A mulher no discurso publicit rio - ucb.br · A MULHER NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: IDEOLOGIA E...

24
A MULHER NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: IDEOLOGIA E INDIVIDUALIZAÇÃO DO SUJEITO * Gisele Pinheiro dos Santos RESUMO: Este Trabalho de Conclusão de Curso teve por objetivo compreender o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina no discurso publicitário, analisando discursivamente o slogan “Você pode ser o que quiser”, da empresa de cosméticos O Boticário, a partir do referencial teórico da Análise do Discurso. Os resultados da análise permitiram-nos perceber os efeitos ideológicos na propaganda do Boticário, evidenciando que ao mesmo tempo em que o discurso publicitário apresenta ao sujeito uma liberdade de escolha, submete-o cada vez mais ao mercado de consumo. Palavras-chave: Sujeito-mulher; Beleza; Discurso da publicidade ABSTRACT: The goal of this paper is to comprehend the process of sense production in relation to female beauty in the advertising discourse by analyzing the slogan “You can be whatever you want” by Brazilian cosmetics company O Boticário on the basis of the theoretical referential of the Discourse Analysis. The results of this analysis allow us to perceive the ideological effects in the O Boticário’s advertisement, evincing that the advertising discourse offers the citizen a freedom of choice and, at the same time, submits him to the consumption market increasingly. Keys words: Woman citizen; Beauty; Publicity discourse INTRODUÇÃO O século XX foi uma época de significativas mudanças para as mulheres, não apenas por sua efetiva participação no mercado de trabalho, mas pela transformação de sua vida privada, de sua relação com o corpo, pela construção de sua própria sexualidade. No livro O mundo das mulheres (2007), o sociólogo Alain Touraine afirma que as mulheres trazem em seu interior o desejo de descobrirem-se a si próprias e procuram experimentar uma vida transformada por elas, construindo uma imagem de si como mulher. A construção de si, de acordo com o autor, é construção de uma sexualidade através de uma * [email protected]

Transcript of A mulher no discurso publicit rio - ucb.br · A MULHER NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: IDEOLOGIA E...

A MULHER NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: IDEOLOGIA E

INDIVIDUALIZAÇÃO DO SUJEITO

*Gisele Pinheiro dos Santos

RESUMO: Este Trabalho de Conclusão de Curso teve por objetivo compreender o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina no discurso publicitário, analisando discursivamente o slogan “Você pode ser o que quiser”, da empresa de cosméticos O Boticário, a partir do referencial teórico da Análise do Discurso. Os resultados da análise permitiram-nos perceber os efeitos ideológicos na propaganda do Boticário, evidenciando que ao mesmo tempo em que o discurso publicitário apresenta ao sujeito uma liberdade de escolha, submete-o cada vez mais ao mercado de consumo.

Palavras-chave: Sujeito-mulher; Beleza; Discurso da publicidade

ABSTRACT: The goal of this paper is to comprehend the process of sense production in relation to female beauty in the advertising discourse by analyzing the slogan “You can be whatever you want” by Brazilian cosmetics company O Boticário on the basis of the theoretical referential of the Discourse Analysis. The results of this analysis allow us to perceive the ideological effects in the O Boticário’s advertisement, evincing that the advertising discourse offers the citizen a freedom of choice and, at the same time, submits him to the consumption market increasingly. Keys words: Woman citizen; Beauty; Publicity discourse

INTRODUÇÃO

O século XX foi uma época de significativas mudanças para as mulheres, não apenas

por sua efetiva participação no mercado de trabalho, mas pela transformação de sua vida

privada, de sua relação com o corpo, pela construção de sua própria sexualidade.

No livro O mundo das mulheres (2007), o sociólogo Alain Touraine afirma que as

mulheres trazem em seu interior o desejo de descobrirem-se a si próprias e procuram

experimentar uma vida transformada por elas, construindo uma imagem de si como mulher. A

construção de si, de acordo com o autor, é construção de uma sexualidade através de uma

* [email protected]

2

experiência do corpo, na qual o sexo ou o desejo sexual é um de seus aspectos principais.

Nesse sentido, o corpo apresenta elevada importância como espaço de construção de si, o que

pode explicar o fato de muitas mulheres desejarem transformá-lo por meio da maquiagem e

tratamentos estéticos ou, melhor dizendo, o fato de a sociedade de consumo converter a

beleza corpórea em objeto de desejo.

Neste trabalho, procuramos compreender o processo de produção de sentidos sobre a

beleza feminina no discurso publicitário; mais precisamente, como o discurso da mídia produz

sentidos sobre o sujeito-mulher, interferindo em seus processos de identificação.

Selecionamos como corpus de análise o slogan “Você pode ser o que quiser”, da empresa de

cosméticos O Boticário, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise do

Discurso.

Estruturamos o nosso trabalho em três partes. Em “Sujeito e sentido: uma perspectiva

discursiva”, apresentamos alguns conceitos sobre a Análise do Discurso, assim como a

constituição de nosso corpus de análise. Na segunda parte, “Língua e Memória”, fizemos um

breve percurso pelos sentidos sobre a beleza feminina em algumas épocas a fim de relacionar

dizeres presentes e dizeres armazenados na memória. E em “Texto e Linguagem: os sentidos

tomam corpo” procedemos à análise lingüística e discursiva do nosso corpus “Você pode ser

o que quiser”. As “Considerações finais”, a modo de um fecho, que se cobra de um autor,

trazem alguns resultados que abrem caminhos para novas pesquisas.

1. SUJEITO E SENTIDO: UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA

A Análise do Discurso é uma área do conhecimento que trata das palavras em

movimento e percorre alguns caminhos para compreender de que modo elas significam, uma

vez que os sentidos não estão soltos e as palavras são múltiplas; elas não significam o tempo

todo da mesma maneira, mas são carregadas de sentidos; sentidos que podem ser sempre

outros, mas não qualquer um, porque temos a história. História e sentidos são, pois,

inseparáveis para a AD.

A reflexão promovida pela AD, de origem francesa, surge na década de 60 com

Michel Pêcheux e resulta da relação entre as seguintes áreas do conhecimento: Materialismo

Histórico, Lingüística e Psicanálise, tendo cada uma delas a sua especificidade. À luz desses

campos de conhecimento, a Análise do Discurso constitui o discurso como novo objeto de

estudo, o que, de acordo com Orlandi, afeta essas formas de conhecimento em seu conjunto.

3

Segundo a autora, “o discurso é palavra em movimento, prática de linguagem: com o discurso

observa-se o homem falando. (...) O trabalho simbólico do discurso está na base da produção

da existência humana” (Idem, p. 15).

Desse modo, a Análise do Discurso visa compreender e refletir sobre como um objeto

simbólico, no nosso caso um slogan1 publicitário, produz sentidos e de que forma ele constitui

significâncias para e por sujeitos. Essa reflexão permite ainda descobrir outras maneiras de

compreender e produzir novos sentidos, rompendo, assim, com os sentidos já estabilizados,

produzindo novas práticas de leitura.

É na língua que o sentido é construído na relação do sujeito com a história. O sujeito

discursivo atravessa a linguagem e ao mesmo tempo é atravessado por ela, através do

simbólico. Parafraseando Orlandi (2003), podemos dizer que, em nosso trabalho, é no corpo a

corpo sobre o corpo com a linguagem que o sujeito (se) diz. Ao dizer, o sujeito significa a

partir de condições determinadas, de um lado pela língua, de outro pela história, pela memória

do já-dito. Para Orlandi, a memória é “um saber discursivo que torna possível todo dizer e

que retorna sob a forma do pré-construído, pela memória do já-dito que está na base do

dizível, sustentando cada tomada da palavra” (Idem, p. 31). Nesse sentido, as palavras

dialogam umas com as outras e os dizeres evocam outros dizeres “realizados, imaginados ou

possíveis” (p. 39).

A memória, por sua vez, é afetada pelo esquecimento. Os sujeitos “esquecem” o que já

foi dito – um esquecimento inconsciente – para ao se identificarem com o que dizem se

constituírem em sujeitos. Há duas formas de esquecimento no discurso, segundo a AD

(PÊCHEUX, 1988): o esquecimento enunciativo e o esquecimento ideológico. O primeiro

produz no sujeito uma espécie de “ilusão referencial”, fazendo-o acreditar que existe uma

relação direta entre pensamento / linguagem / mundo e dando a impressão de que o que ele

diz só pode ser dito com aquelas palavras e não de outra forma. O outro esquecimento

encontra-se na ordem do inconsciente e refere-se à maneira como o sujeito é afetado pela

ideologia. Esse esquecimento dá ao sujeito a ilusão de ser ele a origem do discurso, como se

não houvesse sentidos pré-existentes e as palavras significassem apenas o que ele quer.

1 O termo “slogan”, tal como o conhecemos, é de origem francesa. Entretanto, ele remonta à expressão escocesa “sluagh-ghairm”, que significa “grito de guerra de um clã”. Inicialmente usado na França com sentido pejorativo, o termo “slogan” designava doutrinamento, propaganda, reclame. Iasbeck (2002) diz que no século XVI, a Inglaterra transformou esse termo em “catchword” (palavra-engodo) e que no século XIX ele passou a significar para os ingleses, a divisa de um partido político, de uma ideologia ou de uma linha filosófica. Coube aos Estados Unidos, tempos depois, tornar o “slogan” conhecido em todo o mundo na acepção de divisa comercial.

4

Orlandi (2003) diz que tais ilusões são necessárias a fim de que a linguagem funcione na

constituição do sujeito e na produção de sentidos.

Falar em sentidos é falar em condições de produção e gostaríamos de destacar que os

sentidos não estão no dizer em si mesmo, muito menos nas intenções de quem diz. É preciso

situá-los em suas condições de produção, que compreendem fundamentalmente os sujeitos e a

situação, bem como o contexto sócio-histórico, ideológico. Deve-se, assim, estabelecer as

relações que eles mantêm com sua memória e também remetê-los a uma formação discursiva

– e não outra – a fim de compreender os processos discursivos que aí se dão.

É importante lembrar ainda que nos processos discursivos há todo um jogo imaginário

que preside os dizeres, um jogo de situações e posições no qual os sujeitos fazem a imagem

de si e dos outros. Essas imagens são denominadas por Pêcheux (1990) como formações

imaginárias e têm a ver com o lugar de onde o sujeito fala e evidenciam as relações de força

no discurso. Desse modo, na relação discursiva, são as projeções dessas imagens que

constituem as diferentes posições e possibilitam passar de situações empíricas para as

posições de sujeito no discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica.

Nas relações discursivas, palavras, sentidos e sujeitos estão sempre em movimento,

significando em todo o tempo de muitas e diversas maneiras, mas determinadas pela História.

Por esse motivo, palavras iguais podem ter outros significados quando se inscrevem em

formações discursivas diferentes – religiosa, jurídica, pedagógica, política... - e para que haja

sentido o homem é levado a interpretar. Daí pode-se dizer que o gesto de interpretação é que

efetiva a relação do sujeito com a língua, com a história e com os sentidos. Não há sentido

sem interpretação e este fato confirma a presença da ideologia.

A ideologia é essencial para a construção do sujeito e dos sentidos. A língua é a

materialidade específica do discurso, sendo este materialidade específica da ideologia. Assim,

não há discurso sem sujeito, nem tampouco sujeito sem ideologia e é desse modo que a língua

faz sentido. “O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer”

(ORLANDI, 2003:46).

O modo de interpelação do sujeito capitalista pela ideologia “faz intervir o direito, a

lógica, a identificação” (idem:104). Com seus direitos e deveres, o sujeito do capitalismo ou

“sujeito jurídico” tem a impressão de ser um sujeito livre em suas escolhas, com autonomia e

liberdade individual e a ilusão dessa autonomia constituída ideologicamente é resultado de

uma estrutura social bem definida: a sociedade capitalista. O Estado interfere nos processos

de individualização do sujeito, condição essencial para que se possa governar. Submetendo o

sujeito às leis, e ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o Estado

5

“individualiza a forma sujeito histórica produzindo diferentes efeitos de identificação do

sujeito na produção dos sentidos” (ibidem:106). Em nosso trabalho, estamos buscando

compreender como o espaço enunciativo publicitário individualiza essa forma-sujeito

histórica, como produz sentidos sobre a mulher moderna.

De outra perspectiva teórica, Bahktin (1997:41) afirma que “as palavras são tecidas a

partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em

todos os domínios”.

Vale ainda acrescentar que a ideologia adquire outros sentidos no campo dos estudos

da linguagem, diferentemente da Sociologia e do Materialismo Histórico, em que é definida,

de modo geral, como “ocultação”. Em termos discursivos, ela é concebida como mecanismo

fundamental do processo de significação, ou seja, enquanto prática significante, a ideologia

surge como resultado da relação necessária do sujeito com a língua e a história para que exista

sentido. Essa relação é possível uma vez que não existe uma relação unívoca entre linguagem/

mundo/pensamento. Dessa forma, a ideologia “intervém com seu modo de funcionamento

imaginário” (ORLANDI, 2003:48).

Em suma, compreender a ideologia na relação com a produção de sentidos é

compreender que a ideologia é que possibilita a relação do sujeito com o sentido e é por meio

dela que o sujeito se constitui e significa o mundo e a si mesmo. A partir daí questionamos:

Como essas relações se dão no discurso publicitário que diz sobre a mulher, seu corpo, sua

beleza, enfim, seu ser?

Quando pensamos a análise, um dos pontos mais importantes a considerar, é, segundo

a AD, a constituição do corpus, uma vez que “Decidir o que faz parte do corpus já é decidir

acerca de propriedades discursivas” (ORLANDI, 2003:63)

O corpus resulta de uma construção do próprio analista, que seleciona o material

seguindo os objetivos de sua análise e de sua pergunta discursiva. Em nosso caso, partimos da

seguinte questão: Como se formulam os sentidos sobre a beleza da mulher no discurso

publicitário e que efeitos eles produzem nos processos de individualização do sujeito?

Trazemos como base material para nossa análise o slogan “Você pode ser o que quiser”, da

marca O Boticário, assim como algumas propagandas dessa mesma empresa veiculadas em

revistas e na internet a partir de 2005.

A história do Boticário começou quando o farmacêutico Miguel Krigsner abriu uma

pequena farmácia de manipulação no centro de Curitiba, em 1977. Hoje é uma das maiores

empresas de cosméticos do Brasil, com aproximadamente 2.400 lojas e a maior rede de

6

franquias do mundo neste mercado. No Brasil, a empresa possui mais de 2.300 lojas, além de

estar presente também no exterior, em 24 países.

Escolhemos o texto “Você pode ser o que quiser” como unidade de análise por se

tratar do slogan da empresa e não apenas de um determinado produto, e que vem se repetindo

desde 2005. O próprio fato de um texto publicitário ser anunciado por uma empresa de

cosméticos renomada, como o Boticário, e não por uma marca qualquer, produz o efeito de

legitimidade ao dito, revelando que o lugar de onde se fala é constitutivo do dizer, o que

representa condição de produção fundamental para a aceitação do que se diz. Essa observação

nos permite, ainda, remeter o enunciado da propaganda do Boticário a toda uma filiação de

dizeres sobre a beleza feminina e a situá-lo em sua historicidade, mostrando seu caráter

ideológico. O dizer tem história. Os sentidos não se esgotam no imediato, assim como

também não há um sentido único e prévio, mas um sentido determinado historicamente na

relação do sujeito com a língua.

2. LÍNGUA E MEMÓRIA

Tomando como base os pressupostos teóricos e metodológicos apresentados, iremos

percorrer alguns caminhos de sentidos atribuídos à beleza, em diversas épocas, em busca dos

sentidos e traçados ideológicos que a cercam, assim como os discursos que a legitimam.

Refletiremos, assim, sobre como se dão os processos de individualização do sujeito nesses

discursos, objetivando uma maior compreensão de nosso corpus: “Você pode ser o que

quiser”.

Desde a Grécia antiga até os dias atuais, artistas, filósofos, pintores e poetas se

relacionaram com a idéia de belo sob diferentes perspectivas e olhares, evidenciando que a

beleza é um referente imaginário, produzido em condições de produção determinadas.

Enquanto para uns a beleza era a mais perfeita harmonia entre cores e formas, para outros

representava uma tensão dramática, melancólica e obscura. Com ideais estéticos peculiares,

cada época problematizou o conceito de belo à sua maneira e a definição de beleza passou por

várias transformações através dos séculos.

Para refletir sobre esse assunto, tomamos como referência o livro “História da

Beleza”, de Umberto Eco (2004). A beleza, segundo ele, jamais foi algo “absoluto e

imutável”, mas assumiu diversas faces conforme o período histórico. E isso não apenas no

7

que se refere à beleza física (feminina, masculina ou da natureza), mas também em relação à

beleza das divindades, das idéias e das artes em geral.

Na Antiguidade clássica, por exemplo, a idéia de proporção e harmonia revelou-se um

dos traços marcantes da beleza. A partir de uma visão “estético-matemática”, em que a ordem

e as representações numéricas eram essenciais para a compreensão do universo e do corpo

humano, os gregos transformaram a simetria em fator determinante para a definição de belo.

Assim, um ser, objeto ou coisa para ser considerado belo deveria obedecer ao princípio do

equilíbrio entre realidades opostas. De acordo com esse princípio, a harmonia nasce da

contínua tensão entre realidades contraditórias, uma não anula a outra, mas ambas se

neutralizam e se tornam harmônicas justamente por se contraporem, dando origem à simetria.

Eco (idem:72) cita como exemplo a antítese entre o amor e o ódio, a paz e a guerra, o

bem e o mal e esclarece que “a harmonia não é ausência, mas equilíbrio de contrastes”. Nesse

sentido, na Grécia antiga, a representação visual de uma bela donzela seguia as regras da justa

proporção e harmonia. O artista ao criar uma imagem tinha o zelo de criar iguais todas as

partes do corpo, desenvolvendo-o de maneira que seus membros mantivessem uma justa

relação harmônica e regulando-o conforme as leis matemáticas que regem o universo.

Surpreendentemente, o princípio da proporção não era privilégio das formas belas. Os

seres feios, segundo o autor, também compõem a harmonia do mundo por meio da proporção

e contrastes e a beleza nasce desses contrastes, isto é, da diferença.2 No capítulo dedicado à

beleza dos monstros, ele enfatiza: “embora existam seres e coisas feias, a arte tem o poder de

representá-los de modo belo e a Beleza (ou pelo menos a fidelidade artística) dessa imitação

torna o feio aceitável” (ibidem:133).

É interessante observar que muitos séculos depois, em uma sociedade estruturada

social e economicamente diferente, sujeitos e sentidos se constituem e se produzem de forma

diversa, há outros processos de individualização do sujeito em relação ao Estado. A feiúra já

não é mais bem aceita como nas representações artísticas gregas. Ser considerado feio, ou

estar fora do padrão vigente, é não se adequar ao mundo social, é estar “à parte”. Assim, o

excesso de peso ou ausência de um rosto simétrico, de acordo com o modelo apresentado pela

mídia, em nossa época, produz um certo estranhamento estético. Atravessada por questões

2 Para Saussure (1984), “na língua só existem diferenças”. Os elementos da linguagem só adquirem valor enquanto se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros; não é, portanto, sua qualidade positiva que os caracteriza, mas, antes, sua qualidade opositiva e seu valor diferencial. A noção de valor se refere à comparação e oposições funcionais entre os termos do sistema lingüístico.

8

ideológicas, a percepção estética do sujeito é acessada pela memória metálica3, a partir de

imagens identitárias. O sujeito reconhece a si mesmo na relação com o outro e estar em

desacordo com a imagem que se tem do outro se torna muitas vezes motivo de depressão; a

diferença produz ansiedade e angústia. A impressão que se tem do outro varia conforme a

apresentação do corpo (beleza) no meio social e aquilo que não se aproxima do padrão de

beleza estabelecido ideologicamente produz formas de rejeição.

Mas voltemos ao trabalho de Eco. O ideal de beleza no período medieval estava

intimamente ligado à proporção, à integridade, à clareza ou luminosidade e ao simbolismo das

cores. Nas palavras de Tomás de Aquino (século XIII), citado por Eco, “o belo é constituído

tanto pelo esplendor quanto pelas devidas proporções, de fato Dionísio afirma que Deus é

belo como causa do esplendor e da harmonia de todas as coisas” (idem:100). Por essa razão, a

beleza do corpo, segundo ele, consistia em ter os membros bem proporcionados, com a

“devida luminosidade da cor”.

A Idade Média retomou e re-significou a tradição grega, que afirmava ser a beleza

resultado da relação harmônica entre as várias partes de um todo. Houve um deslocamento de

sentidos sobre a idéia de proporção no decorrer do tempo. A proporção, entendida pelos

gregos, como critério de beleza, não era a mesma que artistas medievais e renascentistas

exploravam em suas obras de arte. Na Idade Média, segundo Eco, “manifestava-se uma

disparidade entre o ideal da proporção e aquilo que se representava ou se construía como

proporcionado”.

Além da proporção, na cultura medieval, a cor também era um elemento essencial na

concepção do belo. O próprio ar é belo, dizia o etimologista Isidoro (560-636), também citado

por Eco, “porque aes-aeris”, assim denominado por apresentar o esplendor do aurum, ou seja,

do ouro. Em sua definição, o ar resplandece como o ouro quando tocado pela luz. A beleza

das pedras preciosas está nas cores, que nada mais são que a luz do sol e a matéria purificada.

Os olhos são belos se luminosos, sobretudo se verde-azulados. A pele rosada simboliza umas

das mais importantes qualidades na beleza de um corpo. Ainda segundo ele: “beleza física

vem de venis, isto é, do sangue enquanto formosus, “belo”, vem de formo, que é o calor que

move o sangue; de sangue vem também sanus, que se diz de quem não é pálido (ibidem:113).

3 De acordo com Orlandi (2005), memória metálica é a memória produzida pela mídia, pelas novas tecnologias de linguagem. Caracteriza-se por ser horizontal, não se produz pela historicidade, mas por um constructo técnico (televisão, rádio, computador, entre outros). Não há filiação de sentidos, apenas estratificação, repetição.

9

Em representações artísticas, discussões filosóficas, assim como no comportamento da

sociedade da época, a simbologia das cores estava sempre presente. Eco esclarece que a

riqueza e esplendor de determinadas cores eram sinônimo de poder, objeto de desejo.

Para exibir seu poder, os senhores enfeitavam-se com jóias, ouro e usavam roupas de

tonalidades mais preciosas, como a púrpura. A sociedade medieval era composta por pessoas

ricas e influentes, mas também por pobres e deserdados e a diferença entre eles era ainda mais

acentuada em suas vestimentas. Enquanto os ricos vestiam-se com roupas artificialmente

coloridas, que passavam por complicadas elaborações químicas, os pobres usavam tecidos de

cores pálidas, tecidos brutos, que de tanto consumidos pelo uso aparentavam estar sujos. O

vermelho, o verde, e também ornamentos de ouro e pedras preciosas representavam a riqueza.

Dessa forma, podemos compreender a cor como um referente simbólico significativo,

que interfere nos processos de individualização do sujeito e também representa relações de

força no jogo dos sentidos.

O Boticário, em algumas de suas campanhas publicitárias, trabalha a simbologia das

cores e a mulher do período medieval, situando-a num eixo temporal a partir da atualidade,

encontro de uma memória com uma atualidade. Um acontecimento, dirá Pêcheux (1990). No

site oficial da empresa, encontramos a seguinte descrição para divulgar a linha outono/inverno

2007 de seus produtos:

ROYALTY COLLECTION REVELA NOVA DINASTIA DE BELEZA

O luxo e a beleza da monarquia européia, em alta na moda atual, inspiram a nova coleção de maquiagem O Boticário Royalty Collection. Os novos produtos trazem uma alquimia de cores da realeza, do campo e da magia medievais. Desenvolvida com a consultoria de Fernando Torquatto, maquiador e consultor estratégico da marca, a coleção permite que a beleza de cada mulher seja valorizada com muito encantamento e sedução. “A estação celebrará um retorno aos tempos da nobreza, do luxo, em que a mulher torna-se o que quiser: uma rainha absoluta, uma feiticeira misteriosa ou uma camponesa de olhar ingênuo, mas sensual. É a estação do sonho”, diz Fernando Torquatto.

Para a Análise do Discurso, nada na linguagem é indiferente ao sentido: as palavras, as

construções, a ligação entre as unidades, entre outros. É interessante destacar nesse texto

algumas palavras tais como “dinastia”, “luxo”, “monarquia”, “realeza” e “nobreza”. São

palavras que indicam relações de poder, demarcando hierarquias no meio social. Embora os

discursos publicitários generalizem um ideal estético para “valorizar a beleza de cada

mulher”, só algumas mulheres podem ter acesso aos produtos. Os cosméticos sofisticados

representam, nesse sentido, referenciais de uma determinada classe da sociedade.

10

“O luxo e beleza da monarquia européia” trazem em si uma memória, considerando

que o padrão de beleza europeu há muito é tido como referência pela cultura ocidental. O

sujeito é atraído pelos sentidos de uma beleza considerada ideal, nobre, e em várias épocas a

tem buscado, ainda que não seja possível atingi-la. É a ideologia presente nas formações

discursivas que afeta a relação do sujeito com o mundo, com o outro e consigo mesmo.

A interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia apaga necessariamente a

inscrição da língua na história, produzindo, assim, a evidência do sentido e do sujeito, embora

nem sujeitos nem sentidos sejam transparentes. Os sentidos das palavras derivam de um

conjunto de formações discursivas com uma dominante.

Mas vale lembrar que não apenas as palavras significam. O lugar social do falante e do

ouvinte também carrega vários sentidos, o que nos levou a perguntar quem seria o consultor

da marca O Boticário, mencionado no site. Fernando Torquatto, além de consultor de beleza,

é conhecido como o “famoso maquiador e fotógrafo das celebridades”. Durante o evento de

lançamento da coleção Royalty, do Boticário, ele revelou alguns de seus “artífices” sobre

beleza, ensinando às mulheres como fazer uma bela auto-maquiagem.

Escolher um profissional para dar “dicas” sobre moda e beleza não é, portanto, algo

aleatório. Essa escolha coincide com os interesses da Instituição, no caso a empresa de

cosméticos, e passa por critérios de avaliação do profissional escolhido, considerando o

reconhecimento por sua atuação no mercado como forma de garantir a legitimidade do

discurso. Desse modo, os produtos do Boticário, são apresentados, na voz de “especialistas da

beleza”, como um passaporte para o mundo do sonho, onde a mulher “torna-se o que quiser”.

Para Orlandi (2003:42), “os sentidos não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém

e além delas”. As palavras significam de modo diferente de acordo com as posições daqueles

que as empregam, isto é, elas mudam de sentido conforme as formações ideológicas nas quais

essas posições se inscrevem. Por isso é importante lembrar da força que a imagem tem na

constituição do dizer. “O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da

linguagem” (idem). Assim, a imagem que temos de um consultor de moda/beleza não surge

do nada. Ela se constitui entre o simbólico e o político, em processos que conectam discursos

e instituições. Como a sociedade se constitui por relações hierarquizadas, são relações de

força4, sustentadas no poder de diferentes lugares, que significam na comunicação. O lugar do

qual o sujeito fala é constitutivo do que diz. Quando o sujeito fala a partir do lugar de

4 As relações de força representam os lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa no discurso. (ORLANDI, 2001)

11

consultor de beleza, suas palavras produzem efeitos de sentido diferentes do que se ele falasse

de outro lugar.

Na versão para revista5, referente a essa mesma coleção de produtos, O Boticário

retoma inclusive a magia das histórias de contos de fada, como no texto: “Batom royalty com

brilho de jóia. Essencial num tempo em que só o beijo de um príncipe podia quebrar um

feitiço”.

Alexandra Guedes, em “Publicidade: Um discurso de sedução” (1997), diz que existe

uma contínua dependência do sujeito não tanto face ao consumo de produtos em si e por si,

mas, especialmente, face a todo o mundo de significação que a publicidade constrói em torno

deles e que, por ser experimentado como real pelo sujeito, vai progressivamente ganhando um

estatuto existencial de autonomia e verdade. Todo o tempo, os discursos publicitários indicam

o que é prestigiado ou não em termos de tratamentos estéticos, enfatizando o que deve ser

consumido e como deve ser consumido.

Adquirir um produto, não é, pois, usufruir apenas de suas qualidades intrínsecas, mas

fazer parte do universo que os anúncios associam a esse produto. A simples aquisição dá ao

sujeito a impressão de que ele pode alcançar outros bens não materiais como “a aceitação e o

prestígio social, a beleza, a felicidade, a realização pessoal, o poder (grifo nosso), num

processo em que os bens “intangíveis” se compram e se vendem sob a forma de mercadoria”

(idem: 24).

Dando um salto histórico, considerando os limites e o contexto histórico mais próximo

deste trabalho, podemos dizer, ainda com Eco, que no início do século XX, houve uma

explosão de ideais estéticos inovadores com a proposta dos movimentos de vanguarda

européia, cujo experimentalismo artístico revolucionou o campo das artes, propondo uma

nova interpretação para a idéia comum que os homens tinham de beleza. Segundo Eco, esse

período tornou-se o cenário de um intenso conflito entre a “beleza da provocação” e a “beleza

do consumo”. De um lado, a arte das vanguardas, futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo,

entre outros, buscava transgredir todos os cânones estéticos respeitados até aquele momento e

propunha ensinar ao homem interpretar o mundo com olhos diversos. De outro, os

apreciadores dessa arte mantinham ainda estreitas relações com o cânone da moda, vestindo-

se de acordo com as tendências do momento e seguindo os padrões de beleza ditados pelo

mercado de consumo, os quais a arte das vanguardas se opôs por mais de cinqüenta anos.

5 Publicado na revista NOVA em junho de 2007.

12

A beleza, na arte desse período, não mais se resumia na idéia de formas harmônicas,

como na Grécia Antiga, mas, sim, na concepção de obras consideradas artisticamente belas.

Através do contato com as vanguardas européias, artistas brasileiros iniciaram uma busca por

novos rumos artísticos, dando origem ao movimento modernista, do qual a Semana de Arte

Moderna – 1922 – se tornou o brado coletivo principal. A idéia era “deglutir” a cultura

européia e renovar a arte a partir da valorização de elementos tipicamente nacionais.

Uma das primeiras artistas brasileiras a adotar tendências modernistas em seus

trabalhos foi a pintora Tarsila do Amaral, mesmo não tendo participado efetivamente da

Semana de Arte Moderna.

Numa edição comemorativa, O Boticário criou o perfume “Tarsila Rouge” como

homenagem ao Dia Internacional da Mulher, divulgado na revista Veja em 08 de março de

2006.

TARSILA DO AMARAL. UMA DAS PRIMEIRAS BRASILEIRAS A ACREDITAR QUE VOCÊ PODE SER O QUE QUISER.

Tarsila do Amaral foi uma pintora que revolucionou, mesmo dentro de um grupo de inovadores. O “Manteau Rouge” (Manto Vermelho) é seu auto-retrato, criado após um jantar em Paris – em homenagem a Santos Dumont. Ela surgiu de vermelho, envolvente, marcante. E sua imagem foi motivo de inspiração também para O Boticário na criação de Tarsila Rouge. Conservadores, modernistas e moderados. Ninguém consegue ficar indiferente à atitude de quem é única. Assim como você.

Através da intertextualidade, diálogo entre textos (imagens) e entre tempos, O

Boticário retoma formulações de manifestações artísticas do século XX, mas ao mesmo

tempo produz um deslocamento de sentidos, produzindo um discurso próprio a fim de seduzir

o sujeito-mulher para o consumo. Nesse texto, há um deslizamento de sentidos, na medida em

que Tarsila do Amaral inovou como pintora não por pintar sua própria imagem, mas por

apresentar características inovadoras do Modernismo em seus trabalhos.

Orlandi (2005) afirma que sujeito e sentido se repetem e se deslocam pela própria

natureza incompleta do sujeito, dos sentidos e da linguagem. Mesmo que todo sentido se filie

a uma rede de constituição, ele pode ser um deslocamento nessa rede. Sujeito e sentido

poderiam ser os mesmos, contudo derivam para outros sentidos. A deriva e o deslize são,

portanto, o efeito metafórico, a palavra que dialoga com outras.

Nas palavras de Orlandi (idem:103), “é isso que significa a determinação histórica dos

sujeitos e dos sentidos: nem fixados ad eternum, nem desligados como se pudessem ser

13

quaisquer uns. É porque é histórico (não natural) é que muda e é porque é histórico que se

mantém”.

3. TEXTO E LINGUAGEM: OS SENTIDOS TOMAM CORPO

O texto é uma unidade significativa, unidade de análise, materialidade concreta do

discurso. Enquanto forma material – significante e significada – o texto é a unidade

fundamental da linguagem, quando se pensa seu funcionamento, isto é, o fato de que ela faz

sentido. Orlandi (2005:17) afirma que “a linguagem tende para a textualidade, tende a

formular-se, dar-se corpo”. O texto é, assim, espaço de trabalho da linguagem.

Ainda na visão da autora, o texto é a unidade que o analista do discurso tem diante de

si e da qual ele parte. A finalidade é mostrar os mecanismos dos processos de significação que

regulam a textualização da discursividade, em outras palavras, como um texto produz sentido.

Desse modo, o analista remete o texto a um discurso, que por sua vez, se estabelece com um

discurso anterior e aponta sempre para outros.

Na perspectiva de uma análise discursiva, considera-se a “materialidade da

linguagem”, ou seja, sua não-transparência, e para que se tenha acesso a ela é preciso

trabalhar sua espessura semântica-lingüística, histórica e gramatical. “Em uma palavra, sua

discursividade”, como escreve Orlandi (idem:21).

Comecemos então por analisar a estrutura gramatical do texto “Você pode ser o que

quiser”. Podemos dizer que esse enunciado contém duas orações, sendo a segunda uma oração

subordinada adjetiva restritiva, conforme a chamada gramática tradicional. Temos a oração

principal “Você pode ser o” (aquilo) e a oração adjetiva “que quiser” – que está funcionando

como adjunto adnominal do pronome demonstrativo “o”, predicativo do sujeito.

A Nova gramática do português contemporâneo, de Celso Cunha (1985), define essa

oração da seguinte forma: “As orações subordinadas adjetivas vêm normalmente introduzidas

por um pronome relativo, e exercem a função de adjunto adnominal de um substantivo ou

pronome antecedente”. (:586)

As orações subordinadas restritivas, como o próprio nome diz, restringem o

significado do termo antecedente e são imprescindíveis para o sentido da frase.

Fernando Felício Pachi Filho, em tese de doutoramento (2008), analisa as orações

relativas a partir de uma leitura de Paul Henry. Segundo este trabalho, o funcionamento das

relativas – restritivas e explicativas – oculta concepções rivais sobre a relação pensamento e

14

discurso. Assim, a restritiva, conforme observado acima, especificaria uma particularidade do

antecedente. Essa particularidade permitiria uma identificação no mundo exterior e do

pensamento, constituindo o objeto do discurso em “objeto exterior ao discurso”.

A classificação gramatical, nesse sentido, teria como base a ordem do pensamento, por

meio de um sujeito racional e universal, a fim de estabelecer a ordem do discurso como um

reflexo da ordem do pensamento. Na Análise do Discurso, procura-se compreender a relação

entre língua e discurso, sem, contudo, reduzir o discurso à língua, como acontece em

concepções gramaticais e lingüísticas. Desse modo, em sua tese, Fernando Felício diz que

Paul Henry critica o fato da relativa restritiva servir unicamente para limitar a idéia expressa

como atributo do nome.

Diante da dificuldade de se entender o funcionamento de tais orações a partir de

definições gramaticais que consideram o sujeito a origem de seu dizer e busca somente

classificar a ruptura ocorrida na linearidade lingüística, Henry apresenta o conceito de

“saturação” para refletir sobre o funcionamento entre orações restritivas e explicativas. Esse

conceito refere-se a formulações que podem entrar em relação de “paráfrase discursiva”

conforme as condições de produção e interpretação. A formulação será saturada se puder ser

situada em relação à outra formulação. Este “pôr em relação” diz respeito a relações intra-

seqüências e inter-seqüências, fazendo intervir aí os critérios “anterioridade” e

“posterioridade” na cadeia. A relação inter-seqüência designa a modalidade de relação de

duas seqüências discursivas diferentes que podem acontecer em relação a ela própria ou com

outra seqüência.

Tanto no caso das orações adjetivas restritivas quanto no caso das explicativas, o

pronome relativo firma a relação entre o antecedente e a relativa como uma relação intra-

seqüência. No funcionamento da restritiva apaga-se a relação inter-seqüência, o que não

ocorre no funcionamento da explicativa. Esse efeito de apagamento da relação inter-seqüência

observado na adjetiva restritiva, na visão do autor, dá origem à ilusão do sujeito de ser a fonte

do que ele diz. No caso do nosso slogan, tem-se a ilusão de um sujeito livre em suas escolhas,

um sujeito que pode ser o que quiser.

O verbo “poder”, presente neste slogan, também merece uma reflexão. Alguns

lingüistas consideram o verbo “poder” um modalizador da língua portuguesa por contribuir

para o sentido do discurso, determinando o modo como se diz. De acordo com Dubois (1973,

p. 413):

15

Chamam-se modais, ou auxiliares modais, a classe dos auxiliares do verbo que exprimem as modalidades lógicas (contingente vs. necessário, provável vs. possível): o sujeito considera a ação expressa pelo verbo como possível, necessária, como uma conseqüência lógica ou como resultado de uma decisão, etc. Auxiliares modais são poder e dever, seguidos de infinitivo.

Lobato (1975), ao tratar da “unidade de comportamento” desse verbo, destaca que a

determinação dos valores semânticos do verbo “poder” depende das diferentes forças

ilocutórias dos enunciados. Assim, além de expressar possibilidade, permissão, capacidade, o

verbo “poder” também apresenta outros valores como “eventualidade, ordem, sugestão,

solicitação”.

Em nossa análise, consideramos o emprego do verbo “poder” não como mero

complemento do verbo principal, como o apresenta a gramática normativa, mas um verbo

polissêmico, que produz diferentes efeitos de sentido. Vejamos algumas paráfrases possíveis

que podemos construir como um procedimento de análise:

(1) Você é capaz de ser o que quiser.

(2) Você tem a possibilidade de ser o que quiser.

(3) Você tem o poder de ser o que quiser.

(4) Você tem o direito de ser o que quiser.

(5) Você deve ser o que quiser.

Qual a diferença entre essas construções em termos de efeito de sentidos? Com o dito

significa em relação ao não dito, às outras formulações possíveis? Como determinar os limites

entre o sentido de uma e de outra? De acordo com Orlandi (2001), do ponto de vista

discursivo, não existe o mesmo no diferente; formas diferentes produzem diferentes

significados. As paráfrases também evidenciam relações distintas entre interlocutores. Nas

construções estão as pistas com que o sujeito representa a si mesmo e ao seu interlocutor. No

caso do texto publicitário, há diferentes efeitos acontecendo, como a persuação, a ideologia de

sucesso e felicidade, a homogeneização, a própria individualização do sujeito. É no jogo entre

paráfrase e polissemia que sujeitos e sentidos se constituem.

A polissemia é “a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição de

existência dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não

pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer” (ORLANDI, 2003:38). A autora

explica ainda que nem os sujeitos, nem os sentidos já estão prontos e finalizados. Eles estão

sempre se movimentando, fazendo seus percursos, se significando.

“Você pode ser o que quiser”.

16

Etimologicamente, o verbo “querer” vem do latim quaerere, que significa “procurar,

buscar”. Querer é, pois, um ato de vontade, típico de quem procura, busca ou deseja alguma

coisa. Assim como o verbo “poder”, este verbo também faz parte dos chamados “verbos

modais” e, segundo Lobato (1975), classifica-se na modalidade “volitiva”, isto é, na

modalidade dos verbos que expressam vontade, desejo e intenção. Pesquisando no dicionário

Novo Aurélio Século XXI (1999), encontramos as seguintes definições para este verbo:

Querer. V. t. d. 1. Ter vontade de; desejar. 2. Ter a intenção de; projetar; tencionar, desejar. 3. Desejar possuir ou adquirir. 4. Ordenar, exigir. 5. Desejar, apetecer. 6. Consentir, permitir. 7. Necessitar de; demandar, requerer, pedir. 8. Ambicionar, cobiçar. 9. Ser de opinião, julgar, acreditar. 10. Pretender, solicitar. 11. Condescender em; dispor-se a. 12. Estar na iminência de; ameaçar; 13. Estar próximo de; ameaçar. 14. Ensaiar, tentar. 15. Ter a bondade de; fazer o favor de; dignar-se. 16. Ter possibilidade de; poder. 17. Desejar que (alguém) chegue a (certa posição). 18. Ter afeição; gostar, estimar. 19. Ter ou manifestar vontade firme e decidida. 20. Ter o desejo de estar (em certo lugar ou em certa companhia, etc.). 21. Ter necessidade, ânsia de; desejar. 22. Amar-se mutuamente. 23. Ato de querer; vontade; afeto; intenção.

Podemos dizer que o verbo “querer” também produz diferentes efeitos de sentido

dependendo das condições de produção em que está inserido. É possível compreendê-lo tanto

no plano material (ambição), querer algo, querer ser alguém importante, quanto no âmbito das

emoções, querer bem (a alguém), querer ser feliz, entre outros.

No discurso da propaganda do Boticário, “querer” equivale a “poder”. Ao estimular a

transformação do corpo como meio para expressar a individualidade, o discurso publicitário

envolve as mulheres em uma rede significante do “poder / querer”, construindo ou

reproduzindo imagens identitárias em torno de um mundo de sonhos onde tudo é possível. O

enunciado “Você pode ser o que quiser”, por exemplo, leva-nos a pensar que o sujeito

controla o seu querer, através de uma autonomia ideologicamente construída pela mídia.

Assim, o sujeito moderno – capitalista – “tem sua impressão de unidade e controle de (por)

sua vontade. Não só dos outros mas até de si mesmo. Bastando ter poder...” (ORLANDI,

2005:104).

Não podemos nos esquecer de que no presente século, ao mesmo tempo em que se

enfatiza a individualização do sujeito e sua autonomia, os discursos midiáticos colaboram

para englobá-lo no mercado de consumo. O sujeito vive desse modo, uma constante

contradição: é livre, porém submisso... ao mercado, ao consumo.

Dessa maneira, podemos perceber a historicidade na língua, a necessidade de se

articular sintaxe e semântica, pois é nessa relação que os sentidos se produzem e os processos

de subjetivação acontecem ligados à formação social, ao Estado e suas instituições, que

17

estabelece progressivamente a necessária ilusão do sujeito de ser mestre de si e de seu dizer.

Orlandi (2005) assinala que o sujeito, para dizer, submete-se ao jogo da língua na história e se

não for assim não há como subjetivar-se. “Não se pode dizer senão afetado pelo simbólico,

pelo significante. Não há sentido nem sujeito se não houver assujeitamento à língua”

(idem:100).

Sem deixar de lembrar que o assujeitamento para o sujeito moderno faz intervir o

direito, a lógica, a identificação, conforme dito anteriormente. Assim, na interpelação não se

separa exterioridade e interioridade, mesmo que para o sujeito essa separação seja uma

evidência sobre a qual ele constrói duplamente sua ilusão: a de que ele é a origem de sua fala

(e logo fala o que quer) e da literalidade, a de que há uma relação direta entre linguagem,

pensamento e mundo (aquilo que ele diz só pode ser aquilo e não outra coisa). Daí a idéia de

um sujeito livre, mas ao mesmo tempo submisso.

A aparente “liberdade de escolha”, expressa no slogan do Boticário, de um sujeito que

pode ser o que quiser, consolida-se nas (e com as) fantasias produzidas pelo discurso

publicitário. Ao apresentar as últimas tendências da moda, com respeito à maquiagem e

demais tratamentos de beleza, as propagandas do Boticário orientam as possibilidades de

“ser” desse sujeito, direcionam seus desejos, sua vontade, seu modo de viver e o convidam a

entrar num universo mágico onde todos os seus sonhos podem se tornar reais.

Em O espetáculo como meio de subjetivação, Maria Rita Kehl (2003) formula assim a

idéia de que a publicidade dirige-se ao desejo e responde a ele com mercadorias:

A publicidade vende sonhos, ideais, atitudes e valores para a sociedade inteira. Mesmo quem não consome nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se fossem a chave da felicidade, consome a imagem deles. Consome o desejo de possuí-los. (...) O desejo é social. Desejamos o que os outros desejam, ou o que nos convidam a desejar. Uma imagem publicitária eficaz deve apelar ao desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como objeto de satisfação.

Ainda segundo essa autora, o que a publicidade propõe aos consumidores é uma

“pseudo-escolha”. Seja livre: seja o que quiser. Na imagem de uma “feiticeira misteriosa” da

“rainha absoluta” ou da “camponesa de olhar ingênuo”, o discurso do Boticário oferece ao

sujeito uma série de possibilidades de “ser mulher”. Todas elas, entretanto, refletindo certos

padrões simbólicos do consumo. Ser o que quiser é ser atraente, bela, desejada, sensual, “ser”

para seduzir. E para isso é preciso estar maquiada, perfumada e consumir os produtos do

Boticário.

18

Na visão de Adorno, citado por Kehl, a indústria cultural apresenta-se como meio de

satisfação de todas as necessidades do sujeito, mas, por outro lado, organiza essas

necessidades de tal modo que o sujeito vê a si mesmo exclusivamente como um eterno

consumidor, “um objeto da indústria cultural”.

Pode-se dizer que a publicidade apela para a dimensão do desejo do sujeito-mulher

através das imagens de belas mulheres, respondendo a esse desejo com o fetiche das

mercadorias. As consumidoras, por sua vez, se identificam com essas imagens, “espelho

espetacular de suas vidas empobrecidas” (KEHL, idem).

Touraine (2007) diz que o problema não está na imagem de um corpo carregado de

sexualidade, o problema reside, ao contrário, para as mulheres, na visão de um corpo privado

de sexualidade, que foi transferida para a mercadoria. Hoje é possível dizer que “a

dessexualização das mulheres por estas publicidades realiza-se em benefício de uma

erotização dos objetos que se busca torná-los desejáveis, a fim de melhor comercializá-los”

(p.103).

Ao mesmo tempo em que as mulheres são estimuladas pela sexualização (através das

imagens publicitárias), elas sentem-se privadas da própria sexualidade e de seu próprio corpo.

Essa forma de dominação tende a tornar-se ainda mais acentuada no momento em que a

sexualidade, o erotismo ou as relações sexuais são representados como sendo estrangeiros à

construção de si, o que ocorre com mais freqüência na televisão e em muitas revistas

femininas. Nesse sentido, o discurso publicitário substitui a sexualidade real por uma

sexualidade a ser consumida, produzindo sentidos sobre o corpo feminino como um “corpo de

consumo”.

Para a AD, o corpo é o lugar material em que acontece a significação, não há corpo

que não esteja investido de sentidos. O corpo do sujeito é um corpo ligado ao corpo social, ao

corpo da linguagem, todos atravessados de discursividades. A linguagem dá corpo aos

sentidos e a mulher, enquanto ser simbólico, se constitui em sujeito na e pela linguagem,

tendo seu corpo ligado à corporalidade dos sentidos.

A cultura do consumo produz sentidos sobre o corpo feminino, comercializando- o de

forma incisiva. “Todas podem e devem ser belas”. Para isso, basta entrar em uma loja do

Boticário, o universo mágico, onde as consultoras são as fadas-madrinha, os produtos são a

varinha de condão. E a mulher? “Pode ser o que quiser” (?)

Ao divulgar uma nova linha de produtos no início de 2008, a empresa de cosméticos

lançou a promoção “O Boticário Muda Seu Visual”. Nessa campanha publicitária tem-se a

19

imagem de uma modelo vestida de fada segurando em das mãos uma varinha mágica e na

outra um perfume da marca O Boticário. Logo acima, os seguintes dizeres:

O que você mudaria em você? (Bom, a gente não concorda, mas faz sua vontade.)

O enunciado “O Boticário Muda Seu Visual” nos faz questionar como um discurso

publicitário silencia outros sentidos sobre a beleza feminina. Quando os anúncios das

propagandas do Boticário apresentam as mulheres tal como elas podem vir a ser, não estariam

mostrando, por implicação, o que elas não são presentemente? Isto é, se a propaganda retrata

mulheres belas, felizes, socialmente seguras e bem-sucedidas, e se oferece para “mudar” o

visual da leitora / ouvinte, não se segue que esta mesma propaganda considera as

consumidoras feias, infelizes, isoladas e frustradas? “O dizer e o silenciamento são

inseparáveis”, diz Orlandi (2007:152). “Se ao falar sempre afastamos sentidos não-desejados,

para compreender um discurso devemos perguntar sistematicamente o que ele cala”. Há

silêncio nas palavras, elas são carregadas de sentidos a não dizer, sendo o silêncio garantia do

movimento dos sentidos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do texto “Você pode ser o que quiser”, assim como das demais propagandas,

nos permitiu compreender como o discurso publicitário produz sentidos sobre o sujeito-

mulher, apresentando-o como livre, mas ao mesmo tempo submetendo seus desejos e sua

vontade ao consumo.

Pudemos perceber que ao estimular a transformação do corpo como forma de

expressar a individualidade e “valorizar a beleza de cada mulher”, o discurso do Boticário

envolve as mulheres num discurso ideológico de uma escolha e de um querer legitimado,

além de apresentar uma variedade de “escolhas” de maneira naturalizada, apagando o seu

caráter histórico, ideológico.

Há relações de força nesses discursos em que determinados grupos sociais estão

diretamente envolvidos na produção de sentidos sobre a beleza do corpo feminino, sempre

numa escala hierárquica, evidenciando relações de poder. A publicidade dá visibilidade aos

sentidos que interessam a esses grupos sociais, e que se tornam referência para os demais.

20

Tudo isso contribui para o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina e,

considerando que a linguagem dá corpo aos sentidos (no que é dito), mas também implica

sentidos (silenciados), compreendemos ainda os “não-ditos” na propaganda do Boticário, mas

que também dão movimento aos sentidos.

Vale dizer que essas considerações não terminam com um ponto final, definitivo.

Ainda há muito a se dizer. A forma como delimitamos o nosso corpus determinou o modo de

análise, mas o nosso objeto de estudo permanece aberto para novas leituras e interpretações.

21

ANEXO

O Boticário Royalty Collection Perfume Tarsila Rouge

22

Propagandas do Boticário - Contos de Fada (2005)

“A história sempre se repete. Todo Chapeuzinho Vermelho que se preze, um belo dia, coloca o lobo mau na coleira”.

“Gabriela vivia sonhando com seu príncipe encantado. Mas, depois que ela passou a usar O Boticário,

foram os príncipes que perderam o sono”.

“Era uma vez uma garota branca como a neve, que causava muita inveja não por ter conhecido sete anões. Mas vários morenos de 1,80 m”.

“Um belo dia, uma linda donzela usou O Boticário. Depois disso, o dragão que ela tanto temia ficou

mansinho, mansinho e nunca mais saiu de perto dela”.

23

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. 8ª edição. São Paulo: Hucitec, 1997.

CARVALHO, Castelar. Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica. 4ª

edição. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1984.

CUNHA, Celso e CINTRA, Luís Filipe Lindley. Nova gramática do português

contemporâneo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985.

DUBOIS, Jean. Dicionário de Lingüística. São Paulo, SP: Cultrix, 1973.

ECO, Umberto. História da Beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FERREIRA, Aurélio. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª

edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

GUEDES, Alexandra. Publicidade: um discurso de sedução. Portugal: Porto Editora, 1997.

IASBECK, Luiz Carlos. A arte dos slogans: As técnicas de construção das frases de efeito

do texto publicitário. São Paulo: Annablume: Brasília: Upis, 2002.

KEHL, Maria Rita. O espetáculo como meio de subjetivação. 2003

LOBATO, Lucia Maria Pinheiro e outros. Análises Lingüísticas. Trad. Maria Ângela

Botelho Pereira. Petrópolis: Vozes, 1975.

ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: As formas do discurso. 4ª edição.

Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5ª edição Campinas, SP:

Pontes, 2003.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª edição Campinas,

SP: Editora da UNICAMP, 2007.

ORLANDI, E. P. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. 2ª edição.

Campinas, SP: Pontes, 2005.

PACHI FILHO, Fernando F. Tese de doutorado referente ao discurso sobre a privatização das

telecomunicações em jornais. Depto. de Lingüística, IEL, Campinas, Unicamp, 2008.

PEUCHÊX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas,

SP: Pontes, 1990.

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Trad. Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes,

2007.

24

Referências eletrônicas

Rose Marie Muraro e Maria Tereza Maldonado. Corpos de consumo. Disponível em:

<http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=416012> Data de acesso:

13/04/2008.

O Boticário. Disponível em: <http://internet.boticario.com.br/portal/site/internetbr/ > Data de

acesso: 19/05/2008.

Análise de Discurso: Conversa com Eni Orlandi. Disponível em:

<http://www.revistateias.proped.pro.br/index.php/revistateias/article/viewFile/210/209>

Data de acesso: 22/05/2008

O Boticário e suas princesas. Disponível em:

<http://mundofabuloso.blogspot.com/2008/01/o-boticario-e-suas-princesas.html>

Data de acesso: 28/05/2008

Tarsila do Amaral. Disponível em: <http://www.tarsiladoamaral.com.br/index_frame.htm>

Data de acesso: 01/06/2008