. De vez

em quando, tentar escrever com a mão que não costuma usar para isso.

Esses exercícios têm um efeito muito grande de fortalecimento da vontade,

quando feitos com regularidade, e vão produzindo maior flexibilidade

mental. Isso é especialmente importante nas ações que se tornam

praticamente uma dependência, como o caso já citado de ficar alguns dias

sem usar a Internet (garanto por experiência própria, é o Paraíso!).

Uma das manifestações do prejuízo para a vontade é a impotência que

certamente muitas pessoas sentem face à tecnologia. A frase típica que

A missão da tecnologia 32 

Page 33: A Missão Da Tecnologia

mostra isso é “O que adianta eu tomar uma atitude? Que influência posso

ter sobre isso ou aquilo?” Isso me leva ao próximo ponto.

8.6 Em sexto lugar, recomendo ações afirmativas. Na palestra de Jeffrey

Smith, mencionada no fim do item 3, ele afirmou que, se 15% das pessoas

deixam de consumir algo, isso muda a produção das empresas envolvidas.

No caso, ele se referia aos alimentos transgênicos, mas certamente deve ser

o caso em relação a outros produtos, como por exemplo programas de TV,

McDonald’s etc. Infelizmente, o brasileiro não é em geral muito afeito a

protestos, confundindo tolerância com permissividade.

Há certas pessoas que dizem o seguinte: estamos realmente numa situação

crítica para a humanidade, mas esta vai evoluir naturalmente e acabará

suplantando os problemas atuais. Acontece que o ser humano não é um ser

puramente natural. Quando ele pintou as primeiras pinturas rupestres, já

não era totalmente natural, e se pode conjeturar que jamais tenha sido, o

que não apresenta problema algum para uma concepção de mundo

espiritualista. Se cada ser humano não é um ser puramente natural (como o

são, em grande parte, os animais e as plantas), a sociedade e a humanidade

também não o são. Assim, não se deve confiar que as coisas vão melhorar

naturalmente, por si só. Pelo contrário, tenho uma concepção de que a

tendência é sempre de piorar, pois se a humanidade melhorasse

automaticamente, bastaria cruzarmos os braços e esperar que ela melhore.

Ao contrário, se a tendência é piorar, somos chamados cada vez mais à

A missão da tecnologia 33 

Page 34: A Missão Da Tecnologia

consciência e à ação; precisamos nos desenvolver continuamente para

enfrentarmos um mundo cada vez mais miserável e lutarmos cada vez com

mais energia para melhorá-lo. Note-se que isso deve ser entendido de um

ponto de vista global. É óbvio que, em alguns aspectos, tem havido

melhoria. Mas o que adianta, por exemplo, melhorar o saneamento básico se

as pessoas estão se sentindo psicologicamente muito piores, aumentam os

casos de usos de drogas psicotrópicas e de álcool, aumentam os suicídios,

aumenta a separação de casais – uma amostra de que as pessoas têm cada

vez mais dificuldades de conviver e se relacionar socialmente? (A propósito,

quando eu era criança e adolescente, jamais havia ouvido falar em

psicólogos e terapeutas...)

Se o ser humano não é um ser puramente natural, não se deveria confiar

que ele naturalmente aprenderá a conviver com os males da tecnologia,

eventualmente aprendendo a colocá-la em seu devido lugar. Isso só será

conseguido por um grande esforço educacional e, na fase adulta, por

auto-educação. Para não passar uma imagem totalmente pessimista da

humanidade, vou colocar aqui que reconheço nela avanços fantásticos, como

os movimentos ecológico, da paz universal, dos direitos humanos e do

respeito aos deficientes.

8.7 Em sétimo lugar, recomendo o desenvolvimento de um espírito crítico

em relação à ciência como, aliás, exige a sua prática. Quantas vezes uma

pesquisa é justificada por meio de seus pretensos resultados futuros, muitas

A missão da tecnologia 34 

Page 35: A Missão Da Tecnologia

vezes bombásticos? Lembro-me muito bem da justificativa oficial de Neil

Armstrong ter pisado na Lua em 1969, algo como “Agora conheceremos a

origem do sistema solar”, o que obviamente não se confirmou. Ou da

justificativa do sequenciamento genético da Xilella Fastidiosa, publicado em

2000, o primeiro feito no Brasil: agora íamos descobrir como combater a

doença correspondente dos laranjais. Passados tantos anos, onde está esse

resultado? O livro citado de Jeffrey Smith documenta muito bem como

pesquisas científicas podem ser usadas parcialmente, de modo a mascarar

efeitos negativos de alguma tecnologia. Ele chama a atenção para o fato de

que, em geral, as pesquisas científicas necessárias para a aprovação de um

produto, tais como medicamentos e alimentos transgênicos, são feitas pelos

próprios produtores [pp. 193 ff.] e são relativamente curtas e parciais. O

que se pode esperar disso, levando-se em conta que, do ponto de vista

empresarial, o único motivo para a introdução de um novo produto é ganhar

dinheiro?

É muito importante considerar-se que a ciência jamais proporciona um

conhecimento total sobre algo, principalmente devido à extrema

especialização e reducionismo que a caracterizam. Nessas condições, é

impossível preverem-se todos os efeitos colaterais de qualquer produto. Isso

nos leva ao próximo ponto.

8.8 Em oitavo lugar, uma palavra sobre a liberdade de pesquisa. Sou

totalmente a favor de se dar total liberdade ao cientista de pesquisar o que

A missão da tecnologia 35 

Page 36: A Missão Da Tecnologia

bem entender. Mas uma coisa é a pesquisa, e outra é a produção de um

produto. Já que é impossível ter-se um conhecimento total sobre os efeitos

de algum produto, sempre haverá um fator de subjetividade no julgamento

de quanto ele é ou pode ser benéfico ou maléfico. Devido a essa

subjetividade, sou absolutamente contra a liberdade de se produzir seja lá o

que for. A sociedade é que deveria ter a última palavra sobre o interesse ou

não de um novo produto ser lançado. Isto é, esse lançamento deveria ir de

encontro a uma verdadeira necessidade, e não a necessidades criada pela

propaganda ou um modismo, como é comumente o caso. Note-se que me

referi ao controle pela sociedade, e não pelos governos. Essa necessidade é

absolutamente clara no Brasil, devido à corrupção que temos entre nós, mas

que não é nossa marca registrada: Jeffrey Smith cita que na Indonésia a

Monsanto corrompeu ou pagou ilegalmene 140 pessoas do governo para

aprovação do algodão transgênico [Smith 2007, p. 176]. No julgamento final

do interesse sobre um produto, os cientistas devem entrar exclusivamente

com seus dados objetivos sobre as vantagens e desvantagens do mesmo.

Devido aos fatores imponderáveis, numa decisão dessas um cientista só

deveria participar como cidadão comum, e não como o cientista que é.

Já que não se deve coibir ou direcionar a pesquisa científica, o importante é

conscientizar os cientistas da responsabilidade moral que têm em suas

pesquisas, de modo que cada um escolha, em liberdade, o que poderia

pesquisar para um real bem da humanidade. Lembro-me muito bem uma

A missão da tecnologia 36 

Page 37: A Missão Da Tecnologia

notícia que li nos EUA, provavelmente em 1970, em plena guerra do Vietnã,

do cientista que tinha descoberto, na universidade de Harvard, a bomba

Napalm usada extensivamente naquela guerra. Essa bomba, espirra material

incandescente (de 800 a 1.200 ºC) grudando na pele das pessoas atingidas,

infligindo dores lancinantes (em 1980 ela foi proibida pela ONU contra

populações civis). Ele afirmou que, se pudesse, inventava-a novamente!

Aqui esbarramos em um problema muito profundo: a educação universitária

científica ou técnica exclusivamente profissional, como é por exemplo feita

em nosso país, não proporciona a formação humanística, artística e social

necessárias para que o cientista ou o técnico desenvolvam uma sensibilidade

e preocupação para com a natureza e com os seres humanos. Nesse sentido,

há ainda um terrível fator: os meios acadêmicos e de pesquisa são em geral

materialistas e, portanto, sendo coerentes, não deveriam admitir a

responsabilidade humana e a moral, pois elas não podem decorrer da

matéria ou da energia físicas (ver o item 5 acima). Se não deveriam

admiti-las, como vão ensinar seus alunos, futuros cientistas e técnicos, a

serem socialmente responsáveis ou agirem moralmente?

9. Conclusão

A humanidade está em uma encruzilhada. A aceleração do desenvolvimento

tecnológico é brutal hoje em dia, produzida por certas forças que caracterizei

no item 5 como o mal. Em lugar de a tecnologia estar cumprindo sua

missão, que é a de libertar o ser humano das restrições impostas por suas

A missão da tecnologia 37 

Page 38: A Missão Da Tecnologia

forças e capacidades internas e das forças externas, ela o está aprisionando

e influenciando cada vez mais, chegando a ameaçar a sua existência. A

única maneira de se mudar esse estado de coisas, redimindo aquele mal, é

adquirir uma consciência do que a tecnologia significa, e de seu impacto em

cada ser humano e na natureza, passando-se a tomar atitudes para

colocá-la em seu devido lugar. A alternativa é o desastre total, tanto físico

como psicológico.

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–– Considerações sobre o projeto “Um laptop por

criança”.www.ime.usp.br/~vwsetzer/um-laptop-por-crianca.html

-- Consequências do materialismo.

www.ime.usp.br/~vwsetzer/conseqs-materialismo.html

–– Desmistificação da onda do DNA. www.ime.usp.br/~vwsetzer/DNA.html

–– Liberdade, igualdade e fraternidade: presente, passado e

futuro.www.ime.usp.br/~vwsetzer/liberdade-igualdade-fraternidade.html

–– O que a Internet está fazendo com nossas

mentes?www.ime.usp.br/~vwsetzer/internet-mentes.html

–– Os efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e

adultos.www.ime.usp.br/~vwsetzer/efeitos-negativos-meios.html

–– Os meios eletrônicos e a educação: televisão, jogo eletrônico e

computador.www.ime.usp.br/~vwsetzer/meios-eletr.html

–– Por que sou espiritualista.

www.ime.usp.br/~vwsetzer/espiritualista.html

–– The mission of technology [tradução do presente

artigo].www.ime.usp.br/~vwsetzer/technol-mission.html

-- Um minuto a mais na TV.

www.ime.usp.br/~vwsetzer/minuto-a-mais-TV.html

A missão da tecnologia 40 

Page 41: A Missão Da Tecnologia

Smith, J.M. (2007). Genetic Roulette: the documental health risks of

genetically engineered foods. Fairfield: Yes! Books.

Spitzer, M. (2005) Vorsicht Bildschirm! Elektronischen Medien,

Gehirnentwicklung, Gesundheit und Gesellschaft [Cuidado, Tela! Meios

Eletrônicos, Desenvolvimento Cerebral Saúde e Sociedade]. Stuttgart: Klett.

Veja-se também www.uni-ulm.de/klinik/psychiatrie3/leitung.html

-- (2012). Digitale Demenz. Wie wir uns und unsere Kinder um den

Versand bringen. [Demência digital: como nós deixamo-nos e as nossas

crianças loucas]. München: Droemer Verlag.

Stockmeyer, E.A.K. (1965). Rudolf Steiners Lehrplan für die Waldorfschulen

[O currículo de Rudolf Steiner para as escolas Waldorf], 2 vols., sem editora.

Ver tambémRudolf Steiner curriculum for Waldorf schools, trad. R.

Everett-Zade, Edinburgh: Floris Books, 2001.

Young, K.S, C.N. de Abreu (eds.) (2011). Dependência de Internet: manual

e guia de avaliação e tratamento. Trad. M.A.V. Veronese. Porto Alegre:

Artmed.

Zajonc, A. (1993). Catching the Light: The Entwined History of Light and

Mind. New York: Oxford Univ. Press.

Agradecimento

Sou grato a Vitor Morgensztern por valiosas sugestões quanto à redação, até

o item 6 inclusive.

A missão da tecnologia 41 

Page 42: A Missão Da Tecnologia

A MISSÃO DA TECNOLOGIA

Valdemar W. Setzer

Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo

www.ime.usp.br/~vwsetzer

Original: 24/11/07; esta versão, ampliada: 2/10/14

1. Introdução

Este artigo foi escrito para aqueles que se preocupam com o rumo que a

tecnologia, como definida no item 3, há muito tempo está tomando, em sua

grande parte: dominando e destruindo os seres humanos e a natureza. Essa

dominação provém de um verdadeiro endeusamento da ciência e de sua

filha, a tecnologia; um verdadeiro fanatismo por elas. Sou totalmente contra

qualquer fanatismo, em particular o de se achar que tudo que é científico e

tecnológico é ótimo. Obviamente, também sou contra o fanatismo oposto, o

fundamentalismo religioso. Sou totalmente a favor da busca da

compreensão dos fenômenos, e de ações nela baseadas, enriquecida pela

intuição dos sentimentos (já que não podemos ter um conhecimento total de

nada, a não ser na Matemática, mesmo assim com algumas restrições), e

levando em conta as ações e experiências passadas. Nesse sentido, não

tenho crença ou fé. Ou, levando em conta que muitas de minhas ações são

ditadas pelo meu inconsciente – como o impulso de reescrever este artigo –,

A missão da tecnologia 42 

Page 43: A Missão Da Tecnologia

procuro não as ter. Note-se que falei de ações baseadas não só em

compreensão, de modo que não me considero um puro racionalista.

Apesar de quase todos os cientistas serem contra o fanatismo religioso, é

preciso reconhecer que o fanatismo pela ciência e pela tecnologia é que está

destruindo o ser humano e a natureza. O fanatismo religioso só destrói

alguns indivíduos, sendo portanto razoavelmente limitado. A poluição

atmosférica e talvez uma de suas consequências, o aquecimento global, a

poluição dos alimentos, a medicação descontrolada, o desastre ecológico e

humano que se avizinha devido à modificação genética de plantas e animais

(criando seres vivos que jamais existiram), o condicionamento pela TV e

pelos video games, e muitos outros fenômenos, são amostras da

mencionada destruição.

Preciso colocar logo de início que não sou contra a tecnologia; não sou,

portanto, um neoluddita. (Luddites eram pessoas que, entre 1811 e 1816,

eram contra a mecanização das indústrias na Inglaterra e formavam bandos

para quebrar máquinas; eles diziam que seguiam uma figura simbólica, o

"rei" Ned Lud.) De fato, formei-me em engenharia eletrônica (ITA, 1963) e

minha vida profissional foi baseada na tecnologia (Ciência da Computação).

Estou usando um computador para compor este texto – mas isso é uma

necessidade, já que pretendo colocar este artigo em meu site.Sou

radioamador classe A (PY2EH – infelizmente inativo, pois a Internet quase

A missão da tecnologia 43 

Page 44: A Missão Da Tecnologia

acabou com o radioamadorismo), mas para isso não havia necessidade

nenhuma.

Certamente parecerá a muitos estranho que a tecnologia possa ter uma

missão, pois aparentemente ela é neutra. Em geral crê-se que os benefícios

ou malefícios que ela produz dependem do seu uso. No item 3 mostro que,

ao contrário, a tecnologia não é neutra. Posso falar de uma missão da

tecnologia, tratada no item 4, devido à minha concepção de mundo, que

exponho no item 2. No item 5 caracterizo como se podem compreender os

aspectos do Mal e do Bem, para poder compreender o papel da tecnologia

em relação à liberdade humana. No item 6 mostro como a tecnologia está

sendo mal usada, para no item 7 abordar o que compreendo como sua

missão para a humanidade. No item 8 dou algumas diretrizes no sentido de

cada pessoa tomar uma atitude que considero positiva em relação à

tecnologia, para no item 9 colocar uma breve conclusão. Finalmente, o item

10 contém as referências bibliográficas.

No texto, não serão inseridos vínculos para páginas da Internet, para que o

leitor não tenha o impulso de interromper a leitura e desviar para outra

página, perdendo assim o fio da meada. Esses vínculos estão nas

referências, com o nome citado no texto.

2. Minha concepção de mundo

Há duas visões de mundo mutuamente exclusivas: o materialismo e o que

vou denominar de espiritualismo. Materialismo é a concepção de que só

A missão da tecnologia 44 

Page 45: A Missão Da Tecnologia

existem matéria e processos físicos no universo (processos químicos são

hoje em dia reduzidos a processos físicos). Muitos materialistas chamam

esses processos de “naturais”, não admitindo a existência de nenhum

processo “sobrenatural”, isto é, que não possa ser totalmente reduzido a

processos naturais. A grande maioria dos cientistas hoje em dia são

materialistas. Denomino de espiritualismo uma concepção de mundo que

admite que existem “substâncias” e processos e não físicos no universo,

eventualmente influenciando processos físicos. Denomino de espiritualismo

científico o espiritualismo que admite a existência de “substâncias” e

processos não físicos apenas como umahipótese de trabalho. Uso a

expressão “não físico” para indicar algo que existe fora do mundo físico, e

que não pode ser reduzido a fenômenos físicos. Estou ciente do problema de

definir algo por negação, mas é a maneira mais simples que encontrei para

expressar o que estou caracterizando.

Note-se a ênfase que dei à expressão “hipótese de trabalho”. Se alguém

acredita piamente que há processos não físicos não o considero um

espiritualista científico. Hipóteses devem sempre ser temporárias, sujeitas a

revisão. Além disso, deve-se sempre buscar a sua comprovação, devem ser

formuladas para se compreender algo e servir para se construir uma teoria

coerente. Já crenças em geral são permanentes, fixas, e não estão sujeitas

nem a compreensão e nem a comprovação, e não servem para se construir,

a partir delas, uma teoria coerente. Para mais detalhes sobre materialismo e

A missão da tecnologia 45 

Page 46: A Missão Da Tecnologia

espiritualismo, vejam-se meus artigos “Ciência, religião e espiritualidade” e

“Consequências do materialismo”; no primeiro denominei de

espiritualismo-crença aquele que se baseia, pelo menos em parte, em

crenças ou fé.

Um materialista e um espiritualista caracterizam-se por sua maneira de

pensar. Tipicamente, um materialista procura e usa somente alguma

explicação física para qualquer fenômeno. Já um espiritualista deve admitir a

existência de fatores não físicos que possam influenciar alguns fenômenos

físicos, principalmente os que envolvem os seres vivos.

Não é por uma pessoa ficar colocando a causa de alguns fenômenos em uma

entidade não física como a que se costuma chamar de Deus, que a considero

um espiritualista científico no sentido que acabei de dar. A razão disso é que

essa entidade e sua maneira de agir não podem ser observadas e

compreendidas, pois ela se tornou uma mera abstração. Assim, tipicamente,

esse tipo de pessoa, que em geral denomina a si própria de “religiosa”, não

procura compreender esses fenômenos, atribuindo como sua causa a

atuação do que chama de Deus. Uma das características dessa falta de

compreensão é a falta de uma explicação de como essa entidade,

claramente não física, poderia influenciar, por exemplo, as ações dos seres

vivos. No sentido que dei, todo espiritualista tem religiosidade, mas nem

toda pessoa religiosa é espiritualista científica. Pelo contrário, pela maneira

A missão da tecnologia 46 

Page 47: A Missão Da Tecnologia

de pensar, nota-se que muitos dos que se dizem “religiosos” são, no fundo,

materialistas.

Há muitas evidências que sugerem que a concepção de mundo espiritualista

é razoável. Não vou me alongar nesse aspecto e em muitos outros, pois

escrevi um artigo que aborda isso extensamente, “Por que sou

espiritualista”. Nele, exponho também minha teoria de como processos não

físicos podem agir sobre o mundo físico. Como se verá no item 4, é

justamente pelo fato de adotar a hipótese espiritualista que posso falar de

uma “missão” da tecnologia.

3. A tecnologia e sua não neutralidade

A palavra “tecnologia” deveria referir-se a “conhecimento da técnica”. O

Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI traz a definição “Conjunto de

conhecimentos, esp[ecialmente] princípios científicos, que se aplicam a um

determinado ramo de atividade.” Neste artigo, usarei o termo “tecnologia”

no sentido que se dá popularmente a ele em inglês, isto é, referindo-se a

qualquer artefato, especialmente instrumentos e máquinas.

Nenhuma tecnologia é neutra. De fato, tome-se na mão um martelo, e

veja-se qual a atitude interior que ele inspira: certamente, a de bater, às

vezes com violência, em alguma coisa, provavelmente um prego. Agora,

tome-se um travesseiro; a atitude que ele inspira certamente é de calma, de

aconchego, de descanso – a menos de crianças que gostam de fazer uma

divertida guerra de travesseiros, mas mesmo nesse caso a atitude induzida

A missão da tecnologia 47 

Page 48: A Missão Da Tecnologia

por ele não é de machucar outra pessoa com violência. Portanto, esses dois

artefatos induzem uma determinada atitude interior e certos sentimentos. O

filósofo Martin Heidegger escreveu “Assim, jamais vivenciaremos nossa

relação para com a essência da tecnologia, na medida em que nós

meramente concebermos e promovermos o tecnológico, aturarmo-lo ou

fugirmos dele. Mas somos entregues à tecnologia da pior maneira possível,

quando nós a encaramos como algo neutro; pois essa concepção, a qual

hoje em dia gostamos especialmente de prestar homenagem, torna-nos

totalmente cegos à essência da tecnologia.” [Heidegger 1954, minha

tradução]. Na verdade, é preciso reconhecer que nada no mundo é neutro

em relação ao ser humano, pois este incorpora todas as suas vivências. De

fato, o leitor não será exatamente o mesmo depois de ter lido este artigo,

comparando com o que era antes de tê-lo lido: terá entrado em contato com

algumas ideias novas, terá tido algumas reflexões, e tudo isso ficará

“gravado” para sempre, pelo menos em seu subconsciente. Certamente ele

não lembrará de tudo o que leu, mas se for hipnotizado, poderá repetir

muito do que terá esquecido.

Vou dar mais quatro exemplos da não-neutralidade da tecnologia, usando

meus alvos preferidos. Em primeiro lugar, examinemos a TV. Imagine-se o

que significa ter guardado no inconsciente ou no subconsciente todo o lixo

mental televisivo que foi assistido. Certamente isso deve ter alguma

influência na maneira de pensar, nos sentimentos e nas ações dos

A missão da tecnologia 48 

Page 49: A Missão Da Tecnologia

telespectadores (um jovem, ao entrar na universidade, já assistiu em média

pelo menos 20.000 horas de TV). É por isso que houve um casamento

perfeito entre a TV e a propaganda. Nunca se gastou tanto em propaganda

quanto depois do advento da TV, e esse é o veículo para o qual é canalizada

a maior parte dos recursos em publicidade. No Brasil, em 2010 66,2%, isto

é, 2/3 de todos os gastos com publicidade foram canalizados para a TV

[Mídia 2011, p. 51]. Poder-se-ia achar que esses gastos são canalizados

para ela pois é o veículo de comunicação mais difundido; de fato, está

presente em praticamente todos os lares brasileiros (a estimativa é de 98%

[idem, p. 60]), a tal ponto que não é possível fazer uma pesquisa usando

algum grupo de controle que não vê TV, pois ele quase não existe. Mas o

fato é que, se a propaganda pela TV não funcionasse, condicionando os

telespectadores a comprarem os produtos anunciados ou transmitidos, as

grandes empresas não gastariam as fábulas que gastam com propaganda

pela TV – afinal, não são idiotas para jogarem dinheiro fora. Para se ter uma

ideia da dimensão desses gastos, cito Susan Linn, que em seu excelente

livro Crianças do Consumo: a Infância Roubada, traz o dado de que em 2002

a rede McDonald’s gastou 510,5 milhões de dólares em propaganda somente

na TV americana [Linn 2006, p. 132]. A luta dos partidos políticos por um

minuto extra de propaganda política na TV também é uma demonstração do

poder de condicionamento que ela tem, conforme exponho em meu artigo

“Um minuto a mais na TV”. Um outro caso interessante é o relatado por

A missão da tecnologia 49 

Page 50: A Missão Da Tecnologia

Hancox [2004] e colaboradores, que fizeram uma pesquisa longitudinal

seguindo os sujeitos da pesquisa desde a idade infantil até 21 anos. Eles

verificaram que, na Nova Zelândia, apesar de a propaganda de cigarros pela

TV ter sido proibida em 1963, adultos de 21 anos que, quando crianças,

viram muita TV, tinham 17% mais chance de serem fumantes na idade

jovem adulta, devido simplesmente a terem assistido programas em que

pessoas apareciam fumando, como em entrevistas ou filmes [Hancox 2004].

(Ver detalhes desse e outros estudos aqui citados, em meu artigo “Os efeitos

negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.)

Esses dois casos demonstram que a TV condiciona e, portanto, não é de

modo algum um veículo de comunicação neutro.

Se a TV não é neutra, imagine-se então um video game. Nesse caso, o

condicionamento não é só pela imagem, mas também pela ação. Por

exemplo, já está mais do que provado que jogos eletrônicos violentos

induzem atitudes agressivas a curto, médio e longo prazo, e

dessensibilização social, isto é, diminuição da empatia (ver, por exemplo,

[Anderson 2000, Bushman 2009]). Um outro caso de não-neutralidade de

uma máquina é o caso do computador. Há várias pesquisas mostrando que,

quanto mais uma criança ou adolescente usa um computador, seja em casa

como na escola, pior seu rendimento escolar (ver citações dessas pesquisas

em meu artigo “Considerações sobre o projeto um laptop por criança”).

Popularmente, justifica-se esse fato considerando-se que a criança ou jovem

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Page 51: A Missão Da Tecnologia

acabam perdendo muito tempo usando o computador, em lugar de estudar

ou mesmo fazer seus deveres escolares. Obviamente isso é um fato, mas eu

também dou importância essencial à influência do computador na maneira

de pensar, prejudicando o pensamento criativo amplo, pois ele força um

raciocínio matemático, lógico simbólico. Crianças não devem exercer esse

tipo de pensamento, que vai contra o seu pensamento não formal, flexível,

intuitivo e diretamente ligado com a realidade ou a fantasia.

O impacto negativo dos computadores atingiu níveis extraordinários com o

uso da Internet, especialmente com o advento dos smartphones e tablets.

Com eles, pode-se fazer acesso à Internet a qualquer momento em qualquer

lugar, o que acaba provocando sérios distúrbios, desde físicos até

psicológicos, inclusive dependência [Young 2011]. Adultos não estão se

controlando, usando a Internet exageradamente e para finalidades idiotas,

imagine-se o que acontece então com crianças e adolescentes, que estão

ainda desenvolvendo seu autocontrole!

Finalmente, um último exemplo de não-neutralidade da tecnologia: os

transgênicos, que também considerarei aqui como artefatos, pois não

existem originalmente na natureza. Já está provado que vários deles

provocam problemas, por exemplo o fato de que bactérias são usadas na

transposição de genes e com isso quebra-se a barreira genética entre

espécies diferentes, como documentado por Jeffrey Smith em seu excelente

livro [Smith 2007, pp. 123 ff.]. Em uma palestra sua que assisti em outubro

A missão da tecnologia 51 

Page 52: A Missão Da Tecnologia

de 2007, ele afirmou que considerava os alimentos geneticamente

modificados como um desastre ecológico muito maior do que o aquecimento

global e o lixo nuclear.

4. A questão da “missão” – determinismo e acaso

Como coloquei no item 2, não tenho (ou, como já disse, procuro não ter)

crenças. Uma das primeiras crenças que não tenho é no acaso. Uma de

minhas hipóteses fundamentais é de que existe uma causa para qualquer

fenômeno. Consigo fazer essa hipótese devido à minha concepção

espiritualista de mundo: algumas causas podem não ser físicas. Por

exemplo, tome-se a simetria das orelhas de uma pessoa. Se a forma das

orelhas de uma pessoa for comparada com as de outra, a diferença em geral

é muito grande; relativamente a essa diferença, em geral a que existe entre

as duas orelhas de uma mesma pessoa é insignificante. Acontece que as

orelhas crescem continuamente. Como é que elas preservam a sua grande

simetria? Não é possível imaginar que uma célula de uma orelha, ao se

subdividir para promover o crescimento do tecido onde ela se encontra,

“comunique” fisicamente à célula correspondente na outra orelha que ela vai

subdividir-se, e em que direção, de modo que esta também se subdivida e

posicione as suas duas células resultantes na posição simétrica das

produzidas pela primeira. Sem admitir-se essa comunicação, resta a

explicação física de que o crescimento é aleatório, regulado por uma

misteriosa “programação”, quem sabe existente no código genético: o

A missão da tecnologia 52 

Page 53: A Missão Da Tecnologia

ambiente de uma célula faz com que o “programa” seja executado de uma

maneira diferente dependendo da localização da mesma. Mas nesse caso é

necessário supor que o ambiente é o mesmo na vizinhança das duas células

simétricas antes da subdivisão. Se o código genético é o mesmo, como é

produzida uma simetria? Além disso, haverá necessariamente uma certa

aleatoriedade, pois o momento da subdivisão pode variar entre as duas

células correspondentes e o ambiente delas obviamente não é exatamente o

mesmo; provavelmente nem mesmo existe a simetria perfeita no nível

celular. No entanto, observando-se as orelhas de uma pessoa, a simetria

parece ser grande demais para que haja um acaso no crescimento dos

tecidos; qualquer aleatoriedade quebraria pelo menos um pouco da simetria

(o que seria facilmente perceptível) e isso se propagaria posteriormente,

causando mais quebras da simetria, o que obviamente não ocorre. Uma

outra hipótese é que existe um modelo regulando o crescimento das orelhas.

Só que esse modelo obviamente não pode ser físico, senão teríamos que

andar com moldes encaixados nas orelhas; pior, esses moldes deveriam ser

dinâmicos, frequentemente modificados, à medida que as orelhas fossem

crescendo. Portanto, os modelos simétricos das orelhas, que controlam seu

crescimento até o nível das células, talvez das moléculas e átomos, são

modelos mentais, ideias.

Não se deve estranhar a existência de modelos que são ideias: por exemplo,

ao projetar uma casa um arquiteto tem a ideia da mesma em sua mente,

A missão da tecnologia 53 

Page 54: A Missão Da Tecnologia

antes de representá-la fisicamente num papel e de concretizá-la na

construção. Todos os entes matemáticos são ideias, como por exemplo a de

uma circunferência perfeita (que nunca ninguém viu, o que se vê em objetos

com forma de círculo são representações aproximadas dessa ideia).

Justamente por eu admitir a concepção espiritualista de mundo posso fazer

a hipótese da existência de modelos mentais para as nossas orelhas: as

ideias, os modelos mentais, existem em um mundo platônico, não físico, das

ideias. Para muito mais detalhes, inclusive com fotos de plantas e

borboletas, mostrando formas e simetrias, veja-se o meu artigo “Por que

sou espiritualista” onde, como já citei, exponho uma teoria de como esses

modelos mentais podem atuar no mundo físico, por exemplo determinando o

momento e a direção de uma subdivisão celular. Note-se que não há

problema algum em se supor que um modelo mental seja dinâmico, isto é,

no caso das orelhas, ele vai modificando-se conforme o crescimento delas.

Por exemplo, em um bebê as orelhas ainda não têm precisamente a forma,

em miniatura, que adquirirão na idade adulta. Aliás, todo bebê tem formas

quase universais, em geral tendendo para a esfericidade – por isso cada

pessoa da família próxima pode dizer que o bebê é parecido com ela... O

que citei para as orelhas vale obviamente para todos os órgãos simétricos,

como as mãos, pés, sobrancelhas etc.

O conhecido biólogo Richard Lewontin, em seu livro The Triple Helix, mostra

com grande ênfase que os genes e o ambiente não são suficientes para

A missão da tecnologia 54 

Page 55: A Missão Da Tecnologia

prever o crescimento de seres vivos e a sua forma. Ele considera que deve

existir um terceiro fator (daí a “tripla hélice”), que ele denomina “noisy

development”, desenvolvimento com ruído, ou aleatório [Lewontin 2000, p.

36]. Na minha concepção, não se trata de um processo aleatório de

desenvolvimento, e sim a conformação de um organismo vivo a um modelo

não físico.

Observe-se a ênfase que dou para a simetria nos seres vivos como uma

forte indicação da existência, neles, de processos não físicos. Note-se que

não se deve confundir acaso com imprecisão em medidas, pois estas são

resultado da própria imprecisão dos aparelhos ou a influência destes sobre

os fenômenos que medem, o que é claro nos níveis molecular e atômico

(daí, em parte, a Mecânica Quântica, sobre a qual discorro no artigo “Por

que sou espiritualista”). Um materialista deve necessariamente fazer a

hipótese de existência do acaso, pois não pode admitir a existência de um

mundo platônico das ideias influenciando o mundo físico. De fato, o acaso é

extensamente usado nos raciocínios científicos, desde a teoria da evolução

neodarwinista (mutações e encontros casuais, estes últimos levando à

seleção natural) até as teorias atômicas e cosmogônicas. Assim, o que

aparentemente é uma aleatoriedade no mundo físico, pode deixar de sê-lo

ao se admitir a influência de um mundo não físico. A atuação de modelos

não físicos não torna o aparente não determinismo físico em um

determinismo, pois esse conceito não existe no mundo não físico, onde tudo

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Page 56: A Missão Da Tecnologia

é dinâmico, eventualmente dentro de certos limites. Essa é uma dificuldade

de Jacques Monod em seu livro [Monod 1972], pois ele, sendo materialista,

não consegue admitir a hipótese do mundo não físico: “Puro acaso,

totalmente livre e cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução:

este conceito central da biologia moderna não é mais uma dentre hipóteses

possíveis ou mesmo imagináveis. Hoje em dia é a única hipótese concebível,

a única que se ajusta a fatos observados e testados” (pp. 112-113 da edição

em inglês, minha tradução). Curiosamente, apesar de seu pensamento ser

materialista, pois quer reduzir todo o fenômeno biológico a uma “filosofia

natural”, em seu livro ele fala de Deus, afirmando que a admissão dessa

entidade deve ter finalidades puramente morais. Em meus artigos e livros,

eu não apelo para essa entidade que, como visto no item 2, tornou-se uma

mera abstração.

Pois bem, como fui radical e escrevi no início deste item que não admito a

hipótese da existência do acaso, a existência da tecnologia também não

deve ser um acaso. (Eu poderia ter sido um pouco mais politicamente

correto e ter admitido a existência do acaso em casos particulares, como já

fiz alhures em relação à evolução neodarwinista, mas em minha velhice já

não me importo tanto em ser politicamente correto...) Vejamos qual poderia

ser sua razão de ser, isto é, sua missão para a humanidade, também de um

ponto de vista espiritualista. Mas antes disso é necessário discorrer sobre a

livre arbítrio e o que é necessário para que ele exista.

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Page 57: A Missão Da Tecnologia

5. Livre arbítrio – mal e bem

Um materialista não pode falar em livre arbítrio, pois para ele só existem

matéria e energia físicas no universo. Estas só podem estar sujeitas às

assim denominadas “leis físicas”. Não vou entrar aqui na discussão se

existem ou não leis físicas; se houver dúvida quanto a isso, poder-se-ia

considerar “condições e forças físicas” em lugar das “leis”. Essas “leis” são

inexoráveis: sempre se aplicam, caso contrário não haveria as engenharias

civil, mecânica, elétrica etc. Para mim, um materialista que fala em livre

arbítrio do ser humano – e suas consequências, como a responsabilidade, a

moral e o altruísmo consciente – não é uma pessoa coerente. Um antigo

raciocínio é o seguinte: se existem apenas forças físicas, certamente um

átomo não pode ser livre. Portanto, um grupo de átomos, formando uma

molécula, não pode ser livre. Idem para um grupo de moléculas, formando

uma célula. O mesmo para um grupo de células formado um tecido, o

mesmo para um grupo de tecidos formando um órgão, e portanto um grupo

de órgãos formando um ser humano também não pode ser livre.

De onde, então, adviria o livre arbítrio do ser humano? Impossível que ele

venha da matéria. Para um espiritualista, não há absolutamente nenhum

problema em admitir a hipótese de que o ser humano pode ter livre arbítrio,

pois ele parte da hipótese da existência de fenômenos não físicos, e estes

obviamente não estão sujeitos às “leis” físicas. No meu artigo já citado, “Por

que sou espiritualista”, mostro como, sem infringir as “leis” físicas, o ser

A missão da tecnologia 57 

Page 58: A Missão Da Tecnologia

humano pode ter livre arbítrio, e dou até exercícios (mentais) para que cada

um observe que pode ter liberdade em seu pensamento. Isso dá confiança

na admissão da hipótese de haver livre arbítrio e, portanto, da existência de

uma parte não física ligada a qualquer ser humano, isto é, interagindo com

seu corpo físico. Do ponto de vista humano, só pode haver livre arbítrio se

houver possibilidade de se escolher conscientemente, em cada momento,

uma dentre pelo menos duas possíveis ações, inclusive mentais, como o

controle do pensamento.

Digamos que, em uma dada situação, há duas ações que podem ser

executadas, uma “boa”, e outra “má”. Por exemplo, uma que seja benéfica

ao meio ambiente e à própria pessoa, como ir à pé até o supermercado

próximo, em lugar de uma ação maléfica como ir de automóvel (supondo,

por absurdo neste Brasil miserável, que se indo a pé tenha-se menos perigo

de assalto do que ir de automóvel), já que isso iria produzir poluição, iria

isolar a pessoa de seu meio ambiente, iria signifcar uma quase total

ausência de exercíco físico, iria forçar a absorção de uma avalanche de

imagens, produzir nervosismo no trânsito etc. Estou ignorando aqui o caso

particular de a pessoa ter muita pressa e ter que cortar o tempo gasto

usando um automóvel. Podemos dizer que a pessoa, escolhendo ir a pé, faz

assim um “bem”, em lugar de fazer um “mal”.

É justamente a possibilidade de fazer algo “bom” ou algo “mau” que dá ao

ser humano o livre arbítrio. Se só pudéssemos fazer o bem, não teríamos a

A missão da tecnologia 58 

Page 59: A Missão Da Tecnologia

possibilidade de decidir. Estaríamos em um estado correspondendo à

magnífica imagem bíblica do Paraíso: não teríamos autoconsciência e nem

liberdade. A “expulsão do Paraíso” pode ser interpretada como uma imagem

para a “queda” do ser humano na matéria. Note-se a fantástica imagem:

Adão e Eva, representando a humanidade, comem do fruto da “árvore do

conhecimento do bem e do mal” [Gen 2:17, 3:6], e logo depois disso

adquirem autoconsciência, “Então foram abertos os olhos de ambos e

conheceram que estavam nus” [3:7]. Note-se que uma criança pequena não

tem ainda a autoconsciência desenvolvida, e não percebe que está nua. A

propósito, se antes desse ato Adão e Eva não tinham autoconsciência, não

tinham “conhecimento”, não poderiam ter cedido a uma “tentação” e

cometido um “pecado”, pois não tinham possibilidade de escolher e de errar.

Assim, parece-me que a expressão Pecado Original, introduzida por Santo

Agostinho, está totalmente mal colocada. Note-se que em alemão a

expressão é Erbsünde, isto é, “Pecado Herdado”, o que tem um pouco mais

de cabimento, pois pelo menos a “herança” faz sentido: uma vez “caída” na

matéria, a humanidade permanece nela por hereditariedade. É precisamente

essa “queda” na matéria, e a consequente aquisição de autoconsciência, de

individualidade, que faz o ser humano, que antes estava apenas no mundo

não físico, poder cometer erros e portanto poder ter livre arbítrio.

Portanto, a existência de forças não físicas do bem e do mal (uma parte

destas últimas representada pelo interessante símbolo bíblico da serpente no

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Paraíso), algo que para o materialismo não faz nenhum sentido, é que

permite ao ser humano poder ter livre arbítrio. Porém, é importante notar

que a influência do mal acaba gerando vários bens essenciais: além da

possibilidade de liberdade, também a autoconsciência e a individualidade.

Isso lembra a famosa frase de Mefistófeles na cena do escritório

(Studierzimmer) na Parte I do Fausto de Goethe, respondendo à pergunta

de Fausto, sobre quem ele era: “Ein Teil von jener Kraft, die stets das Böse

will und stets das Gute Schafft” [Goethe, p. 172], isto é, “Uma parte daquela

força, que sempre quer o mal e sempre cria o bem” (minha tradução literal).

Os Maniqueus tinham um dito que mostra qual deveria se nossa atitude

frente ao mal: “Ame bem o mal”, isto é, o mal deve ser redimido,

transformado em bem, e não eliminado [Haub 1996, p. 31]. Nesse sentido,

uma maneira interessante de encarar o mal é como se fosse um bem

deslocado, no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma volta ao passado

(como querem quaisquer fundamentalistas religiosos) é um mal, mas

também o é um adiantamento indevido do futuro (como, por exemplo,

dar-se liberdade exagerada antes de a humanidade estar preparada para

isso; parece-me que a Internet é um desses casos). De qualquer modo,

devemos ser gratos ao mal, pois se ele não existisse, ainda estaríamos no

estado do “Paraíso”, ou como dizia o Dr. Rudolf Lanz, “Estaríamos no Céu,

vestidos de bata cor-de-rosa tocando lira, que monotonia!”.

A missão da tecnologia 60 

Page 61: A Missão Da Tecnologia

Note-se que os animais e as plantas obviamente não têm uma

individualidade que transcende sua hereditariedade e as influências do meio

ambiente, pois não têm nem autoconsciência nem aquilo que cada ser

humano tem e que chamarei, sem discorrer sobre isso, pois fugiria ao

escopo deste artigo, uma “individualidade superior”. Esta é uma

individualidade que transcende a corpórea, a de sentimentos, da memória

etc. É devido a ela, por exemplo, que gêmeos univitelinos criados no mesmo

ambiente em geral têm ideais diferentes e tomam rumos totalmente

diferentes em sua vida. É interessante notar que a ciência materialista reduz

a individualidade do ser humano à hereditariedade e à influência do meio

ambiente, isto é, não é capaz de considerar que o ser humano tem algo

essencialmente diferente dos animais. Considerando-se o ser humano como

um animal, não se deveria falar, em relação a ele, de livre arbítrio,

responsabilidade e moral, que os animais obviamente não têm. A propósito,

note-se a ênfase que está se dando, principalmente nos meios científicos, à

influência genética, muitas vezes desprezando o meio ambiente, desde o de

uma célula até o externo ao ser vivo. A respeito disso, veja-se meu artigo

“Desmistificação da onda do DNA”.

O leitor deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com a

tecnologia. Vamos chegando lá.

6. O uso da tecnologia

A missão da tecnologia 61 

Page 62: A Missão Da Tecnologia

Como mostrei no item 3, a tecnologia não é neutra. Portanto, seu uso

deveria ser feito com extremo cuidado, o que implica um uso consciente.

Mas, em geral, esse não é absolutamente o caso. Estamos em uma era em

que, como citei logo no início deste artigo, está havendo um verdadeiro

endeusamento da tecnologia. Em geral, pensa-se que tudo o que é

tecnológico é bom. Isso é devido ao fato de a tecnologia ser uma aplicação

direta da ciência, e ambas terem tido desde o século passado resultados

fenomenais em termos de conhecimento e domínio sobre a natureza.

Acontece que, quanto maior o conhecimento e o domínio sobre a natureza,

mais mal pode ser feito com eles.

A ciência nasceu com a separação do ser humano em relação à natureza.

Sem uma grande capacidade de abstração em relação à realidade, não há

curiosidade em compreendê-la. Por exemplo, a perspectiva linear consciente

apareceu somente no início do século XV [Zajonc 1993, p. 58], época que

marca não só o surgimento da Renascença, mas dos descobrimentos e do

desenvolvimento científico – uma verdadeira descontinuidade no

desenvolvimento da capacidade mental e no sentimento de individualidade

do ser humano. Antes disso, uma estrada reta era representada por linhas

paralelas, pois na realidade as suas margens não se encontram. É preciso

fazer uma grande abstração em relação à realidade para representar o que é

percebido com a visão, isto é, as duas margens da estrada convergindo para

o ponto de fuga. Antes dessa época, não ocorria uma individualidade como

A missão da tecnologia 62 

Page 63: A Missão Da Tecnologia

por exemplo a de Hamlet, com seus destino e problemas únicos; em geral,

não se sabia quem era o particular pintor de uma obra produzida em uma

oficina e muitos outros casos. Aquela curiosidade é a fonte primordial do

impulso de se fazer ciência. E a tecnologia visava trazer um bem. Hoje em

dia, isso mudou completamente. Obviamente, alguns idealistas ainda fazem

ciência movidos pela sede de conhecer algo ou para transmitirem seu

conhecimento a seus alunos e para o público. Mas a maioria dos cientistas

faz ciência em busca de prestígio ou de uma atividade em que não se sintam

tolhidos pelas imposições de uma empresa. Ultimamente, vários cientistas

almejam desenvolver algo que possa ser produzido e vendido no mercado e,

assim, abrir uma empresa própria. Por outro lado, muita ciência é feita por

encomenda de empresas, ou por equipes delas próprias, visando unicamente

o lucro. Por exemplo, o aparecimento de plantas transgênicas deu-se

precisamente nesse paradigma. Um outro caso é citado no livro de Susan

Linn mencionado no item 3: ela conta que nos EUA empresas de propaganda

fazem mais pesquisa em psicologia aplicada do que universidades e

institutos de pesquisa, visando desenvolver técnicas para convencer

crianças, adolescentes e adultos a comprarem o que é anunciado [Linn, p.

46]. A propósito, caracterizo a propaganda como a arte, a ciência e a técnica

de influenciar pessoas a fazerem aquilo que não fariam sem essa influência.

É isso, por exemplo, que leva as pessoas a comprarem o que não

A missão da tecnologia 63 

Page 64: A Missão Da Tecnologia

necessitam, o que é mais caro ou de qualidade inferior; isso é feito por meio

de condicionamentos, isto é, de diminuição da liberdade individual.

Portanto, boa parte da ciência e quase a totalidade da tecnologia visam hoje

em dia satisfazer ambições e egoísmos. Acontece que ambos são

antissociais. O que estamos vendo como resultado desses impulsos é a

destruição do ser humano e da natureza. A destruição desta é visível, mas

em muitos casos a destruição do ser humano é subreptícia, por exemplo

quando a constituição psicológica é atacada, como discorri para o caso dos

meios eletrônicos no item 3. Infelizmente, parece-me que a quase totalidade

da humanidade não está consciente dos problemas da tecnologia ou, se

está, sente-se impotente diante dela, acabando assim por usá-la ou, ainda,

usa-a por inércia ou comodismo, não querendo pensar sobre os malefícios

que ela traz. Uma das consciências fundamentais que, parece-me, a

humanidade deveria ter em relação à tecnologia é a sua missão.

7. A missão da tecnologia

Como coloquei no item 4, a tecnologia não deve existir por acaso, e deve ter

uma finalidade, uma missão para a humanidade. Como vimos no item 5,

uma de minhas hipóteses fundamentais, com fortes indícios de ser

verdadeira, é a de que o ser humano pode ter livre arbítrio. Para mim, a

missão da tecnologia é de dar liberdade ao ser humano, livrando-o de forças

e capacidades restritivas internas ou externas a ele.

A missão da tecnologia 64 

Page 65: A Missão Da Tecnologia

Por exemplo, o avião é uma tecnologia que dá liberdade a uma pessoa de se

deslocar rapidamente a grandes distâncias, suplantando assim as limitações

de sua velocidade de andar ou correr, mesmo fazendo-o a cavalo. O telefone

permite a comunicação verbal entre pessoas distantes entre si. Um edifício

dá a pessoas a liberdade de se abrigarem e de se reunirem, mesmo se lá

fora estiver chovendo ou fazendo muito frio. No entanto, em geral a

tecnologia está funcionando justamente às avessas dessa missão: em lugar

de libertar o ser humano de forças internas ou externas a ele, ela o está

aprisionando. Muitas vezes algumas vantagens que ela fornece é

acompanhada de muito mais desvantagens. Assim, o automóvel deu uma

tremenda liberdade de locomoção a médias e mesmo longa distâncias. No

entanto, permitiu que pessoas morassem longe de seu local de trabalho ou

de estudo, perdendo muito tempo no trajeto, com consequências

psicológicas nefastas; permitiu o inchaço das cidades, transformadas mais

em vias de trânsito do que em moradias e vielas agradáveis para se ir a pé

de um lugar para outro; permitiu que não houvesse transporte coletivo

suficiente, com menos desvantagens do que os automóveis. O resultado

pode ser visto em São Paulo: uma cidade sufocada pelo trânsito, tanto do

ponto de vista da qualidade do ar quanto do aspecto psicológico dos

motoristas e passageiros, obrigados a enfrentar diariamente o nervosismo

advindo de um trânsito literalmente infernal (estastística no site do DETRAN

A missão da tecnologia 65 

Page 66: A Missão Da Tecnologia

diz que em 12/2013 foram lacrados 33.494 veículos na cidade de São

Paulo).

Quantas pessoas tornaram-se prisioneiras da Internet, essa rede eletrônica

que envolveu uma boa parte da humanidade? Por exemplo, eu próprio sou

obrigado a consultar minha caixa postal de e-mails a cada dia, pois senão

ocorrem duas coisas: acumulam-se correspondências em demasia, e

pessoas que me escreveram começam a achar que eu as desprezei pois não

lhes respondi imediatamente. Sugiro ao leitor, que certamente usa a

Internet, examinar-se a si próprio e verificar quantos dias é capaz de ficar

sem usá-la. Se não for mais do que um ou dois dias, isso já caracteriza uma

dependência; o número de dependentes da Internet, desses que ficam horas

seguidas usando-a todos os dias, é enorme, principalmente entre

adolescentes. Uma pesquisa de 2006 mostrou que 12,5% dos americanos

são dependentes da Internet; estudos com estudantes universitários

resultaram em uma estimativa de 10 a 14% desses dependentes [Young, p.

20]. A rede eletrônica realmente capturou uma boa parte da humanidade!

8. O que fazer?

8.1 Em primeiro lugar, deve haver uma conscientização do que é cada

tecnologia. Isso significa compreender o funcionamento, pelo menos básico,

de cada instrumento e máquina, e os efeitos que eles produzem nos seus

usuários. Infelizmente, como as máquinas estão cada vez mais complexas,

por exemplo com a incorporação de pastilhas com circuitos eletrônicos

A missão da tecnologia 66 

Page 67: A Missão Da Tecnologia

(chips), seu funcionamento está tornando-se cada vez mais incompreensível.

Um exemplo disso é o automóvel: antes da injeção eletrônica, um mecânico

eletricista e mesmo um usuário comum podia compreender perfeitamente

todo o funcionamento do motor e das outras partes de um carro. Com a

incorporação de pastilhas eletrônicas, algumas verdadeiros computadores, o

funcionamento ficou incompreensível. Além disso, um defeito em uma

dessas pastilhas obriga a troca da mesma; antes, muitas peças, mesmo as

elétricas, podiam ser feitas numa oficina para substituir uma quebrada. A

velha imagem de um marciano vindo à Terra e desmontando uma máquina

para compreendê-la já não vale mais: é impossível desmontar uma pastilha

eletrônica para verificar como é seu circuito e descobrir seu funcionamento,

pois isso a destruiria. A “caixa preta” tornou-se inviolável. Parece-me

também impossível tentar descobrir como ela funciona simplesmente

introduzindo nela impulsos elétricos em alguns contatos e medindo o que sai

em outros, devido à complexidade do seu funcionamento lógico.

No entanto, muitas máquinas, pelo menos em seu funcionamento básico,

podem ser compreendidas; essa compreensão deveria ser uma das tarefas

mais importantes do ensino secundário, por meio de disciplinas de

“laboratório de tecnologia”. Foi com essa intenção que elaborei um currículo

de introdução de computadores nesse ensino (ver meu artigo

“Computadores na Educação: por que, quando e como” [Setzer 2005, p. 85,

ou na Internet]. Infelizmente, não há em geral consciência dessa

A missão da tecnologia 67 

Page 68: A Missão Da Tecnologia

necessidade, a menos dos ensinos médios Waldorf, pois o fundador dessa

pedagogia, Rudolf Steiner, já para a primeira escola Waldorf, fundada em

Stuttgart em 1919, recomendou a introdução dessa disciplina, que desde

então faz parte do currículo Waldorf no mundo todo [Stockmeyer 1965, Vol.

II, p. 278, Bideau 1951, p. 149].

A constatação da falta, em geral, de conhecimento básico sobre as máquinas

é muito simples. Por exemplo, será que o leitor destas linhas sabe por que

um avião voa e não cai? Os dois efeitos que levam à sustentação (inclinação

da asa e diferença de velocidade do ar acima e abaixo dela; esse último

efeito pode ser demonstrado facilmente, soprando-se abaixo e acima de

uma folha de papel leve) são fáceis de serem compreendidos. Isso me leva a

uma consideração que considero importante. Quantas pessoas veem um

avião voando, não sabem por que ele se sustenta no ar, e não têm a

curiosidade de investigar ou aprender por que isso acontece?

Provavelmente, devem achar que a explicação deve ser difícil demais, ou

então nem chegam a formular a pergunta a si próprios. Para mim, isso é

uma indicação de uma verdadeira paralisia mental. O normal de um ser

humano, quando tem alguma representação mental devida a uma percepção

sensorial e não consegue associar a ela um conceito, é ficar irrequieto, em

busca dessa associação, dando-lhe a compreensão de causa e efeito de um

fenômeno. Por exemplo, suponhamos que, em um jardim sem nenhum

vento, uma pessoa vê um galho de uma moita mover-se. Ela imediatamente

A missão da tecnologia 68 

Page 69: A Missão Da Tecnologia

deve achar o caso muito estranho, e aproxima-se da moita para verificar a

causa do fenômeno. Ao dar alguns passos, um passarinho que estava

pousado no galho, mas escondido pelas folhas, alça voo. A pessoa

compreende então por que o galho havia se mexido, e fica intelectualmente

satisfeita. O aumento da complexidade das máquinas, e a ausência de

ensino no sentido de explicar o funcionamento básico das mesmas,

produzem aquela paralisia mental: as pessoas deixam de ser curiosas, de

investigar, e de fazer um esforço para compreender. Tornam-se, assim,

menos humanas.

Voltando à conscientização da tecnologia, citei como a segunda parte da

mesma a compreensão do efeito que ela produz em seus usuários.

Retornando aos meus alvos preferidos, isso significaria, no caso da TV,

compreender que ela coloca normalmente o telespectador em um estado de

sonolência, semi-hipnótico; daí a maioria de suas consequências funestas,

especialmente o condicionamento. No caso dos video games, especialmente

os de ação/reação, compreender que o usuário tem que desligar totalmente

seu pensamento consciente, e passar a agir automaticamente. Isso leva a

um profundo condicionamento das ações, principalmente em casos de

inconsciência, como stress, medo extremo, raiva, falta de sono etc. No caso

dos computadores, compreender o fato de eles forçarem o uso de uma

linguagem formal e um raciocínio lógico simbólico, algorítmico. No seu uso, é

necessário exercer um pensamento que pode ser transmitido à máquina e

A missão da tecnologia 69 

Page 70: A Missão Da Tecnologia

corretamente interpretado por esta, o que denomino de “Pensamento

Maquinal”. Para mais detalhes sobre esses e outros aspectos desses três

aparelhos, vejam-se meus artigos “Os meios eletrônicos e a educação:

televisão, jogo eletrônico e computador” (Setzer 2005, p. 15, e na Internet),

e outros nesse livro e em meu site, especialmente “Os efeitos negativos dos

meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.

Uma das consequências da paralisia mental citada acima é fazer com que o

usuário não se preocupe ou não se interesse pelo estado em que ele é

colocado pelas máquinas que usa.

8.2 Em segundo lugar, baseado no conhecimento do princípio básico de

funcionamento e do efeito que a tecnologia produz nos seus usuários,

dever-se-ia ter permanente consciência no seu uso, em particular com

relação ao que caracterizei como “missão da tecnologia” no item 7 acima.

Nesse último aspecto, isso significaria usar alguma máquina e

constantemente se fazer o questionamento se ela está cerceando a liberdade

pessoal ou está ajudando a se obter alguma liberdade. Um outro aspecto

fundamental é pesarem-se constantemente os benefícios e os malefícios

pessoais que advêm do uso de uma tecnologia.

8.3 Em terceiro lugar, é preciso usar as tecnologias não só com consciência

pessoal, mas também com consciência social e global. Isso significa avaliar

se o uso de alguma tecnologia beneficia ou prejudica outras pessoas e o

mundo em geral. Aqui cabe a consideração de uma tecnologia cercear ou

A missão da tecnologia 70 

Page 71: A Missão Da Tecnologia

não a liberdade dos outros. Porém, não é só a liberdade que deve ser levada

em conta, mas também a igualdade (direitos humanos) e a fraternidade, a

solidariedade. Sobre esses três aspectos, ver meu artigo “Liberdade,

igualdade e fraternidade: presente, passado e futuro”. Além disso, muito

importante é considerar-se se o uso de alguma tecnologia diminui ou não a

consciência das pessoas.

Em termos de consciência do impacto no mundo em geral, isso pode

significar mudanças de hábitos, por exemplo tomarem-se banhos os mais

curtos possíveis, para não se gastar a cada vez mais preciosa água em um

prazer dispensável. Chamo a atenção para o grau de consciência que se

deve ter no uso da tecnologia: nesse exemplo, quem sabe, de vez em

quando, em casos de uma grande necessidade de relaxamento, talvez valha

a pena prolongar um bom banho quente... O importante é que a escolha

seja consciente.

8.4 Em quarto lugar, deve-se conscientizar as pessoas para os malefícios e

benefícios da tecnologia. É o que tenho feito em grande parte com meus

artigos, livros, palestras e cursos. É o que fez maravilhosamente Susan Linn

em seu livro já citado, em relação ao consumismo induzido pela TV [Linn

2006]. No entanto, é impressionante ler nesse livro que a autora, apesar de

sua posição crítica em relação à TV, e como em geral é o caso de pessoas

que criticam esse meio, não tem a coragem de afirmar que não se deve ver

TV, a menos de casos excepcionais. Em minha experiência, esses casos

A missão da tecnologia 71 

Page 72: A Missão Da Tecnologia

quase nunca ocorrem: tenho uma TV, mas ao escrever estas linhas não

lembro a última vez que assisti algum programa; a propósito, não tive TV

em casa até minha filha menor tornar-se adulta. Por exemplo, Susan Linn

queixa-se de que a filha adolescente ficava sendo influenciada pela

propaganda televisiva; ora bolas, por que não tira a TV da sua casa ou

tranca-a para só destrancá-la quando, conscientemente, a família decidir

que vale a pena assistir um programa especial? Já Manfred Sptizer, em seu

extraordinário livro Vorsicht, Bildschirm! (“Cuidado, Tela!”) declarou que

tinha 5 filhos mas não tinha TV em casa, justamente devido às suas crianças

[Spitzer 2005, p. 250]. Já que citei esse autor, vale a pena citar seu

segundo livro, com uma quantidade imensa de citações de artigos científicos

citando os malefícios dos meios eletrônicos [Spitzer 2012]; o título

(Demência Digital) pode parecer bombástico, mas deve-se lembrar que o

autor é o diretor da clínica de psiquiatria da Universidade de Ulm, na

Alemanha.

8.5 A questão da coragem leva-me ao quinto ponto. Uma das consequências

que deduzo de meus conceitos em relação aos aparelhos eletrônicos e a

minha concepção do ser humano é o fato de aqueles prejudicarem a força de

vontade. De fato, não é preciso fazer nenhum esforço para ver TV ou jogar

um jogo eletrônico, talvez mesmo navegar pela Internet ou ler e-mails e

mensagens recebidas por ela. O grande esforço que deve ser feito é para

desligar os aparelhos. Assim, recomendo que se exercite interromper

A missão da tecnologia 72 

Page 73: A Missão Da Tecnologia

periodicamente o uso dessas e de quaisquer outras tecnologias, na medida

em que isso for possível (espero que algum leitor entusiasta pelas minhas

ideias – coisa rara, pois são em geral incômodas – não desligue o seu carro

no meio do trânsito!). A esse respeito, vejam-se as recomendações que dou

em meu artigo “O que a Internet está fazendo com nossas mentes”.

Parece-me também que se deveria exercitar consistente e conscientemente

a vontade, para contrabalançar o prejuízo que ela tem sofrido com a

tecnologia moderna, por exemplo no comodismo que ela muitas vezes

proporciona. Para isso, posso recomendar o exercício de se treinar mudança

de hábitos. Por exemplo, se a pessoa adora tomar um café quente de

manhã, deixar de fazê-lo de vez em quando; se adora tomar suco (espero

que seja pelo menos natural!) nas refeições, tomar água de vez em quando.

Se está acostumado a usar um relógio, deixar às vezes de fazê-lo. De vez

em quando, tentar escrever com a mão que não costuma usar para isso.

Esses exercícios têm um efeito muito grande de fortalecimento da vontade,

quando feitos com regularidade, e vão produzindo maior flexibilidade

mental. Isso é especialmente importante nas ações que se tornam

praticamente uma dependência, como o caso já citado de ficar alguns dias

sem usar a Internet (garanto por experiência própria, é o Paraíso!).

Uma das manifestações do prejuízo para a vontade é a impotência que

certamente muitas pessoas sentem face à tecnologia. A frase típica que

A missão da tecnologia 73 

Page 74: A Missão Da Tecnologia

mostra isso é “O que adianta eu tomar uma atitude? Que influência posso

ter sobre isso ou aquilo?” Isso me leva ao próximo ponto.

8.6 Em sexto lugar, recomendo ações afirmativas. Na palestra de Jeffrey

Smith, mencionada no fim do item 3, ele afirmou que, se 15% das pessoas

deixam de consumir algo, isso muda a produção das empresas envolvidas.

No caso, ele se referia aos alimentos transgênicos, mas certamente deve ser

o caso em relação a outros produtos, como por exemplo programas de TV,

McDonald’s etc. Infelizmente, o brasileiro não é em geral muito afeito a

protestos, confundindo tolerância com permissividade.

Há certas pessoas que dizem o seguinte: estamos realmente numa situação

crítica para a humanidade, mas esta vai evoluir naturalmente e acabará

suplantando os problemas atuais. Acontece que o ser humano não é um ser

puramente natural. Quando ele pintou as primeiras pinturas rupestres, já

não era totalmente natural, e se pode conjeturar que jamais tenha sido, o

que não apresenta problema algum para uma concepção de mundo

espiritualista. Se cada ser humano não é um ser puramente natural (como o

são, em grande parte, os animais e as plantas), a sociedade e a humanidade

também não o são. Assim, não se deve confiar que as coisas vão melhorar

naturalmente, por si só. Pelo contrário, tenho uma concepção de que a

tendência é sempre de piorar, pois se a humanidade melhorasse

automaticamente, bastaria cruzarmos os braços e esperar que ela melhore.

Ao contrário, se a tendência é piorar, somos chamados cada vez mais à

A missão da tecnologia 74 

Page 75: A Missão Da Tecnologia

consciência e à ação; precisamos nos desenvolver continuamente para

enfrentarmos um mundo cada vez mais miserável e lutarmos cada vez com

mais energia para melhorá-lo. Note-se que isso deve ser entendido de um

ponto de vista global. É óbvio que, em alguns aspectos, tem havido

melhoria. Mas o que adianta, por exemplo, melhorar o saneamento básico se

as pessoas estão se sentindo psicologicamente muito piores, aumentam os

casos de usos de drogas psicotrópicas e de álcool, aumentam os suicídios,

aumenta a separação de casais – uma amostra de que as pessoas têm cada

vez mais dificuldades de conviver e se relacionar socialmente? (A propósito,

quando eu era criança e adolescente, jamais havia ouvido falar em

psicólogos e terapeutas...)

Se o ser humano não é um ser puramente natural, não se deveria confiar

que ele naturalmente aprenderá a conviver com os males da tecnologia,

eventualmente aprendendo a colocá-la em seu devido lugar. Isso só será

conseguido por um grande esforço educacional e, na fase adulta, por

auto-educação. Para não passar uma imagem totalmente pessimista da

humanidade, vou colocar aqui que reconheço nela avanços fantásticos, como

os movimentos ecológico, da paz universal, dos direitos humanos e do

respeito aos deficientes.

8.7 Em sétimo lugar, recomendo o desenvolvimento de um espírito crítico

em relação à ciência como, aliás, exige a sua prática. Quantas vezes uma

pesquisa é justificada por meio de seus pretensos resultados futuros, muitas

A missão da tecnologia 75 

Page 76: A Missão Da Tecnologia

vezes bombásticos? Lembro-me muito bem da justificativa oficial de Neil

Armstrong ter pisado na Lua em 1969, algo como “Agora conheceremos a

origem do sistema solar”, o que obviamente não se confirmou. Ou da

justificativa do sequenciamento genético da Xilella Fastidiosa, publicado em

2000, o primeiro feito no Brasil: agora íamos descobrir como combater a

doença correspondente dos laranjais. Passados tantos anos, onde está esse

resultado? O livro citado de Jeffrey Smith documenta muito bem como

pesquisas científicas podem ser usadas parcialmente, de modo a mascarar

efeitos negativos de alguma tecnologia. Ele chama a atenção para o fato de

que, em geral, as pesquisas científicas necessárias para a aprovação de um

produto, tais como medicamentos e alimentos transgênicos, são feitas pelos

próprios produtores [pp. 193 ff.] e são relativamente curtas e parciais. O

que se pode esperar disso, levando-se em conta que, do ponto de vista

empresarial, o único motivo para a introdução de um novo produto é ganhar

dinheiro?

É muito importante considerar-se que a ciência jamais proporciona um

conhecimento total sobre algo, principalmente devido à extrema

especialização e reducionismo que a caracterizam. Nessas condições, é

impossível preverem-se todos os efeitos colaterais de qualquer produto. Isso

nos leva ao próximo ponto.

8.8 Em oitavo lugar, uma palavra sobre a liberdade de pesquisa. Sou

totalmente a favor de se dar total liberdade ao cientista de pesquisar o que

A missão da tecnologia 76 

Page 77: A Missão Da Tecnologia

bem entender. Mas uma coisa é a pesquisa, e outra é a produção de um

produto. Já que é impossível ter-se um conhecimento total sobre os efeitos

de algum produto, sempre haverá um fator de subjetividade no julgamento

de quanto ele é ou pode ser benéfico ou maléfico. Devido a essa

subjetividade, sou absolutamente contra a liberdade de se produzir seja lá o

que for. A sociedade é que deveria ter a última palavra sobre o interesse ou

não de um novo produto ser lançado. Isto é, esse lançamento deveria ir de

encontro a uma verdadeira necessidade, e não a necessidades criada pela

propaganda ou um modismo, como é comumente o caso. Note-se que me

referi ao controle pela sociedade, e não pelos governos. Essa necessidade é

absolutamente clara no Brasil, devido à corrupção que temos entre nós, mas

que não é nossa marca registrada: Jeffrey Smith cita que na Indonésia a

Monsanto corrompeu ou pagou ilegalmene 140 pessoas do governo para

aprovação do algodão transgênico [Smith 2007, p. 176]. No julgamento final

do interesse sobre um produto, os cientistas devem entrar exclusivamente

com seus dados objetivos sobre as vantagens e desvantagens do mesmo.

Devido aos fatores imponderáveis, numa decisão dessas um cientista só

deveria participar como cidadão comum, e não como o cientista que é.

Já que não se deve coibir ou direcionar a pesquisa científica, o importante é

conscientizar os cientistas da responsabilidade moral que têm em suas

pesquisas, de modo que cada um escolha, em liberdade, o que poderia

pesquisar para um real bem da humanidade. Lembro-me muito bem uma

A missão da tecnologia 77 

Page 78: A Missão Da Tecnologia

notícia que li nos EUA, provavelmente em 1970, em plena guerra do Vietnã,

do cientista que tinha descoberto, na universidade de Harvard, a bomba

Napalm usada extensivamente naquela guerra. Essa bomba, espirra material

incandescente (de 800 a 1.200 ºC) grudando na pele das pessoas atingidas,

infligindo dores lancinantes (em 1980 ela foi proibida pela ONU contra

populações civis). Ele afirmou que, se pudesse, inventava-a novamente!

Aqui esbarramos em um problema muito profundo: a educação universitária

científica ou técnica exclusivamente profissional, como é por exemplo feita

em nosso país, não proporciona a formação humanística, artística e social

necessárias para que o cientista ou o técnico desenvolvam uma sensibilidade

e preocupação para com a natureza e com os seres humanos. Nesse sentido,

há ainda um terrível fator: os meios acadêmicos e de pesquisa são em geral

materialistas e, portanto, sendo coerentes, não deveriam admitir a

responsabilidade humana e a moral, pois elas não podem decorrer da

matéria ou da energia físicas (ver o item 5 acima). Se não deveriam

admiti-las, como vão ensinar seus alunos, futuros cientistas e técnicos, a

serem socialmente responsáveis ou agirem moralmente?

9. Conclusão

A humanidade está em uma encruzilhada. A aceleração do desenvolvimento

tecnológico é brutal hoje em dia, produzida por certas forças que caracterizei

no item 5 como o mal. Em lugar de a tecnologia estar cumprindo sua

missão, que é a de libertar o ser humano das restrições impostas por suas

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forças e capacidades internas e das forças externas, ela o está aprisionando

e influenciando cada vez mais, chegando a ameaçar a sua existência. A

única maneira de se mudar esse estado de coisas, redimindo aquele mal, é

adquirir uma consciência do que a tecnologia significa, e de seu impacto em

cada ser humano e na natureza, passando-se a tomar atitudes para

colocá-la em seu devido lugar. A alternativa é o desastre total, tanto físico

como psicológico.

10. Referências

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-- Consequências do materialismo.

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–– Desmistificação da onda do DNA. www.ime.usp.br/~vwsetzer/DNA.html

–– Liberdade, igualdade e fraternidade: presente, passado e

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–– Os efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e

adultos.www.ime.usp.br/~vwsetzer/efeitos-negativos-meios.html

–– Os meios eletrônicos e a educação: televisão, jogo eletrônico e

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–– Por que sou espiritualista.

www.ime.usp.br/~vwsetzer/espiritualista.html

–– The mission of technology [tradução do presente

artigo].www.ime.usp.br/~vwsetzer/technol-mission.html

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Ver tambémRudolf Steiner curriculum for Waldorf schools, trad. R.

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Agradecimento

Sou grato a Vitor Morgensztern por valiosas sugestões quanto à redação, até

o item 6 inclusive.

 

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