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II CONINTER Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013 A MULTIFOCALIDADE NARRATIVA NOS ROMANCES “UM NOME PARA MATAR” E “A MORTE DO PRESIDENTE OU A AMIGA DE MAMÃE, DE MARIA ALICE BARROSO SILVA, PAULA LOPES DA UENF-Universidade Estadual Darcy Ribeiro Aluna especial 1º semestre/2013 Avenida Lamego, 2000- Parque Califórnia Campos dos Goytavazes- RJ CEP: 28013-602 [email protected] RESUMO Este estudo evidencia as multifocalidades narrativas nos romances "Um nome para Matar" e "A Morte do Presidente ou A Amiga de Mamãe", de Maria Alice Barroso. As obras apresentam vários tipos de narradores que nos conduzem a uma visão externa, interna e onisciente dos acontecimentos. Por isso, o trabalho faz uma análise destes narradores a partir dos comentários que os mesmos tecem, levando, a nosso ver, a um conflito entre realidade e ficção. Uma pesquisa bibliográfica centrada nos estudos dos teóricos Gérard Genette; Arnaldo Franco Júnior; Lígia Chiappini Moraes embasou esta apreciação. Palavras-Chave: Narrativa. Multifocalidade. Narradores

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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

A MULTIFOCALIDADE NARRATIVA NOS ROMANCES “UM NOME PARA MATAR” E “A MORTE DO PRESIDENTE OU A AMIGA DE

MAMÃE, DE MARIA ALICE BARROSO

SILVA, PAULA LOPES DA

UENF-Universidade Estadual Darcy Ribeiro – Aluna especial – 1º semestre/2013

Avenida Lamego, 2000- Parque Califórnia Campos dos Goytavazes- RJ

CEP: 28013-602 [email protected]

RESUMO

Este estudo evidencia as multifocalidades narrativas nos romances "Um nome para Matar" e "A Morte do Presidente ou A Amiga de Mamãe", de Maria Alice Barroso. As obras apresentam vários tipos de narradores que nos conduzem a uma visão externa, interna e onisciente dos acontecimentos. Por isso, o trabalho faz uma análise destes narradores a partir dos comentários que os mesmos tecem, levando, a nosso ver, a um conflito entre realidade e ficção. Uma pesquisa bibliográfica centrada nos estudos dos teóricos Gérard Genette; Arnaldo Franco Júnior; Lígia Chiappini Moraes embasou esta apreciação.

Palavras-Chave: Narrativa. Multifocalidade. Narradores

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“A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso". (BENJAMIN, 1994, p.205)

INTRODUÇÃO

Histórias são contadas, vividas, imaginadas, sonhadas..., e, a figura central nesta

dinâmica é o narrador, o organizador da narrativa tanto no passado quanto no presente. Por

mais que a presença do narrador no texto seja familiar, ele não está de fato presente entre

nós, mas, sim, “[...] é uma invenção do autor; responsável, de um ponto de vista genético...”

(REIS e LOPES, 2007, p.257). Através do narrador, o autor tem a possibilidade de “[...]

projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais...” (REIS e LOPES, 2007,

p.257)

Em relação às tipologias do narrador, tendo em vista as características que cada um

estabelece dentro de uma obra, diversas teorias são aplicadas sobre esta temática. É nesta

noção de estudar e acompanhar os movimentos de narradores que o presente artigo

caminha objetivando analisar as seguintes obras da ficcionista Maria Alice Barroso1 (1926 –

2012): “Um nome para matar”, publicada em 1967, e “A Morte do Presidente ou A Amiga de

Mamãe”, publicada em 1994.

As teorizações de críticos literários como Norman Friedman – aqui mediadas, em

grande parte, por escritos de Ligia Chiappini –, Gérard Genette, Carlos Reis e Ana Cristina

Lopes serão os principais alicerces de nossa demonstração das multifocalidades narrativas

presentes nos livros de Maria Alice Barroso. Estas obras fazem parte daquilo que a autora

nomeou como “ciclo Parada de Deus”2, tendo em vista tratarem-se de histórias que têm

como pano de fundo a cidade ficcional ‘Parada de Deus’, que, na realidade, é o município de

nascimento e sede de boa parte da vivência da autora, qual seja, Miracema, interior do

Estado do Rio de Janeiro.

É nesta fictícia cidade que são tecidas histórias não por um único narrador, mas, por

meio de quase todos os personagens destas criações que não cessam de contar. Eles se

transformam em narradores, compondo a tessitura da narrativa, de modo que acabam

possuindo a capacidade de gerar, nos leitores, estados de confusão sobre a relação entre

realidade e ficção.

1 Romancista, bibliotecária e Mestre em Ciência da Informação, foi Diretora-Geral do Instituto Nacional do Livro e

do Arquivo Nacional. (PRADO, Jason (Org.); CONDINI, Paulo (Org.),p .103, 1999) 2 O “ciclo Parada de Deus” representa os cinco romances (‘Um nome para matar’; ‘Quem matou Pacífico’; ‘O

Globo da Morte’; ‘A saga do Cavalo Indomado’ e ‘A Morte do Presidente ou a Amiga de Mamãe’), da escritora Maria Alice Barroso.

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Nestes termos, os acontecimentos dos romances são abordados como se alguém

manejasse uma câmera que focaliza contadores que expressam seus pontos de vista,

gerando uma multiplicidade de narradores, e, consequentemente, de histórias.

1- Os vários ângulos de “Um nome para matar” e “A morte do

Presidente ou A Amiga de Mamãe”

O romance “Um nome para matar” inicia o ‘ciclo Parada de Deus’ apresentando os

personagens que, posteriormente, irão percorrer outros romances deste conjunto. Portanto,

apesar das obras não terem um caráter contínuo, as histórias promovem o regresso de

alguns personagens e de fatos de outras obras, a fim de que, intui-se, o leitor reconheça e

estabeleça novas percepções, e, consequentemente, outras significações em vários

ângulos, como aborda Antônio Olinto no Prefácio de “Um nome para Matar”:

Quantos ângulos existirão em uma história comum? Normalmente, três, às vezes quatro: o ângulo dos personagens, o ângulo do narrador, e do leitor; em alguns casos, o autor e o narrador se separam, o que torna a narração diferente, dotada um quarto ponto de vista. No caso de Maria Alice Barroso, usou ela o mais difícil dos sistemas: quatros ângulos, sendo que eles estão sempre em mudança, já que o narrador é geralmente um personagem da história, mas, como esse narrador muda de trecho em trecho do romance, transformam-se também, a cada passo, os ângulos dos personagens, do narrador, do autor, e, como consequência, o do leitor. (BARROSO, 1967 apud OLINTO, 1967, p.5)

Com o propósito de mostrar uma perspectiva dos vários ângulos literários de Maria

Alice Barroso, a obra “Um nome para matar”, apresenta uma narrativa que tem como

protagonista o ‘Capitão Oceano de Moura Alves’, um político influente em Parada de Deus,

com uma fala mansa, mas perverso. Ele era capaz de fazer muita coisa com quem o

incomodasse, principalmente, e como um inveterado ciumento, se o incômodo fosse em

relação à sua esposa, Maria Corina. Contudo, a narração demonstra que Oceano não

deixava transparecer esse sentimento, até porque, por ele ser um político com sobrenome

Moura Alves - família respeitada devido ao enorme e concentrado poder político em Parada

de Deus –, a exibição de ciúmes não seria conveniente para um homem cujas atitudes

fizeram muitas pessoas perderem suas vidas, em especial, Maria Corina.

No encalço da figura de Oceano emergem outras temáticas, principalmente as

histórias da fundação da cidade de Miracema e a trajetória da família Moura Alves. Estas

duas vertentes se entrelaçam com os demais temas ficcional, formando, assim, um

encadeamento de personagens que têm uma função social na cidade, e, primordialmente,

na construção da narrativa.

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Outro ângulo literário que pode ser destacado, é sediado na obra “A morte do

Presidente ou A Amiga de Mamãe”. Ao atravessar os fervorosos anos de 1950, tendo em

vista que foi justamente neste período em que o jornalista e político Carlos Lacerda3

assumiu nacionalmente ser um dos principais opositores do presidente da república, Getúlio

Vargas, os ‘paradenses’, assim como a maioria dos brasileiros, também se agitaram com

essa disputa política. A personagem principal da trama - Liygia Procópio Monteiro, esposa

do professor Antônio Carlos Rodrigues Arzão, com quem tinha a filha Aninha - era uma

defensora de Lacerda.

É nesse contexto que Lygia enveredou para o ramo da política. Ao tornar-se tão

fanática, pensava em morar no Rio de Janeiro para, assim, estar mais engajada. Mas,

Aninha, muito decidida, não queria mudar para a cidade grande, e seu pai também não

simpatizava com tal ideia, não entendendo a obsessão da mulher em se mudar de Parada

de Deus. Inês, irmã de Lygia, era cega, no entanto, via mais que muita gente, percebia que

sua irmã estava completamente apaixonada por Carlos Lacerda.

Desde pequena Lygia viajava para o Rio de Janeiro e, agora, passara a ir mais

vezes. E, foi em uma dessas viagens que conheceu Leda de Freitas – a “Amiga de Mamãe”,

termo dado por Aninha –, por quem ficou muito encantada, passando a considerá-la como

amiga. Não pestanejou em convidar Leda para ir a Parada de Deus, já que esta tinha a

intenção de fundar um reduto anti-varguista, congregando diversos parlamentares -

principalmente udenistas - em sua cidade. Seria o ‘Clube da Lanterna’, cuja inauguração

contaria com a presença de Carlos Lacerda.

A vinda de Leda de Freitas tornou a disputa entre os lacerdistas e os getulistas de

Parada de Deus mais acirrada, assim, Capitão Oceano reuniu seus partidários a fim de

enfraquecer os movimentos lacerdistas. Por outro lado, Aninha detestou a ideia da visita da

amiga de sua mãe, já que, deste modo, haveria mais um pretexto para a mudança definitiva

da mãe para o Rio de Janeiro.

A pretensão de Lygia era ser deputada estadual, e esse desejo, muitas vezes,

parecia ser maior que o amor pela sua família. Tanto assim, que encontrava-se participando

de manifestações políticas no Rio de Janeiro, onde era hóspede de Leda, quando soube

que o Capitão Oceano havia falecido.

Na manhã seguinte ao suicídio de Getúlio Vargas, Lygia e Leda sofrem um acidente

de carro quando voltam do enterro do Capitão, com destino ao Rio. Lygia sofreu alguns

ferimentos, mas Leda acaba morrendo.

É nesse contexto histórico-político e nessa alternância de temáticas que ocorre a

fluência dos narradores nos romances citados. Os partícipes de tal dinâmica, ora como

3 Para um melhor entendimento histórico do citado período político, ver DULLES, 1992.

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personagens, ora como narradores, desvirtuam os olhares do leitor para aquilo que é

necessário contar.

2- Muitas histórias em outras histórias

O narrador é um ponto de partida para a comunicação no texto literário. Nesse

sentido, o artigo propõe a reflexão sobre a presença do narrador nos romances barrosianos

“Um nome para matar” e “A morte do Presidente ou a Amiga de Mamãe”.

Nestas obras, os narradores costuram as histórias, construindo narrativas que se

conectam. Constitui-se um complexo jogo de vozes que contribuem para um desvelamento

dos mistérios que percorrem os romances. Seguindo o intento de analisar os contadores das

histórias, é válido registrar a noção de ‘narrador’ no campo da literatura. Assim, trata-se de

uma

entidade fictícia que, numa narrativa, possui a função de enunciar o discurso, sendo o protagonista da comunicação narrativa [Em princípio, um narrador pode assumir também o lugar de uma personagem, narrando os fatos em primeira pessoa, ou manter-se fora do enunciado, narrando os acontecimentos em terceira pessoa.] (HOUAISS, Dicionário de Língua Portuguesa Eletrônico)

A partir dessa conceituação, nota-se que a posição e a possível presença em relação

à história classifica o narrador. Por conseguinte, há o estabelecimento do foco narrativo, do

olhar de quem conta a história, e, finalmente, do “[...] recurso utilizado pelo narrador para

enquadrar a história de um determinado ângulo ou ponto de vista” (FRANCO,2005, p.41).

Ciente de que o foco narrativo pode ser identificado também “[...] por meio de

expressões como ‘ponto de vista’ (preferida pelos teóricos e críticos anglo-americanos),

‘visão’ (adotada, exemplo, por J. Pouillon e T.Todorov) e ‘restrição de campo’ (utilizada

exclusivamente por G. Blin)” (REIS e LOPES, 2007, p.165), o artigo aponta para o fato de

que as obras analisadas apresentam multifocalidades que conduzem a uma visão externa,

interna e onisciente dos acontecimentos.

A mescla de narradores que se esboça, recebe aqui amparo em algumas acepções

de ‘narrador’ dos críticos literários Norman Friedman e Gérard Genette.

Neste excerto da obra “A morte do presidente ou A Amiga de Mamãe”, tem-se um

exemplo daquilo que Friedman classifica como “Autor Onisciente intruso” (LEITE, 2006,

p.26):

Não seria necessário que se examinasse mais atentamente aqueles dois – pai e filha - para se concluir que, mais do que o vínculo do sangue, eles

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estavam unidos por alguma outra afinidade que até poderia dispensar esse laço de parentesco a fim de justificar tanta compreensão: na verdade eles prescindiam da palavra para se entender.

4 (BARROSO,1994, p.85)

O narrador “Autor Onisciente intruso”, para Friedman, é aquele que, como no trecho

acima, narra à vontade, além de possuir certa liberdade para falar sobre outros

personagens. Para esta última característica, o trecho mostra a relação de afinidade entre o

pai –professor Antônio Carlos Arzão -, e a filha Aninha, predominando a sua percepção, que

não é neutra. O contador parece narrar ora como se estivesse de fora, ora como se

estivesse de dentro, dessa maneira, este narrador pode adotar várias posições.

Há, também, a categorização friedminiana de “narrador onisciente neutro”. (LEITE,

2006, p.32). Neste prisma, a fala ocorre em terceira pessoa, sem a efetivação de

comentários. Não há a instrução sobre os comportamentos dos personagens pois o objetivo

desse narrador é pôr o leitor a parte da história sem influenciar nos acontecimentos. Isto

pode ser demonstrado no seguinte fragmento da obra “Um nome para matar”:

Heleno ainda era um menino, e vivia com sua mãe e seus meio-irmãos numa choça, próxima ao curral do pasto baixo, na Gratidão, quando presenciou, compreendendo pouco do que acontecia, aquele fato inédito, que era distribuir armas aos escravos, não só os pertencentes ao Zé Inácio como também àquela matilha de negros [...] (BARROSO, 2001, p.23)

Nesse episódio, o “narrador onisciente neutro” conta sem a intenção de tecer

comentários, e somente explica o que Heleno – filho bastardo de Zé Inácio, dono da fazenda

Gratidão - havia presenciado na fazenda.

Uma narração em primeira pessoa que Friedman destaca é o chamado “Eu como

testemunha” (LEITE, 2006, p.37). Seria o “eu” interno, que faz parte e vive os

acontecimentos da narrativa. Pode-se observar tal narrador, em “Um nome para matar”, na

ocasião em que Carmosina – empregada que cuidava de Maria Corina – conta e presencia

a fuga de Maria Corina com o capitão Oceano:

Pois foi um desafeto desse tipo que esses dois afrontaram pra acabar vencendo a resistência dos pais de Maria Corina, que do falecido capitão Heleno ninguém sabe o que ele pensava já que morreu no mesmo ano que o filho casou. Agora que ela fizesse o que fez, fugindo com ele, eu nunca imaginei, e se alguém me dissesse que ela ia fazer isso não vê que eu ia acreditar mais nunca. Não, não havia de ser eu, que criei ela desde menininha, que conheço cada jeito do olhar dela, e antes de conhecer o olhar dela já conhecia o da sua mãe, a falecida Nenen [...] (BARROSO, 2001, p.22-24)

4 Destacado, em itálico, como no original

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Esse tipo de narrador também é percebido em “A Morte do Presidente ou A Amiga

de Mamãe”. Nesse caso, o contexto é elaborado pela circunstância do narrador-protagonista

- Aninha – não ser a favor da amizade intensa de sua mãe com Leda:

[...]Eu sabia que ela, a amiga da mamãe, tava atrás de tudo aquilo: era preciso ver o jeito que as duas chegaram aqui em casa: como se fossem duas estranhas, até a mamãe entrou com uns modos tão esquisitos. [...] Foi aí que a tal mulher apareceu atrás da mãe e deu logo um palpite infeliz dizendo que tudo tava sendo arrumado pra gente se mudar pro Rio de Janeiro.

5 (BARROSO,1994, p.173)

Seguindo na classificação de Friedman, faz-se menção ao “narrador protagonista” (

LEITE, 2006, p.43 ). Trata-se de um personagem central que não tem acesso ao estado

mental das demais personagens, e narra a partir de suas percepções, pensamentos e

sentimentos. Este caso, na obra “Um nome para matar”, identifica-se com a situação

passada pelo ‘Capitão Oceano’ quando subentende que sua esposa o trai:

“Tanto ela quanto a minha própria família pensaram que essa atitude significava fraqueza do meu lado, mas puro engano: eu tava dando linha ao peixe, pois só assim podia saber quanto fôlego sobrava; [...] O que eu podia fazer com uma mulher que tem alma de prostituta? (BARROSO, 2001, p. 538)

A última categoria que analisa-se, no âmbito do arcabouço de Friedman, é o

“narrador Câmera” (LEITE, 2006, p.62 ). Esse narrador é muito presente nas obras de Maria

Alice Barroso. Seria como se as cenas fossem capturadas por uma câmera, focando os

pontos de vista dos personagens e, notadamente, tal câmera não é neutra. A partir dos

fragmentos citados abaixo, na ambitude da suposta traição de Maria Corina – em “Um nome

para matar”- são apresentados exemplos desta focalização.

- “No entanto, uma coisa posso assegurar a você, Oceano”, o senhor falou, é que tua mulher é inocente: mais do que isto, infelizmente, meus votos de sacerdote impedem de dizer; mas esta certeza eu posso te dar: Maria Corina é inocente desta acusação de infidelidade. (BARROSO, 2001, p. 378)

6

Falando nisso me veio à cabeça a loucura que uma mulher é capaz de fazer por conta de pecar de corpo e alma: gente, ninguém pode calcular o vidão de D. Maria Corina[...] Olhe, naquela noite, na Lagoa Preta, quando eu vi que o capitão ficamos na cabana de pescado pai dele, eu vi que o capitão tava ainda perdido de amor: mesmo que a mulher fez ele de corno [...] (BARROSO, 2001, p.483)

7

5 Destacado, em itálico, como no original

6 O ponto de vista do padre da cidade Parada de Deus – Grifo meu

7 O ponto de vista de setenta- e -um, capanga do capitão Oceano – Grifo meu

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Esses ângulos nos permitem uma articulação dialética de visões de mundo dos

narradores e dos personagens dos romances. Configura-se, assim, uma forma de perceber

qual olhar é o mais condizente, e qual narrador é mais confiável, logo, essa mistura de

narradores permeia um emaranhado de incertezas que incitam o leitor.

As categorias descritas por Friedman podem ser relacionadas com as de Gérard

Genette, já que os narradores apresentam características próximas. As análises dos

narradores de Genette adotam o termo da diegese, e formam as classificações que

configuram, “[...] o universo significado, o mundo possível que enquadra, valida e confere a

inteligibilidade à história.” (REIS e LOPES 2007, p.108).

Na visão genettiana o narrador se enquadra como um sujeito qualquer a partir da

narrativa, por isso, não podem ser classificados quanto às classes gramaticais (primeira

pessoa e terceira pessoa), e, sim como “duas atitudes narrativas” que são: “fazer contar a

história por uma das suas personagens, ou por um narrador estranho a essa história.”

(GENETTE, 1980, p.243)

Mediante as duas atitudes narrativas, Genette classifica os narradores conforme à

atuação no texto, dessa forma, tem-se o “narrador heterodiegético” que “[...] relata uma

história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o

universo diegético em questão.” (REIS e LOPES, 2007, p. 263). Conforme o fragmento de

“Um nome para matar”:

Era fevereiro, o mormaço imobilizou as folhas nas duas compridas árvores de fruta-pão frente à casa. Oceano passara a noite sentado na cadeira de balanço na varanda, a alva camisa sem colarinho contrastando com a rubra pele do pescoço, mastigando um palito [...] (BARROSO, 2001, p.27)

Percebe-se que o narrador é um descritor do ambiente, do clima, das ações de

Oceano, ele não se coloca na história. Diferentemente da categoria do “narrador

homodiegético” que está presente na história, e é uma “[...] entidade que veicula

informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido

a história como personagem, o narrador retirou daí informações de que carece para

construir seu relato [...]”. (REIS e LOPES, 2007, p.265).

Em “Um nome para matar”, o “narrador homodiegético” participa da conversa de

Carmosina com Maria Corina, e, é a partir das expressões “ela te perguntou”; “você mentiu

só para meter medo a ela”; “você respondeu”, confirmam a presença deste narrador no

diálogo.

“Que foi, Carmosina?”, ela te perguntou quando viu que se benzia. -- Ocê sabe, Maria Corina, você respondeu. ‘Seu pai já me ameaçou de botar pra fora de casa’, você mentiu só para meter medo a ela, ‘se eu deixasse ocê falar de novo com siô Oceano’

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- Ela jogou o cabelo para trás, com aquele espevitamento de quem tá com vontade de fazer uma coisa proibida. - ‘O que é que você quer que eu faça, Carmosina?’, ela te perguntou. (BARROSO,2001, p.29)

A outra posição de Genette é o “narrador autodiegético” “[..] relata as suas próprias

experiências como personagem central da história.” REIS e LOPES,2007, p.259). Como se

vê no romance “A Morte do Presidente ou A Amiga da Mamãe”

Mesmo que muitos de nós, paradenses - como éramos chamados -, morássemos em sítios distantes, como a rua do café (que ia dar no hospital), ou na rua dos Prantos, cuja a origem do misterioso nome nunca consegui descobrir, ou no íngreme morro do Cruzeiro, nossa vida estava concentrada lá, na rua Direita, aquela via sinuosa, de paralelepípedos, onde se localizavam as principais casas de comércio da cidade. (BARROSO,1994, p.25)

Nesse episódio o “narrador autodiegético” se inclui na história, falando e escrevendo

acerca daquilo que conhece, e toma como o seu cenário a cidade, as ruas, as casas,

localizadas em Parada de Deus. Ele é de fato um protagonista da narrativa que revela os

acontecimentos através de suas vivências.

No que se refere a níveis narrativos, Genette diferencia as narrativas que se situam

dentro de outras como: “nível extradiegético”, “nível intradiegético” e “nível hipodiegético ou

metadiegético” (REIS e LOPES 2007, p.290).

O “nível extradiegético”, o narrador se situa exterior à diegese que narra, ele se

encontra em um nível diferente daquilo que fala. Percebe-se esse nível no romance “Um

nome para matar”, no trecho:

O casario quase uniforme da rua pobre – a porta do meio ladeada por duas janelas baixas constitui a fachada simples e comum das casas – contrasta com o que se advinha da esquina que ele acabou de dobrar, andando sempre com a mesma cadência, apenas os olhos se estreitaram, como se desejasse enxergar melhor: os sobrados, com as pequenas sacadas de ferro trabalhado dominam a rua, cujos os focos de luz coincidem com os vários grupamentos de pessoas; é uma rua sinuosa, esta, onde, do seu fim, no qual ele vem de se postar, frente ao Hotel de Madre Joana, não se pode ver o começo, logo antes da praça que tem o nome do bisavô: porém ela toda do mesmo nível, de paralelepípedos desiguais [...] (BARROSO, 2001, p.21)

Por outro lado, existe o “narrador intradiegético” que é simultaneamente personagem

e narrador dentro da história, é caso da Aninha do romance “A morte do presidente ou A

Amiga de Mamãe” quando ela conta a situação que seus pais estavam passando, e, o

suposto envolvimento da amiga de mamãe com o seu pai.

Maria tinha ficado em casa também, junto com tia Inês, mas Betinha também veio comigo, só que tem que ela não me dizia nada, só me olhava

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de vez em quando, como se adivinhasse o que tava acontecendo dentro de mim. Aí me veio à cabeça a cena daquela noite, que até hoje eu não sei explicar direito: a casa estava às escuras, entrei na ponta do pé, acho que pensando bem o que conseguia escutar era o barulho surdo da nossa geladeira, nada mais além disso: e na fresta da porta do quarto dele, aquela coisa coberta pelos lençóis se mexendo pra cima e pra baixo: até agora não pude descobrir o que era aquilo; sim, Tia Inês bem que sabe, mas ela não quis me contar: e depois mamãe apareceu, de penhoar, e em seguida a lâmpada do escritório do meu pai foi acesa, e passado mais um tempo, na porta da cozinha, a amiga de mamãe deu as caras: nunca entendi esse mistério

8 .

(BARROSO, 1994, p.156)

A outra situação narrativa é o “nível hipodiegético ou metadiegético”, o narrador

delega sua voz a uma das personagens, por exemplo, Doroteia – irmã do capitão Oceano –

no primeiro momento da narrativa é um personagem dentro do romance “Um nome para

matar’, já no segundo momento, ela narra sobre Maria Corina, conforme os fragmentos

respectivamente:

- Quando eu fechei a porta do quarto, quase morta de susto, a filha mais velha de D. Paula, tava atrás de mim, com a cara muito fechada me perguntando o que eu queria no quarto da irmã. Pedi desculpa do engano e saí muito ressabiada [...] (BARROSO,2001, p. 35) É isso que faz com que todo homem se apaixone pela minha cunhada, Maria Corina: ela só tem o homem que não quer. No banquete de posse de Oceano, o Juca teve que ser tirado, quase que à força, do almoço: Setenta- e- um bateu com ele na Gratidão, me buscando, pra mim tomar conta dele: tinha enchido os chifres de vinho e arrastou asa pra minha cunhada [...] (BARROSO, 2001, P. 229-230)

Ao apresentar algumas teorias de Friedman e Genette em relação ao foco narrativo,

infere-se que a figura do narrador é imprescindível para a história ficcional, principalmente,

nos romances analisados de Maria Alice Barroso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos narradores a partir das perspectivas de Norman Friedman e Gérard

Genette mostrou a dimensão dos ângulos trabalhados pela Maria Alice Barroso. Sendo

assim, a funcionalidade do narrador não se esgota no texto literário.

Diante das leituras dos romances “Um nome para matar” e “A Morte do Presidente

ou A Amiga de Mamãe”, percebe-se que devido à técnica literária da autora, surgem

narrativas uma atrás da outra, quebrando assim, a tranquilidade do leitor que se aventura

em juntar as histórias.

8 Destacado, em itálico, como no original

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A mudança constante de narradores faz com que a história seja dividida e se

multiplique em outras histórias, dessa maneira, o leitor lida com construções que geram

dúvidas e incertezas em relação à narrativa e que dão margem a possíveis leituras.

“Para que os personagens possam viver, devem contar” (TODOROV, 2011, p.133).

Logo, os narradores dos romances refletem os costumes, as ideologias, que permeavam a

vida dos personagens que viviam na pacata Parada de Deus.

Portanto, supõe-se que Maria Alice Barroso teve muitas razões para que suas

narrativas remetessem as outras histórias, para que elas não fossem finitas de significações.

O donos das vozes que percorrem as obras de Maria Alice Barroso se reúnem para

construir um mundo possível, de modo que haja uma ligação do mundo do texto com o

mundo do leitor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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