A Música Popular Brasileira repensa identidade e naçãoB

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Revista FAMECOS Porto Alegre nº 31 dezembro de 2006 quadrimestral 125 RESUMO O objetivo desse artigo é abordar o universo da mú- sica massiva no Brasil, focando a discussão na Músi- ca Popular Brasileira e o papel que seus criadores, a partir dos anos 60, têm na reflexão e na construção de novos parâmetros para se pensar identidade na- cional e o Brasil enquanto nação. O Brasil tem na produção musical ligada à canção popular papel decisivo na gênese de novas identidades nacionais híbridas; não mais fixas, nem essencializadas, mas marcadas pela articulação do “próprio” e do “alheio”. Seus criadores auxiliam a quebrar as bar- reiras asfixiantes criadas por nacionalistas empe- dernidos, mas sem cair na também asfixiante aceita- ção cega daquilo que é produzido e entendido na metrópole como o melhor. PALAVRAS-CHAVE MPB Tropicália identidade nacional ABSTRACT The aim of this work is to analyse the importance of the role played by pop song musicians on the imaginary of the Post-Sixties generation in Brazil, for has helped in the building of a space of expression and manifestations such as had never previously existed in such moulds before. MPB holds a means of artistic creation and a kind of authorship well inserted into this new world context where the frontiers have been erased and identities have been blended. Brazilian popular musicians can serve as excellent sources for researchers interested in learning about the transformation of national identity and the idea of nation. Theirs creations retains the marks of the trans- formations undergone by their Brazilian society, and have recreated such transformations into peculiar aesthetical forms of artistic expression. KEY WORDS Brazilian popular music Tropicália national identity Marildo José Nercolini UFF IDENTIDADES CULTURAIS A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação Identidade nacional: novos parâmetros de análise identidade nacional não é mais vista enquanto atributo natural adquirido pelo sujeito por per- tencer à determinada nação. Não nascemos com uma identidade nacional, ela é formada e trans- formada de acordo com as representações que va- mos adquirindo e criando. Nação é, resgatando Benedict Anderson (1989), uma comunidade imagi- nada com suas instituições culturais, seus símbolos e representações, com seu modo de construir senti- dos e, portanto, de construir identidades. Os limites nacionais encontram-se imprecisos e móveis. Hoje se torna ilusório pensarmos em ter- mos de nação a partir de pressupostos como o de um povo puro, com uma história homogênea cons- truída pelos heróis nacionais. Se não há mais cen- tros únicos, irradiadores da verdade a ser seguida e aplicada como regra, também não há mais nações com esses pressupostos. As fronteiras nacionais in- ventadas e fixas, a separar “nós e outros”, “ordem e desordem”, “cosmos e caos”, “verdade e impostu- ra”, não mais se sustentam. As transformações constantes na tecnologia, nas telecomunicações, na forma de trocas e na produção de bens culturais e econômicos acabam por tornar instáveis as identidades fixas, baseadas em noções espaços-temporais de etnia e/ou nação. Para Hall (1997) essa crise de identidade decorre, entre outros fatores, do deslocamento de estruturas e dos pro- cessos centrais das sociedades modernas, acrescidas pelo abalo em seu quadro de referências. Temos, então, uma identidade descentrada, deslocada e frag- mentada; portanto, mais móvel. De acordo com Giddens (Apud Hall, 1997: 16), o ritmo acelerado e o alcance global da interconexão das diferentes áreas do planeta trazem como conse- qüência transformações sociais globais, tanto no que se refere às noções de tempo e espaço, quanto ao desalojamento do sistema social, marcado pela des- continuidade. Para Laclau (Apud Hall, op.cit.: 17), a contemporaneidade vem caracterizada pela diferen- ça, pelas articulações parciais dos elementos identi- tários, pelo deslocamento que desarticula as identi- dades mestras, baseadas na posição de classe, na etnia e na nacionalidade. Silviano Santiago (1978) trabalha identidade naci- onal como processo de rearticulações, em que os códigos culturais impostos pelos colonizadores fo- ram transfigurados sistematicamente em suas nor- mas e características, destruindo-lhes a unidade, a pureza e o sinal de superioridade, imprimindo-se neles rasuras e transgressões que resultam em no- vas configurações. Instaura-se um “entre-lugar” para A

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Nercolini, Marildo José

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Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestral 125RESUMOO objetivo desse artigo abordar o universo da m-sica massiva no Brasil, focando a discusso na Msi-ca Popular Brasileira e o papel que seus criadores, apartir dos anos 60, tm na reflexo e na construode novos parmetros para se pensar identidade na-cionaleoBrasilenquantonao.OBrasiltemnaproduomusicalligadacanopopularpapeldecisivonagnesedenovasidentidadesnacionaishbridas;nomaisfixas,nemessencializadas,masmarcadaspelaarticulaodoprprioedoalheio. Seus criadores auxiliam a quebrar as bar-reirasasfixiantescriadaspornacionalistasempe-dernidos, mas sem cair na tambm asfixiante aceita-ocegadaquiloqueproduzidoeentendidonametrpole como o melhor.PALAVRAS-CHAVEMPBTropicliaidentidade nacionalABSTRACTThe aim of this work is to analyse the importance of theroleplayedbypopsongmusiciansontheimaginaryofthe Post-Sixties generation in Brazil, for has helped in thebuilding of a space of expression and manifestations suchashadneverpreviouslyexistedinsuchmouldsbefore.MPBholdsameansofartisticcreationandakindofauthorshipwellinsertedintothisnewworldcontextwhere the frontiers have been erased and identities havebeenblended.Brazilianpopularmusicianscanserveasexcellentsourcesforresearchersinterestedinlearningabout the transformation of national identity and the ideaof nation. Theirs creations retains the marks of the trans-formations undergone by their Brazilian society, and haverecreatedsuchtransformationsintopeculiaraestheticalforms of artistic expression.KEYWORDSBrazilian popular musicTropiclianational identityMarildo Jos NercoliniUFFIDENTIDADES CULTURAISA Msica Popular Brasileirarepensa identidade enaoIdentidade nacional: novos parmetros de anliseidentidade nacional no mais vista enquantoatributo natural adquirido pelo sujeito por per-tencerdeterminadanao.Nonascemoscom uma identidade nacional, ela formada e trans-formadadeacordocomasrepresentaesqueva-mosadquirindoecriando.Nao,resgatandoBenedict Anderson (1989), uma comunidade imagi-nada com suas instituies culturais, seus smbolose representaes, com seu modo de construir senti-dos e, portanto, de construir identidades.Oslimitesnacionaisencontram-seimprecisosemveis.Hojesetornailusriopensarmosemter-mosdenaoapartirdepressupostoscomoodeum povo puro, com uma histria homognea cons-trudapelosherisnacionais.Senohmaiscen-tros nicos, irradiadores da verdade a ser seguida eaplicadacomoregra,tambmnohmaisnaescom esses pressupostos. As fronteiras nacionais in-ventadas e fixas, a separar ns e outros, ordem edesordem,cosmosecaos,verdadeeimpostu-ra, no mais se sustentam.Astransformaesconstantesnatecnologia,nastelecomunicaes, na forma de trocas e na produodebensculturaiseeconmicosacabamportornarinstveisasidentidadesfixas,baseadasemnoesespaos-temporaisdeetniae/ounao.ParaHall(1997) essa crise de identidade decorre, entre outrosfatores,dodeslocamentodeestruturasedospro-cessos centrais das sociedades modernas, acrescidaspeloabaloemseuquadrodereferncias.Temos,ento, uma identidade descentrada, deslocada e frag-mentada; portanto, mais mvel.DeacordocomGiddens(ApudHall,1997:16),oritmoaceleradoeoalcanceglobaldainterconexodas diferentes reas do planeta trazem como conse-qncia transformaes sociais globais, tanto no quesereferesnoesdetempoeespao,quantoaodesalojamento do sistema social, marcado pela des-continuidade. Para Laclau (Apud Hall, op.cit.: 17), acontemporaneidade vem caracterizada pela diferen-a, pelas articulaes parciais dos elementos identi-trios, pelo deslocamento que desarticula as identi-dadesmestras,baseadasnaposiodeclasse,naetnia e na nacionalidade.Silviano Santiago (1978) trabalha identidade naci-onalcomoprocessoderearticulaes,emqueoscdigosculturaisimpostospeloscolonizadoresfo-ramtransfiguradossistematicamenteemsuasnor-masecaractersticas,destruindo-lhesaunidade,apurezaeosinaldesuperioridade,imprimindo-senelesrasurasetransgressesqueresultamemno-vas configuraes. Instaura-se um entre-lugar paraA126 Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestralMarildo Jos Nercolini 125132osdiscursosperifricos,comoolatino-americano.Nemasimplesnegaodainflunciaestrangeira,nemasuaaceitaocega,masaapropriaoqueinstaura o espao da mediao cultural onde a hege-monia vai ser desafiada (Guelfi, 1996: 140).Aoseacentuaremoscontatoseastrocasentreculturas, acentua-se tambm o processo de desloca-mento das identidades nacionais, colocando em pau-ta o hibridismo, a transculturao. O local e o globalimbricam-se originando articulaes novas. O local penetrado e moldado por influncias sociais mui-to distantes dele, mas, ao mesmo tempo, esse localacaba por transformar o global, numa interao demo dupla. A difuso do consumismo, real ou ima-ginado, contribui para esse efeito de supermercadocultural, desalojando e desvinculando as identida-des de tempo e espaos restritos. Garca Canclini inovador em sua reflexo sobre identidades, pois asrelacionadiretamentecomoconsumo.Paraeleasidentidadeshojesodefinidaseconfiguradasnoconsumo, isto , no acesso que algum tem, ou quepoderia ter, aos bens materiais, estticos e culturaisproduzidos.Ocorre,portanto,aredefiniodosenso de pertencimento e identidade, organiza-do cada vez menos por lealdades locais ou nacio-naisemaispelaparticipaoemcomunidadestransnacionaisdesterritorializadasdeconsumi-dores (Garca Canclini, 1995: 28).Cabe,noentanto,acrescentarqueesseprocessono homogneo, mas tem uma clara geometria depoder, abrangendo desigualmente regies e especi-almenteestratosdapopulao.Seapossibilidadedas diferentes escolhas identitrias vasta nos cen-tros, nas periferias o ritmo mais lento e desigual, eo pluralismo se v restrito pelas condies precriasque no permitem o acesso aos mecanismos de pro-duodessasdiferentesopesidentitrias.Outroaspecto a ser destacado que hoje o impacto globalvemassociadoaumnovointeressepelolocal.Aformaodessasnovasidentidadestransterritoraise multilingsticas coexiste com a tentativa de remo-delaodasculturasnacionais.Naarte,porexem-plo,seoprocessodedesterritorializaoexisteeganha amplos espaos, tambm h fortes movimen-tos de reterritorializar, afirmando o local, o especfi-co. O processo, ao invs de antagnico, mais com-plementar.Ahibridaointerculturalreconstriasidentidades tnicas, regionais e nacionais, mas nonosmesmosmoldesmodernos,poisnosepodemais negar a nao como entrecruzamento, nos ce-nriosmultideterminados,deumadiversidadedesistemas simblicos.Na produo de identidades persistem os confli-tos. Merece cada vez maior destaque as negociaesestabelecidas,numaverdadeiraco-produo,poisa identidade teatro e poltica, representao eao e estudar o modo como esto sendo produ-zidasasrelaesdecontinuidade,rupturaehibri-dao entre sistemas locais e globais, tradicionais eultramodernos, do desenvolvimento cultural , hoje,um dos maiores desafios para se repensar identida-de e a cidadania (Garca Canclini, op.cit.: 151-2).A identidade brasileira pensada e recriada pela MPBNoBrasil,parapensaraquestodastransforma-es identitrias, parece-me fundamental resgatar opapeldoscriadoresdoqueveioadenominar-seMsica Popular Brasileira, na formao de uma iden-tidade plural, hbrida, em que se articulam o popu-lar, o massivo e o culto; o prprio e o alheio; o local eo global.Os criadores da MPB, a partir dos anos 60, auxili-am a criar um novo tipo de relao identitria, umanova busca de identificao com smbolos e elemen-tos nacionais, sobretudo para a parcela mais jovemda populao. A prpria denominao encarna essedesejo,afinal,noimpunementequesechamamMsica Popular Brasileira. O que estaria subjacentea esses nomes? Talvez o desejo de deixar bem mar-cado que estavam falando de um local especfico esentiam-se vinculados ao seu pas de origem; e tam-bm como resposta aos inmeros crticos ligados aumatradioconservadora,queinsistiamemafir-mar que ambas as propostas eram estrangeirizantesporreproduziremosomianquee,pretensamente,renegarem a cultura nacional.No perodo em que estava sendo gestada anos60ogovernomilitarinstaladobuscouapropriar-se dos smbolos ptrios e impingir um nacionalismoxenfobo e truculento. Por outra parte, existia umaeliteintelectualtradicionaladefenderosvaloresptrios e defenestrar qualquer tentativa de transfor-mao cultural que no seguisse seus padres. Con-tra essas duas posturas, criadores da MPB se insur-giram e entraram na disputa da definio do que eraser brasileiro, propondo-se a rediscutir a identidadenacional em outros moldes. interessante perceber que a MPB foi se transfor-mando,nodecorrerdosanos,emumdosndicesmais fortes da brasilidade e do orgulho nacional;umaspectoque,juntocomofutebol,temservidopara o reconhecimento interno e tambm externo damarcadoserbrasileiro.NocustalembrarqueosmsicosligadosMPB,desdeosanos60athoje,estoinseridosnasdiscussessobreidentidadeenao.Algunsimbudosdeumnacionalismomaisfechado e reativo; outros de uma noo de identida-de em termos mais abertos e menos fixos, como bemo demonstra a proposta tropicalista.No Brasil dos anos 60 o mundo da cultura passouporumperododeintensacriaoqueinterligavaasdiversasartes.Umdoselementosquepossibili-touessainterligaofoiapreocupaocomumaessescriadoresdepensaroBrasileoseufuturo:Quemsomos?QueprojetodeBrasilqueremos?Como implant-lo? Havia uma confluncia ideol-gica que, a despeito das divergncias pontuais queeram muitas, como comprovam as acirradas discus-Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestral 127A Msica Popular Brasileirarepensa identidade e nao 125132sesestabelecidaspossibilitouacriaodeumambiente de efervescncia criativa nas reas acad-micas, no teatro, no cinema, na poesia e na msica.O momento parecia propcio, mas o golpe militar de64 representou um baque nas pretenses desses cri-adores de pensar e transformar o Brasil numa naomaisjustaesoberana.Commuitosofrimento,vi-ram-se obrigados a revisar seus projetos. Por outrolado,ogolpemilitarresultoutambmnumforteelemento aglutinador das esquerdas das vrias re-as poltica, cultural e artstica. O inimigo comumfezafloraranecessidadedaunio,superandoasdivergncias. O iderio em torno da revoluo e danaotodoscomoumganhoufora.Opensa-mento nacional-popular era hegemnico e sua crti-ca,nasartes,somentepassouatervisibilidadeapartir da proposta tropicalista, em 67.Dispostosadarsuacontribuionarevoluoque se vislumbrava, os cantores e compositores daMPBsepropunhamaproduzirumamsicaque,valorizandoasconquistasinovadorasemodernasda Bossa Nova, resgatasse os elementos da culturapopular, reafirmando, assim, sua condio de brasi-leirosedisposioacriarapartirdocontextoemque viviam.A Revista Civilizao Brasileira, espao importantede debate nos anos 60, dispunha-se a pensar o Brasilereuniaemsuaspginasanliseediscussodetemasqueabarcavamquestespolticas,ideolgi-casesobretudoculturaiseartsticas.BossaNova,MPB,nacionalismo,entreguismo,novosrumos,pureza-cpia... eram alguns temas ligados msicaqueforamdiscutidosapaixonadamente.Emsuaspginas encontramos Jos Ramos Tinhoro, FerreiraGoulart,EduLobo,Capiname,claro,CaetanoVeloso,entretantosdispostosapensaroBrasilediscutir a msica popular que aqui se fazia.OembatequeseestabeleceuentreTinhoro(estudioso da msica popular, com posies conser-vadoraseferrenhodefensordapurezadeumamsica com razes brasileiras) e os criadores, de-fensores e continuadores da Bossa Nova mostrava,porumlado,queaquestonacionaleareflexosobre a nossa identidade estava na ordem do dia; e,por outro, que as transformaes propostas por umanova gerao incluam o dilogo mais aberto com oestrangeiro,semdemoniz-lo,demonstrandoumavisomenosestreitadopasenomaisaceitandouma identidade nacional fixa e imutvel.Em 1963, Tinhoro publicou um artigo na revistaSenhor(posteriormentereproduzidoemseulivroMsica Popular um tema em debate, cujas refernciasaqui se tomam da edio de 1969) em que, de modopejorativo,tentavademonstrarqueaBossaNova(BN) e a nova msica popular que se estava criandonaquele momento eram fruto de uma americaniza-odenossamsicaequeestariamcolaborandopara a penetrao norte-americana na MPB:Filha de aventuras secretas de apartamento com amsica norte-americana que , inegavelmente, suame a bossa nova, no que se refere paternidade,vive at hoje o mesmo drama de tantas crianas deCopacabana, o bairro em que nasceu: no sabe quem o pai. (...) Acontece que, de uma hora para outra, amenorte-americanadajovembossameio-sangueresolveu reconhec-la publicamente como filha, ace-nando-lhecomumaheranafabulosadedlaresem direitos autorais. E foi assim que (...) comearam aaparecer para desgraa e reputao da me da pobremoa os pais da bossa nova (Tinhoro, 1969: 25).Nomesmoartigo-captulo,TinhoroestabeleciaumarelaodospaisdaBNcomaculturanorte-americana,tentandocomprovarsuavendaaoca-pital estrangeiro. Vejam-se alguns exemplos:JOHNNY ALF, pianista (mulato brasileiro de nomeamericano,disfarandoonomeverdadeiro:JooAlfredo);ANTNIOJOBIM,maestro(compositorrepetida-menteacusadodeapropriar-sedemsicasnorte-americanas, esconde o nome Antnio sob o apelidoamericanizado de Tom);VINCIUSDEMORAIS,poeta(velhocompositordesconhecidoatoadventodabossanova,jem1933conseguiagravarafox-canoDordeumasaudade, imitando o ritmo norte-americano);JOOGILBERTO,violinista(cidadobaiano,co-nhecido na intimidade por Gibi, de quem chegou aanunciar-se que ia requerer a cidadania norte-ame-ricana) (Ibid.: 26).Porasepodeterumaidiadavirulnciadoembate.Tinhorofalavaemnomedaparcelamaisconservadora da intelectualidade, disposta a preser-varumpurismodenossaculturacontraqualquerinfluncia externa, sobretudo norte-americana.Em debate promovido pela Revista Civilizao Bra-sileira,em1966,TinhorodeixavaclaroqueaBNnadamaiseradoqueumtipodejazz:amatria-primaerabrasileiraeaformanorte-americana(Lobo; Tinhoro et alii: 1966: 307), seguindo a regrageralnasrelaesentrepasesdesenvolvidoseosmenosdesenvolvidos.AfirmavaainautenticidadedaBNporelaconscientementeassimilareincor-porar produo musical ritmos, estilos e harmoni-as de msicas estrangeiras (Ibid.: 312).AEduLobo,nessaocasio,couberesponderataiscrticas.Contrapondo-seaTinhoro,afirmavaosganhosimensosqueTomJobim,JooGilberto,enfim,aBN,trouxeramparanossamsica,confir-mando o seu carter brasileiro. Para confirmar suatese,citavaMriodeAndrade:Areaocontraoqueestrangeirodeveserfeitaespertalhosamentepeladeformaoeadaptaodele,nopelarepul-sa(Ibid.:309),masimbudodoiderionacional-128 Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestralMarildo Jos Nercolini 125132popular,completava,aindacitandoMriodeAndrade: O artista no deve ser exclusivista, nemunilateral. O compositor brasileiro tem que se base-ar quer como documentao, quer como inspiraonofolclore(Ibid.).Eelemesmocomplementava,afirmando:Quandosechamadeautnticososamba,comete-se um equvoco. Dizer que bossa novasofreu influncias do jazz como fator negativo,chegaasercmicoporqueentoseriaprecisolembrar que o samba tem influncia africana echegaramosaocaos,semencontrarnenhumamsicaautntica.Porquedizerqueumau-tntico e outro no? (Ibid.: 312).Quando o tema a cano de protesto, que incor-porava nas letras a problemtica e as lutas ligadas realidade brasileira, Tinhoro no se dava por ven-cido e reafirmava seu ponto de vista. Para ele, essaseriaumamaneiradoscompositoresligadosBNtentar fugir da alienao, pois a fuga se daria pelaletradascomposies.Isto,diantedaaberraoqueconsisteemdescobrirqueseestavafalandomusicalmentedetemasuniversais,comsotaqueamericano, o que a chamada participao pretende falar nacionalisticamente de temas nacionais, massem perder o sotaque (Ibid.: 310). Em outras pala-vras, questionava: como aceitar uma letra engajadase a msica no era nossa?Aoresponder,EduLobonovamenteacentuouaprofundaligaoqueoscantoresecompositoresligadosMPBdoperodotinhamcomostemasnacionais. Apoiando-se uma vez mais em Mrio deAndrade, afirmava:OperodoatualdoBrasil,especialmentenasartes, o de nacionalizao. Estamos procuran-do conformar a produo surgida no pas coma realidade nacional. O critrio atual da msicabrasileiradevesernofilosfico,massocial,deve ser um critrio de combate (Ibid.: 311).AscitaesdeMriodeAndradefeitasporEduLobo so um dado importante e demonstram comoesse embate era levado a srio. Responde a um naci-onalistaortodoxocomumoutronacionalistamaisrequintado e menos esquemtico.Nesse debate percebem-se nitidamente a presen-a do iderio nacional-popular. A tradio nacional-popular tem origem, no Brasil, na segunda fase domovimentomodernista-aquelaquevaide1930a1945. Para seus seguidores, alm de brasileira e mo-derna, a arte precisaria ser social, isto , dirigir-se aopovobrasileiroelevaremcontaseusproblemas.Subjaz neles uma viso de arte enquanto reflexo darealidade e instrumento de conscientizao poltica.Com seus estudos sobre a msica brasileira, Mriode Andrade, um dos seus principais representantes,exerceu forte influncia em compositores como VillaLobos e Camargo Guarnieri, nacionalistas ligados questo popular. Jos Miguel Wisnik (2001: 134) sin-tetizamuitobemaconjunoentreonacionaleopopularnaarte,apontandoqueelavisacriaode um espao estratgico onde o projeto de autono-mia nacional contm uma posio defensiva contraoavanodamodernidadeestticaepelomercadocultural.Emnomedaestilizaodasfontesdaculturapopular rural, idealizada como a detentora pura dafisionomia oculta da nao (Ibid.: 133), o discursonacionalista do Modernismo renegou a cultura po-pularemergentedosgrandescentrosurbanosportemer que esta desorganizaria a viso centralizadahomognea e paternalista da cultura nacional, poisrebeldeclassificaoimediatapeloseuprpriomovimento ascendente e pela sua vizinhana inva-siva,ameaaentrarportodasasbrechasdavidacultural,pondoemxequeaprpriaconcepodearte do intelectual erudito (Ibid.: 132).Oquesepretendiaeraumaelevaoesttico-pedaggica do pas, incorporando e sublimando arusticidade do folclore e, ao mesmo tempo, aplacan-doatravsdadifusodaculturaaltaaagitaourbana (o povo deseducado) a que os meios de massa(...) davam trela (Ibid.: 134).Mrio de Andrade, assim como Villa-Lobos, pro-pagava a superioridade do folclore. Ele, como afir-ma Wisnik, penetrava nos processos mitopoticos-musicaisdaculturapopular,mascomumcrivocrtico,deslocando,relativizandoereorganizandotais elementos a partir de sua formao erudita, su-perando assim um nacionalismo ortodoxo e progra-mtico.Mriovianamsicarural,marcadamentede origem nordestina, virtudes autctones e tra-dicionalmente nacionais. Ele no renegava toda pro-duoculturalurbana,valorizavaaquelaparcelaque conseguia manter-se aparte da influncia dele-triadourbanismo,trazidapeloprogressoepelointernacionalismo. Para isso, seria preciso:(...) ao estudioso discernir no folclore urbano oque virtualmente autctone, o que tradicio-nalmente nacional, o que essencialmente po-pularenfim,doquepopularesco,feitofei-odopopular,ouinfluenciadopelasmodasinternacionais (Andrade, 1962: 167)Senacional-popularversusvanguarda-mercadoj era um embate incisivo nas artes modernistas de30e40,sobretudocomVilla-LoboseMriodeAndrade, esse embate vai se aprofundar, tornando-semaisdecisivoeexplosivonacriaoartsticadadcada de 60, sobretudo na MPB que se configura-va.Comosepercebe,MriodeAndradeeraumadas fontes tericas preferenciais e a citao feita porEduLobonofoicasual.AssimcomoMrio,queafirmavaqueamsicapopulareranossacriaoRevista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestral 129A Msica Popular Brasileirarepensa identidade e nao 125132maisforteebela,percebia-seentreoscriadoresdearte e cultura nos anos 60 que a msica popular noBrasil ocupava um lugar privilegiado e que ela po-deria contribuir decisivamente para as transforma-es sociais to necessrias para o pas.Com o advento da ditadura e todos os problemasconseqentes,noseiodaBossaNovaoperaram-setransformaes. Houve uma paralisao da pesqui-samusicalemnveisformaiseumanfasenasle-tras. O contedo semntico passou a ter uma impor-tnciafundamentaldiantedarealidadequeopaspassavaaviver.Alinguagemsetornouagressiva,abordandodiretamenteoproblemadosubdesen-volvimentoou,emtomdelamento,expondoascondies subumanas, sobretudo dos nordestinos edos habitantes dos morros.CarlosLyrafoiumdosresponsveisporessamudana de rumos, articulando uma reaproximaoda msica popular brasileira com a cultura popular,esforo semelhante ao feito por Vianinha, no teatro,e Ferreira Gullar, na poesia. Carlos Lyra (Apud Ho-memdeMello,1976:114),analisandooperodo,afirma:Nessas buscas da realidade nacional acabei en-contrandotantooVilla-LoboscomooNlsonCavaquinho, Cartola, Joo do Vale, os verdadei-rosvaloresnacionais[grifonosso].Eonegcioerairsescolasdesambaeverqualeraarealidadenacionalemtodososseusaspectos.Eu procurava mesmo esse pessoal de escola desambaetambmoscarasquetinhamleitura,como Vandr.A politizao e as pesquisas que, na msica, res-gatavam o regionalismo, especialmente do nordesteesuastradies,apresentavamsimilitudecomacriaodosCentrosPopularesdeCultura-CPC,articulados pela UNE, com nfase na arte engajada.A msica popular deveria ajudar a resgatar os valo-res mais genunos da nacionalidade e auxiliar nasedimentaodeumaculturanacional.Acanodeveria ter uma funo muito mais poltica que es-ttica, seria um instrumento de conscientizao, de-nunciando a realidade injusta em que vivia a maio-ria da populao e fomentando a conscientizao e amobilizao do povo. Em nome da defesa da ptriabrasileira e de sua cultura, a incorporao na arte seja na msica, no teatro ou na poesia de elemen-tos estranhos cultura nacional, naquele momento,era considerada por alguns nacionalistas mais orto-doxos como traio ptria.HelosaBuarquedeHollanda(1992)apontaquenoprojetodosCPCsquepropunhaumaarteengajada nos moldes do nacional-popular a pala-vra potica deveria ter uma eficcia revolucionria,vistaenquantoinstrumentodetomadadepoder.Engajamentoculturalemilitnciapolticaestavamintrinsecamenteligados.NomanifestodoCPC,demarode1962,istoaparececlaramente:Oartistaque pratica sua arte situando seu pensamento e suaatitude criadora exclusivamente em funo da pr-pria arte apenas a pobre vtima de um logro tantohistricoquantoexistencial(ApudBuarquedeHollanda, 1992: 122).Noplanomusical,resgatavam-seasvelhasfor-mas da cano urbana (sambo, sambinha, marcha,marcha-rancho...) e rural (moda de viola, samba deroda, desafio...), atendo-se simplicidade formal. Oimportante era o contedo a ser transmitido, comomuito bem sintetiza Geraldo Vandr:Acho que em cano popular a msica deve serumafuncionriadespudoradadotexto.Issono quer dizer que no se deva usar os recursosartesanais, com a maior disponibilidade poss-vel, para o desenvolvimento de uma ideologiamusical nacional. Mas preciso ter um cuidadomuitograndeparaqueousodessesrecursosestejarealmenteaserviodotexto,quefun-damental na cano popular (Homem de Mello,1976: 128).CarlosZlio(1983)criticavaessapostura,poisviana arte nacional-popular uma tendncia ao mimetis-mocomopopular.Advertiaque,parapreservarosvalores nacionais, ameaados pela cultura norte-ame-ricana, os seguidores da concepo nacional-popularreverenciavam a arte popular como a nica realmentebrasileira,queprecisavaserprotegidaparanosecontaminar. Zlio via nesta proposta um carter restri-tivo,poiselasubestimavaasprofundasinteraesdialticas entre o nacional e o internacional, uma vezque continha uma viso preconcebida do particularda nossa cultura (Zlio, 1983: 47).Caetano Veloso no se eximiu desse debate, alis,como nunca se eximiu de debate algum. Posicionar-se frente a questes ligadas ao Brasil, nossa identi-dade,deondeviemoseparaondevamossofre-qentes no decorrer da carreira de Caetano, seja ementrevistas,artigos,livro(VerdadeTropicalocom-prova)etambmnumgrandenmerodesuascomposies. Mesmo antes da Tropiclia, momen-tofundamentalnessedebate,eletomavaposio,fomentando a discusso. Nas pginas da Revista Ci-vilizao Brasileira, em 1966, encontramo-lo entre Ca-pinam,FerreiraGullar,GustavoDahl,NaraLeo,Flvio Macedo Soares e Nelson Lins e Barros deba-tendo: Que caminho seguir na msica popular bra-sileira? O prprio ttulo j era emblemtico e mar-cava a hegemonia que a linha nacional-popular tinhadentro da cano popular naquele momento, afinal,sugere-se a busca de um caminho e no de cami-nhos.Caetanojademonstrouseudescontenta-mento e conseguiu dar um passo adiante no debate,criticandotantoaposturaassumidaporTinhoro,quanto a postura assumida ento pela maior parce-la de cantores e compositores da cano popular.130 Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestralMarildo Jos Nercolini 125132CaetanofoienfticoaocolocaremquestoumavisonacionalistaqueviacomoretrgradaparaaMPB:Aquestodamsicapopularbrasileiravemsendopostaultimamenteemtermosdefideli-dade e comunicao com o povo brasileiro. Querdizer:sempresediscuteseoimportanteterumavisoideolgicadosproblemasbrasilei-ros, ea msica boa, desde que exponha bemessaviso;ousedevemosretomarouapenasaceitaramsicaprimitivabrasileira(Caetano,apud Veloso, Gullar et alii, 1966: 378).Essas duas vises seriam empobrecedoras ao co-locarumacamisadeforanacriao,comlimitesrgidos, os quais ele rejeitava. De um lado Tinhoro,que defendia a preservao do analfabetismo comonicasalvao,deoutroaquelesqueresistiamaesse tradicionalismo com uma modernidade de idiaou de forma imposta como melhoramento qualitati-vo(Ibid.:378).ParaCaetano,amsicabrasileirasemodernizaecontinuabrasileira,nodevendoficar atrelada a padres fixos, pois toda informaoaproveitada(eentendida)davivnciaedacom-preensodarealidadeculturalbrasileira(Ibid.).Nota-sesuainsistncianopermanecerbrasileiraeser feita a partir de nossa realidade, mas renovando-seeabrindo-seanovoscaminhos.Norenegavaatradio, ao contrrio, a reafirmava: Se temos umatradio e queremos fazer algo de novo dentro dela,no s teremos de senti-la, mas conhec-la. E esteconhecimentoquevainosdarapossibilidadedecriar algo novo e coerente com ela (Ibid.).A necessidade da retomada da linha evolutivadentro da MPB seria capaz de dar organicidade paraselecionareterumjulgamentodecriao,umaorganicidade entendida como estruturao que pos-sibilitasse o trabalho em conjunto, inter-relacionan-doasarteseosramosintelectuais(Ibid.).JooGilbertoseriaoparmetro:ainformaodamo-dernidademusicalutilizadanarecriao,nareno-vao, no dar um passo frente da msica popularbrasileira(Ibid.),conjugandotradioemoderni-dade.Ficamclarosaquialgunspressupostosque,noanoseguinte,estariamnabasedaTropiclia.Tambm nesse debate Caetano deixava claro o queo movia na criao naquele momento:SeitambmqueaArtenosalvanadanemningum, mas que uma das nossas faces. Meinteressa que corresponda o que fao posiotomada por mim diante da realidade brasileira.Por mim e por todos os moos da classe mdia,que estudam nas faculdades e se interessam emlutar contra a alienao (Ibid.: 384).Ferreira Gullar, imbudo do esprito nacional-po-pular, encerrou esse debate propondo a luta contraa cultura de massa internacional que traria malefcios cultura brasileira, citando nominalmente o I-i-i.Jquenosepodiafecharopasparaessacultura de massa internacional, devia-se combat-laculturalmente.Aformadecombate-resguardarnossas razes: fazer com que os compositores pro-curem dentro da prpria cultura brasileira, nos ele-mentospopularesdamsicabrasileira,afontedeuma nova criao que possa realmente fazer frente aessa onda internacional (Ibid.: 384-385). Por fim, namesma forma como Mrio de Andrade dcadas an-terioreshaviafeito,Gullarreafirmavaopoderdamsica popular no Brasil: Das formas de arte brasi-leira a msica talvez a que esteja mais entranhadano meio do povo brasileiro; a que tem mais fora,mais capacidade de enfrentar a influncia estrangei-ra (Ibid.: 385). Em poucas palavras Gullar sintetiza-va o pensamento hegemnico nas artes do perodo,propondo o uso da arte para vencer o inimigo capi-talista, que, em sua nsia de expanso, progresso edesenvolvimento, devorava nesse processo todas astradiespopulares.Gullar,comodeixaclaroemtextoposterior(1979),pretendiacontrapor-seaovanguardismo formalista, cuja concepo de artevia como elitista e hermtica, dominada pela impor-tao de formas. Esse autor no negava a importn-cia e a influncia na arte nacional da arte estrangei-ra. Ressaltava, contudo, que em pases cujas culturasnoeramconsistenteseestavamemformao,asinfluncias externas tendiam a ser malficas, agin-do como fator de perturbao do processo formativoda cultura nacional.Esse debate promovido pela CivilizaoBrasileiradeixou claro o que viria a seguir. Desde de 1964 sepercebiam rupturas com a proposta ento hegem-nica dentro da MPB. O caminho nico de uma artenacional-popularnorespondiamaisaosanseiosdetodososseuscriadoresemuitomenosaosdasociedade que entendiam representar. Caetano, nessedebate, explicitava-as e j apresentava alguns traosdo que viria a ser a Tropiclia; Gullar fincava o p nadefesadonacional-popular.Ascartasnovamenteestavam dadas, o embate estava apenas comeando.Em 1967, a trupe tropicalista, tendo Caetano e Gilfrente,ateoufogodiscusso,trazendonovascartas na manga: Oswald de Andrade e a antropofa-gia, a produo considerada brega,kitsch da msicabrasileira e, o que causou o mal-estar maior, o dilo-gocomopop-rockinglsdosBeatles,comsuasguitarraseltricase,conseqentemente,odilogocom o I-i-i nacional, aproximando-se da JovemGuarda.Antesdostropicalistas,oartistaplsticoHlioOiticica (ver Zlio, 1983) j afirmavaque vivamosnuma realidade marcada por contradies, e que aartedeviareconheceressefatoeagirapartirdele,afinaloBrasilaindanoteriaumsistemadearteestruturadoesofriaasmaisdiversasinfluncias:modismo, modelos externos, diversidades regionais.Revista FAMECOS Porto Alegre n 31 dezembro de 2006 quadrimestral 131A Msica Popular Brasileirarepensa identidade e nao 125132Fugirdoconsumoseriaalienar-se;numavisoan-tropofgica, afirmava que precisvamos consumiro consumo. Para superar o carter subdesenvolvi-dodanossaarte,tornava-senecessrioprimeiroreconhecer esse carter.A arte baseada nos pressupostos do nacional-po-pularseviuquestionadanasartesplsticaspelaantiarte de Oiticica e Vergara; no teatro, pela ousa-dia formal e inquietante de Jos Celso Martinez; nocinema, por Glauber Rocha e seus transes onricos,questionando o papel dos intelectuais e mostrandouma viso de Brasil complexa. Formava-se(...)umageraosensibilizadapelodesejodefazer da arte no mais o instrumento repetitivoeprevisveldeumaveiculaopolticadireta,masumespaoabertoinveno,provoca-o, procura de novas possibilidades expres-sivas,culturais,existenciais(BuarquedeHollanda, 1992: 65).Mas se esse tipo de crtica j existia no campo dasartes e da cultura, ela passou a ter maior visibilidadequandotrazidaparaocampodamsicapopular,cuja abrangncia e penetrao eram muito maiores.A Tropiclia, alm da inovao esttico-musical, veiorepensar a questo nacional, o Brasil e sua identida-deemoutrosparmetros.Assumiuumaposturacontraumnacionalismofechadoeressentido,afir-mando a necessidade do dilogo e da abertura parao mundo, para a temida cultura estrangeira, poisvianessecontatoapossibilidadedecrescermosenos firmarmos como nao. Isso fica claro em mui-tas anlises feitas por Caetano. Em entrevista conce-didaaChristopherDunn(1994)afirmavaqueaTropiclia:(...) foi uma crtica ao tipo de nacionalismo quenos parecia ingnuo e defensivo. Ns acredit-vamos ambiciosamente que, pelo menos do pon-to de vista da msica popular, podamos e de-vamosseragressivos,terumnacionalismoagressivo (Caetano apud Dunn, 1994: 101).Ostropicalistasapropriaram-seefizeramasualeituradaantropofagiaculturaldeOswalddeAndradeemquevoccometudooquevemdequalquer lugar do mundo e faz daquilo o que vocquer, digere como quer. uma idia de comer tudoo que houver e produzir uma coisa nova (Ibid.).Na linha de Oswald, a Tropiclia, no dizer de Cae-tano, propunha uma mente que no fosse prisionei-ra das conscincias enlatadas, criando uma arte, umjeito de ser, um jeito de conviver que no [deixasse] oenlatadodominar,masnodaformadefensivaeprogramtica de um nacionalismo que levaria pro-vincializao,comumaculturafechadaquepareciano ter fora prpria e preferia viver da fora ne-gativa, que uma reao fora do outro (Ibid.: 105).A Tropiclia queria afirmar o prprio, mas no se fe-chando para o estrangeiro, e sim o devorando e trans-formando-ocomcrivoslocais,reafirmandoassimaidentidade brasileira como diferenciada:ABossaNovatinhajustamenteumagrandeafirmaodaculturabrasileiraporquenoti-nhatidoproblemasemassimilarainflunciadamelhormsicanorte-americana.(...)Eles[JooGilbertoeTomJobim]nosesentiramhumilhados, se sentiram estimulados. Ns tam-bm preferimos nos sentir estimulados por to-dasasreferncias.(...)Criamosumestilodeliberdade,porqueagentenosesentiahumi-lhado pela presena da cultura dos pases maisricos do que ns (Ibid.: 102; 104).Docenriolocal,ostropicalistasseapropriaramde um tipo de msica considerada brega e desqua-lificada(VicenteCelestino,CarmemMiranda,asirmsBatista,IsaurinhaGarcia...)eadeslocaramironicamente,colocando-aemumambientederepertrioelevado,comoafirmaCaetano,acatan-do-acomoprodutosdeumaculturanacionalquetambmcompunhanossabrasilidade.Enfim,pro-punhamumaposturadeestar-no-mundo(...),nocomo um pas de Terceiro Mundo que fica ao rebo-quedoqueacontecenospasesmaisdesenvolvi-dos,massimdeeuvivonomundohojeefaocomoselementosdequedisponhoestaarte,estegesto (Ibid.: 100). Por um lado, essa postura contra-diziaMriodeAndrademedidaquedialogavatambm com o popularescofeitofeiodopopu-lar,ouinfluenciadopelasmodasinternacionais(Andrade, 1962: 167), atitude rejeitada pelo moder-nista.Mas,poroutro,ostropicalistasutilizavamoprocedimento sugerido pelo Mrio: extrair da msi-ca popular o que ela tinha de melhor, dando-lhe umteor mais erudito e moderno; e devolver s massas oseu populrio sonoro convertido em msica ar-tstica, tendo em vista a afirmao da brasilidade.Uma brasilidade, porm, no baseada no consenso,no iderio do todos como um, mas no dissenso deumanaoquesomuitas,deumBrasilformadopor culturas diversas, no mais querendo forar umaigualdadeutpicaconstrudaapartirdepadresque estabeleciam o bem a ser seguido e valoriza-do, demonizando o restante como cpia, lixo cultu-ral, o no-Brasil. Uma brasilidade aberta e constru-da no dilogo e no embate, no fixa e imutvel.Ocaminhoabertopelostropicalistasaliadostransformaes pelas quais passou o pas e o mun-do sob a gide da globalizao, assim como toda arediscussoestabelecidasobrenaoeidentidadeemtermostericoseprticos,possibilitaramoad-vento de novos parmetros de discusso que a m-sica brasileira hoje est percorrendo. O MovimentoManguebeat,oMovimentoHipHop,oFunkseapresentam, e o processo continua.

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