A música nas práticas criativas da Educação Infantil

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Revista Pátio Educação Infantil. Edição 37, Out., 2013. A música nas práticas criativas da educação infantil Viviane Beineke Proporcionar diferentes formas de participação das crianças favorece o engajamento na atividade musical, já que elas podem vivenciar a música cantando, tocando um instrumento, dançando, batendo palmas ou simplesmente ouvindo. A música está tão presente nas nossas vidas, que muitas vezes não paramos para pensar sobre a diversidade de significados que ela apresenta. Mergulhando em suas lembranças, quais são as experiências musicais que você considera mais significativas? Na escola, como foram as suas experiências musicais? E, na educação infantil, que tipo de contato com a música estamos proporcionando às crianças? Você já observou como elas se relacionam com a música? Com olhos e ouvidos atentos, podemos observar as crianças produzindo uma variedade de sons, experimentando algum instrumento musical (convencional ou não), participando de jogos cantados, balançando o corpo enquanto ouvem música, compondo ou improvisando uma canção enquanto brincam. As crianças produzem sentidos expressando-se sonoramente, em práticas singulares, que refletem e transformam as culturas da infância. Os jogos e brinquedos cantados representam práticas legitimadas na educação infantil, sendo reconhecida a importância dessas atividades para o desenvolvimento das crianças. Entretanto, muitas vezes a brincadeira é colocada a serviço do desenvolvimento

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Revista Pátio – Educação Infantil. Edição 37, Out., 2013.

A música nas práticas criativas da educação infantil

Viviane Beineke

Proporcionar diferentes formas de participação das crianças favorece o

engajamento na atividade musical, já que elas podem vivenciar a música

cantando, tocando um instrumento, dançando, batendo palmas ou simplesmente ouvindo.

A música está tão presente nas nossas vidas, que muitas vezes não paramos para pensar

sobre a diversidade de significados que ela apresenta. Mergulhando em suas lembranças,

quais são as experiências musicais que você considera mais significativas? Na escola,

como foram as suas experiências musicais? E, na educação infantil, que tipo de contato

com a música estamos proporcionando às crianças? Você já observou como elas se

relacionam com a música?

Com olhos e ouvidos atentos, podemos observar as crianças produzindo uma variedade

de sons, experimentando algum instrumento musical (convencional ou não), participando

de jogos cantados, balançando o corpo enquanto ouvem música, compondo ou

improvisando uma canção enquanto brincam. As crianças produzem sentidos

expressando-se sonoramente, em práticas singulares, que refletem e transformam as

culturas da infância.

Os jogos e brinquedos cantados representam práticas legitimadas na educação infanti l,

sendo reconhecida a importância dessas atividades para o desenvolvimento das crianças.

Entretanto, muitas vezes a brincadeira é colocada a serviço do desenvolvimento

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cognitivo, motor ou rítmico e, com a “pedagogização da brincadeira”, perde seu caráter

de experiência significativa, sendo reduzida a atividades dirigidas (Leite, 2002).

Brincando em sala de aula, nós, professores, assumimos um papel e uma função diferentes

da criança que brinca. É necessário que nos apropriemos do gesto de brincar, percebendo

como ele é importante para a criança a fim de que possamos dar significado e direção à

nossa prática (Pereira, 2005). A brincadeira é uma forma de expressão, e o significado

precisa estar presente nas atividades musicais escolares. Se o brincar se estabelece na sala

de aula apenas como uma ferramenta para o ensino, ele perde seu potencial criador,

imaginativo, de possibilidade de expressão, reinvenção e ressignificação das suas ações.

Observando como as crianças brincam, percebemos que elas olham as crianças mais

velhas produzindo música e, a seu modo, encontram uma maneira de participar e entrar

na brincadeira. Essa é uma ideia que poderia orientar nossas práticas em sala de aula,

pois, observando como as crianças apropriam-se das brincadeiras, podemos criar com elas

novas formas de jogar e fazer música em conjunto. Proporcionar diferentes formas de

participação das crianças também favorece o engajamento na atividade musical, já que

elas podem vivenciar a música cantando, tocando um instrumento, dançando, batendo

palmas livremente ou simplesmente ouvindo. Assim, não podemos confundir habilidades

com capacidade de fruição, gozo e prazer (Pescetti, 2005).

No campo de estudos sobre a música infantil, afirmamos a necessidade de que músicos e

educadores construam uma atitude de escuta aos jogos e brincadeiras das crianças,

respeitando e valorizando a cultura infantil. Nessa perspectiva, as músicas fazem sentido

quando compreendidas e vividas mais amplamente, o que inclui todo o contexto do

brincar. Na escola, isso muitas vezes não acontece, como, por exemplo, quando canções

“do folclore” são trabalhadas sem que se estabeleçam relações entre o contexto cultural e

social da música: qual é a origem da música, como ela é cantada, tocada ou brincada,

quem são as pessoas que participam dessa prática musical? De modo descontextualizado,

cantar canções tradicionais significa cantar temas melódicos, desconsiderando a música

e o brincar como produções culturais.

Levar músicas que fazem parte do próprio universo das crianças para a sala de aula é uma

maneira de valorizar o saber infantil, ampliar os valores estéticos e o imaginário, tornando

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o aprendizado mais significativo para a criança. Também é importante lembrar que as

músicas das crianças não são apenas as canções chamadas “infantis”, tradicionais ou não.

As crianças estão sempre interagindo com as mais variadas manifestações musica is,

interpretando e produzindo significados que colocam em movimento as suas ideias de

música. Os adultos também produzem muitas músicas para as crianças, porém a riqueza

do processo de construção da cultura lúdica, bem como sua complexidade, consiste no

fato de que a criança interage e produz seus próprios significados em relações às

produções culturais dos adultos para as crianças (Brougère, 2002).

Na escolha de repertório para a educação infantil, é comum pensar que as músicas

produzidas para as crianças são as mais adequadas. Contudo, é preciso lembrar que tais

músicas são elaboradas pelos adultos a partir de suas concepções de criança, trazendo,

em muitos casos, ideias infantilizadas ou estereotipadas sobre o universo infantil. É

preciso refletir criticamente sobre o conteúdo musical e expressivo do repertório que

apresentamos em sala de aula. As crianças, em princípio, podem ouvir músicas de todos

os tipos, dos mais diversos estilos, culturas e períodos. Elas compreendem as músicas a

partir de suas experiências, as quais lhes permitem, a seu modo, atribuir significados ao

que ouvem, ampliando suas concepções e construindo novas referências musicais.

Para as crianças, a música é comunicação, prática social, algo para ser vivido

coletivamente. Por isso, quando fazem música juntas, seu fazer musical emerge da própria

intenção de fazer música em conjunto mais do que da intenção de fazer uma “peça de

música” (Young, 2008). Tal premissa, com frequência, vai de encontro a concepções mais

tradicionais, que priorizam a aquisição de habilidades formais em atividades

individualizadas. As crianças não separam o produto do contexto de produção, pois

consideram a natureza interativa do fazer musical mais importante do que habilidades ou

técnicas específicas. Você já reparou como as crianças pequenas fazem música

expressivamente, mesmo sem ter pleno controle, por exemplo, do ritmo ou da voz?

Muito além das concepções dos adultos sobre “música infantil”, as crianças revelam

modos próprios de compreender, imaginar e, inclusive, criar as próprias músicas. Por isso,

vêm sendo envidados esforços para compreender as concepções de música das crianças ,

entendendo-as como agentes de sua aprendizagem. Pesquisas na área da educação

musical vêm sendo realizadas com a intenção de compreender as perspectivas e os

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significados da música segundo as próprias crianças, demonstrando que suas experiênc ias

musicais precisam ser vistas sob os seus parâmetros, que podem não corresponder aos

critérios dos adultos. Esses parâmetros decorrem do mundo social e cultural vivido e

internalizado pela criança, compreendida como um sujeito que pensa e constrói.

As crianças são capazes de falar sobre música, emitir opiniões, tocar, cantar, imitar,

inventar e imaginar. Precisamos favorecer espaços para que elas exerçam sua

musicalidade. Elas também compõem as próprias músicas quando têm oportunidade para

manipular materiais musicais, o que desenvolve o pensamento e a compreensão musica l.

Vale explicar que estou chamando de composição as pequenas ideias musicais elaboradas

e organizadas expressivamente pelas crianças, sem necessidade de algum tipo de registro

ou notação musical.

Criando/compondo música, as crianças podem manifestar as suas ideias

espontaneamente, expressando e reinventando o que conhecem. Além disso, apropriam-

se do que conhecem e imprimem as próprias intenções musicais em suas produções.

Quando compõem música na escola, elas também têm a oportunidade de conectar a

produção escolar com suas vivências cotidianas fora da escola. E nós, professores, ao

ouvirmos atentamente as composições das crianças, poderemos compreender melhor

como elas pensam musicalmente, como articulam ideias musicais e como atribuem

significados à música em suas vidas.

Tendências recentes no ensino de música vêm apontando a importância de potencializar

as atividades criativas através da avaliação coletiva das práticas musicais em sala de aula.

Como as crianças percebem a produção musical umas das outras? Devemos criar em sala

de aula um ambiente no qual, mediadas pelos educadores, as crianças assumam uma

posição de plateia crítica que compreende, contribui, colabora e aprende com as

composições musicais da turma. Desse modo, a aprendizagem criativa é desencadeada

em experiências musicais diretas que não visam apenas à criação de algo novo ou a

aplicação de conhecimentos musicais, visto que a criatividade é entendida no contexto de

amplas dimensões éticas, encorajando os alunos a analisar e refletir criticamente sobre as

consequências de suas ideias.

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Cabe ao professor ouvir as crianças, compreender suas concepções de música para

construir um ambiente de respeito mútuo, no qual elas se sintam valorizadas e seguras

para expor pensamentos, negociar opiniões e trabalhar com os colegas. Nas atividades em

pequenos grupos, fundamentais nesse processo, o professor precisa estar atento à

qualidade das interações entre as crianças, construindo com elas um espaço de

participação e colaboração. Assim, o foco são as aprendizagens colaborativas, de seres

humanos que se relacionam fazendo música, que se escutam e aprendem uns com os

outros.

Participando das aulas como compositoras, intérpretes e audiência crítica, as crianças têm

a oportunidade de construir sua identidade no grupo, tornando-se agentes da própria

aprendizagem, elaborando intersubjetivamente o conhecimento que sustenta suas

concepções de música, constantemente revistas, atualizadas e ampliadas por suas

experiências musicais e reflexivas (Beineke, 2009). É nosso papel criar condições para

que se estabeleça um ambiente de comprometimento com os processos de aprendizagem

musical do grupo, de colaboração mútua, de engajamento de interesses e de valorização

das contribuições das crianças. O que desejamos, enfim, é construir uma educação

musical na infância que contribua com a formação de pessoas mais sensíveis, críticas,

transformadoras e solidárias, tendo em vista um mundo melhor. Vamos ouvir as músicas

das nossas crianças?

Viviane Beineke é doutora em Música/Educação Musical e professora do curso

de licenciatura em Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). [email protected]