A MORALIDADE BRASILEIRA NO OLHAR DO FICCIONISTA, , , … · tão do temo e pelo leitura crítico do...

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DOS S I Ê A MORALIDADE BRASILEIRA NO OLHAR DO FICCIONISTA, , , DO IDEOLOGO E DO TEORICO I NTERPRETACÕESDE BRASIL PELO FULCRO DA ÉTICA NOS COSTUMES E NA POLíTICA as teorias raciais e evolucio- nistas do período, ganhando assim um acento pessimista: o brasileiro, marcado pela mestiçagem inferiorizante, deverá superar os empeci- lhos de raça para acompa- nhar a marcha ascendente e inexorável da História, já al- cançada pelos povos civiliza- dos. No modernismo, a es- pecificidadebrasileiraé com- preendida a partir de uma leitura crítica, que assume a marca do hibridismo que o estatuto colonialimpôs à na- ção e ao povo brasileiro.Uma das figuras que se tornaram emblemáticas da formação caldeada do povo é a da "an- tropofagia", tomada como uma metáfora de um ethos cultural forjado na fusão de elementos "bárbaros" e "ci- vilizadores". Algumas ima- gens desse traço antropofá- gico (ou "macunaírnico", já que Macunaíma é a expres- são alegórica da multiplici- dade de caracteres e, portanto, de "nenhum cará- ter") se tornam recorrentes. r o caso de textos não- literários contemporâneos, permanece a preo- cupação de análise da especificidadecultural brasi- leira, agora sob a forma de um discurso de cunho objetivo, menos metafórico, capaz de assinalar os condicionamentos materiais e simbólicos presen- IOILVA GERMANO* A reflexão ontológica so- bre a brasilidade tem sido uma constante da inte//i- gentsia brasileira. A interro- gação sobre o ser brasileiro, seus vícios e virtudes, mar- ca todo o percurso do pen- samento letrado no País (tanto na vertente ufanista, quanto na pessimista), bem como o trajeto da nossa li- teratura rumo à autonomia estética. Esse sentimento de uma peculiaridade brasilei- ra, intimamente vinculada aos ideais de nacionalidade, já pode ser percebida nos escritos coloniais, como em Gregório de Matos. Essa "diferença" brasileira foi sendo construída ao longo dos séculos, conforme os ideários da época de produ- ção dos discursos. No ro- mantismo, o elemento de originalidade definidor da brasilidade é buscado na figura heróica do índio e no seu suporte exterior, numa natureza exube- rante e pura, ainda intocada pelas deformações da civilização européia. Na crítica realista, a brasilidade é menos idealizada, seguindo o espíri- to positivista e científico dos fins do século XIX. O caráter nacional é então interpretado segundo RESUMO Esteensaio analiso comparativamente os dis- cursos sobre o ethos cultural brasileiro pre- sentes em Memórias de um Sargento de Mi- lícias de Manoel Antônio de Almeida (1852), O Problema Nacional Brasileiro de Alberto Torres (1914) e Militares e Civis de Paulo Mercadante (1978). Apesar do diferença de gêneros literários e do época de produção dos obras, os textos compartilham o preocu- pação em inrerpretar o brosilidode. que mar- co todo o tradição letrado do país, tonto no ensaio crítico quanto no ficção romanesco. Os textos examinam característicos do com- portamento público e privado do povo e dos elites por meio de perspectivas e estilos dis- tintos conforme o contexto de feitura dos obras e os peculiaridades biográficos dos autores. Tais retratos do Brasil e do suo gente sôo momentos de construção do realidade ima- ginário brasileiro importantes poro o análi- se do cultura nacional. • Professora do curso de Psicologia do UFC e douto- rando em Sociologia no UFC. IAgradeço 00 Professor Dr. Eduardo Diatahy Bezerro de fV\enezes pelo suges' tão do temo e pelo leitura crítico do l' versão deste trabalho; e também à CAPES pelo apoio financeiro.) 54 Revisto de Ciências Sociais v.27 n.1/2 1996

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DOS S I Ê

A MORALIDADE BRASILEIRANO OLHAR DO FICCIONISTA,, ,

DO IDEOLOGO E DO TEORICO

INTERPRETACÕESDE BRASILPELO FULCRO DA ÉTICA NOSCOSTUMES E NA POLíTICA

as teorias raciais e evolucio-nistas do período, ganhandoassim um acento pessimista:o brasileiro, marcado pelamestiçagem inferiorizante,deverá superar os empeci-lhos de raça para acompa-nhar a marcha ascendente einexorável da História, já al-cançada pelos povos civiliza-dos. No modernismo, a es-pecificidadebrasileiraé com-preendida a partir de umaleitura crítica, que assume amarca do hibridismo que oestatuto colonial impôs à na-ção e ao povo brasileiro.Umadas figuras que se tornaramemblemáticas da formaçãocaldeadado povo é a da "an-tropofagia", tomada comouma metáfora de um ethoscultural forjado na fusão deelementos "bárbaros" e "ci-vilizadores". Algumas ima-gens desse traço antropofá-gico (ou "macunaírnico", jáque Macunaíma é a expres-são alegórica da multiplici-

dade de caracteres e, portanto, de "nenhum cará-ter") se tornam recorrentes. r o caso de textos não-literários contemporâneos, permanece a preo-cupação de análise da especificidadecultural brasi-leira, agora sob a forma de um discurso de cunhoobjetivo, menos metafórico, capaz de assinalar oscondicionamentos materiais e simbólicos presen-

IOILVA GERMANO*A reflexão ontológica so-

bre a brasilidade tem sidouma constante da inte//i-gentsia brasileira. A interro-gação sobre o ser brasileiro,seus vícios e virtudes, mar-ca todo o percurso do pen-samento letrado no País(tanto na vertente ufanista,quanto na pessimista), bemcomo o trajeto da nossa li-teratura rumo à autonomiaestética. Esse sentimento deuma peculiaridade brasilei-ra, intimamente vinculadaaos ideais de nacionalidade,já pode ser percebida nosescritos coloniais, como emGregório de Matos. Essa"diferença" brasileira foisendo construída ao longodos séculos, conforme osideários da época de produ-ção dos discursos. No ro-mantismo, o elemento deoriginalidade definidor dabrasilidade é buscado na figura heróica do índioe no seu suporte exterior, numa natureza exube-rante e pura, ainda intocada pelas deformaçõesda civilização européia. Na crítica realista, abrasilidade é menos idealizada, seguindo o espíri-to positivista e científico dos fins do século XIX.O caráter nacional é então interpretado segundo

RESUMOEsteensaio analiso comparativamente os dis-cursos sobre o ethos cultural brasileiro pre-sentes em Memórias de um Sargento de Mi-lícias de Manoel Antônio de Almeida (1852),O Problema Nacional Brasileiro de AlbertoTorres (1914) e Militares e Civis de PauloMercadante (1978). Apesar do diferença degêneros literários e do época de produçãodos obras, os textos compartilham o preocu-pação em inrerpretar o brosilidode. que mar-co todo o tradição letrado do país, tonto noensaio crítico quanto no ficção romanesco.Os textos examinam característicos do com-portamento público e privado do povo e doselites por meio de perspectivas e estilos dis-tintosconforme o contexto de feitura dos obrase os peculiaridades biográficos dos autores.Tais retratos do Brasil e do suo gente sôomomentos de construção do realidade ima-ginário brasileiro importantes poro o análi-se do cultura nacional.

• Professora do curso de Psicologia do UFC e douto-

rando em Sociologia no UFC. IAgradeço 00 Professor

Dr. Eduardo Diatahy Bezerro de fV\enezes pelo suges'

tão do temo e pelo leitura crítico do l' versão destetrabalho; e também à CAPES pelo apoio financeiro.)

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tes na história do País e que estão subjacentes àsmanifestações atuais da moralidade brasileira.

Tanto a literatura ficcional quanto a de cunhomais científico ou ensaístico, portanto, mantématé hoje a reflexão sobre o caráter nacional (ho-je, "brasilidade"), tendência entendida como umaverdadeira tradição, principalmente da crítica, apartir de 1830 até o início deste século. Tal comoafirma Afrânio Coutinho em sua A TradiçãoAfortunada:

"A evolução desse caráter nacional pode seracompanhada em toda a história da evolução lite-rária brasileira, não se tendo realizado por saltos,nem por movimentos de épocas antagônicas edescontínuas, Ela se concretizou progressivamen-te, consolidando-se em crescendo, e encontrandonos vários estilos o instrumento adequado e esti-mulante para levá-Ia para frente e tomar consciên-cia de si mesma." (1968:162)

É neste sentido que procuro analisar as interpre-tações da cultura brasileira presentes em obras tãodíspares quanto Memórias de um sargento de milíci-as de Manoel Antônio de Almeida (1852), O pro-blema nacional brasileiro de Alberto Torres (1914)e Militares e civis de Paulo Mercadante (1978).

É possível destacar um certo número de temasinterdependentes que podem nortear o estudo dasproduções letradas em questão enquanto tentati-vas de representação e construção da brasilidade.Cito alguns pontos em comum que parecem maissignificativos:

1. Nos três autores, percebe-se uma preocupa-ção com a especificidade da cultura brasileira, quese traduz em costumes, comportamentos públi-cos e privados peculiares ao povo e às elites.

N a suma romanesca de Almeida, há um cará-ter de crônica de costumes, de desejo de retrataro cotidiano urbano da sociedade fluminense daépoca de D. João VI. As descrições tornam-se ain-da mais relevantes porque o autor opta pela cul-tura popular tal como percebeu e sintetizou dassuas fontes orais. Embora não tenha vivido no"tempo do rei", conseguiu captar os elementosculturais que tiveram continuidade até a sua épo-ca, narrando-os com intenção de crítica ao seuarcadismo. É o caso da bisbilhotice, do agregado

parasita, da vizinhança invejosa, do padre lúbrico.Entretanto vale lembrar que o panorama social élimitado ao que se chamaria uma pequena bur-guesia urbana, havendo escassas referências às eli-tes dirigentes e pouquíssimas à camada inferior-a escravana.

Em Alberto Torres, a especificidade da culturabrasileira é o ponto de partida para toda a sua dou-trina de organização social. A formação colonialda nação resultou nefasta tanto para a grande massada população apática e sem consciência nacional(de que aliás está isenta de culpa) quanto para aselites que a conduziram, historicamente particula-ristas e dominadas pelo estrangeiro. Sobre as ca-racterísticas concretas da vida brasileira, princi-palmente suas necessidades e possibilidades eco-nômicas (portanto, descartando as teses raciaisinferiorizantes e pessimistas), é que Torres edificaum programa de formação do verdadeiro carátere consciência nacional.

Em Paulo Mercadante, a ênfase recai sobre apeculiaridade da história política brasileira, prin-cipalmente sobre suas forças ideológicas dividi-das em "espíritos" antagônicos. Não incide sobreaspectos antropológicos da cultura popular. Aopreferir o recorte econômico e político da histó-ria brasileira, cuja base assenta sobre a nossa Ilus-tração, tem que aceitar o fato da maciça exclusãodo povo nessa história. Mas não deixa de tratardos aspectos de mentalidade política, abordando-os em termos de polarização entre uma ética ab-solutista de fundo kantiano e uma ética da res-ponsabilidade (ou do compromisso) de inspira-ção maquiavélica, tal como abordada por Weber.Esses valores são remontados às suas origens con-tra-reformistas. O modo como se defrontam aolongo da história confere a própria especificidadeda mentalidade política brasileira.

2. As obras são produtos de um olhar e de umlugar social de elite. São feitos de intelectuais cujaclasse tradicionalmente procurou dirigir a cons-trução do país, através da crítica ou da ação polí-tica direta. Na ficção, escritores como ManoelAntônio de Almeida e Lima Barreto (pobres, masintelectuais) se utilizam da ironia, do humor finoe ferino para atacar mais ou menos agressivamen-te as instituições viciadas. Embora em Almeida aintenção missionária não seja tão evidente como

GERMAf'-!O. IDllVA. A rnorolídode brasileira ... pp. 54 063 55

em Lima Barreto, ele dá continuidade à tradiçãointelectual de usar a literatura de forma educativa,expondo a mentalidade da sociedade imperial, oestado moral dos costumes que se perpetuam atéa época do escritor (e até depois dele). No traba-lho sociológico-doutrinário de Alberto Torres, talmissão salvadora é mais explícita, ainda mais por-que articulada com a participação administrativae política do autor na vida brasileira. A suposiçãoé que o povo, em tais condições de alienação his-toricamente produzidas (culturalmente explicáveise passíveis de solução) deve ser conduzido poruma elite dirigente culturalmente superior. EmPaulo Mercadante, o sentido é o de recontar ahistória brasileira, numa perspectiva erudita e crí-tica como tem tentado a historiografia atual e, comisso, contribuir para uma compreensão menosideologizada dos problemas brasileiros, na qualse apóiem intenções transformadoras.

3. A temática do divórcio entre Povo e Estadoé tratada com maior ou menor transparência pe-los três autores. A dicotomia entre a vida econô-mica e social da grande massa da população brasi-leira e a orientação do Estado, sempre aniculadoaos grupos que detém a riqueza e o poder, é umaconstante que habita essas obras.

De forma cômica, dentro do estilo picarescode Almeida, o povo está constantemente fugindoao poder totalitário do major Vidigal,

"o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo quedizia respeito a esse ramo da administração; era ojuíz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmotempo o guarda que dava caça aos criminosos;nas causas da sua imensa alçada não haviam teste-munhas, nem provas, nem razões, nem processo;ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível(...)". (M.S.M.:21)

Ao mesmo tempo, dentro de um contexto derelações paternais e tutelares, recorre-se constan-temente ao "empenho", às relações íntimas comaqueles que usufruem alguma influência sobreos negócios públicos. De tal forma que o pró-prio Vidigal, o bicho-papão da gente humilde efolgazã, pode também protegê-Ia e "arranjá-Ia".Almeida está muito próximo da complexidadedas relações que unem o povo brasileiro e seus

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governos. O seu tratamento burlesco e sua apa-rente despretensão política não apagam a fideli-dade do quadro social que retratou, nem a serie-dade das conclusões que se possam dele despren-der: a riqueza da vida cultural do povo humilde,seus mecanismos eficientes de adaptação ao po-der, seus vínculos de solidariedade, a contradi-tória hierarquia dos vaiores que movem o com-portamento coletivo.

Com argumentação similar, Antônio Cândi-do assinala que Almeida transpõe para o plano danarrativa, isto é, para o plano estético, um princí-pio estruturante da própria sociedade brasileira:uma dialética da ordem e da desordem. Os mo-dos de existência no Brasil seriam marcados pelacomunicação estreita entre dois pólos: o da or-dem, representada pelo Poder, pela moral oficial,pelo discurso religioso, pelo Vidigal, por D. Ma-ria e Luisinha; e o da desordem, representada pe-los que resistem à ordem estabeleci da, isto é, opovo malandro, amancebado e festeiro, o Leonar-do, o capoeirista valentão, o Caboclo do Man-gue, a cigana e quase todos os atores populares doromance. Todas as personagens passeiam entre es-ses dois níveis, de forma um tanto cínica e banal,sem que se possa julgar moralmente as suas trans-gressões. Esse universo seria justamente o de umaética relativa, conciliatória da ordem e da desor-dem, no plano da vida social e não particularmen-te da política, como visto por Mercadante.

No pensamento de Alberto Torres, uma dasidéias-chave é justamente a falta de paralelismoentre a formação da nação - o povo e a sociedadevivos e não a pátria abstrata dos símbolos e em-blemas patrióticos - e a formação do Estado. Odivórcio entre partes que devem se gestar unidasresultou em que o Estado é um fator de desagre-gação, exatamente o contrário do que deveria re-presentar. A falta do senso de nacionalidade queconstata tem sua origem na especificidade da for-mação do Estado brasileiro. Diferentemente doVelho Mundo, onde o senso nacional se gestoulentamente tendo a política acompanhado a vidasocial das populações, os países novos foram sub-metidos aos móveis dos governos colonizadores:"Governos coloniais e colonizadores fazem inva-sões e conquistas: não fundam nações; são explo-radores: não são sócios." (P.N.B.:42)

Explicação semelhante já havia sido dada por

Manoel Bomfim, ao articular a colonização ibéri-ca parasitária e a mentalidade popular de horrorao Estado historicamente espoliador.

Desgostoso com as "políticas de campanário"alheias ao bem comum e às enormes necessidadesde reorganização nacional nos primeiros anos daRepública, Alberto Torres alerta principalmenteaos governantes para o fato de consequências es-pecialmente graves no Brasil: o da "ausência deespírito nacional "prático", da solidariedade pa-triótica fundada na consciência dos interesses co-muns ao todos os agrupamentos políticos, religio-sos, econômicos, geográficos, comerciais e indus-triais." (p.N.B.: 85)

Torres é contundente na crítica ao modelo po-lítico brasileiro, limitado aos problemas paroqui-ais de partilha do poder ou à importação de fór-mulas estrangeiras e distantes da realidade brasilei-ra, num grande espírito contemplativo e poucopragmático:

"A separação da política e da vida social atin-giu, em nossa pátria, o máximo da distância. Àforça de alheação da realidade a política chegouao cúmulo do absurdo, constituindo (...) uma classeartificial, verdadeira superfetação ingênua e fran-camente estranha a todos os interesses, onde qua-se sempre com a maior boa fé, o brilho das fór-mulas e o calor das imagens não passam de pretex-tos para as lutas da conquista e da conservação dasposições.( ...)

Os governantes chegaram à situação de perderde vista os fatos e os homens, envolvidos entreagitações e enredos pessoais." (p.N.B.: 88)

Daí sua grande obsessão por uma organizaçãopolítica baseada nos fatos da realidade brasileira,nas suas reais necessidades e condições, e não nasteorias importadas e no palavrório vazio da orató-ria. O ponto de partida seria justamente edificarsobre uma economia nacional emancipada, umpensamento autenticamente brasileiro sobre ascoisas da nossa terra. Tal obra seria conduzida pordireção política, por uma elite intelectual que in-felizmente no Brasil se acomodava às letras e à re-tórica e não à concretude exigida.

Paulo Mercadante, analisando as orientações éti-cas que moveram as diferentes facções políticas dasociedade brasileira desde o Império, deixa revelar

o grau de exclusão em que se manteve o povo aolongo dos acontecimentos mais importantes da vi-da política do país. O panorama geral é similaràquele denunciado por Torres: um povo calado,forçado à margem das decisões sobre o seu desti-no, manobrado em eleições fraudulentas, sem di-reito de oposição, sem qualquer participação, àmercê dos acordos conciliatórios das oligarquiasou das reações de segmentos elitistas radicais; deuma forma ou de outra, em total alheamento quan-to à política regional ou nacional.

4. A análise dos autores recai sobre a moralidadebrasileira, tanto no sentido de vida espiritual (men-talidade, consciência, costumes, cultura), quantono aspecto de juízo de valor ou de "bons costu-mes". Quanto a este assunto, deter-me-ei mais umpouco nos três tópicos seguintes.

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILíCIAS:

A ÉTICA RELATlVIZADA NO OLHAR INTUITIVO DO ARTISTAContrariando as tendências românticas vigen-

tes à época da feitura de Memórias de um sargentode milícias, Manoel Antônio de Almeida constróium retrato do Brasil do início do século XIX, nu-ma perspectiva inovadora e de certa forma an-tecipadora do realismo posterior. O ambiente in-telectual que vai aproximadamente de 1836 a 1870é de transplantação cultural, apesar do sentido deautonomia introduzido pelo indianismo à litera-tura brasileira. Nesse contexto de cópia dos mo-delos literários e estéticos europeus, que supunhamum ideário ainda preso aos colonizadores e à civi-lização européia, o surgimento de Memórias é con-siderado surpreendente. Ainda mais quandose percebe a grande influência do pieguismo e doculto à forma em outros trabalhos do autor. Mar-ques Rebelo (1963) sublinha que a poesia de Al-meida é arrastada pela mediocridade do meio, des-toando portanto do valor superior do seu roman-ce. O fato explica porque a importância da obranão foi reconhecida de imediato nem pelos con-temporâneos do autor nem pelo próprio.

É justamente o ar negligente e sem compromis-so que circundou a produção do romance (escritaem tiras de papel anônimas na balbúrdia de reu-niões estudantis) que permitiu a Almeida captarintuitivamente os traços marcantes da sociedade

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brasileira imperial e transpô-los com originalida-de para a ficção. Situada num meio-termo entreimaginação e folclore, Almeida consegue contri-buir - embora de forma não estritamente docu-mental - para a análise sócio-antropológica dasociedade brasileira do período entre 1808 e 1820.O Rio de Janeiro retratado é o da invasão da CortePortuguesa que fugia dos exércitos napoleônicose tinha pouco mais de 60.000 habitantes, 20%dos quais escravos. A transferência da sede do Im-pério Português para o Brasil em 1808 significauma verdadeira transformação no status da colô-nia que neste período fará a transição para o deReino Unido. Embora esse período tenha sidorico em fatos históricos (abertura dos portos, cri-ação do Banco do Brasil, da Biblioteca Nacional,do Jardim Botânico, fundação da Imprensa Ré-gia, abertura de escolas de artes e ofícios, iniciati-vas industriais, Revolução de 1817 etc.) , tais even-tos não são o fio condutor do romance de Almei-da. A obra se assemelha mais a um romance decostumes, que para o estudioso atual, mais inte-ressado numa história das mentalidades e do co-tidiano, representa rica fonte de interpretação doBrasil não exclusivamente político.

O autor descreve os lugares e costumes flumi-nenses comuns da época: o "canto dos rneirinhos",as procissões (do Ourives, a Via Sacra do Bom Je-sus), o Oratório de Pedra, as baianas das procissões,a festa do Espírito Santo, e outras profanas, coleti-vas e particulares. Almeida opta por retratar o povode forma transparente, na sua linguagem coloquial,nos seus vícios e virtudes. Os tipos idealizados porAlmeida contribuem para certas idéias recorrentessobre o caráter nacional, principalmente no que serefere à malandragem, um traço que até hoje érevisitado pela antropologia brasileira.

A interpretação do Brasil e de sua gente que sedepreende de Almeida é de fato uma invenção artís-tica, que, por definição, não se obriga a uma arti-culação direta com fatos históricos e explicaçõescientíficas. Essa liberdade artística provisória pro-duziu uma interpretação intuitiva do "espírito dopovo" (vale dizer, de um certo Brasil), seu modode comportar-se diante das leis e do Estado, bemcomo na esfera das relações privadas. O autor mos-tra os condicionamentos recíprocos entre as insti-tuições políticas e os modos de inserção das clas-ses nesse quadro de costumes e tradições.

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Para Ternístocles Linhares (1987), Almeida é mo-tivado pelo "interesse nacional" que fundava o ro-mantismo daquele tempo, e neste sentido, deseja-va compreender os tipos e a organização das ca-madas menos nobres da população, principalmenteo "empenho" e o "cornpadrio". Não se pode di-zer pelas parcas informações disponíveis sobre oautor se tal motivação foi vivida conscientementeou não. De qualquer forma, parece nítido o seuesforço de retratar o mais fielmente possível o es-tado moral da nossa sociedade. O moralismo deAlmeida é velado no romance: sua tendência é maisexpor os fatos, sem tomar partido explicitamentee sem maniqueísmo. Os tipos são bons e maus aomesmo tempo. É o reconhecimento dessa huma-nidade não heróica, mais próxima dos homens decarne e osso, que faz o leitor afinar-se com pessoase atos incorretos por princípio, mas que no cursoda narrativa, se justificam dentro de certos con-textos. Não há discurso ético absoluto. A honra,paradigma de uma rigidez moral, é relativizada epode até ser motivo de escárnio sem que as perso-nagens deixem de ser simpáticas.

Logo no segundo capítulo, a honra masculina émotivo de galhofa tanto pela mulher infiel quantopelo vizinho conciliador:

"- Honra! ... honra de meirinho ...ora ! (...)"- Honra de meirinho é como fidelidade de

saloia." (M.S.M.:14)

A relatividade no plano moral, a perrnissivi-dade dos costumes, a frouxidão no trato com asleis (chamada mais tarde de " jeitinho") são trata-das de tal forma que o resultado é a simpatia econdescendência com as falhas e vícios das per-sonagens. O tom geral é de humor, um humorespontâneo, não cáustico, vindo da compreen-são da vida do povo, tal como ele é, e não comoos segmentos dominantes tentam moldá-lo pelaforça ou pela convenção.

A malandragem de Leonardo é entendida comoqualidade essencial e gratuita e não como frutodas adversidades como ocorre com os heróis pica-rescos. A sua trajetória de picardias não o amadu-rece, portanto não há um sentido de aprendiza-gem moralizante. Ele nasceu torto e continuará asê-lo até o final, quando será recompensado semnenhuma justificativa romântica, mas por ação da

mentalidade circundante daquele contexto social.O mesmo se dá com o padrinho ao mesmo tem-po bom, por proteger o afilhado, e mau por teraçamambarcado o dinheiro alheio; com a coma-dre que pode caluniar, mas também ajudar osnamorados, e assim por diante. D. Maria, a co-madre, e Maria Regalada, apesar de representan-tes de pólos de ordem distinta, podem recorreruma à outra conforme seus interesses. Tudo levaa crer que essa fusão e subversão de valores eratraço significativo daquela sociedade, o qual es-tendeu-se a épocas posteriores. Abaixo do dis-curso de uma moral oficial, acompanhada ape-nas por parcelas de segmentos minoritários e do-minantes (ex. a Luisinha como moça de boa fa-mília) , havia a grande maioiria da população quevivia de acordo com as suas inclinações intintivase voltadas ao prazer, sem preocupações de cons-ciência e culpa. O que domina é um cinismoque de tão comum e institucionalizado, se des-caracteriza como cinismo. Assim, não teríamoso puritanismo nem o superego dos norte-ameri-canos. No Brasil, "as formas espontâneas de so-ciabilidade atuaram com maior desafogo e porisso abrandaram os choques entre a norma e aconduta, tornando menos dramáticos os confli-tos de consciência." (Cândido, 1970:86).

O tom geral do romance é de tolerância e neu-tralidade que pressupõe uma ética relativa, váli-da tanto para o lado de lá como para o lado de cádas normas sociais. Neste sentido, Manoel An-tônio de Almeida supera as ideologias moraliza-doras da classe dominante e apresenta uma vi-são de mundo mais próxima à realidade do povobrasileiro.

o PROBLEMA NAOONAL BRASILEIRO:

A ÉTICA DOS FINS INSPIRANDO A REORGANIZAÇÃO NACIONALNO OLHAR DO IDEÓLOGO E POLíTICO ENGAJADO

A ideologia de Alberto Torres é em parte ex-plicada pela própria rigidez e disciplina de seucaráter. Utilizando-se a classificação weberianaentre uma ética da convicção e uma ética da res-ponsabilidade, Torres parece mais próximo daprimeira. Há um forte sentido de dever e de prin-cípio, movendo suas reflexões. A principal mos-tra dessa tendência absolutista está no próprio afas-tamento amargurado do autor em relação à vida

política. Barbosa Lima Sobrinho (1968) dá umquadro geral do que lhe parecia a personalidadede Torres e sua vocação política:

"Tendo jeito rápida e brilhante carreira política,sente-senele o inadaptado, quando não odesajustado,criando problemas edificuldades, pela ausência mui-tas vezes, de uma simples palavra de boa vontade,de uma compensação verbal para os danos políticosque vai impondo. É rígido nas atitudes.fechado nasmanifestações, dando sempre a impressão de que nãotolerava o pequeno comércio partidário, as conver-sas inúteis, as expansões falsas, ou louvores hipócri-tas, as promessas vagas, tudo o que o interessepodeaconselhar ou exigir, sem levar em conta a sinceri-dade das declarações.E havia ainda em Alberto Tor-resum domínio de intransigência: o de suas idéias ede suas conclusões de pensador e de jurista."(1968:187)

Ora, tal obstinação e inflexibilidade são porprincípio incompatíveis com a vocação política,uma vez que esta "utiliza como instrumento es-pecífico a força, por trás da qual se perfilha a vio-lência" (Weber, 1993:111). O político responsá-vel (relativista) conduz sua ação pelas suas con-sequências, ponderando riscos e ganhos. Umaatitude incondicional pode levá-lo a omitir-se dequalquer responsabilidade sobre as medidas diver-sas da sua decisão. De fato, o resultado final deuma ação política nem sempre corresponde às in-tenções originais do agente ou aos fins persegui-dos. Uma vez tomada uma decisão política, o agen-te não mais detém o controle sobre todas as eta-pas de consecução dos objetivos. De tal forma quea vida política pode compactuar com móveis einteresses às vezes diametralmente opostos. ParaTorres, dedicado a uma causa gigantesca e convic-to da validade e exclusividade dos seus meios,compactuar com os interesses e fórmulas escusosera simplesmente inaceitável. De fato, sua voca-ção era mais próxima à do ideólogo, do pensador,e até mesmo do técnico, do funcionário circuns-crito às leis.

A ênfase numa ética de finalidade domina asdoutrinas de Alberto Torres. O espírito que o mo-ve não é o da conciliação partidária tão bem des-crito por Mercadante. Apesar disso, a reestrutu-ração pretendida por Torres não se baseia em re-

GER/WINO, IOllVA. A rnorolidode brasileira .. pp. 54 a 63 59

. formas morais da classe política, nem de fato de-fende estratégias radicais, no sentido revolucioná-rio. O olhar é o da classe intelectual e dirigenteprogressista, responsável pela condução dos de-sígnios do povo, via governo forte.

Como positivista, Torres não acreditava numasimples regeneração moral, embora constatassea sua carência no modelo político brasileiro esua importância para um novo projeto de refor-ma. O projeto deveria ter inspiração ética, masos meios de empreendê-lo deveriam ser factuaise não morais.

Para Mercadante, Torres advogava a concilia-ção de classes dentro do seu projeto de inclina-ções autoritárias. De fato os positivistas defendi-am a ordem e não a sua subversão, e daí a neces-sidade de um Estado que pudesse organizar efe-tivamente a vida social, e não ser o seu fator dedissolução. Entretanto, identificar as tendênciaspacificadoras e organizadoras de inspiração hu-manista de Torres com as estratégias políticasconciliadoras introduzidas no Império e perpe-tuadas pelas facções oligárquicas da Primeira Re-pública parece equivocado. A conciliação de Tor-res está mais próxima ao sentido tradicional de"por de acordo leis e pessoas", de concórdia, deesforço para impor princípios gerais sobre inte-resses particularistas. E não da idéia de concilia-ção partidária, de fusão ideológica. Fosse assim,Torres não teria abandonado prematuramente apromissora carreira política que iniciara antesmesmo da República.

MILITARES E (IVIS: A POLARIZAÇÃO ÉTICA NA HISTÓRIA

POLíTICA SOB O OLHAR DO CIENTISTA SOCIAL CRíTICOO trabalho de Mercadante se insere numa his-

tória das mentalidades, nas quais se articulam idéi-as políticas, filosóficas, éticas e estéticas sobre umfundo de transformações econômicas no Brasil.Baseado na distinção weberiana sobre as orienta-ções éticas na política, Mercadante procura retra-çar o caminho dessas tendências morais ao longoda história brasileira.

O espírito absolutista da Contra-reforma trazi-do pelos colonizadores e jesuítas se vê enredadopor novos valores após a Independência. O espí-rito moderno e revolucionário principalmente tra-zido da França promoveu o relativismo ético por

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influência dos novos ideais estéticos do períodoromântico. Num quadro de fusão do conserva-dorismo contra-reformista, do liberalismo român-tico no plano das idéias e do liberalismo econô-mico exigido pelo mercado externo, o Impériolevava ao compromisso. Toda a intelectualidade,saída da classe proprietária de terras, tendeu en-tão às soluções de compromisso na política, naliteratura e na ideologia que permitiam que se con-vivesse com anseios nacionalistas e liberais den-tro de um regime rnonárquico e de uma econo-. .nua escravrsta.

A ascensão da classe média, embasada em no-vas forças econômicas e políticas e representadapelos militares, fez valer outra orientação: umaética de finalidade, de cunho menos flexível emais intransigente. Coube à geração de 1870, im-buída dos ideais de cientificidade e positividade,contestar a face conciliatória do poder, exigindotransformações mais radicais e menos contem-porizações. A campanha abolicionista e republi-cana ilustra a ética dos fins aplicada à derrocadado Império e seus compromissos (embora os ob-jetivos tenham sido alcançados por um processogradual, marcado pela cautela e atendimento aosinteresses rurais). Para os militares, o alvo de ata-que seriam justamente os civis, políticos e bacha-réis tolerantes e relativistas que permitiam oufavoreciam as manobras de conciliação ideoló-gica. Entretanto, na articulação entre as velhasforças e as novas, a República teve que convivercom o paradoxo de novos compromissos, ou develhos compromissos com cara nova. A Repú-blica manteve a ética relativa da conciliação e ostraços de romantismo e ecletismo rechaçadospela crítica realista. Há uma "adaptação de ve-lhos abusos imperiais a fórmulas republicanas(...) sob a égide de uma nova conciliação" (M.Cc l l). Na política dos governadores após o pe-ríodo militar, o poder econômico criava seupróprio mecanismo de perpetuação do poderbaseado em trocas e acordos entre os coronéis eo governo federal. Tal mecanismo resultava deuma ética relativista em ação, da qual não esca-pou nem mesmo a corrente positivista e politi-camente autoritária.

A tradição conciliatória mantida na Repúblicaé continuamente denunciada como falha moralou de caráter do homem público. As alianças po-

liticas então são entendidas como novos masca-ramentos, tentativas de manter o estado de coi-sas, como a perpetuação da corrupção e da tradi-ção imperial. A Campanha Civilista se arma deum discurso moralizante para combater a farsaeleitoral, o atraso econômico, a miséria e a negli-gência governamental. A base da plataforma deRui Barbosa seria uma reforma na moral republi-cana, estratégia considerada mais eficiente paraatingir o discurso ético absolutista da classe mé-dia. O próprio liberalismo, com sua tradicionalmoderação e tolerância, atacava os excessos dapolítica conciliadora. A jovem oficialidade dosanos de 1920 continuou a crítica ao ajeitamentopolítico e ao arbítrio do coronelismo com umapostura mais enérgica e contestadora do que osvelhos oficiais. A crítica ainda tinha base ética enão exatamente suporte ideológico. O discursogirava em torno da honra militar e do civismo.

o plano estético, os modernistas após 1927 de-finem-se ideologicamente entre uma direita e umaesquerda. Graça Aranha, Jorge Amado, GracilianoRamos, José Lins do Rego esposam uma ética definalidade; há o desejo de tudo mudar e renovar.A ideologia socialista de base é paradigmática daorientação absolutista, tal como apontada porWeber, em sua opção pessoal pela ética de res-ponsabilidade. Por outro lado, o pensamento au-toritário, cujas raízes se fincam na corrente posi-tivista, também se imbui da ética de finalidade.Paradoxalmente, ele vai florescer principalmenteentre juristas que tradicionalmente tendem parao relativismo ético. Os militares e engenheirosdesligavam-se da política, enquanto os juristas deformação positivista tomavam nas mãos a dire-ção do país. O próprio engajamento científico im-pedia a adoção de uma ética relativista. Houveem consequência a continuidade da rigidez parao plano político.

Mercadante pretende explicar a peculiaridadeda vida política brasileira - e a origem dos seusmales - mediante uma análise da ética dominanteno espírito da nossa intelectualidade, numa in-vestigação próxima à empreendida por Weber emÉtica protestante e o espírito do capitalismo. De mo-do simplificado, diferentemente do que ocorreunos países movidos pela mentalidade reformista ecientífica, o Brasil foi marcado por uma tensãoentre o arcadismo de sua formação portuguesa,

religiosa e metafísica, e as próprias exigênciasmodernizadoras dos novos tempos capitalistas. Amodernização simbólica e material, entretantonão poderia se consolidar sem graves contradi-ções. As circunstâncias de uma economia escra-vista e de mecanismos mais próximos às relaçõesmedievais impediam a substituição da ordem tra-dicional pela nova ordem. O processo se deude forma arrastada, gradual, com tensões solucio-nadas por compromissos entre ideologias por prin-cípio antagônicas, em manobras que seriam eu-femisticamente chamadas de "bom senso". Ape-sar da crítica intelectual proveniente das diferen-tes vertentes ideológicas, a história acabou sendomarcada por soluções de compromisso entre fac-ções dominantes à revelia da participação e repre-sentação populares.

A leitura de Mercadante deixa dúvidas se oautor se inclina pessoalmente para soluções mo-vidas por uma ética de finalidade, pelo menosno contexto específico da história brasileira. Àsvezes tem-se a impressão de que há um certo tomde aprovação quando o autor descreve o espíri-to mais radical do nosso pensamento ilustrado,o qual, apesar de ter ensejado formas de au-toritarismo, se mostrou desde o princípio incon-formado com a ilicitude do espírito conciliador.Tal atitude seria de estranhar da parte de quemtoma o próprio referencial weberiano como basede análise, portanto, compreendendo perfeita-mente suas argumentações a favor da ética daresponsabilidade, única a se enquadrar perfeita-mente à vocação política.

INVENÇÕES DO BRASil E SUA ANÁLISE (OMPARADAOs textos aqui interpretados fazem parte do

processo histórico de construção imaginária doBrasil e da gente brasileira. Essas criações mentaisnão apenas captam e reproduzem os significadosde brasilidade que circulam na sociedade, comotambém têm um papel institui dor e transforma-dor dessa realidade.

A rigor, o Brasil do romance, o Brasil do dis-curso ideológico ou político e o Brasil do cientistasocial são ficções, se tomarmos o sentido originalda palavra como coisas criadas, modeladas ou in-ventadas (e não propriamente o sentido de ilusãoou equívoco). Elas são formas de sintetizar de mo-do cognoscível a complexidade da vida social expe-

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rimentada pelos autores. O Brasil e a brasilidadesó podem ser concebidos por meio dessas elabora-ções mentais, uma vez que não há um Brasil dadoou absoluto a ser desvendado. As imagens, con-ceitos e abstrações que vêm da produção científi-ca, da arte e do saber cotidiano ajudam a compore recompor o significado sempre transitório doser brasileiro.

Tal como a construção romanesca de Almeida,as interpretações de Torres e de Mercadante sãobasicamente atos de imaginação criadora que per-mitem articular relações, analogias, condensaçõese sínteses a partir dos fatos observados e experi-mentados na vida brasileira. Almeida fornece umquadro intuitivo da sociabilidade do Brasil im-perial e suas permanências, por meio de uma es-crita irônica e burlesca, de personagens repre-sentativas de tipos sociais, de um enredo ilustra-tive dos modelos de comportamento do brasilei-ro de ontem (e até certo ponto de hoje). Parafalar da maleabilidade ética da sociedade brasi-leira, o autor personifica-a nas personagens cujocaráter e conduta não podem ser rigorosamenteenquadrados em juizos de bem e mal. O quadroretratado permite visualizar um tipo de sociabili-dade que é tematizada por intermédio de outrasformas discursivas e outros recursos estilísticosnos textos mais "realistas" ou de pretensão cien-tífica. Em geral, os textos acadêmicos recorrema um estilo "alto", sisudo, monossêmico, poucofigurado, mais conceitual que visual, para defen-der teses junto a uma comunidade cientifica. Paraexplicar o mesmo problema da moralidade bra-sileira, Torres se utiliza de uma retórica tantoexplicativa quanto doutrinária, que conclama àadesão a suas idéias. É uma fala engajada e per-suasiva com nítida intenção de fazer o leitor to-mar partido e aderir à sua causa. Tal discursoadequa-se aos propósitos políticos do autor, le-vando a marca de seu projeto para a nação. Alinguagem de Mercadante já apresenta outro fei-tio, uma vez que é marcada por condições deprodução discursiva diferente dos anteriores. Otexto se insere entre as obras que analisam a his-tória das idéias, portanto, aspirando ao estatutode produções filosóficas e científicas. Neste caso,a moralidade é compreendida sob um ponto devista mais "objetivo", onde o autor procura assi-nalar causas a efeitos, a saber, os condicionantes

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históricos das peculiaridades da cultura políticabrasileira. O seu tom é mais "neutro", isto é,menos revelador de rubricas ideológicas, e erudi-to (ilustrado, por exemplo, na numerosa citaçãode autores).

N o meio de uma crise de modelos epistemo-lógicos e metodológicos, o cientísta social de hojegoza de certa liberdade (e também de certa insegu-rança) de transcender os limites e a rigidez doscânones objetivistas da pesquisa cultural. Já se per-cebe que a linguagem socioantropológica apresen-ta pontos comuns com a linguagem estética. Daprimeira, também é exigida uma imaginação cri-adora capaz de perceber vínculos, separações, con-tinuidades e rupturas da matéria-prima com a qualtrabalha. Ela também se utiliza das analogias, me-táforas e outros recursos miméticos não apenasna exposição de suas teses, mas no próprio mo-mento de produção do conhecimento. A ciência,mais preocupada com as exigências de teorizaçãoe, consequentemente, de estabelecimento de con-senso, exercerá maior controle sobre sua lingua-gem para que se evite a ambiguidade e a polissemia.Na literatura, cuja preocupação é fundamental-mente estética, tal controle será evitado, para pro-mover justamente a polifonia e a multiplicidadede perspectivas.

Os textos ficcionais e não ficcionais se equipa-ram em termos de sua fecundidade para a análi-se socioantropológica da cultura. No caso da cul-tura brasileira, cada gênero em sua especificidadediz o Brasil de modo peculiar, aproximando-seou distanciando-se dos esquemas ideológicos pre-sentes no contexto de produção das obras. É nessesentido que consideramos promissora não ape-nas uma análise comparada dos temas da brasili-dade num mesmo gênero literário, mas tambéma sua abordagem comparada em gêneros literáriose formações discursivas diferentes.

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