A Mulheer Na Epoca de Franco
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A mulher na Espanha de Franco: uma leitura de El prncipe destronado,
de Miguel Delibes.
The woman in Francos Spain: a reading of El prncipe destronado, de Miguel
Delibes.
Isabela Maria de Abreu1
Resumo:O romance El prncipe destronado, do escritor espanhol Miguel Delibes, oferece ao
leitor ricos elementos para analisar a mulher e a famlia na sociedade espanhola, durante o
governo do ditador Francisco Franco (1939-1975), apesar da censura que impedia o autor de
mostrar a sua viso de mundo e expressar os seus pontos de vista.
Palavras-Chave: literatura espanhola ps-guerra sociedade espanhola mulher famlia
Abstract: The novel El prncipe destronado, of the Spanish writer Miguel Delibes, provides the
reader with rich information to analyze the women and the family in Spanish society, during the
government of dictator Francisco Franco (1939-1975), despite the censorship that prevented
the author to show his world view and express his points of view.
Keyword: spanish literature post-civil war spanish society women - family
O panorama literrio espanhol dos anos que correspondem guerra
civil (1936-1939) e ao perodo franquista de ps-guerra (1939-1975) remete o
leitor a tempos de medo e censura. A expresso literria durante a guerra teve
uma postura militante e panfletria, revelando o compromisso moral e poltico
de escritores que, servindo a uma doutrina ideolgica e a uma causa poltica,
tanto em relao aos nacionalistas como aos republicanos, divulgavam os seus
dogmas, exaltavam ou rejeitavam a guerra ou, ainda, tentavam explic-la.
O processo de recuperao cultural, aps a guerra, pelos moldes do
general Francisco Franco provocaram prejuzos irreparveis para a Espanha.Como elementos configuradores desta crise destacam-se a medida do governo
de isolar culturalmente o pas, a fim de se evitar toda e qualquer influncia
perniciosa, e a perseguio aos artistas que, atingidos diretamente pela
represso e pela censura, morreram ou seguiram o caminho do exlio.
1 Professora de espanhol do Colgio Pedro II, no Rio de Janeiro, mestra em Literaturas
Hispnicas e especialista em Lngua Espanhola e Literaturas Hispnicas, est cursando odoutorado em Literatura Comparada, na subrea de Literatura Espanhola, na UFF.
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No incio do perodo de ps-guerra, isto , na dcada de 40, a literatura
comeou a mostrar uma lenta recuperao, sobressaindo duas vertentes:
enquanto uma se definiu pela produo de biografias de personagens
relevantes para a histria oficial, a outra enveredou por uma literatura
pessimista, evasiva e subjetiva, pelo desejo de esquecer a tragdia ou, talvez,
pelo medo das conseqncias que poderiam resultar de uma crtica, explcita
ou no.
A partir dos anos 50, um grupo de jovens de faixa etria aproximada
passou a publicar os seus trabalhos em revistas universitrias. O denominador
comum destes escritores era o fato de terem vivido a guerra quando crianas.
Ao contrrio de outros artistas, levavam para a sua obra o drama vivenciado, aexperincia desconcertante de ter passado a infncia em meio a perdas
materiais e afetivas e privados intelectualmente.
Carmen Laforet que j havia publicado anteriormente , Carmen
Martn Gaite, Juan Goytisolo, Luis Martn Santos, alm dos contistas Jess
Fernndez Santos, Josefina Rodrguez e Medardo Fraile, so alguns dos
nomes que compem essa gerao conhecida como de los nios de la
guerra. A crtica que se ocupou deste perodo literrio coincide em considerarque estes jovens chegaram com uma intensa liberdade interior e com uma
clara vontade de renovar e explorar novos caminhos.
A represso intelectual e a dificuldade de acesso aos meios de
transmisso da cultura eram, pelo menos para alguns, um grande incentivo.
Sujeitos a sanes, os escritores eram obrigados a obedecer s regras
impostas, o que estimulou a sua imaginao e a sua habilidade artstica,
levando-os a criar meios para vencer os obstculos da censura.Neste contexto literrio, ressaltamos a produo do escritor Miguel
Delibes. Nascido em Valladolid, no dia 12 de outubro de 1920, e falecido
recentemente, em 12 de maro de 2010, este romancista no se enquadra
cronologicamente na gerao de 1950, embora dialogue com ela em aspectos
mais profundos: sua obra interessa fundamentalmente por trabalhar temas
como a opresso, a liberdade, a morte, a religio, a justia, a tolerncia e a
solidariedade, o que revela a sua grande preocupao com o homem.
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Apesar da diversidade temtica, em sua obra prevalece uma particular
inquietao existencial entrevista por um enfoque sempre realista ao tratar do
homem e da sociedade, isto , os problemas da formao do homem e a
influncia das circunstncias pessoais sobre a sua atitude diante da vida. Ou
com as palavras do prprio Delibes:
Yo traslado a mis personajes los problemas y lasangustias que me atosigan, o los expongo por sus bocas.En definitiva, uno, si es sincero, se desdobla en ellos.Para m, en el novelista, sobre el sentido de observacin,debe prevalecer la facultad de desdoblamiento: yo soyas, pero pude ser de otra manera. E imaginar cmohubiera actuado de haber nacido en otro medio o en otra
circunstancia. (ALONSO DE LOS ROS, 1971, p. 58)
Delibes desponta como escritor apenas em 1948, quando ganha o
Prmio Nadal pelo seu primeiro romance La sombra del ciprs es alargada.
Durante as duas dcadas seguintes, ele publica as seguintes obras, nem todas
romances: An es de da (1949), El camino (1950), Mi idolatrado hijo Sis
(1953), Diario de un cazador(1955), Diario de un emigrante(1958), La hoja
roja(1959),Las ratas(1962),Cinco horas con Mario(1966), Parbola de un
nufrago (1969) e, em 1973, El prncipe destronado. Desde os anos 40,
entre romances, contos, livros sobre viagem e caa, vai somando os mritos de
mais de meio sculo de produo at receber, em 1999, o Premio Nacional de
Narrativa, por El hereje, obra de 1998.
No processo de envolvimento do leitor com o mundo ficcional de Miguel
Delibes, cresce a percepo de que dos dilogos entre os personagens
ressoam dados sociais e culturais, sugerindo um intertexto histrico. Detalhes
sutis, breves comentrios e at mesmo o silncio brotam de uma leitura maisatenta e nos remetem a um momento sombrio da histria recente da Espanha,
mais precisamente o perodo posterior guerra civil.
Dessa forma, um romance que a princpio poderia ser resumido como o
simples relato de um dia na vida de um menino de trs anos, suas peripcias e
descobertas, e cujo tema seria a tentativa dessa criana de recuperar a
ateno familiar quando deixa de ser o caula, passando a ser simplesmente o
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quinto filho, ganhou outra dimenso ao surpreender-nos com o complexo
contexto vislumbrado em suas entrelinhas.
A maneira discreta, porm contundente, de abordar e questionar temas
polmicos em sua obra nos estimulou a analisar os aspectos que so
claramente tocados ao longo do romance e a investigar os que no esto
explcitos, aquilo que apenas sugerido, a fim de descobrir, no mundo familiar,
a ponte criada pelo autor entre fico e histria.
A partir da fico, Delibes prope ao leitor a reflexo sobre temas
como: as relaes sociais, a condio da mulher, a educao dos filhos, a
moral das aparncias, as relaes de poder, a liberdade de opinio, a censura,
os tabus sociais, a religio, o sexo, o medo, questes, enfim, que abarcam ombito social, cultural, poltico e ideolgico, exploradas atravs das tenses,
dos conflitos e dos desequilbrios que compem esse ncleo familiar,
microcosmo da sociedade espanhola.
Embora s tenha sido publicado em 1973, o manuscrito de El prncipe
destronadodata de 15 de maro a 21 de abril de 1964 e a ao da narrativa
transcorre em um perodo prximo, exatamente no dia 3 de dezembro de 1963.
O argumento o relato do decorrer de um dia da vida de Quico, o protagonista,um menino de 3 anos que, fazendo jus ao ttulo, tenta recuperar a ateno
perdida aps o nascimento da irmzinha e de como os fatos desse dia e o
contato com aqueles com quem convive os pais, Pablo e Merche; os irmos,
Pablo, Marcos, Merche, Juan e Cris, em ordem cronolgica decrescente; e as
empregadas, Vtora e Domi repercutem em sua interioridade.
A justificativa do ttulo surge na voz de dois personagens. Tia Cuqui,
irm de Pablo, e Emilio, o mdico das crianas, tentam, em diferentesepisdios, convencer a me de Quico que o sentimento de abandono e
sofrimento causado pelo fato de um dia a criana ser el benjamn, o centro das
atenes, e no dia seguinte, apenas mais um na famlia pode causar-lhe alguns
complexos. Tia Cuqui argumenta: Hasta ayer dueo de la casa; hoy, nadie
(DELIBES, 1999, p. 88). A opinio do mdico ainda mais incisiva porque
representa a voz da cincia: Eso no es una invencin. Esa teora no es una
formulacin caprichosa. El nio que durante aos ha sido eje, al dejar de serlo
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se defiende; no se resigna; trata de llamar la atencin sobre s. (ibid., p. 137)
El prncipe destronadonos permite uma leitura amena e agradvel,
apesar da seriedade e da importncia do seu contedo. um livro envolvente
que mostra, em meio a um delicado humor, as dificuldades de ser criana
neste mundo feito, pensado e comandado pelos adultos. So essas mesmas
crianas que, apesar da sua inocncia e imaturidade, mostram ao leitor o
mundo injusto, incoerente e arbitrrio em que vivem.
Definidos em seu aspecto externo pelo narrador, os personagens
desse romance tm a sua personalidade revelada ao leitor atravs do seu
prprio discurso. O autor criou na fico personagens com fala e pensamento
que correspondem aos de uma pessoa real da faixa etria e, sobretudo, dascamadas scio-culturais em que esto inseridos. So seres simples, que
reconhecemos no nosso dia-a-dia e a partir dos quais vemos brotar questes
pessoais, existenciais, sociais e inclusive, ideolgicas. Conforme o prprio
Delibes comenta, o principal dever do romancista
Crear tipos vivos [...]. Unos personajes que vivan deverdad pueden hacer verosmil un absurdo argumento,relegar, hasta diluir su importancia, la arquitectura
novelesca y hacer del estilo un vehculo expositivo cuyaexistencia apenas se perciba. Poner en pie unospersonajes de carne y hueso e infundirles aliento a lolargo de doscientas pginas es, creo yo, la operacin msimportante de cuantas el novelista realiza. (VILANOVA inMiguel Delibes. El escritor, la obra y el lector. 1991, p.131)
Neste sentido, preciso pensar a relao entre fico e leitor,
potencializada pelo escritor ao dar voz ao personagem, aproximando o leitor
dos acontecimentos narrados. O autor os concebe em sua totalidade,revelando a personalidade, o carter e a viso de mundo de cada um deles.
Conforme avanamos a leitura, os personagens vo tomando forma e ns,
leitores, vamos conhecendo-os essencialmente por seus atos e pelo que
dizem.
Delibes d voz aos personagens para que eles mesmos se mostrem.
Essa estratgia no permite uma posio passiva a quem l. A obra nos
envolve, pois o texto inquieta, levando-nos a repensar as vises de mundo e as
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atitudes dos personagens. A reflexo e a valorizao ficam por conta do leitor,
pois o autor em momento algum emite sua opinio sobre os comportamentos
dos personagens. No julgar nem condenar, apenas observar e narrar: assim
Delibes aprendeu no jornalismo, a sua escola de narrador.
Fundamentados nos princpios da verossimilhana e da veracidade,
ficcionistas e historiadores, respectivamente, pinam certos elementos para
representar a realidade. Enquanto leitores do discurso ficcional ou
historiogrfico, no podemos crer ingenuamente no acaso ou na imparcialidade
quanto seleo de temas, construo de personagens e descrio de cenas
ou fatos. Todo recorte da realidade traz em si uma intencionalidade, pressupe
o silenciamento de vozes, a ocultao de fatos, o preenchimento de lacunas ereflete, portanto, uma viso de mundo que o escritor de fico ou o historiador
querem revelar. rico Verssimo observa, pela boca de um dos seus
personagens, que
Ainda quando um escritor quer ser imparcial eabsolutamente objetivo, na simples escolha dos temas,das personagens, na pura disposio das cenas eles estdando a sua opinio sobre a vida, o mundo, os homens.(apudCHAVES, 1991, p. 43)
So esses dados que nos sustentam na afirmao de que Miguel
Delibes recupera o aspecto scio-cultural e, portanto, histrico, no romance em
questo. Observamos esta contextualizao nas entrelinhas da criao
literria, no somente como referncia ou mero pano de fundo, seno como
elemento motivador das relaes sociais, condicionador da existncia e da
conduta dos personagens na fico. Segundo Antnio Cndido, s podemos
entender a obrafundindo texto e contexto numa interpretao dialticantegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicavapelos fatores externos, quanto o outro, norteado pelaconvico de que a estrutura virtualmenteindependente, se combinam com momentos necessriosdo processo interpretativo. Sabemos, ainda, que oexterno, (no caso, o social) importa, no como causa,nem como significado, mas como elemento quedesempenha um certo papel na constituio da estrutura,
tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 1985, p. 4)
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Como j dissemos, nesse romance, o dilogo entre fico e histria
criado a partir da representao de uma famlia espanhola, cujo cotidiano
corresponde dcada de 60, momento que ainda evoca o perodo da guerra
civil e no qual a sociedade ainda vive sob o comando e o rigor do general
Francisco Franco.
Conforme foram desaparecendo as penrias da imediata ps-guerra, o
pas comeou a sofrer uma tmida abertura econmica e cultural. No final da
dcada de 50 e ao longo dos anos 60, a indstria, estagnada durante a guerra
civil, retomou o seu desenvolvimento e o governo comeou a estreitar laos
com os Estados Unidos, em uma relao que influenciou, tambm, o aspectocultural. Finalmente, o sacrifcio e a economia comearam a dar passagem a
uma incipiente prosperidade e ao consumo.
Na narrativa, o autor vai-nos situando temporalmente ao selecionar
passagens do dia de uma famlia que configuram o marco scio-cultural que
acabamos de mencionar. Entre os irmos mais novos, por exemplo, a
revistinha La Conquista del Oeste explcita referncia expanso dos
Estados Unidos , lida, relida e dramatizada, durante o dia, por Juan, oquarto dos seis filhos. Merche, mais nova apenas que Pablo, dana ao som do
twiste do rock que tocam em sua vitrola, evidenciando, em primeiro lugar, a
influncia cultural norte-americana naquele perodo e, em segundo, a entrada
de aparelhos eletrnicos no pas.
Em 1952, fundada a Televisin Espaola. Na fico, Quico e Juan
pedem me que os deixe ir ao apartamento da Ta Cuqui, irm de Pablo, o
pai, para assistir, pela televiso, ao desenho animado Conejo y Porky(DELIBES, 1999, p. 153), pois a famlia ainda no havia adquirido a sua. Na
vida real, a expanso deste meio de comunicao tomou conta de todo o pas,
embora lentamente. Enquanto isso, como tambm nem todos podiam compr-
la, foram colocadas em bares ou em teleclubs onde as pessoas assistiam,
principalmente, aos filmes americanos, s transmisses esportivas e aos seus
cantores favoritos.
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Em Crnica sentimental de Espaa, Manuel Vzquez Montalbn
comenta que o neoliberalismo que sucedeu autarquia, em 1958, foi
responsvel por essa invaso cultural (VZQUEZ MONTALBN, 1998,p. 179).
Na prtica, isto significou o fim da recesso, o relativo crescimento do pas e a
conseqente transformao do perfil do povo espanhol em uma sociedade de
consumo. Turismo, moda, gastronomia, televiso e indstria automobilstica
tornaram-se os novos focos de ateno e de investimento do pas nos felices
sesenta (ibid., p. 175), refletindo o momento em que o comportamento e os
bens de consumo norte-americanos comearam a ser difundidos por toda a
Espanha.
Este avano, fascinante para os jovens, contido, no entanto, pelaresistncia de alguns grupos extremamente conservadores. O mundo
aparentemente harmonioso, em que florescia o crescimento econmico e as
mudanas comeavam a surgir, contrastava com uma sociedade que ainda
estava presa s rgidas normas de conduta de Franco. Os anos 60, na
Espanha, foram palco de uma simbiose entre a opresso de um sistema
poltico autoritrio, a sujeio aos dogmas catlicos e os esparsos ventos que
traziam um pouco das mudanas do mundo nessa dcada e o modo de vidaamericano.
Na vida pessoal e familiar, revelavam-se as contradies que vinham
desenvolvendo-se entre os costumes particulares e a ideologia oficial,
principalmente nas classes urbanas mdia e alta. Neste sentido, parece-nos
fundamental retroceder s dcadas anteriores, quando esses conflitos sociais
se manifestaram, e esclarecer as circunstncias em que ocorreram.
Na dcada de 30, as reformas introduzidas pelos republicanosinfluenciaram decisivamente o statusda mulher na sociedade, dando-lhe direito
ao voto, legalizando o casamento civil e o divrcio, instaurando direitos
trabalhistas iguais e uma legislao que amparava as mes trabalhadoras,
enfim, resolues que tornavam a participao da mulher mais ativa em todas
as esferas da sociedade. O avano era to significativo que, em 1936, foi
criado um grupo chamado Mujeres Libres, uma organizao exclusivamente
feminina que mantinha vnculos com o movimento anarquista.
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Contudo, a reao contra esses progressos no tardou a chegar. O
retrocesso j se fazia notar durante a guerra, mas se radicalizou no regime
franquista, recuperando valores tradicionais e retrgrados. Com a queda da
Repblica, as mulheres que se destacavam publicamente por sua ao
progressista foram obrigadas a se exilar ou desapareceram nas prises.
Responsvel pela orientao da mulher, a Seccin Femenina da
Falange grupo poltico resultado da unificao em 1937 de vrias
organizaes fascistas e nacionalistas que apoiaram Franco havia mobilizado
as espanholas para o trabalho social durante a guerra civil. Sob o controle
rigoroso de Pilar Primo de Rivera e sempre de acordo com os preceitos
catlicos, essa instituio defendia arbitrariamente que o lugar mais apropriadopara a mulher era a casa.
O regime autoritrio implantado com a vitria de Franco, em 1939,
manifestou desde o incio a sua poltica reacionria em relao mulher.
Perdidos todos os direitos civis, no podia sequer herdar a herana do marido
caso ficasse viva; ela seria passada diretamente aos filhos homens ou ao
parente homem mais prximo. A partir de ento, o casamento civil e o divrcio
foram anulados com ao retroativa e o aborto legalizado foi proibido.Carmen Martn Gaite (MARTN GAITE, 1996, p. 91) destaca o abismo
que separou a vida familiar anterior guerra, tranqila e sem normas rgidas,
opondo a liberdade disciplina e censura impostas em todos os lares a partir
de 1939, quando Franco assumiu o poder. Neste mesmo ano, entrou em vigor
uma lei que proibia as escolas mistas, reduzindo o contato entre meninos e
meninas praticamente famlia. No de se estranhar, portanto, anos mais
tarde, os desencontros, os desentendimentos e o mtuo desconhecimentodecorrentes desse afastamento.
De acordo com documentos da poca, o maior sonho da mulher era o
de se casar e o seu grande desejo, ser subserviente a um homem. Quando
trabalhava era por necessidade, pois trabalhar fora era um risco para o pudor
feminino. Sempre que questionadas alegavam que to logo encontrassem o
Prncipe Azul deixariam o emprego para seguir la verdadera carrera de la
mujer (ibid., p. 48). Em 1944, a revista Medinapublicou o seguinte texto:
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La vida de toda mujer, a pesar de cuanto ella quierasimular o disimular , no es ms que un continuo deseode encontrar a quien someterse. La dependenciavoluntaria, la ofrenda de todos los minutos, de todos los
deseos e ilusiones es lo ms hermoso, porque es laabsorcin de todos los malos grmenes vanidad,egosmo, frivolidad por el amor. (apud MARTN GAITE,1996, p. 45)
Trazer de volta a mulher ao lar, resgat-la das garras do capitalismo
industrial para voltar a ser a dona da casa era o que pretendia o Estado. A fim
de preparar as moas para o casamento, eram obrigatrias as seguintes
disciplinas nos colgios: Religio, Cozinha, Formao familiar e social,
Conhecimentos prticos, Corte e Costura, Floricultura, Cincia domstica,
Puericultura, Canto e Economia domstica, com os seus respectivos contedos
que contribuiriam para a formao da esposa ideal. Nenhuma espanhola
escapava da influncia e do poder da Seccin Femenina, exercido pelo Servio
Social, cuja participao era requisito bsico, a partir de 1945, para que
futuramente pudesse trabalhar, estudar, tirar passaporte ou participar de
qualquer atividade cultural.
No que diz respeito ao futuro da mulher, ela podia decidir entre casar-
se e a vocao de ser freira. A opo por ser simplesmente solteira era
marcada pelo preconceito. Algumas mulheres chegavam a ter nvel superior,
mas o destino de todas elas era casar-se. Porm, muitas no se casavam
tambm, no porque fossem contrrias idia, mas devido escassez de
homens, vtimas da guerra.
Benevolncia, doura, suavidade, amabilidade, otimismo e bondade
deveriam ser as caractersticas da mulher espanhola, muy mujer (ibid., p.27)em sua essncia, como se costumava dizer no final da dcada de 40. Caso a
personalidade da moa desencontrasse desses itens que acabamos de citar,
ela estaria, portanto, fadada a vestir santos. Para que fosse escolhida por um
homem, por exemplo, ela deveria ter determinadas qualidades, como ser
Modesta, trabajadora y capaz de dirigir una casa. Quesepa lavar, cocinar, recibir y despedir a las visitas, tratarcon la servidumbre y los vecinos, sacrificada, afable,
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delicada y de buen conformar. (OTERO apudESCABIAS,1998, p. 44)
Em El prncipe destronado, o ponto de vista machista e cerceador de
Pablo, o marido, assim como o de seu pai, a quem ele se refere
constantemente, para enfatizar as suas idias, encontram respaldo em
documentos oficiais da poca, isto , nas cartilhas franquistas sobre o
comportamento da mulher. Assim, em relao ao marido, o documento do
jesuta Vicente Lousa, intitulado El marido y t,sugere:
No haga la mujer gala de sus conocimientos si es queposee una formacin intelectual mejor que la del esposo.
Al hombre le gusta sentirse siempre superior... Sinteligente. Hazle sentir como tu dueo, hazle sentir seorde todo, entonces no te lo har sentir l a ti. (apudESCABIAS, 1998, p. 43)
Importa esclarecer que Merche, a me, a dona-de-casa e a esposa
dedicada aos filhos, aos afazeres domsticos e ao marido, de acordo com as
regras sociais vigentes na poca em que a histria relatada. No entanto, ela
contraria o ideal machista de Pablo: uma mujer [que] no tenga la pretensin de
que piensa e com limitado campo de atuao: la mujer, en la cocina
(DELIBES, 1999, p. 76).
Nos anos 60, em plena represso franquista, as normas eram seguidas
ao p da letra. A fim de remediar o estrago demogrfico causado pela guerra
na opinio dos militares, o nmero de mortos foi de aproximadamente 500 mil;
para os republicanos, 1 milho , Governo e Igreja estavam empenhados em
reforar o vnculo matrimonial. Franco incentivava inclusive financeiramente as
famlias numerosas. Desta forma, enquanto em toda a Europa, a mulhercontinuava sua corrida pela igualdade com o homem, na Espanha ela estava
reclusa entre as quatro paredes, dotada da sublime misso de cuidar do
marido e da numerosa famlia, pois outra de suas obrigaes era a de repovoar
o pas:
Quien voluntariamente tenga menos de tres hijos y suconciencia no le recrimine [...] ser responsable de undelito contra la ciudadana y el patriotismo. (OTERO apud
ESCABIAS, 1998, p. 44)
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Notamos que, apesar das desavenas afetivas entre o casal Pablo e
Merche, ela no deixa de cumprir o dever de esposa: acaba de nascer Cris, a
sexta filha. Dita a cartilha franquista que
un imperdonable error la negacin al esposo del dbitoconyugal. La mujer no debe, bajo ningn pretexto, negar asu marido lo que le pertenece [...] (apud ESCABIAS,1998, p. 43)
Merche um personagem paradoxal: uma pessoa que
aparentemente est conformada com a sua situao conjugal pois, a princpio,
continua a rezar pela cartilha da boa e exemplar esposa. o que acusamosquando a mecnica bata de flores rosas y verdes (ibid., p. 12) passa a ser os
prpados azules, labios rojos e dientes blanqusimos (ibid., p. 59), para
receber o marido que chega para almoar. Uma vez mais, entram em cena as
normas conjugais ditando que a esposa deveria passar o dia cuidando da casa
e dos filhos e, como em um passe de mgica, embora esgotada no final da
jornada, transforma-se em uma mulher impecvel, bem humorada, disposta e
sedutora para receber o marido que chegava do trabalho, conforme lemos a
seguir:
El mal humor, los quehaceres desagradables, el desalioy la casa revuelta se dejan para cuando el esposo estausente del hogar. Hay que evitar que l os veaenfundadas en esa vieja bata que usis para la limpieza,calzadas con unas zapatillas deterioradas, greudas y malaseadas. [...] Es preciso hacerle olvidar su fatiga, sudisgusto y su enfado, mostrndose cariosa,interesndose por sus asuntos y rodendole de
atenciones que... le hacen deseable el hogar y lacompaera que as sabe ensuavecer su vida. (MARADEL PILAR MORALES apud MARTN GAITE, 1996, p.120)
No entanto, em outra passagem, nos deparamos com a verdadeira
Merche, a qual, embora continue representando o papel da esposa e da me
perfeita, evidencia em sua fala a realidade: a da insatisfao. Exausta e
estressada em meio a tantas obrigaes, ela desabafa: Estoy aburrida de
nios! No puedo ms! (DELIBES, 1999, p. 54).
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A relao de Pablo e Merche, pais de Quico, extremamente porosa e,
conseqentemente, o dilogo entre eles serve apenas para reiterar os seus
indissolveis pontos de vista e como ponte para a constante agresso entre
ambos, tornando visvel para o leitor que o conflito ntimo reflete um choque de
mentalidades. Pablo, o pai, se mantm imvel em sua postura conservadora e
autoritria, tpica de uma sociedade paternalista: precisa de algum que pense
como ele e esteja sob seu comando. Mam se contrape como um
personagem pacifista que tenta argumentar defensivamente para mostrar-lhe
que no o dono da verdade.
O autor cria a partir de Pablo e Merche os paradigmas de dois modos
de ver a Espanha, duas ideologias: o conservador e o progressista, oconvencional e o liberal, los buenos e los malos, as duas Espanhas de
Franco. Delibes aproveita a discusso familiar e, mais especificamente,
matrimonial, como pretexto para discutir uma questo social e ideolgica: o
confronto entre os dois segmentos que deram origem guerra civil espanhola.
A obra passa a ser ento um romance de crtica social clara, onde a estrutura
familiar e o sistema social espanhol dos anos 60 ficam expostos.
Podemos afirmar que os ideais de Franco se atualizam em Pablo, opai, na crena obstinada em seus dogmas religiosos, morais e ideolgicos. O
choque entre os personagens no se reduz ao mbito individual. Delibes
transita do familiar para o coletivo; do pessoal ele atinge o social. A tirania do
sistema se reflete no cidado e por extenso s relaes familiares: os filhos
obedecem aos pais; a mulher, ao marido; e todos obedecem ao Caudillo,
Franco. ele, o pai, quem tem o poder decisrio na casa, decide o que os
filhos e a esposa fazem e tem a pretenso de decidir tambm o que devempensar. Da mesma forma como o generalsimo conduz o pensamento e as
aes do povo espanhol, Pablo quer control-los em sua ditadura familiar:
Ideas? [...]; sus ideas sern las mas, creo yo. (ibid., p. 68)
O pai a figura do poder, do patriarca, e tal qual um ditador mantm-se
distante de todos, transformando-se em um ser autoritrio para a esposa e
para o filho mais velho, devido a sua incapacidade de considerar a opinio de
ambos, e em um mito para os filhos mais novos, pois, por no terem uma
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percepo mais ampla da realidade, vem-no como um homem muito corajoso,
que lutou na guerra do lado dos bons e matou os maus para defender o pas.
Assim como Franco se ergueu e tomou o poder em meio ao clima de
instabilidade que reinava no pas, Pablo, ao sentir-se afrontado na discusso
familiar, lana mo da represso, tentando impedir que os demais se
expressem. No entanto, isso s serve para demonstrar a fragilidade do seu
poder e o medo de ter questionada a sua viso de mundo. O exerccio de sua
autoridade se sustenta, neste caso, pela violncia explcita os pratos que
voam e os palavres com os quais defende suas idias e, principalmente,
atravs do seu discurso tido como nico e absoluto, impondo constantemente o
silncio aos demais.A atitude apaziguadora de Merche revela ao leitor o seu desejo de
esquecer as intrigas do passado e de apagar as diferenas que levaram o povo
ao confronto. So suas as ideias que ela apresenta como sendo do filho: se
me ocurre que a lo mejor Pablo piensa que es ms hermoso no prolongar por
ms tiempo el estado de guerra. (ibid., p. 70). Entretanto, sob outro ponto de
vista, sua postura pode tambm suscitar alguma dvida quanto sua posio
ideolgica, podendo ser considerada como tpica do vencedor.J se disse que o desejo de paz no deve ignorar o passado, j que as
relaes de hoje trazem os resqucios daquele perodo, ou seja, o passado
deve ser visto como uma lio para se refletir e no para ser reproduzido.
Aceitar o passado sem question-lo permitir a sua pemanncia no presente
como um fantasma. A ausncia de dilogo entre as partes em
desentendimento impede a transformao do passado em um aprendizado. O
que falta, portanto, estabelecer com este passado uma relao positiva,resolver as pendncias para que no se corra o risco de v-lo repetir-se
diariamente no prprio seio familiar.
O plano ideolgico tanto ficcional como histrico do perodo em
questo no visualiza a perspectiva de uma ao que leve mudana. A
famlia/povo parece aceitar o discurso imposto pela figura onipotente do pai-
marido/ditador que os envolve em um ambiente repressor e autoritrio. Carmen
Martn Gaite corrobora esta afirmao ao dizer que, nos anos 50, conforme iam
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desaparecendo as marcas externas da guerra, notava-se tambm uma
mudana na mentalidade dos adolescentes, aquellos para quienes la mencin
a la guerra civil empezaba ya a ser una aburrida monserga. (MARTN GAITE,
1996,p. 14)
Consideramos, no entanto, que a atitude de Merche, aparentemente
conformada, visa fundamentalmente paz familiar e corresponde s
circunstncias scio-culturais em que est inserida. Por mais que discorde do
marido, h um muro social que os separa e que no lhe permite a contestao.
Se de certa forma ela se comporta com alguma apatia, isto se deve ordem
estabelecida e conscincia de sua impotncia para solucionar a crise que
provm da ditadura da palavra de Pablo.O que se repete h sculos pode no ser bom ou correto, porm os
adultos parecem estar mais confusos e perdidos que os prprios jovens e
preferem tampar os ouvidos ou eliminar o outro ao invs de refletir. Em El
prncipe destronado, a insegurana de Merche a respeito do presente e do
futuro tamanha que o prprio filho indaga: T no ests segura de nada,
verdad mam? (DELIBES, 1999, p. 157). No ltimo captulo, mais
especificamente nas ltimas linhas, este questionamento afirmado na voz daprpria personagem:
Lo malo es luego [...], el da que falta Mam o se dancuenta de que Mam siente los mismos temores quesienten ellos. Y lo peor es que eso ya no tiene remedio.(ibid., p. 169)
Essa instabilidade abrange o aspecto poltico, mas domina sobretudo a
relao matrimonial. A opo por evitar o confronto definitivo com o marido se
deve tambm presso social que a mulher sofria no plano pessoal. Consta
em documentos da poca que a censura oficial no permitia reclamaes
conjugais e cabia mulher
guardar las apariencias para no dar al traste con laestabilidad de las instituciones intocables. Si el maridoengaaba a la mujer, con tal de que lo hiciera sindemasiado escndalo y de tapadillo, lo mejor era hacercomo si nada, que no se enterara nadie, para que loshijos pudieran seguir viendo a sus padres aliados a loesencial, en la tarea de sacarlos adelante a ellos, de
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ensearles a amar la Espaa nueva, de prohibirles cosas.El padre junto a la madre como un bloque indestructibleante el cual se estrellaba cualquier actitud que no fuera ladel respeto. (MARTN GAITE, 1996, p. 21)
No se pode negar, entretanto, que ao longo do romance, Mam vai
crescendo como personagem e como sujeito, e desponta como a possibilidade
de equilbrio nesse universo familiar, recusando-se a assimilar o radicalismo do
marido e tentando evitar que o filho tambm se submeta ao seu discurso
absolutista. Ela pensa e no mais repete os conceitos que lhe foram impostos.
O avental florido que at ento s colocava ordem na casa comea a britar a
inrcia da sua vida. Ao defender as suas opinies e tomar atitudes, ela exclui apossibilidade de anulao, salva-se da frustrao e deixa entrever uma
mudana de mam mulher Merche.
Bibliografia
ALONSO DE LOS ROS, Csar. Conversaciones con Miguel Delibes.
Novelas y cuentos. Madrid: E.M.E.S.A., 1971.
DELIBES, Miguel. El prncipe destronado. 25. ed. Barcelona: Destino, 1999.
CNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 7. ed. So Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1985.
CHAVES, Flvio Loureiro. Histria e literatura. Porto Alegre: Editora da
Universidade (UFRGS), 1991.
ESCABIAS, Juana. Sumisas e ignorantes. Qu difcil ser mujer! In: Tiempo
de hoy.n 832. Espaa: abril, 1998. p. 42-43.
MARTN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra espaola. 3. ed.
Barcelona: Anagrama, 1996.
Miguel Delibes. El escritor, la obra y el lector. Actas del V Congreso de
Literatura Espaola Contempornea.Universidad de Mlaga, 1991. Barcelona:
Anthropos, 1992.
VZQUEZ MONTALBN, Manuel. Crnica sentimental de Espaa.
Barcelona: Grijalbo, 1998.