A MORTE PEDE PASSAGEM: Os costumes fúnebres e as … · 2017-02-07 · foi um dos lugares que se...

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A MORTE PEDE PASSAGEM: Os costumes fúnebres e as atitudes da população de Paripiranga-BA para com a morte e os mortos (1920-1940) Robério José Santos Junior 1 1 INTRODUÇÃO Morte, uma palavra que gera nos indivíduos certo receio; as pessoas têm medo ou preferem não tocar nesse assunto, justamente pelo fato de ter que enfrentá-la algum dia, ou melhor, ter que se render à mesma. O que muitas pessoas não enxergam ou não querem enxergar, é a grande diversidade cultural que existe na morte e em suas práticas. São vários países no mundo que cultivam os rituais fúnebres; que são consequências de resquícios da baixa idade média. A cidade de Paripiranga na Bahia teve em outrora algumas práticas relacionadas à morte repletas de elementos culturais típicos da região. Pois, o sertão da Bahia foi um dos lugares que se teve uma grande penetração de diversas culturas como as africanas e as indígenas. Ou seja, houve uma grande mistura de ritos, práticas e de mentalidade para com as mais variadas religiões, e claro para com as práticas da morte e do morrer 2 . Inicialmente é importante observar uma parte da obra do autor Cândido da Costa e Silva, na qual o mesmo traz à baila, uma passagem da morte nesta cidade um tanto que hilária. Segundo o autor, existia em Paripiranga quando ainda era Coité, um tocador de harmônica que se chamava Pedro Toca. Diziam as más línguas que o mesmo só sabia tocar porque tinha um pacto com Satanás. Pedro Toca morreu em outra cidade e pediu ao seu amigo Juvenal para ser enterrado em Coité. Depois de sua morte Juvenal o levou para o Coité e o entregou aos seus familiares para realizarem os preparativos do enterro. Já no cortejo, as pessoas iam rezando o Santo Ofício e dois cachorros começaram a brigar debaixo do caixão e 1 Acadêmico do curso de licenciatura em História do Centro Universitário UniAGES. Em Paripiranga-Bahia. Cel: (75) 9 98058071. E-mail: [email protected] 2 SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia São Paulo: Ática, 1982.

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A MORTE PEDE PASSAGEM: Os costumes fúnebres e as atitudes da população de

Paripiranga-BA para com a morte e os mortos (1920-1940)

Robério José Santos Junior1

1 INTRODUÇÃO

Morte, uma palavra que gera nos indivíduos certo receio; as pessoas têm medo ou

preferem não tocar nesse assunto, justamente pelo fato de ter que enfrentá-la algum dia, ou

melhor, ter que se render à mesma. O que muitas pessoas não enxergam ou não querem

enxergar, é a grande diversidade cultural que existe na morte e em suas práticas. São vários

países no mundo que cultivam os rituais fúnebres; que são consequências de resquícios da

baixa idade média. A cidade de Paripiranga na Bahia teve em outrora algumas práticas

relacionadas à morte repletas de elementos culturais típicos da região. Pois, o sertão da Bahia

foi um dos lugares que se teve uma grande penetração de diversas culturas como as africanas

e as indígenas. Ou seja, houve uma grande mistura de ritos, práticas e de mentalidade para

com as mais variadas religiões, e claro para com as práticas da morte e do morrer2.

Inicialmente é importante observar uma parte da obra do autor Cândido da Costa e

Silva, na qual o mesmo traz à baila, uma passagem da morte nesta cidade um tanto que

hilária. Segundo o autor, existia em Paripiranga quando ainda era Coité, um tocador de

harmônica que se chamava Pedro Toca. Diziam as más línguas que o mesmo só sabia tocar

porque tinha um pacto com Satanás. Pedro Toca morreu em outra cidade e pediu ao seu amigo

Juvenal para ser enterrado em Coité. Depois de sua morte Juvenal o levou para o Coité e o

entregou aos seus familiares para realizarem os preparativos do enterro. Já no cortejo, as

pessoas iam rezando o Santo Ofício e dois cachorros começaram a brigar debaixo do caixão e

1 Acadêmico do curso de licenciatura em História do Centro Universitário UniAGES. Em Paripiranga-Bahia.

Cel: (75) 9 98058071. E-mail: [email protected]

2 SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia – São

Paulo: Ática, 1982.

não saiam de nenhuma forma. Depois de algum tempo, Pedro Toca “apareceu” para o seu

amigo Juvenal e lhe disse que os cães que brigavam debaixo do seu caixão era o Satanás

2

que o queria levar para o inferno, mas que não conseguiu porque as pessoas não pararam de

rezar o Santo Ofício3.

Com base nesta passagem ficam bem claras as práticas de enterro e as superstições

religiosas daquele período. Mas que na verdade se tornam muito importantes para um bom

entendimento do contexto social e da própria visão da população para com a morte e para com

a religiosidade, claro que utilizando também das memórias daquele período. “As memórias

fornecem alguns elementos diretos, relativos à natureza, à expressão de conhecimentos,

culturas, relações sociais e até políticas”4. Assim, se faz preciso analisar a população de

outrora, com um olhar voltado para as representações da época, ou seja, observar as atitudes

conjuntas das comunidades, numa perspectiva micro, para só então chegar ao objetivo central

que é relacionar o estudo efetuado ao macro social. Dessa forma, o trabalho poderá alcançar o

seu ponto primordial que é seguir numa perspectiva da história cultural.

2 VISITA AO MORIBUNDO

O medo que a morte traz é algo assustador para a grande maioria das pessoas;

entretanto, o morrer sempre teve suas peculiaridades nesta cidade. A morte observada era

comum; as pessoas morriam em suas casas, e eram assistidas por boa parte da sua

comunidade. O moribundo partia de sua vida cercado por amigos e parentes que de certa

forma faziam sua parte com bastantes orações e carinho. “Depois da última oração, resta

apenas esperar a morte, e esta já não tem a partir de então qualquer razão para tardar.

Pensava-se que a vontade humana podia conseguir ganhar sobre ela alguns instantes5.”

Assim, não adiantava muito, pois o acamado sempre acabava por morrer. Todavia, não

importava, visto que a ideia de se trazer a comunidade para dentro da casa do enfermo era

justamente o contrário, ou seja, que o moribundo morresse, mas que morresse cercado de

amigos e de paz.

Outra questão que vale a pena ser ressaltada nesta perspectiva da morte em casa, era a

auto avaliação do enfermo perante a sua própria partida. Ninguém sabia a hora exata que o

3 Ibidem. p. 24-25 4 OLIVEIRA, Ana Maria Ferreira de. Sob o signo da cruz, a malhada vermelha floresce: a origem de

paripiranga nas memórias paroquiais de (1840-1900): Universidade Federal de Sergipe centro e educação

superior departamento de história – HDI. Lagarto Sergipe, 2016, p. 11.

5 ARIÉS, Philippe. O homem perante a morte. Tradução de Ana Rabaça. Tradição Portuguesa de P. E. A.

1997, p. 28.

3

indivíduo entraria em óbito, já que eram quase ausentes os aparatos da medicina naquela

época. No entanto, o moribundo tinha uma breve percepção sobre a sua morte e estava ciente

de que suas horas em vida estavam por acabar. Por isso, realizava as suas próprias orações e

tinha o conhecimento das suas dívidas perante as pessoas; muitas vezes estas estavam

presentes na sua casa e do seu lado. “[...]. Nem o médico, nem os companheiros, nem os

padres; estes últimos ignorados e ausentes sabem tão bem como ele. Só o moribundo avalia o

tempo que lhe resta6.” Então, a morte chegava nesse contexto social; não deixava de ser

tenebrosa, entretanto, era menos assustadora para as pessoas que se faziam presentes.

Fazendo uma comparação com a idade média, que também era em alguns aspectos

parecida com as características estudadas nesta cidade7, ficam claros alguns pontos em

comum, principalmente no que diz respeito às visões do homem perante a sua morte. Na idade

média segundo Philippe Ariés8, a morte era mais familiar e não fazia medo a quem ela fora

levar, pois, o contexto da época era outro, no qual a perspectiva de vida era quase que mínima

devido aos fatos corriqueiros do período, como por exemplo, as doenças que assolavam a

época e as constantes guerras. Então, dessa forma os homens criaram uma espécie de

conformismo perante a morte e o morrer. Não se quer aqui dizer que a morte trabalhada no

recorte temporal deste artigo, fora uma morte tranquila e sem sombras; mas, se quer trazer à

baila os pontos em comum entre as épocas; os resquícios da idade média.

A morte e o morrer mudaram muito durante o passar dos anos. Hoje em dia é difícil

ver uma pessoa morrer em sua casa cercada por parentes e amigos; quando o enfermo está

muito mal os familiares o levam para o Hospital. Ou seja, a morte agora é adiada o máximo

possível. Não se tem mais as grandes multidões prestando a solidariedade ao morto e à

família.

A atitude em relação à morte e a imagem da morte em nossas sociedades

não podem ser completamente entendidas sem referência e essa segurança

relativa e à previsibilidade da vida individual- e à expectativa de vida

correspondentemente maior. A vida é mais longa, a morte é adiada. O

espetáculo da morte não é mais corriqueiro9.

6 Ibidem. p. 14. 7 Patrocínio Coité. Denominação dada à cidade de Paripiranga até 1933.

8 ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2012 9 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos: seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução, Plínio Dentzien.-

Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 15.

4

Isso acontece pelo fato das pessoas terem certo medo perante a morte e aos enfermos,

muitas vezes até mesmo os próprios filhos não querem os seus pais, que já se encontram

velhos e à beira da morte; por isso que se criaram os asilos, lugar destinado aos moribundos

esquecidos e deixados de lado para morrer. Esse processo é mais frequente em sociedades

metropolitanas e agitadas, pois “não se têm mais o tempo para cuidar dos velhos doentes”10.

Aí já remete a questão da efervescência dinâmica do capitalismo, visto que, ninguém quer

parar de ganhar dinheiro para ficar com um moribundo, há não ser o contrário disso, pessoas

que ganham para tal, e que muitas vezes maltratam o enfermo, como acontece quase que

todos os dias, e muitos poucos casos são noticiados nos jornais. Por fim, a visão e os costumes

mudaram veementemente em relação ao cuidado com o moribundo; a cultura agora é outra, e

não se sabe como essa cultura irá se portar com o passar dos anos.

3 RITUAIS DE ENTERRO

A morte é por natureza algo que impõe medo e é cheia de mistérios, tanto no cunho

religioso como na sua própria cultura e no desenrolar de suas práticas. A grande maioria das

pessoas passam boa parte das suas vidas e até mesmo toda vida sem se preocupar com a morte

e com o seu futuro, que por sua vez, é a única certeza que se pode ter, porém, no período

trabalhado neste artigo, os vivos sempre se encarregavam de cuidar para que tivessem uma

boa morte dos que partiam desse mundo. Eram realizadas diversas práticas de enterro que

garantiam, segundo eles, uma boa passagem para o reino dos céus.

Após o ritual da morte em casa, os familiares cuidavam para receberem bem as

pessoas que viriam ao velório. Ou seja, depois da ida do moribundo, cuidava-se para que tudo

ocorresse bem entre a casa e o momento final, o enterro.

Era comum após o falecimento de uma pessoa que morava longe da cidade, que os

parentes e amigos fossem até a casa mortuária11 encomendar o caixão, que era produzido na

hora; bastava que se levassem as medidas do defunto12: “vinha com a medida, às vezes já

tinha oito ou dez caixões prontos, quer dizer, só feito a madeira, depois a gente fazia e

10 10 Idem 11 Funerária pertencente ao pai de Dona Perpétua Batista do Nascimento Araújo 12 Entrevista concedida por Perpétua Batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016

na residência da Entrevistada.

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forrava com veludo ou de seda”13. Logo em seguida os responsáveis pela casa mortuária

forravam o caixão de veludo ou de seda, de acordo com o que os familiares conseguiam

pagar. Visto isso, nota-se que existia certo sentimento de companheirismo por parte de quem

vendia os caixões, até mesmo pelo fato de que, se os familiares não pudessem pagar o caixão

na hora, poderia parcelar em várias vezes; o que eles não queriam era que se jogasse o defunto

de qualquer forma, ou enterrá-lo numa rede. O que, diga-se de passagem, ocorria em alguns

casos.

Naquele tempo não tinha essas coisas não, naquele tempo o cemitério era

nos aceiros das estradas. Não foi do meu tempo nem nada, mas as pessoas

diziam que nessa rua aí da frente era onde jogava os mortos, quando morria

muita gente. Naquele tempo enterrava as pessoas era de rede14.

Outra dificuldade encontrada por quem tinha de enterrar um ente querido, era a

distância entre os povoados e a vila. Só existia casa funerária na vila do Coité; e somente duas

funerárias. Para que se pudesse chegar ao Coité15, em alguns casos era necessário que se

percorresse cerca de 40 km a pé, dependendo do povoado em que se vivia, “vinha de muito

longe meu filho! Vinha da Roça de Dentro, do Saco, São Francisco e ficava tudo aqui”16.

Como não existia nenhum tipo de automóvel ou outro meio, era tudo resolvido a pé ou

montados em mulas e cavalos; nem carroça existia, o que dificultava bastante na hora de ir

para a cidade enterrar os mortos.

Então, como se levava os defuntos entre grandes distâncias para realização do

processo de enterramento? Bem, essa é uma parte muito interessante da história da morte

nesta cidade. Quando se morria uma pessoa de muito longe, os familiares enviavam cerca de

quatro pessoas para irem pegar o caixão, e logo após retornavam com o caixão para

colocarem o defunto e enterrá-lo. Em seguida se fazia toda a despedida em sua casa; o

velório, e depois disso, o cortejo era extremamente exaustivo, as pessoas acompanhavam o

cortejo que durava basicamente o dia todo, ou seja, da morte até o enterro se levava quase que

um dia inteiro.

13 Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016

na residência da Entrevistada. 14 Idem. 15 Patrocínio Coité. Denominação dada à cidade de Paripiranga até 1933. 16 Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016

na residência da Entrevistada.

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No cortejo fúnebre ocorriam várias coisas bem estranhas e interessantes, como por

exemplo, beber cachaça no percorrer do caminho. Segundo os que faziam isso, era para que

pudesse aguentar a vasta jornada, que era bem cansativa. É necessário se dizer que o hábito de

beber cachaça vinha já do velório e da sentinela, as noites eram regadas a álcool, segundo

Dona Perpétua o as pessoas sempre se juntavam para beber nos enterros “sim, muito. Ali na

casa de pai o povo chegava no balcão e era só pegar as garrafas e bebendo”17. Por mais

incrível que se pareça, os familiares não achavam ruim essas coisas, pois era preciso que

tivesse muitas pessoas ao redor do morto; uma boa morte é uma morte acompanhada por

várias pessoas, dentre elas amigos e desconhecidos. A morte era quase que uma festa para as

outras pessoas, “é, hoje o povo não bebe mais, antigamente depois dos enterros vinha todo

mundo pra cá beber e comer, e hoje não hoje faz mais isso”18, às vezes tais atitudes eram

orientadas pelo ente querido que fora embora desse mundo, antes de morrer já deixava de

forma explicita como queria o seu enterro e o seu velório; explicava se queria fazer banquetes

e dar cachaça às pessoas que chegavam e que se faziam presentes no seu funeral.

Percebe-se que isso é uma questão puramente da mentalidade da época, o que hoje é

considerado como desrespeito, numa sociedade de outrora era sinônimo de companheirismo e

de carinho para com o morto. É importante ressaltar que antigamente os enterros eram

considerados um grande fato social, principalmente se o morto fosse uma pessoa conhecida da

sociedade. Ou seja, nos enterros dos mais pobres iam muitas pessoas e saia até uma pequena

nota no jornal, entretanto, quando se tratava da morte de uma pessoa reconhecida era tudo

mais vistoso, os jornais prestavam grandes homenagens e os velórios eram deslumbrosos, os

ricos e os pobres iam ver o gigantesco evento que era a morte e o velório de uma pessoa

reconhecida socialmente.

Nota-se que morrer deixou de ser um fato íntimo e restrito a poucas pessoas

transformando-se num processo social capaz de aglutinar um maior número

possível de participantes que buscavam neste rito de passagem confortar os

que sofreram a perda de um ente, como também a transformavam numa

importante oportunidade de interação social19

O pensamento social muda com o passar dos anos, mesmo que se demore muito, e o

que é mais interessante ainda, é o fato de algumas coisas existirem e resistirem ao tempo. É

17 Idem 18 Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016

na residência da Entrevistada. 19 CERQUEIRA, Rafael Santa Rosa. Nos Domínios de Hades: A representação Social da Morte em Aracaju/Se

Durante a Primeira República. Universidade Federal de Alagoas Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e

Artes Programa de Pós-graduação em História MACEIÓ/AL, 2014, p. 20.

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comum hoje em dia se vê funerais com banquetes e bastante cachaça, claro que isso ocorre

mais nas zonas rurais, mas é um fato que resistiu ao tempo e é por sua vez, é histórico. A

cultura social é expressa por vários meios inimagináveis; um desses meios é a morte e as suas

representações.

Continuando a analisar as características das práticas dos enterros que eram realizados

nesta cidade, existia outra peculiaridade; as missas de encomendação das almas. Eram

realizadas missas nas casas dos defuntos e à chegada à meia noite do velório, era preciso se

rezar o santo ofício. No dia seguinte, dia do enterro, iam para a casa dos defuntos os

rezadores20. Os mesmos eram encarregados de rezar até em Latim21, para que a alma pudesse

descansar em paz, e que só a partir daí poderia levar o morto para o cemitério e enterrá-lo.

Segundo Perpétua Batista do Nascimento Araújo, existia naquela época um enorme

companheirismo entre as famílias, não precisava nem chamar as pessoas para os enterros,

todos da comunidade já iam por conta própria “sim, não precisava nem chamar ninguém todo

mundo participava. E hoje tem carro de som tem tudo e mesmo assim não vai quase

ninguém”22, ou seja, a visão do homem para com a morte e o morrer muda com o passar dos

anos.

4 CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA “MORADA PARA AS ALMAS”

A morte nesta cidade era tida como um fato muito importante, e o respeito para com as

almas era muito grande, e tinha de ser prestado por todos que se diziam cristãos. Um fato

abalou a cidade, novas leis higienistas; “A novidade vinha da Europa, e foi divulgada no

Brasil independente por meio de uma campanha que fazia da opinião dos higienistas o

testemunho da civilização. O estudo da literatura médica da época permite entender melhor o

conflito de mentalidades em 1836”23, diziam que não poderia existir cemitérios dentro de uma

cidade, e tão menos se enterrar pessoas em pequenos cemitérios feitos em suas próprias casas

e dentro das igrejas; além das novas leis implementadas pelo Código de Posturas do

município de 1926, ou seja, já na República; que delimitava algumas ações para com o cortejo

20 Pessoas encarregadas de rezar para encomendar as almas. 21 Perpétua Batista do Nascimento Araújo também era encarregada de rezar em latim. 22 Entrevista concedida por Perpétua Batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016

na residência da Entrevistada. 23 23 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:

Companhia das Letras, 1991, p. 24.

8

fúnebre. “Art. 128. Fica prohibido os caixões abertos conduzindo cadáveres, sejam de

creanças ou de adultos. Pena de 30$000 de multa24”, e ainda outro importante artigo do

mesmo código que proibia os enterramentos depois das 18 horas25.

Essas práticas eram bastante comuns; no Brasil imperial, por exemplo, membros das

confrarias eram enterrados nas igrejas, até mesmo os padres eram enterrados nestes

ambientes. Mas que fora banida tal prática, justamente por causa da higiene.

Em 1804, um novo decreto estabeleceria detalhadas regras de enterro,

reafirmando a proibição de sepulturas dentro das igrejas, abolindo as covas

comuns, ordenando a distância entre os cemitérios e a cidade, e a distância

entre as sepulturas dentro dos cemitérios. O fim das covas comuns

representou, segundo Ariès, “uma ruptura completa com o passado”, embora

uma questão de economia de espaço se continua-se a utilizá-las em alguns

lugares, mas sempre com os cadáveres acondicionados em caixões. Assim,

na França, durante a primeira década do século XIX se montou o modelo

básico de sepultamentos que vigoraria até o final do século. Este o modelo

que inspiraria nossos reformadores cemiteriais26.

Pois, a igreja era um local público, onde várias pessoas a frequentavam, e que por isso,

o risco de contágio era muito grande. E não foi diferente com os cemitérios residenciais, nos

quais as mães enterravam seus filhos pagãos; (sem o batismo)27.

Na Vila de Patrocínio do Coité por volta de 1923, já se falava nisso; seria necessário

mudar o cemitério que se encontrava no centro da Vila. Segundo especialistas “médicos

higienistas”28, isso estava gerando várias doenças para a população. E realmente era algo

impensável para uma sociedade que se dizia estar evoluindo. Mas, como fazer um novo

cemitério? Onde realizar a construção? No terreno de quem? E como a população iria reagir

diante de tal fato?

Com esse novo objetivo a ser comprido para o benefício da vila e dos seus cidadãos,

os membros da igreja começaram a se reunir com políticos e pessoas influentes no meio

social, a fim de se chegar à um acordo sobre tal obra que necessitaria ser realizado o quanto

24 LEI Nº 8 de 11 de Abril de 1928. Códigos de Posturas do Município de Patrocínio do Coité. Capítulo VI

hygiene e salubridade pública. Artigo 128. p. 19. 25 Idem. Artigo 129. p. 19. 26 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:

Companhia das Letras, 1991, p. 78. 27 Idem.p. 24.

28 Idem.

9

antes. Nesta perspectiva o padre João de Mattos Freire de Carvalho iniciou os debates em prol

da construção do novo cemitério.

Aos 27 dias do mês de Maio de 1923, reunidos no paço municipal, cidadãos

representantes de todas as classes sociaes, sob a presidência do coronel

Joaquim de Mattos Carregoza, eleito por aclamação, foi dada a palavra a

quem d´ella se quisesse utilizar29.

Como se pode analisar, o fato da construção de um cemitério era tão importante que se

deu a palavra, tanto aos ricos e influentes no meio social quanto aos menos influentes e até

mesmo alguns pobres religiosos. O objetivo era comum a todos cristão da sociedade. A

representação da morte era algo muito forte nesta cidade, o respeito para com os mortos era

muito grande, e o que se queria acima de tudo, era fazer um local calmo para o descanso das

almas. Mas também, livrar as pessoas de possíveis doenças que se espalhavam pelas regiões, e

consequentemente faziam muitas vítimas.

Ainda analisando essa importante fase da história de Paripiranga; o padre João de

Mattos Freire de Carvalho teve o aval para construir um novo cemitério, logo se iniciaram as

buscas por um local que fosse apto a receber tal estrutura. O padre começou a procurar por

esse espaço, e dialogou para isso, com vários proprietários de terra da vila, foram alguns

meses de conversa até se chegar a um bom lugar e a um bom preço, o qual a paroquia pudesse

pagar. Então, finalmente o negócio fora concretizado, e a paroquia enfim tinha uma nova casa

para a acomodação das almas de Paripiranga.

Recebi do excelentíssimo senhor Cônego João de Mattos Freire de Carvalho

como pároco representante legal desta paroquia do Patrocínio do Coité a

cento e cinquenta mil reis. Proveniente da venda que nesta data faço a

mesma paroquia, do arrendamento e trabalhos agrícolas que tenho em minha

tarefa de terras nas imediações desta vila30.

Com o terreno comprado o padre iniciou as conversas com a população acerca da

ajuda que os mesmos deveriam prestar para a construção do cemitério, já que se tratava de

uma obra puramente pública e que serviria para todas as pessoas. Visto isso, de imediato o

mesmo conseguiu grande número de ajudantes, principalmente homens com carros de boi

para poder levar as pedras ao novo cemitério. Dessa maneira, analisando as atitudes da

29 O Paladino. Ata da reunião do paço municipal afim de se tratar da construção de um cemitério. ano IV, nº 31.

p. 02. 03 de junho de 1923. 30 Paróquia de Nossa Senhora do Patrocínio. Livro do Tombo I. Novo Cemitéio. Paripiranga. Bahia. 1921. p. 23.

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população perante a mudança do cemitério, pode-se dizer que foi de bom agrado para a

grande maioria da população do Patrocínio do Coité. Já que agora os entes queridos dos

vivos, estariam em paz e em pleno silêncio, bem afastados do centro da vila.

Outro benefício que essa mudança gerou para as pessoas, foi a questão da visitação

aos mortos. A partir de então poderia se visitar o seu morto de modo a ninguém o incomodar,

agora era só o visitante e o túmulo. Isso foi bem visto, entretanto, houve alguns prejuízos.

Vândalos atacavam de forma solapada, deixando alguns prejuízos no cemitério, era comum

que grupos passassem a noite no cemitério fazendo rituais macabros, nos quais existiam

aqueles em que se bebia a cachaça em crânios dos mortos, e houve para, além disso, um

caixão que fora brutalmente retirado do túmulo e posto a céu aberto, e por mais incrível que

se pareça, não existia cadáver no mesmo, muito provavelmente foi vítima de algum ritual de

magia negra31.

O afastamento do cemitério do centro da Vila também gerou alguns importantes

problemas. Todavia, como era de se esperar, a população tratou de pressionar os

representantes políticos e da lei, para que se pusesse um fim nesses indivíduos que estavam

perturbando o descanso das almas32.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este foi um trabalho que teve como objetivo central abordar um pouco das várias

práticas de enterramento da população da época, entendendo assim, as suas atitudes perante a

morte e o morrer. Analisando também, a representação da morte como um todo no cenário do

período. No qual se destacou as mais variadas formas de se pensar a morte, e tendo como

foco, o momento que marcou a cidade naquela época, ou seja, o momento da transferência do

cemitério, que se encontrava no centro da vila e que depois fora construído um novo mais

afastado. Todas essas observações minuciosas são frutos da nova História que se faz hoje em

dia, uma história voltada para as coisas que antes eram desprezadas. Tudo isso graças ao

movimento da Escola dos Annales, no qual se puderam abrir novos rumos e novas

perspectivas perante a história e a visão que o historiador tem de ter para com o seu objeto de

31 Entrevista concedida por Paulo Matos Andrade a Robério José Santos Junior em 12/03/2016 na residência do

Entrevistado. 32 Jornal O Paladino. Acervo do LEPH, Laboratório de Ensino e Pesquisas Históricas. Do Centro Universitário

UniAGES.2016.

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pesquisa. Dessa maneira, os estudos sobre a morte estão ganhando cada vez mais espaço na

historiografia contemporânea, pois, através de tais estudos é possível analisar a representação

social e as várias práticas culturais33.

FONTES

Entrevista oral a Perpétua Batista do Nascimento Araújo em 29/02/2016.

Entrevista oral a Paulo Matos Andrade em 12/03/2016.

LEI Nº 8 de 11 de Abril de 1928. Códigos de Posturas do Município de Patrocínio do Coité.

Capítulo VI hygiene e salubridade pública. Artigos 128 e 129. p. 19.

Livro de Tombo I da Paroquia Nossa Senhora do Patrocínio. Cemitério. Paripiranga-Bahia.

1921. p. 23.

Jornal O Paladino. Ata da reunião do paço municipal a fim de se tratar da construção de um

cemitério. Ano IV, nº 31. p. 02. 03 de junho de 1923.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. O homem perante a morte. Tradução de Ana Rabaça. Tradição

Portuguesa de P. E. A. 1997.

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

CERQUEIRA, Rafael Santa Rosa. Nos Domínios de Hades: A representação Social da Morte

em Aracaju/Se Durante a Primeira República. Universidade Federal de Alagoas Instituto de

Ciências Humanas, Comunicação e Artes Programa de Pós-graduação em História

MACEIÓ/AL, 2014.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés – Portugal:

DIFEL, 2002.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução,

Plínio Dentzien.- Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

33 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés – Portugal: DIFEL, 2002, p.

14.

12

LIMA, Rafaela Moreira de. A conveniência da morte: os rituais fúnebres e o consumo

mortuário em limoeiro do norte – Ce. XXVII simpósio nacional de história: conhecimento

histórico e dialogo social. Natal-RN. 22 a 25 de Julho. 2013.

OLIVEIRA, Ana Maria Ferreira de. Sob o signo da cruz, a malhada vermelha floresce: a

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