A Nação Faz 100 Anos- A Questão Nacional No Centenário Da Independência

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  • MARLY SILVA DA MOITA

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  • Proibida a publicao no todo ou em

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    MOTTA, Marly Silva da. A nao faz

    cem anos: a

    questo nacional no centenrio da

    independncia.

    Rio de Janeiro: Editora FGV: CPDOC,

    1992. 129 p.

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    MARLY SILVA DA MOTTA

    Editora da Fundao Getulio Vargas - CPDOC

  • Direitos desta edio reservados Fundao Getulio Vargas Praia de Botafogo, 190 - Cep. 22253-900

    vedada a reproduo total ou parcial desta obra

    Copyright 1992 by Marly Silva da Motta

    CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRlA CONTEMPORNEADO BRASIL

    Coordenao editorial: Cristina Mary Paes da Cunha Reviso de texto: Dora RocJuz Digitao: r-wtiaMaria de Souza Oliveira Editorao eletrnica e capa: CM Ton-es

    EDITORA DA FUNDAO GETULIO VARGAS

    ChefIa: Francisco de Castro Azevedo Superviso grfica: Helio Loureno Netto

    M921n Motta, Marly Silva da. A nao faz cem anos: a questo nacional no centenrio da independncia I Marly Silva da Motta.-Rio de Janeiro: Ed. da Fundao Getulio Vargas - CPDOC, 1992

    140p. Bibliografia: p.119

    Originalmente apresentado como dissertao do autor (mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro).

    1. Intelectuais 2. Nacionalismo 2. Rio de Janeiro (RJ) - Histria. I.Fundao Getulio Vargas - II.Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil. UI. Ttulo

    CDD 320.540981 CDU 323.1 (81)

  • A meus pais, Francisco e Mariuan, pela certeza do amor

    infinito.

  • AGRADECIMENTOS

    ESTE livro uma verso da dissertao de mestrado em hist6ria por mim defendida em outubro de 1991, no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Aelaborao de uma dissertao de mestrado implica no apenas o envolvimento do pesquisador; ao longo do caminho, muita gente, de umjeito ou de outro, acaba participando da ''tese''. Dincil citar todos os nomes; mais dificil ainda deixar registrada a gratido pelas palavras e gestos de incentivo e carinho. Mas vou tentar ...

    Em primeiro lugar, porque o "amor mais antigo", o Colgio Estadual Baro do Rio Branco, onde, nos ltimos 16 anos, pude desfrutar de um ambiente de sincero companheirismo e de irrestrita dedicao ao ensino pblico.

    Do fecundo clima de debate intelectual presente no Curso de PSGraduao em Sociologia Urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, resultou meu interesse pela cidade do Rio de Janeiro. Como aluna em 1985, e mais tarde, em 1986 e 1989, como professora da cadeira de "Hist6ria da Urbanizao do Brasil", sempre contei com o incentivo constante dos professores do curso. A Amlia Rosa S Barreto, um agradecimento especial pela orientao segura e pela cOnfiana em mim depositada.

    Os seminrios do meu curso no Mestrado de Hist6ria do Brasil do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) esto na base das preocupaes que acabaram se tornando meu tema de tese. Com professores e colegas pude estabelecer, ao longo desses ltimos anos, uma convivncia pautada pelo companheirismo e animado debate intelectual. Em especial, agradeo ao professor Francisco Vinhosa, coordenador da Ps-Graduao, pela f em momentos de dvida. A professora Marieta de Moraes Ferreira, atual colega de trabalho e amiga do peito, devo tanto o incentivo constante e as crticas sempre pertinentes, quanto a possibilidade de iniciar a carreira de pesquisadora em hist6ria.

    Nos trs ltimos anos tive o prazer de viver uma nova experincia profissional no Centro de Pesquisa e Documentao de Hist6ria Contempornea do Brasil (CPDOC) da Fundao Getlio Vargas. Aos pesquisadores e funcionrios do CPDOC, em especial os do Setor de

  • Histria Oral-Marieta, Ignez, Maria Ana, Luciano, 'Iania e Clodomir - agradeo pelo convvo fraterno e estimulante troca de idias. Menes especiais tm que ser feitas a Mnica Velloso, cujos textos foram "fonte de inspirao"; a Angela Gomes, pela cotidiana aprendizagem do ofcio de historiador; e a Lcia Lippi, examinadora atenta, pelas crticas pertinentes e sugestes valiosas. Dora Rocha, com seu lpis ''mgico'', "limpou" o texto, digitado, com pacincia e interesse, por 'Iania Maria de Oliveira e Vera Lucia Lopes Rego.

    Registro ainda o apoio financeiro concedido pelo CNPq atravs da bolsa de estudos que me conferiu de 1988 a 1990.

    Sou especialmente grata ao meu orientador, professor Manoel Luiz Salgado Guimares, pelo profissionalismo e pela competncia, misturando, em doses certas, crtica e encorajamento. Mas, sobretudo, agradeo pela amizade sincera e pelo apoio irrestrito com que sempre me brindou.

    Obrigada a todos Rio, setembro de 1992.

  • SUMRIO

    INTRODUO

    CAPTULO I 1922: CONSTRUIR O BRASIL MODERNO Sete de setembro, 'ugar de memria" da nao republicana Que Repblica essa? Por uma nao moderna!

    CAPTULO II 1922: RIO DE JANEIRO, UM SOL A BRIUlAR O que ser o Rio de Janeiro de 1922? Arrasar ou no arrasar, eis a questo! A ante-eala do paraso

    CAPTULO III 1922: SO PAULO A NAO A difcil hegemonia So Paulo=nao; Rio de Janeiro = aritinao So Paulo em toilette de rigor

    CONCLUSO

    FONTES E BIBUOGRAFIA

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  • -INTRODUAO

    "Na favela, no Senado Sujeira pr todo lado,

    Ningum respeita Constituio Mas todos acreditam no futuro da nao.

    Que pas esse? Que pas esse?" (QIre pais esse? Legio Urbana)

    (No somos ainda uma nao. uma nacionalidade. As enciclopdias francesas comeam

    o artigo Brasil assim: une vaste oontre ... No somos pas; somos uma regio."

    (Monteiro Lobato)

    SEPARADAS por dcadas, tanto a letra do rock, cujo ttulo tomou..,e smbolo da perplexidade que marcou o pas na segunda metade dos anos 1980, quanto a veemente denncia de Monteiro Lobato no incio da dcada de 1920, remetem ao mesmo obscuro objeto de desejo e dio chamado nao. Criao dos tempos modernos, arraigada na mentalidade dos povos, essa "comunidade imaginada", na feliz expresso de Anderson, 1 resiste aos embates da ps-modernidade, e se mantm, neste final de milnio, como um smbolo fundamental de identificao coleti>.ra: at hoje, homens e mulheres matam e morrem por esta bem construda inveno.

    Conceitos como Ptria e Nao fazem parte do universo simblico do mundo ocidental desde o fim do sculo XV111. interessante lembrar que, naquele momento, Ptria e Nao eram conceitos diferentes e mesmo opostos, na medida em que o primeiro era marcado pelo universalismo e o cosmopolitismo ( la RDbespierre), e o segundo - que acabou por triunfar - refletia o nacionalismo francs ( la Danton).2

    A Revoluo Francesa marcou o nascimento da concepo de "nao-contrato", cuja base era a unidade poltico-territorial, a existncia de uma lei comum e a cidadania. A essa concepo se contraps a idia de "nao-instinto", particularmente cara aos germnicos. Formulada pelas diversas correntes do historicismo romntico e

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  • exaltada nas obras de Herder e Fichte, essa idia de nacionalidade se fundava no esprito ou carter peculiar de um povo, herana da raa, lngua, histria, que por sua vez constituem os fundamentos de uma comunidade.

    Longe de se constituir em um modelo nico, paradigmtico na essncia, a idia de nao foi vivenciada com contedos diferentes por diferentes povos em diferentes pocas, no enfrentamento de problemas prprios e na realizao de um destino especfico. Concebida pelo nacionalismo e relacionada ao Estado territorial moderno, a nao no uma entidade abstrata, independente da ao humana. A naturalizao das naes, entendidas como "destino poltico inerente aos homens",3 inscreve-se na esfera da montagem de uma comunidade modernamente inventada, que se concretiza mediante smbolos, prticas, comportamentos e valores firmemente ancorados na vida social.

    Agente da sua prpria humanidade, o homem se liga a uma teia de significados, construda historicamente, e em funo da qual d forma, objetivo e direo prpria vida.4 Nesse sentido, percebemos o valor do universo simblico como guia das aes humanas, uma vez que atende necessidade de legitimao inerente ao arcabouo institucional 'lfando este no pode ser mais mantido pela memria do indivduo. Da a necessidade de construo de um universo nacional, capaz de organizar o espao pblico num processo de constituio de identidade, implicando tanto a acentuao dos traos de semelhana e homogeneidade, como a diferenciao em relao ao outro.

    O processo de construo das naes um tema delicado. Hobsbawm o associa ao triunfo do capitalismo na segunda metade do sculo XIX, embora relativize uma perfeita relao entre os dois.6 J Recalde, em seu livro sugestivamente intitulado La construccin de las naciones, caracteriza a nao como produto da ideologia nacionalista?

    A partir da proposio de Marx, de que a conscincia do homem seria detenninada por seu ser social,B abriu-se todo um campo de investigao para uma sociologia do conhecimento preocupada com as condies concretas da produo intelectual. Uma identificao apressada da "infra--estrutura" com a base econmica, to-somente, levou suposio de que a "superestrutura" seria tambm, to-somente, seu espelho, falseando grosseiramente, a meu ver, o pensamento dialtico marxista.9 Nesta perspectiva, a ideologia nacionalista, de inspirao burguesa, serviria para mascarar os "verdadeiros" interesses desta classe na sua estratgia de dominao da sociedade.

    No compartilhamos de tal concepo. No entendemos que a construo da idia de nao no Brasil possa ser reduzida a apenas um dos traos mais caractersticos do estabelecimento da ''hegemonia

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  • burguesa" no pas. Sem dvida, o nacionalismo uma ideologia poltica 10 que, como tal, renova a funo tradicional de garantir o consenso, construindo um modelo que designa as posies sociais ao mesmo tempo em que as justifica. No entanto, uma concepo artificial das ideologias que s lhes atribua efeitos de ocultao arrisca-se a levar ao esquecimento todo o contedo de explicao e designao explcitas que comporta um sistema de representaes. Ou seja, avaliar a ideologia nacionalista numa dimenso puramente conspiratria simplifica e empobrece a reflexo, na medida em que abandona a possibilidade de recuperao das diversas verses sobre o tema, as divergncias, as aproximaes, a ambigidade, a complexidade das diferentes interpretaes sobre o que seria nao.

    Embora reconhecendo que a nao um tema constantemente presente no pensamento social, verificamos que o peso da sua presena e seu significado no so sempre os mesmos. Examinando as vrias definies de nao, calcadas na religio, na lngua, na etnia, no territrio, na histria comum, nos traos culturais, Hobsbawm distingue trs etapas na histria dos movimentos nacionais a partir do sculo XIX: de uma fase puramente cultural, literria e folclrica, passou-se quela em que surge um corUunto de militantes da idia nacional, e finalmente chegou-se etapa em que o nacionalismo adquire sustentao de massaY De qualquer modo, o espao hegemnico ocupado no debate poltico-intelectual pela temtica nacional, bem como a emergncia de propostas originais que encaminham essa questo, indicam a vivncia de um momento particularmente significativo na (re)constituio da identidade nacional.

    No caso brasileiro, 1922 pode ser considerado um ano paradigmtico, na medida em que nele se concentraram acontecimentos que a historiografia consagrou como marcos fundadores de um "novo" Brasil: a fundao do Partido Comunista Brasileiro, a Semana de Arte Moderna e a primeira manifestao do movimento tenentista. Foi tambm o ano da comemorao dos cem anos da independncia do pas, fato que no mereceu, at hoje, seno meia dzia de linhas em livros didticos, enciclopdias e trabalhos acadmicos.12 Omisso sria, mas justificada pela suspeio que essas comemoraes coletivas, por sua aparncia oficial e artificial, despertavam na comunidade de historiadores. Coube a Mona Ozouf, com seu trabalho sobre as festas da Revoluo Francesa,13 romper com esses preconceitos e destacar a mobilizao que essas celebraes provocavam, atestada pela massa de relatrios, discursos, projetos e propostas que lhes foram dedicados. Uma vasta documentao, praticamente inexplorada, e representada especialmente por jornais, revistas, livros, monumentos, palestras e congressos, indica igualmente que a comemorao do Centenrio da Independncia em 1922 mobilizou a popula-

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  • o em geral, e a intelectualidade, em particular, do Rio de Janeiro e So Paulo, principais centros urbanos do pas.

    Este trabalho busca compreender como, forados a pensar o Brasil que se preparava para comemorar seu Centenrio da Independncia, variados setores da intelectualidade brasileira se voltaram para a temtica nacional entre a segunda metade da dcada de 1910 e os primeiros anos da dcada de 1920. Nesse momento, a cena brasileira foi marcada por uma intensa mobilizao dessa "mirwrit agissante",14 revelando-se uma ambincia de insatisfao na busca de novas alternativas para solucionar os impasses nacionais. Atribuindo-5e e se auto-representando como portadores de uma misso social, os intelectuais se empenharam obstinadamente em criar um saber prprio sobre o pas. A palavra de ordem era conhecer, desvendar, investigar e mapear o Brasil e a sua realidade, bem como traar simultaneamente os contornos da identidade nacional. H como que um despertar para a importncia de colocar no papel a avaliao correta do passado, a interpretao segura do presente e as sugestes valiosas para o futuro da nao. So essas anlises e propostas, nas suas divergncias e aproximaes, que pretendemos expor neste trabalho.

    Se polticos e burocratas que esto no poder participam, tanto quanto os intelectuais, da formulao de interpretaes sobre a vida social, estes ltimos, na qualidade de especialistas da dimenso simblica, desempenham um papel fundamental no delineamento de um perfil para a nao capaz de lhe garantir identidade prpria. Aos intelectuais cabe elaborar imagens fundadoras da ncionalidade indispensveis na definio dessa identidade. Para tanto, preciso marcar o prprio territrio e as suas fronteiras, definindo relaes com os "outros"; formar imagens dos amigos e inimigos, rivais e aliados; conservar e modelar as lembranas do passado, bem como projetar, sobre o futuro, temores e esperanas; finalmente, necessrio exp.rimir e impor certas crenas comuns plantando modelos formadores.15

    A produo literria do raiar dos anos 20 foi de fundamental importncia para a formao de uma conscincia nacional. Lembra Antnio Cndido que, ao contrrio do que ocorre em outros pases, a literatura, mais do que a filosofia e as cincias humanas, tem sido no Brasil o "fenmeno central da vida do esprito".lG Ocupando amplos espaos na imprensa, locw; privilegiado do debate poltico-intelectual da poca, os literatos brasileiros se envolveram num processo de questionamento da identidade nacional e conseqentemente de produo de "novos" ideais e modelos, por vezes vagos e contraditrios, mas que se cristalizaram na medida em que se tornaram ncleos em torno dos quais se estruturaram as aspiraes nacionais.

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  • Abria-se assim a dcada com um aceso debate sobre a nao brasileira, s vsperas de completar cem anos de vida livre, porm marcada pelo atraso, na avaliao da grande maioria dos pensadores da poca. Disputas pela conquista da legitimidade por parte de diferentes projetos que buscavam definir um Brasil moderno marcaram o perodo. No vemos essas disputas no campo intelectual como meras expresses de interesses materiais ou de correntes polticas distintas; embora ligadas ao contexto "externo", elas exprimem com maior vigor as relaes de fora internas ao prprio universo social onde pessoas, grupos e instituies se constituem pelas relaes de concorrncia e poder que estabelecem entre si. Aspectos especficos do campo intelectual, como a legitimidade cultural, a identidade em tomo de uma "escola" ou os temas de poca que caracterizam uma gerao, mediatizam a relao que um intelectual mantm com sua classe social de origem ou de fato.l7 A fina relao entre a obra artstico-literria e sua ambincia social obriga-nos a descartar determinismos inexorveis e autonomias precipitadas, ambos fadados a desembocar em simplificaes perigosas.18

    Julgo fundamental, portanto, elucidar o conflito entre grupos de intelectuais que construram verses e 'P'plicitaram vises sobre o que era ou deveria ser a nao brasileira. E imprescindvel analisar essa intelectualidade tendo por referncia o seu prprio discurs; segUindo indicaes por ela formuladas.19 Captar suas motivaes e o propsito de suas palavras significa compreender como ela compreendia o pas e como construa, a partir dessa compreenso, uma determinada viso da realidade. Afinal, como separar os agentes e seus atos das idias-imagens que eles se do a si mesmos e a seus adversrios?

    Em desacordo sobre os reais motivos do descompasso do pas com a modernidade, divergindo em tomo dos caminhos que deveriam conduzir at ela, a intelectualidade brasileira parecia convergirquanto compreenso de que o Centenrio seria o momento-chave em que tais questes deveriam ser discutidas. Articulando presente/passado/futuro, arrasando antigas tradies e construindo outras novas, mobilizando diferentes vertentes do movimento intelectual na construo de modelos que finalmente garantissem a criao de uma nao ''brasileira e moderna", pensamos que o Centenrio da Independncia no se reduziu comemorao de uma data memorvel.

    Condio indispensvel da cultura humana, fundamental no reforo da coeso social, a memria coletiva funciona como um depsito onde o indivduo busca elementos que lhe permitem identificar-se social e historicamente. A o definir o que comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, a memria refora as fronteiras scio-culturais, tornando-se um ingrediente bsico da identidade nacional. Podemos afirmar que o passado coletivo, fundado numa reserva de

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  • smbolos, de imagens, de modelos de ao, a origem da legitimao da nao.

    As estreitas relaes entre memria e nao foram trabalhadas por Hobsbawm, que destacou o pael fundamental da "tradio inventada" na construo das naes. o Deve ... e, no entanto, a Nora o mais minucioso e abrangente desvendamento da complexidade dessas relaes. A acelerao do tempo nas sociedades industriais criou a necessidade de serem demarcados os lugares onde a memria nacional efetivamente se fIxou - '1ugares de memria", na feliz expresso do historiador francs - como festas, monumentos, datas nacionais, bandeiras, hinos, enfIm, locais de sacralizao da nao e de identifIcao do nacional. Afetiva e mgica, a memria seria vulnervel a manipulaes, aberta dialtica da lembrana .e do esquecimento.21 Como tal, sempre foi elemento e objetivo de poder; toma-se agora objeto de estudo da histria, analtica e crtica.

    justamente o estudo do 7 de setembro, enquanto "lugar de memria" da nao republicana, que abre o primeiro captulo deste livro, onde procuro retratar a mobilizao da intelectualidade brasileira no intuito de construir um Brasil moderno. Penso que ao forar a busca das origens e a avaliao do papel das figuras histricas, ao julgar o passado colonial e as realizaes republicanas, a comemorao do Centenrio suscitou debates sobre a formao eas perspectivas da sociedade brasileira, recolocando de forma especialmente urgente os dilemas da salvao nacional. A grande questo que esses intelectuais tm que enfrentar nesse momento a construo de um Brasil moderno. Mrio de Andrade, Oliveira Viana, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Licnio Cardoso, Menotti dei Picchia, 'fristo de Atade, dentre outros, dedicam ... e de corpo e alma a estudar o pas. Tais estudos, pautados por um frenesi de reinterpretar o passado, diagnosticar o presente e projetar o futuro, buscam no s entender que pas este, mas principalmente, garantir-lhe um lugar na modernidade do sculo XX. Thdos, a despeito das diversidades de perspectivas e projetos, pensam o Brasil moderno.22 Anlantes do campo ou da cidade, advogam o monoplio do entendimento do pas; industrialistas ou ruralistas, acreditam encarnar o esprito do sculo XX; conservadores ou vanguardistas, julgam ser os porta-vozes exclusivos da modernidade ps-guerra.

    A celebrao de 1922 deveria ser caracterizada, pois, pela inequvoca disposio da 'jovem" nao em marcar seu lugar no sculo XX. Para tanto, penso que um dos requisitos indispensveis seria a l)1odernizao da capital federal, cabea da nao e seu carto postal. E disso que vai tratar o segundo captulo.

    A meu ver, a preparao da "cidade maravilhosa" para as festas do Centenrio, com destaque para a Exposio Internacional, reves-

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  • tiu-se de um significado todo especial: era preciso que o Rio de Janeiro se tornasse a apoteose da modernidade brasileira. A reforma urbana ento planejada teve como alvo o ''velho'' morro do Castelo, bero da cidade, agora habitado por uma populao pobre, e envolvido numa aura de misticismo, magia e superstio.

    As acesas discusses que ento se travaram atravs da imprensa - arrasar ou no arrasar o Castelo -, longe de envolver apenas aspectos urbansticos, colocaram frente a frente diferentes concepes de modernidade, de tradio, de passado, de memria e de cultura. A recuperao dos diferentes projetos e respectivos argumentos que sustentavam o arrasamento ou a manuteno do Castelo, a identificao das correntes de pensamento a que se ligavam tais propostas, permite-nos desvendar um rico painel dos valores, ideais, esperanas e aspiraes de expressivos segmentos do Distrito Federal diante do desafio de se projetar como a capital ''moderna'' de uma nao ''moderna''.

    Se, para muito, o Rio de Janeiro era a "flama do progresso que iluminava o pas",23 outros tantos o identificavam como a cidadela da ''velha'' gerao. Embora pouco mencionado pela historiografia, um dos temas que mais se destacaram no balano do pas efetuado por ocasio do Centenrio de 1922 foi o da desqualificao da capital federal como cabea da nao que buscava a modernidade.24 Estava aberto o espao para iniciativas que resultassem na afirmao de um novo locus produtor da identidade nacional.

    No terceiro captulo, examinaremos a elevao da capital bandeirante condio de matriz da "nova" e "moderna" nacionalidade dos anos 20. Entendemos este movimento como um dos pilares do complexo processo da desejada consolidao da hegemonia paulista no conjunto nacional. Julgamos que o sucesso deste empreendimento dependia da construo de um imaginrio que, por um lado, deslegitimasse a tradicional ocupante desse lugar- a "contemplativa" cidade do Rio de Janeiro - e, por outro, apontasse uma substituta altura das exigncias dos novos tempos imbudos dos valores da brasilidade e da modernidade - a "operosa" cidade de So Paulo.

    A construo do imaginrio social - c0':N,unto de imagens que orienta a insero do indivduo na cultura o - particularmente importante em momentos de redefinio da identidade coletiva, marcados, como no raiar da dcada de 1920, pela avaliao crtica do passado e do presente e pela perspectiva de cri,,:r uma nova sociedade, um homem novo, enfim, uma nova nao. E nesse momento que encontramos a elaborao e a difuso de determinadas imagens e a produo de certas representaes que buscaram associar o Rio de Janeiro ao prazer e So Paulo ao dever. Incapaz de se atualizar no mundo do trabalho e da ordem, a "cidade maravilhosa" teria ficado

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  • margem da trajetria da modernizao brasileira, que passaria, ento, pelos trilhos da '1ocomotiva" paulista. A imagem de So Paulo " ta d . d - . - ,, 26 . d arras n o rampa aCIma os ezenove vagoes lnnaos, cna a por Monteiro Lobato em 1918, incorporou-se definitivamente ao imaginrio nacional e fixou-se indelevelmente na memria coletiva.

    Atravs de uma atuao cotidiana na imprensa, a intelectualidade paulista, independentemente de suas diferenas internas, vai produzir um discurso rico de argumentos de carter predominantemente simblico, que visava firmar uma interessante igualdade: So Paulo = nao; Rio de Janeiro = antinao. Ou melhor, o Rio representava a nao atrasada que se era, e So Paulo, a nao moderna que se deveria ser.

    A busca do Brasil moderno no termina nos anos 20. Depois, viro 1930, 1937, 1945, 1964, 1989 .. . Em suma, a histria do pensamento brasileiro no sculo XX pode ser vista como um esforo incansvel para compreender e impulsionar as condies de implantao da modernidade no Brasil, queresta responda pelo nome mgico de Civilizao, de Desenvolvimento ou de Primeiro Mundo.

    Notas

    1 - O conceito desenvolvido por Benedict Anderson em Nao e conscincia nacional, p. 14-16.

    2 - Ver Gerard Mairet, Peuple et nation, em Fraois Chatelet e Gerard Mairet, Les idologies.

    3 - "As naes, postas como modos naturais ou divinos de classificar os homens, como destino poltico ... inerente, so um mito; o nacionalismo, que s vezes toma culturas preexistentes e as transforma em naes, algumas vezes as inventa e freqentemente oblitera as culturas preexistentes: isto uma realidade." Ernest Gellner, citado por Eric J. Hobsbawm, Naes e nacionalismo desde 1780, p.19 (grifo no original).

    4 - Ver ClifIord Geertz, A intelpretao iJs culturas. 5 - "Os universos simblicos ( ... ) so corpos de tradio terica que

    integram diferentes reas de significao e abrangem a ordem institucional em uma totalidade simblica ( ... ) a sociedade histrica inteira e toda a biografIa do indivduo so vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo ( ... ) No interior do universo simblico ( ... ) domnios separados da realidade integram-se em uma totalidade dotada de sentido que os 'explica' e tambm osjustifica{ ... )"Peter Berger e Thomas Luckman, A construo social da realid.ade: tratado de sociologia do conhecimento, p.131-32 (grifo no original).

    6 - Eric J. Hobsbawm,A era do capital (1848-1875).

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  • 7 -Jose Ramn Recalde, La construccin de las naciones. 8 - Karl Marx, Manuscritos econmico-filosficos (Terceiro manuscrito),

    em Os pensadores. 9 - Para uma crtica marxista dessas relaes mecanicistas entre

    infra-estrutura e superestrutura, ver Mikail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem.

    10 - O conceito de ideologia usado aqui refere-se s representaes sociais ou a um sistema cultural no contexto da definio de Geertz: "sistemas de smbolos que interagem ou padres de significados que trabalham interativamente". Clifford Geertz, op.cit., p.178.

    11- Ver Eric J. Hobsbawm, Naes e nacionalismo desde 1780, p.19. 12 - Entre as }Xlucas obras que mencionam as comemoraes do Cente

    nrio da Independncia, podemos citar Edgard Carone, A Repblica Velha II - evotn poltica (1889-1930) e Nosso sculo: 1910-1930.

    13 - Mona Ozouf, La fte rvottionnaire: 1789-1799. 14 - Essa expresso se refere ao grupo intelectual militante caracters

    tico da segunda fase dos movimentos nacionais, anterior ao nacionalismo de massa. Cf. EricJ. Hobsbawrn,Naes e nacionalismo desde 1780, p.21.

    15 - Ver Manoel Luiz Salgado Guimares, Nao e civilizao nos trpicos: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o projeto de uma histria nacional, Estudos Histicos, 1 (1988), p.5-27; Jos Murilo de Carvalho, A formon das almas: o irrwginrio da Repblica no Brasil; Edgard Leite Ferreira Neto, O improviso da civilizon: a non republicana e a construn da ordem social no final do sculo XIX, e A elaborao positivista da memria republicana, Tempo Brasileiro, 87(1986), p.79-103;

    Jos Neves Bittencourt, Espelho da "nossa" histria: imaginrio, pintura histrica e reproduo no sculo XIX brasileiro, Tempo Brasileiro, op.cit.; Afonso Carlos Marques dos Santos, A inveno do Brasil: um problema nacional? Revista de Histria, 118(1985), p.3-12, e Memria, histria, nao: propondo questes, Te"po Brasileiro, op.cit.

    16 - Antnio Cndido, Literatura e sociedade, p.130. 17 -Ver Pierre Bourdieu, Campo intelectual e projeto criador, em Pierre

    Bourdieu, et al., Problemas do estruturalismo. 18 - Ver Antnio Cndido, op.cit., cap.!. 19 - Neste sentido, sigo as indicaes de Paul Veyne, Commenl on crit

    l'histoire suivi de Foucault ruolution71, l'histoire. 20 - Por "tradio inventada", Hobsbawm entende ''um conjunto de

    prticas, normahnente reguladas }Xlr regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automa ticamente, uma continuidade em relao ao passado ... " Cf. Eric J. Hbs bawm, Introduo: a inveno das tradies, em Eric J. Hobsbawm e Terence Ranger, (org.), A inveniicJ das tradies, p.9.

    21- Ver Pierre Nora (org.), Les lieux de mmoire, voU, La Rpublique.

    9

  • 22 - Ver Lcia Lippi Oiveira, Modernidade e questo nacional, Lua Nova: Revista de Cultura e Poltica, 20(1990), p.41-68, e Octavio lanni, A idia de Brasil moderno, Resgak, 1 (1990), p.19-38.

    23 - Orao do Dr. Mrio de Lima, delegado do estado de Minas Gerais, A Exposio de 1922, p.17-1S(1923).

    24 - Ver Lcia Lippi Oliveira, Ilha de v"ra Cruz, Terra de Santa Cmz, BrasiL um estudo sobre o nacionalisllw brasileiro, p.238- 241 (tese doutorado - mmeo). Este traba lho foi publicado sob o ttulo de A questo nacional na Primeira Repblica (So Paulo, Brasiliense, 1990), mas, para efeito de citao, continuarei indicando as referncias da tese. Ver ainda Mnica Pimenta Velloso A "cidade-voyeur": o Rio de Janeiro visto pelos paulistas, Revista do Rio de Jwwiro, 1 (1986), p.55-66.

    25 - Ver Cornelius Castoriadis, A instituio imaginria da sociedad,e. 26 - Monteiro Lobato, Mr. Slwlg e o Brasil e Problema vital, p.299.

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  • CAPTULO I

    1922:

    CONSTRUIR O BRASIL MODERNO

    SETE DE SETEMBRO, "LUGAR DE MEMRIA" DA NAO REPUBLICANA

    "Em 1822 ( ... ) foi criado o prprio povo brasileiro. E todas as grandezas da hora presente, os cargueiros cedendo ao peso do nosso

    caf, do nosso acar, do nosso algodo, as chamins das fbricas ( ... ) os elementos, enfim, que representam a nossa vida, a nossa

    personalidade histrica, o alicerce do nosso futuro, tudo isso obr a de uma data: o sete de setembr o ( ... ) O grito do Ipiranga foi um toque dI

    reunir ( ... ) para a constituio desse patrimnio ainda por existir".

    INTITULADO "O Centenrio", O artigo acima citado uma demonstrao evidente da entronizao do 7 de setembro como o mais importante "lugar de memria" da nao brasileira. O que no fica evidente, ocultado por uma tradio j firmada, o delicado processo que resultou na consolidao do grito do Ipiranga como data magna da nacionalidade. Intimamente relacionada ao "glorioso" feito da casa imperial dos Bragana, tal celebrao no poderia ser vista com bons olhos pela Repblica implantada em 1889. Afinal, o novo regime teria que lidar, no s com a organizao de uma nova vida social e poltica, mas tambm com a projeo de uma arquitetura simblica do nacional, que marcasse a Repblica como a verdadeira entidade representativa da sociedade como um todo.

    Acompanhar os debates em tomo das comemoraes do 7 de setembro nos primeiros anos republicanos parece-nos de especial relevncia para a compreenso da importante funo poltica exercida pela memria coletiva. Afinal, quem no se lembra que Big Brother,

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  • do famoso livro de George OlWell, dominava atravs do duplo mecanismo que consistia em modificar e apagar o passado de cada indivduo para depois obrig-lo a esquecer o prprio esquecimento?

    Elemento essencial na identidade nacional, a memria instrumento e objeto de poder; produto da atividade social, relembrar o passado implica diferentes definies da realidade em confronto. Embora no seja adepta de uma ''memria dos vencedores" mecanicamente imposta sociedadeoJ'referindo a concepo mais dinmica da "circularidade da cultura", reconheo que a memria tem que ser reverenciada, celebrada, institucionalizada. O controle das metforas, do simbolismo, das tradies, torna-fle, assim, alvo privilegiado na disputa pelo poder. Alerta Le Golf que "os esquecimentos e os silncios da histria so reveladores desses mecanismos de manipulao da memria coletiva".3

    Contudo, at que ponto a memria manipulvel? Parece claro que os exemplos mais bem sucedidos da manipulao so aqueles que exploram prticas claramente oriundas de uma "necessidade", com um gancho bem vsvel no ''real''; a fora dos smbolos imbatvel quando encontm apoio nos "fatos"; ou cai no vazio, e at mesmo no ridculo, quando no se estabelece a necessria relao de significado.4

    Logo, a questo crucial a ser enfrentada pela memria nacional a da sua credibilidade e aceitao. Para que suIja um fundo comum de referncias que possam constitu-la, indispensvel um intenso trabalho de oizao, o que Pollak denomina de "enquadramento da memria". No se trata de uma manipulao pura e simples, imposta mecanicamente de cima para baixo. O prprio Pollak alerta que este "enquadramento da memria" tem limites, uma vez que deve satisfazer a certas exigncias de justificao, que no podem ser arbitrariamente desconsideradas. Alm do que, com certa freqncia, as invenes escapam do controle daqueles que as consideraram vantajosas para serem manipuladas.

    Em seu estudo sobre a criao, em 1880, do Dia da Bastilha, Amalvi6 demonstra, de um lado, a diversidade das representaes polticas que a comemorao suscitou, e a violncia das polmicas levantadas pela celebrao desse aniversrio. Abalados com a derrota de 1870 e o affaire Dreyfuss, os dirigentes da 'Ierceira Repblica recorreram ao !,imbolismo do passado como forma de garantir a legitimidade. E claro que a estabilidade social desejada no seria assegurada apenas pelo sucesso em mobilizar os cidados em torno de novos simbolos. Mas os republicanos sabiam o que pretendiam quando evocavam o esprito de 1789, pois a imagem ecumnica dos demolidores da Bastilha, onde se confraternizaram burgueses, camponeses e soldados, negava a existncia de uma questo social e

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  • construa um ideal de grande valor para a sociedade francesa da poca. Por outro lado, Amalvi comprova a eficcia fundadora do 14

    juillet,que conseguiuapagar as marcas da dura disputa pela memria nacional, e, j no Centenrio de 1889, era entronizado como "[ieu de mmoire" privilegiado da nao francesa.

    O esforo do regime republicano brasileiro para garantir a sua legitimidade esbarrava na tradio imperial de comemorar o 7 de setembro como a festa maior da nacionalidade, marco da conquista da liberdade, indelevelmente associado dinastia de Bragana. Era preciso inventar novas tradies mais adequadas aos novos tempos. O fim da escravido, no ano anterior, implicara a incorporao de pessoas cujas atividades polticas passaram a ser institucionalmente reconhecidas. Ambientes e contextos sociais novos, ou velhos, mas transformados, exigem novos instrumentos que assegurem e/ou expressem identidade e coeso social. E no passado que se devem buscar as razes dessa totalidade que identifica a sociedade e o indivduo; preciso combinar o novo com a volta s origens.

    O processo de construo de uma nao republicana em fins do sculo XIX exigia, pois, a formulao de um passado que sacralizasse essa nao e seus lugares de identificao - os ''lugares de memria" -, marcando um espao simblico nacional-republicano. Heris como Tiradentes, smbolos como a bandeira, o hino nacional e celebraes do calendrio cvico, foram articulados nos primeiros anos da Repblica' anos de inveno de tradies. A Frana foi o modelo de inspirao para muitas dessas iniciativas que visavam, antes de tudo, firmar os valores republicanos no corao e na mente dos brasileiros. Os positivistas destacaram-se nessa tarefa: detentores de uma metodologia "cientfica", conduziram um intenso trabalho de reconstruo da memria nacional, que procurava situar a Repblica na nacionalidade.7

    A construo do mito das origens, fundamental na estruturao de qualquer sociedade, torna-se particularmente sensvel no caso do regime republicano, cujo problema bsico era o da legitimidade. A proclamao parecia ter sido um golpe militar, cuja repentina ocorrncia levantava a suspeita da ausncia de uma forte tradio republicana no pas. Alm do mais, as foras armadas no tinham, at ento, atuao poltica reconhecida na histria nacional. 8 Era preciso deixar claro que a Repblica no fora obra do acaso ou do capricho dos militares, mas sim fruto de memorveis acontecimentos passados. O ideal republicano teria sido uma presena constante ao longo da histria brasileira, comeando pelo Quilombo dos Palmares e pela Guerra dos Mascates, passando pela Inconfidncia Mineira, a Revoluo Pernambucana, Farrapos e Balaiada, para finalmente concretizar..,e em 1889, como a culminncia de uma longa luta.

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  • De ntida inspirao positivista, o calendrio cvico do novo regime, institudo pelo Decreto 155-B de 14dejaneiro de 1890, um bom exemplo do esforo de inventar novas tradies. As datas ento institudas evocavam fatos ligados fraternidade universal - 1 de janeiro, 14 de julho, 12 de outubro e 2 de novembro - e comunho nacional - 21 de abril ("comemorao dos precursores da independncia reunidos em Tiradentes"), 3 de maio (descoberta do Brasil), 13 de maio C'fraternidade dos brasileiros"), 7 de setembro (independncia do Brasil) e 15 de novembro ("comemorao da ptria brasileira")?

    A grande dificuldade dos republicanos residia na justificativa para o 7 de setembro, e significativo que o marechal Deodoro, em sua MensagBm de abertura do Congresso Constituinte, tivesse advertido:

    "E para os que quiserem ver na independncia alcanada em 1822 a palavra suprema dos nossos anseios, apontaremos o 7 de abril de 1831, em que banimos o nosso primeiro Imperador".lO

    Qual seria, pois, a data fundadora da nacionalidade brasileira? O 7 de setembro, marco de ruptura com Portugal, mas de continuidade com a Monarquia, ou o 7 de abril, considerado a primeira experincia republicana no Brasil? Essas memrias especficas expunham as posies dos diversos grupos na recm-proclamada Repblica. Em torno do 7 de setembro, da sua rejeio como "data comemorativa da Monarquia", ou da sua aceitao como smbolo da "conquista da independncia sem violncia", giravam republicanos e monarquistas, construindo cada qual a sua verso dos fatos.

    Ao afirmar, por ocasio das comemoraes do primeiro aniversrio da proclamao republicana, que "h apenas um ano iniciamos a demolio de trs sculos",l1 Deodoro declarava o 15 de novembro como o marco inaugural da "verdadeira" nacionalidade, dia de se comemorar a "ptria brasileira". Rodrigo Otvio, autor de Festas nacionais (1893), chega a lamentar o grito do Ipiranga, que s fez piorar a situao brasileira, prolongando a dominao portuguesa:

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    ''Era bem acentuado o esprito do movimento separatista e a repblica teria sido uma realidade se a ingnua gBnerosidade desse povo no se houvesse acalentado com promessas vs de completa liberdade sem lutas e no se houvesse espavorido com a ameaa infundada das cenas de 89 e do 'Ierrar, e, sobretudo, com o receio

  • vo de ver fragmentado em vrios estados fracos, esse enorme corpo que constitua o Brasil" .12

    o 7 de setembro de 1891 foi marcado por um claro repdio "festa monarquista", sentido como afronta ao novo regime. Lamenta a Gazeta de Notcias:

    "No pode deixar de ser tristemente hipcrita e indecoroso este falseamento das convices democrticas com a insinuao de uma tal data nos dias festivos do Calendrio da Repblica".13

    Evocando tradies liberais, o jornal propunha celebrar o 7 de abril, quando "se operou no pas a mais honrosa convulso". A memria de 1831 procurava tornar a Repblica o nico ideal verdadeiro da nao inteira.

    Apesar dos pesares, para alguns republicanos, o 7 de setembro poderia ser mantido. Embora fiel ao ideal republicano, 1831 fora marcado por convulses populares, especialmente na capital do Imprio, envolvendo praas e militares de baixa patente. A desordem espreitava o 7 de abril. E mais: o 7 de setembro j estava fixado na memria nacional. Decidido a eliminar certas arestas que comprometiam seu esforo de consolidao, o governo republicano buscou uma certa conciliao com o passado monarquista. 4 De ntida filiao republicana, o jornal O Paiz, em sua edio de 7 de setembro de 1890, afirmava:

    "Quaisquer que sejam as crticas histricas do feito do Ipiranga, a Nao brasileira no esquecer nunca que ( ... ) o Princpe ( ... ) esqueceu os sentimentos de subordinao e de dever ao seu pai e ao seu Rei para proclamar a Independncia poltica do povo, cujos destinos dirigia. A Revoluo de 7 de setembro formou assim uma nova nacionalidade wnericana ... ,,15

    Exemplo da difcil conciliao entre a memria monarquista e a republicana foi dado pelo conflito ocorrido por ocasio das comemoraes do 21 de abril de 1893, quando membros do Clube Tiradentes cobriram com tapumes a esttua do Imperador D.Pedro I, a "mentira de bronze". Essa atitude acabou gerando no s uma interessante controvrsia, como tambm um conflito aberto dissolvido pela polcia. O prefeito do Distrito Federal, Barata Ribeiro, ps um ponto final na discusso, argumentando, em favor da manuteno do Imperador,

    15

  • que "um povo sem tradio um povo sem histria, e, portanto, sem valor moral".16 D.Pedro I ficou onde estava, mas obrigado a dividir o espao com seu rival na praa que recebeu o nome de Tiradentes.

    Composto por polticos influentes, jornalistas e intelectuais de peso, como Eduardo Prado, Afonso Celso, Joaquim Nabuco, entre outros, o grupo dos monarquistas se empenhou em construir uma verso do passado que contemplava as vantagens do regime imperial no Brasil e identificava o 7 de setembro como o marco fundador da ptria, a data magna da nacionalidade. Oliveira17 sugere que se deveria competncia e longevidade desses intelectuais a supremacia de uma leitura monrquica da lstria brasileira, principalmente no que tange ao papel do Imprio como garantidor da unidade nacional; e o 7 de setembro era o marco mais visvel dessa unidade.

    Vitorioso o grito do Ipiranga -pela necessidade de conciliao, pela inviabilidade de outras opes e pela maior habilidade dos monarquistas em impor o seu passado - a sada republicana foi moldar a comemorao do 7 de setembro aos novos tempos. Era preciso identificar o que podia ser salvo e o que deveria ser esquecido. Enquanto D.Pedro I foi execrado como um estrina, irresponsvel, oportunista, Jos Bonifcio foi devidamente resgatado e guindado a uma posio preponderante. Cientista, brasileiro, favorvel ao fim da escravido, amante da ordem, o denominado ''Patriarca da Independncia" representaria a sntese das correntes que construram a Nao brasileira. Sacrificara a Repblica, certo, mas em prol da estabilidade e mesmo da existncia da Ptria. O 15 de novembro viria coroar seus esforos.

    A comemorao do 7 de setembro, a partir de 1895, caracterizaNlBia por paradas militares, numa clara inteno de aproximar a festa da Repblica e de romper a identificao entre Independncia e Monarquia.18 Festejado pelos monarquistas como o smbolo mais evidente da liberdade da Ptria, devidamente enquadrado numa moldura republicana, o grito do Ipiranga prepara-se para comemorar o seu centenrio.

    ''Por mais que tapem os ouvidos ( ... ) ho de ouvir o nosso zabumba ( ... ) Acordem, homens. O centenrio est chegando!,,19

    A celebrao da nossa "data magna" no poderia passar em branco, e a antecedncia com que foi pensada permite perceber a mobilizao dessa parcela da sociedade dotada de meios poderosos de difuso de suas idias -jornalistas, ensastas, literatos e intelectuais de vrias correntes de pensamento, em numerosos artigos para jornais e revistas, deixaram claro que a comemorao do centenrio

    16

  • da independncia deveria constituir-t;e num importante momento de reflexo e debate sobre o Brasil.

    Um exemplo relevante dessa ''vigilncia comemorativa" foi dado pela Revista ckJ Brasil, fundada em janeiro de 1916. Expressando a vontade de se constituir num ncleo de propaganda nacionalista, a revista,j no seu primeiro nmero, clamava por "estudos do passado" e, com razovel antecedncia de seis anos, pregava a necessidade de se comemorar festivamente o centenrio da independncia esse ''primeiro marco glorioso da existncia nacional".20

    A preocupao de celebrar o Centenrio invadiu igualmente outros rgos da imprensa menos comprometidos com a f nacionalista. A revista mensal de variedades Eu sei tuckJ, em artigo intitulado "Noventa e cinco anos de Independncia", observava que,

    "com a aproximao do Centenrio da nossa Independncia parece que se afervora o culto cvico, o ardor patritico pelo 7 de setembro, ganhando de intensidade ano para ano. Aparecem projetos no Congresso, agitamse institutos sbios, artistas e literatos se aparelham ( ... ) para a grande data".21

    "O momento oportuno", repetidamente se afirmava. Oportuno, para despertar o desejo do estudo

    "dos tesouros de nossa nacionalidade; no pois de estranhar que muitos espritos andem agora embebidos do gosto de investigaes do folk-lore brasileiro ( ... ) indagando as origens aqui e ali ( ... )".22

    Oportuno, para marcar rompimentos, pois

    "os grandes momentos da vida sugerem grandes idias; o gigante vai fazer cem anos de vida independente. E possvel que nessa ocasio lhe acuda a idia ( ... ) de tomar um bom lombrigueiro". 23

    Oportuno, enfim, para nos tornarmos um povo "civilizado";

    "( ... ) depois dos trs dias de Carnaval, como este o ano ckJ Centenrio, devemos fechar o rosto (. .. ) saber envergar uma casaca, fumar charuto sem se engasgar ( ... ) e rir de boca fechada para no cuspir na cara do vizinho".24

    17

  • o tom das recomendaes, freqentemente resvalando para o deboche e o sarcasmo, no obstante revelava o grau de expectativa detonado pelo "faustoso" acontecimento.

    O incio da dcada de 1920 foi frtil em balanos e avaliaes dos cem anos da nao independente. O grande anseio, diria mesmo a obstinao que animava a intelectualidade nesse momento era conhecer o pas, na mesma medida em que crescia a percepo de que se o Brasil tinha territrio, no se constitura ainda como nao.25 Frente ao desafio do momento histrico - a comemorao do Centenrio da Independncia - formou-se a gerao intelectual dos 20, comprometida com a tarefa de criar a nao, fOljar a identidade nacional e construir o Brasil moderno. 'Irefa delicada, sem dvida, mas

    "que momento poderia ser mais adequado do que este em que festejamos o centenrio da nossa independncia poltica? Precisamos demarcar as fronteiras do esprito nacional como j se flXaram as do territrio" ,26

    conclua Pontes de Miranda, jurista de renome e atuante intelectual dessa gerao.

    Tal preocupao, marcante na "gerao de 1870", que produzira um pensamento novo sobre o pas, atravs da articulao da cincia emergente com a tradio literria,27 exacerbou-se frente proximidade da comemorao dos cem anos do 7 de setembro. Este evento obrigava a sociedade brasileira, atravs de seus intelectuais, polticos e lderes, a se pensar novamente - afinal, que pas era este? Foram formuladas novas interpretaes e renovadas as anteriores. Umas e outras voltadas para o entendimento do presente, porm obrigadas a voltar ao passado, buscando as continuidades e as rupturas, e a projetar o futuro, recriando o pas altura do sculo XX.

    A produo intelectual do perodo no foi estritamente acadmica. Podemos falar, antes, numa elite letrada comprometida com o esforo de conscientizar o pas de seus "reais" problemas e orient-lo na busca das solues. O veculo usado para o encaminhamento dessas propostas tampouco se limitou aos livros; a imprensa foi a via privilegiada de comunicao com o pblico leitor. Atravs de editoriais, ensaios e crnicas, emjornais e revistas, puderam esses intelectuais exercer a misso a que se julgavam predestinados: salvar o pas.

    No momento em que a palavra de ordem era "descobrir" o Brasil, a tarefa primeira seria a buscadas suas origens, das suas razes; quem sabe, l estariam os segredos dos impasses e das potencialidades com os quais E! nao se defrontava para finalmente ingressar nos novos tempos. E compreensvel, pois, o interesse que todos revelavam pelos

    18

  • trs sculos de colonizao portuguesa. Afinal, estvamos prestes a celebrar o fim de to longa dominao e era preciso marcar o "triunfo maravilhoso da nossa raa sobre as nossas prprias origens histricas, que fizeram de ns, durante mais de trs sculos, escravos .. . ,,28

    Considerando-se a marcante presena dos portugueses na vida econmica da capital federal, especialmente nos setores do comrcio e do aluguel de moradias, o que os colocava em situao de constante atrito com amplos segmentos da populao carioca, entende-se o poderoso apelo de um discurso antilusitano, no momento em que a nao era forada a olhar o passado. O espectro da dominao pOltuguesa, com fortes razes na realidade da longa explorao colonial de trs sculos, reapareceu com fora, e os conflitos entre "cabras" (brasileirosJ e ''ps-de",humbo'' (portugueses) ganharam destaque na imprensa.2 E se um nmero maior de crimes relatados nos jornais no significa, necessariamente, um aumento das aes criminais, demonstra certamente uma mobilizao social em torno do assunto. A Capeta, por exemplo, alertava que se o governo queria levar mesmo a srio a comemorao do Centenrio, no devia deixar "a roubalheira esmagar o povo, desde o vendeiro sujo que vendia batata at o bigodudo proprietrio que alugava os cmodos".30 Mas era a dominao da imprensa e, atravs dela, o comando da opinio pblica e a penetrao nos crculos polticos que mais vivamente indignava os intelectuais antilusitanos. A reao destes veio atravs da fundao de duas revistas de declarado "combate dominao portuguesa" -Brazlea, criada em 1917 por lvaro Bomilcar e Damasceno Vieira, e Gil Elas, fundada em 1919, sob a direo de Alcebades Delamare; e se completou com a organizao da Propaganda Nativista e da Ao Social Nacionalista, movimentos de "carter patritico e cvico".3

    Dentro de uma perspectiva bem caracterstica do incio da dcada de 1920, e que se manifestou com fora nas celebraes do Centenrio, a origem de nossos problemas estaria nas razes culturais, ou seja, no elemento portugus, retrgrado e atrasado. Amuitos ocorria que era hora de afastar das letras a influncia portuguesa e de romper com as formas tradicionais de expresso na gramtica herdada dos descobridores. A tentativa de sistematizar a fala brasileira numa lngua prpria, o desejo de tornar vlida a dico nacional, parecia, tanto aos modernistas, quanto aos adeptos da Propaganda Nativista e da Ao Social Nacionalista, o modo mais efetivo de marcar a nossa independncia, mesmo que com "cem anos de atraso".

    No que tange avaliao da colonizao portuguesa no Brasil, se, por um lado, Afrnio Peixoto considerava que havamos herdado de POltugal a civilizao greco-romana e a moral crist, e que isso bastaria para enaltecer essa herana,32 o tom dominante por ocasio do Centenrio foi de crtica poca colonial,

    19

  • "em que a vida para esse povo ( ... ) era um martirolgio, e seria quase impossvel imaginar que fosse um dia o gigante cuja imponncia deslumbra a quem v .. .',33

    Pobreza intelectual, moral e material, inexistncia de vida social e incapacidade organizativa, eis o que nos teriam legado os coloruzadores ao longo de trs sculos de dominao, na dura avaliao de Capistrano deAbreu no balano com que encerra0 seu aptulos rk hist,.i.acolonial (1907).34 Mais drstico foi o veredito de Alvaro Bomilcar: apoiado em Manoel Bonfim, que chegou a criar o conceito de "parasitismo" para sintetizar o carter da colonizao portuguesa no Brasil, o militante da Propaganda Nativista disparou: ''Nao nenhuma pecou mais contra a humarudade que a portuguesa ( ... ) Andou sempre devastando no s as terras de frica e sia ( ... ) mas igualmente as de nosso pas" ,35 concluindo que s teria havido progresso e cultura nos quatro estados do sul onde a influncia portuguesa havia sido nula.

    O ponto mais sensvel, contudo, era o que tocava o cerne da prpria comemorao, ou seja, a definio do significado poltico do grito do Ipiranga e o papel das diversas figuras histricas no processo da independncia. Alonga matria, fartamente ilustrada, publicada na revista Eu sei. tudcJ, em homenagem aos "noventa e cinco anos de independncia", apontava as dvidas que giravam em tomo do processo de emancipao:

    "( ... ) Obra exclusiva do arrebatado temperamentovoluntarioso do princpe D.Pedro, na opinio de alguns; de Jos Bonifcio no culto positivista (. . . ); amparada por 2 milhes de esterlinos, conforme asseverou Mello Moraes pai; desfecho natural de uma lenta evoluo precipitada pela transferncia inesperada da Corte para o Rio de Janeiro e pelo movimento liberal da pennsula, e acirrada pela impoltica atitude das Cortes Portuguesas ( ... ); chocam-iSe at hoje as opinies e desse entrechoque no brotou ainda hoje a luz cristalina da verdade histrica, merc talvez das paixes que de alguma sorte hajam obumbrado a imparcial viso que deve ser apangio do historiador',.36

    Parecia inconcebvel que uma nao, prestes a comemorar o centenrio da sua independncia, ainda no tivesse conseguido identificar o ''verdadeiro'' significado da data magna da sua histria. Quem fora, afinal, o efetivo construtor da ptria livre e soberana? D.Pedro I, com seu ''voluntarioso'' grito de "Independncia ou morte",

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  • ou Jos Bonifcio, com seu paciente trabalho em prol do rompimento com a Corte? O 7 de setembro teria sido apenas o "desfecho natural" para um processo de emancipao j em marcha desde o sculo XVIII, ou fora o indispensvel aglutinador de tendncias episdicas e esparsas, incapazes de se organizarem para a ruptura com a Metrpole?

    A conferncia proferida por Amadeu Amaral na reoomriada Li Nacionalista de So Paulo (1917), e publicada na Revista dn BraB,3 especialmente representativa da verso que enfatizava a idia de que o grito do Ipiranga teria consistido em "mera continuao feliz de um movimento evolutivo". Nessa perspectiva, o Brasil j seria uma nao em 1822, foIjada anteriormente "na constituio do territrio, na formao da raa, na elaborao do sentimento nativista e no pendor republicano". "Independncia ou morte!" fora o grito dessa ''nao'' que, embora "contrariada" pela presena de D.Joo VI e pela atitude de D .Pedro, no se dera por vencida. Dessa maneira, afirmava -se a idia de continuidade de uma "nao que se constitura por vontade prpria", negando-se a verso de que a independncia teria resultado da concesso de uma "graa" por parte dos antigos dominadores.

    Destacando o papel de D.Pedro, apesar da "ambio e da vaidade", Tristo de Atade ressalta que o princpe portugus "tivera a intuio do sentimento nacional". Ao garantir a unidade territorial, ao impedir a "anarquia" que acompanhara o processo de emancipao de outros pases sul-americanos , o brado do Ipiranga teria sido o toque de reunir para as foras que dispersamente lutavam pela emancipao;38 1822 fundara a nao brasileira.

    Ao contrrio da maioria das regies submetidas dominao colonial, onde o mito fundador da nao livre possui um claro significado - Thtados Unidos e Mxico so exemplos marcantes -, no Brasil, o sentido de 1822 suscita at hoje um conjunto diferenciado de interpretaes.39

    No que toca s figuras histricas envolvidas no 7 de setembro, acentuou-se o esvaziamento, iniciado pelos positivistas nos primrdios da Repblica, da atuao do ''D.Pedro portugus";

    "ao se aproximar o 1 Centenrio de nossa independncia mister que se desvende o verdadeiro papel de D.Pedro I nesse magno acontecimento da vida nacional. Consagrado no bronze e nas pginas da histria ( ... ) ele no passou de um mero oportunista [que] refreou o quanto pde as arrancadas independentistas".40

    Embora nesse momento se percebesse uma certa nostalgia do "antigo regime", envolvendo uma recuperao positiva da atuao do

    21

  • brasileiro D.Pedro lI, com relao ao primeiro imperador do Brasil, as crticas se acirraram, fIxando indelevelmente no imaginrio nacional a figura de um "estrina", "com suas decises repentinas, as vacilaes de seu carter, a incultura do seu esprito ( ... ) a falta de austeridade em seus costumes privados" .41

    Quanto a Jos Bonifcio, a unanimidade geral em torno do papel que teria representado na Independncia, como, alis, j fora notado por Emilia Viotti da Costa, em artigo sugestivamente intitulado "Jos Bonifcio: mito e histrias".42 Absolvido de qualquer responsabilidade pela ausncia de democracia que marcara o reinado de D.Pedro I - ou porque "a implantao do Absolutismo C .. ) fora obra de Jos Clemente Pereira",43 ou porque "a mentalidade pblica no permitiu que C .. ) se sentisse com foras para a obra inicial de democracia,;14 - Bonifcio, liberal e conservador ao mesmo tempo, possuiria uma "coerente" viso dos objetivos nacionais de longo prazo. Representante 'nico" de uma tendncia que buscara implantar uma poltica calcada em '1eis cientfIcas", rejeitando o "idealismo" liberal que acabara vingando na primeira Constituio republicana, defensor da ordem e da centralizao poltica, o patriarca agradava, especialmente, queles que, nos anos 1920, foram responsveis pela formao de um pensamento autoritrio no pas.45 Escrevendo para a Revista do IHGB, oomemorativa do Centenrio da Independncia, Thvares de Lyra confessa:

    "( ... ) se o julgo o vulto primordial daquela jornada gloriosa, porque em meio de demolidores emritos, soube conciliar a ordem com a liberdade, preservando das agitaes e das lutas que ensangentaram as Repblicas vizinhas .. .'.46

    A recuperao histrica de Bonifcio como um modelo providencial a ser seguido foi particularmente bem-vinda nesse incio dos anos 20, marcado por uma agitada campanha presidencial que fugiu aos parmetros do jogo poltico da poca, e culminou com o levante militar de 1922. A entronizao defInitiva de Bonifcio deveu-se, em parte, mobilizao da intelectualidade paulista no intuito de garantir para So Paulo a iniciativa dos momentos fundamentais da Independncia, como a lembrar que no era de hoje que os paulistas governavam o Brasil.

    A comemorao do Centenrio colocou em cena verses mltiplas da "histria ptria", suscitou interpretaes diferenciadas sobre o papel das fIguras histricas, obrigou, enfIm, a um mergulho mais profundo nas razes nacionais. Avaliando a herana dos trs sculos de colonizao portuguesa no Brasil, discutindo o sentido do grito do Ipiranga, elegendo Bonifcio como o grande ''patriarca da inde-

    22

  • pendncia", os pensadores do Centenrio construram uma "histria" (na verdade, uma memria), que fumou uma longa tradio na transmisso do conhecimento histrico.

    Tanto quanto o passado remoto, o que clama igualmente por uma urgente avaliao o passado recente, corporificado no regime republicano, instalado h pouco mais de trs dcadas no pas. Uma pergunta anda nas cabeas e nas bocas: que Repblica essa?

    QUE REPBLICA ESSA?

    "Veio a Repblica. Veio a Democracia. Veio a Federao. E logo se levantou um sussurro de desapontamento ( ... ) e esse desapontamento

    se acentuou com o tempo, numa permanente desiluso ( ... Nn era esta a Repblica dos meus sonhosr'"

    DESILUSO e desapontamento do o tom do balano dos 35 anos de poltica republicana levado a cabo por escritores da gerap nascida com a Repblica, e publicado em 1924 com o nome de A margem da histria da Repblica. No entanto, as manifestaes de repdio ao regime institudo em 1889 so bem anteriores e podem ser detectadas, j na virada do sculo, em republicanos convictos como Euclides da Cunha; a crena de que "esse paraso de medocres" pudesse concretizar o sonho de uma nao "civilizada e moderna" rapidamente se desvanecia. Como alertava a crtica Careta em 1920, a Repblica no era mais aquele "busto lindo de uma mulher, fume no pedestal ( .. . ) com barrete frgio"; devia antes ser representada por uma "esfinge com um simples capuz de bico feito por um jornal velho".48

    Esse ceticismo estava associado posio do intelectual na sociedade brasileira, percebida como secundria em relao ao poder oligrquico estabelecido. SupondCH3e uma nova elite contraposta oligarquia, julgandCH3e detentora de uma viso abrangente da realidade brasileira, a intelectualidade, de um modo geral, empenhou-ee em apontar uma sada para a crise da Repblica. 1922 revelou-ee um

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  • ano-ehave para o acirramento dessa descrena: de um lado, a comemorao do Centenrio, forando uma reflexo sobre o pas e, em especial, um balano das realizaes republicanas; de outro, a crise poltica, representada por uma campanha presidencial particularmente tensa, coroada por um movimento de rebelio militar na prpria capital federal. Justamente no ano em que o pas deveria celebrar a emancipao da nao, obtida graas "uruo de todos com o mesmo objetivo", a se incluindo at o antigo dominador, eis que uma "atroosfera de dios" tornava evidente a falncia do regime republicano.49

    As anlises e reflexes empreendidas por vrios intelectuais em busca de uma sada para a crise da Repblica nortearam-se por um padro dicotmico de compreenso da sociedade e da histria brasileira, orientado, de um lado, pela busca da "verdadeira" Repblica e, de outro, por uma nostalgia do "antigo regime".

    Para alguns intelectuais, os males da sociedade brasileira no deveriam ser atribudos ao regime republicano. lvaro Bomilcar, por exemplo, nas pginas da Brazlea, defendia a Repblica como a ruca soluo para a "causa do povo". Se atualmente ela s favorecia ''meia dzia de individuos", isto era devido ao "vcio de origem", ou seja, a coloruzao portuguesa e o regime imperial teriam contaminado a ''pureza'' dos ideais republicanos. E era justamente essa ''pureza'' que deveria ser recuperada para que o pas voltasse a viver a "verdadeira" Repblica.5o

    Com esse objetivo, Bomilcar fundou a Propaganda Nativista em 2 1 de abril de 1919, ''para o fim de condignamente comemorar a data do martrio do glorioso heri ( ... ) e sob a evocao do imortal patrono -FLORIANO PEIXOTO',.51 A referncia a TIradentes explicitava o desejo de firmar as origens republicanas no tempo, conferindo-lhes razes profundas na histria brasileira. Ao mesmo tempo, lembrar o ''mrtir'' da Independncia era remeter possibilidade de existncia de um republicarsmo ntegro, afinal corporificado em Floriano Peixoto. Arbitrrio e desptico alguns , Floriano firmou uma mstica de pureza e republicanismo.52 Em 1920, Bomilcar dedica seu livro A poltica lW BrU13il ou o nacionalisrrw radical memria do "consolidador" da Repblica, ''heri modesto, culto e patriota" que, orientando a poltica no sentido nacional, trouxera a esperana de salvao para milhes de brasileiros. O fim do floriamsmo teria provocado a runa da Repblica, cuja recuperao dependia da revivescncia dos ideais de Floriano.

    O longo artigo de Cardoso dedicado a Benjamim Constant parece igualmente querer buscar a "verdadeira" Repblica, que "existira sempre latente no pas", e fora conseguida dentro da ordem por aquele militar e professor "formador de almas". Era esse "esprito republicano", presente em todos os movimentos "revolucionrios", arraigado,

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  • portanto, na ndole nacional, que deveria se opor a essa Repblica "artificial", apartada dos ideais dos seus fundadores.53

    Forando uma reflexo sobre o passado, a comemorao do Centenrio desencadeou o desejo de buscar o tempo perdido, provocou a sensao de que se perdera uma "Idade de Ouro" que era preciso restaurar. 54 Se alguns desses "tempos de antes" foram efetivamente vividos, como o florianismo, outros foram evocados atravs de um modelo exemplar, como foi o caso do Imprio.

    O segundo semestre de 1920 foi marcado por um intenso debate em torno da revogao do decreto de banimento da faInl1ia imperial, o que possibilitaria a volta terra natal dos despojos doS imperadores Pedro II e 'Thresa Cristina e de seus familiares ainda vivos, como a Princesa Isabel e o Conde D'Eu, exilados na Frana. O retorno da famlia imperial ao solo ptrio simbolizaria a unidade nacional, fundamental para "festejar com sincero jbilo o 12 Centenrio da nossa Independncia".55

    Em torno da bandeira do fim do banimento imperial foi montado um discurso de tom nostlgioo em relao ao "antigo regime". Ao contrrio dos "subversivos da Repblica" que, nos primeiros anos de implantao do regime no Brasil, realizaram efetivos esforos para a volta da Monarquia,56 aqueles que agora exaltavam o Imprio jamais explicitaram a possibilidade de retorno do regime imperial, a no ser em tom de galhofa, como na irreverente COl-eta que, em julho de 1920 observava:

    "- Revoga.,se o banimento da faInl1ia imperial, instituise a Ordem do Cruzeiro, cria.,se o Conselho de Estado. Onde iremos parar? Isso a volta da Monarquia? -A prestaes .. .'.57

    Com a finalidade expressa de "salvat" a Repblica, os intelectuais que nesse momento procederam a uma reviso da ''histria'' do Imprio projetaram nele qualidades que procuravam no regime que o substitura. A comear pela observao de que "a famlia imperial no nos fez nenhum mal. Ao contrrio ... ", Assis Chateaubriand fazia uma avaliao claramente positiva de "D.Isabel, a Redentora, [que] imortalizou o seu nome na pgina mais branca da nossa histria"; mesmo o at ento detestado Conde D'Eu era um "soldaduepegou em armas pela defesa de nossa ptria contra o estrangeiro". Pedro lI,

    "figura solene, bonssima e respeitvel ( ... ) era espectro acusador na conscincia dos dirigentes da Repblica ( ... )

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  • que temiam ter a todo o momento o passo cortado ( ... ) JX!10 fantasma dn ltimo governo honesto que teve o Brasif,.59

    Dessa maneira, o imperador afigurou-i5e a muitos como o paradigma de governante capaz de salvar a Repblica, avaliada como corrupta e desonesta. Alis, o prprio Imprio foi recuperado como "a poca das verdadeiras liberdades polticas", calcada na "ordem e tranqilidade" que permitiu o desenvolvimento do pas, deixando "uma impresso de respeito desses homens graves, honestos, imponentes, movendo-i5e numa atmosfera elevada em torno de um prncipe".60 Ironicamente, a salvao da Repblica passava pelo Imprio e pelo Imperador; no passado estavam os sonhos de projeo para o futuro.

    Republicanizar a Repblica a palavra de ordem que comanda a comemorao do Centenrio em 1922. Porm, que modelo seguir? O jacobinismo florianista renascido pelas mos da Propaganda Nativista ou a calma sabedoria do imperador ''mais democrtico" da Amrica Latina? Achegada ao Brasil dos restos mortais da faInl1ia imperial, em janeiro de 1921, provocou uma romaria dos "republicanos histricos" aos tmulos de Floriano Peixoto e Berliamim Constant, numa clara indicao de que a disputa pelo controle da memria uma luta pelo poder de encaminhar o futuro do pas.

    A decepo com o regime republicano que, ao contrrio do que era esperado, no havia resolvido mecanicamente os desequilbrios da sociedade brasileira, estimulava a elaborao de um veredicto seguro capaz de garantir a salvao nacional. Se antes de 1920 j se punha o dedo nas feridas que se espalhavam pelo corpo da nao, era na perspectiva de comemorar os cem anos de independncia que tais idias redentoras se configuravam como sadas para os impasses brasileiros. O primeiro efeito do impacto provocado pela prxima comemorao foi forar a intelectual idade a tomar p da situao nacional, compreender as causas do atraso do pas e formular um programa de ao para super-lo. O debate de uma determinada poca no apenas possibilita conhecer o ponto de vista de cada autor, como permite delinear a configurao de grupos, a concentrao em torno de certos temas e a discusso de determinados problemas. Em torno da idia de criar uma "conscincia nacional", o tema do nacionalismo concentra a ateno dos intelectuais.

    A palavra de ordem era "basta de fecundao artificial!".61 O desconhecimento das reais condies do Brasil pela maioria dos seus habitantes, a se incluindo os intelectuais, e a adoo, sem restries, de modelos polticos estrangeiros, foram apontados como entraves para a construo da nacionalidade brasileira. A presena do pensamento de Alberto 'Ibrres, marcado pela denncia constante do artificialismo das nossas instituies, foi fundamental para a configurao

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  • intelectual da gerao dos anos 20.62 Para o escritor fluminense, a realidade nacional poderia ser desvendada desde que se abandonassem os modelos importados e se partisse para uma anlise "cientfica" dessa realidade. Por essas idias, 'lbrres seria recuperado no ps-30, atravs dos pensadores do Estado Novo, como Oliveira Viana e Azevedo Amaral, que lhe renderam as devidas homenagens como inspirador da poltica "realista" ento adotada.63

    'lbrnar a Repblica "brasileira" era a misso de uma gerao que "comeou a pensar politicamente depois da grande guerra de 1914".64 A Primeira Guerra teve um forte impacto sobre a intelectualidade,65 despertando um sentimento de urgncia frente resoluo dos problemas nacionais. Alceu Amoroso Lima a considerou como "a introduo da tragdia numa civilizao que os saudosistas chamavam de belle po'l1f&", detonando uma "espcie de rejuvenescimento de nossa gerao".66 Se, ao longo da guerra, a intelectualidade brasileira se dividiu entre aliados e gennnicos, f>I ao fim do conflito ficou a sensao de que a "civilizao belle poque' deixara de fascinar a maioria daqueles que a viam como modelo inegvel da modernidade a ser conquistada. Caprichosamente, a tarefa de construir uma conscincia nacional e moderna no Brasil dos anos 20 teria como contraponto a ser negado a belle poque "decadente, ultrapassada e falida". Se a histria do pensamento brasileiro sempre fora marcada pelo fascnio da questo nacional, nesse momento cresceu o nmero dos pensadores que se empenharam no desafio de oompor e decompor o Brasil oomo nao.

    Um dos exemplos mais significativos desse esforo intelectual foi a j citada coletnea de ensaios escritos entre '\ segunda metade da dcada de 1910 e o incio da seguinte intitulada A margem da histria da Repblica. 68 Publicada em 1924, com o objetivo de pensar os cem anos de independncia e os 35 de Repblica, e concebida, segundo a apresentao de Vicente Licnio Cardoso, como uma exposio "dos ideais, crenas e afirmaes" da gerao nascida com o novo regime, e a quem cabia ''uma nova Obra de construt:J, ou seja, fixar no tempo e no espao, o Pensamento e a Conscincia da Nacionnlidade Brasileirci', essa obra coletiva encarnava a responsabilidade intelectual de equacionar os problemas nacionais. Os ensaios eram ricos em solues e sugestes para reformar a nao brasileira. Marcados pela desiluso com a Repblica, seus autores se lanaram reflexo crtica, tentativa de uma anlise objetiva, a fim de apontar rumos que pudessem guiar o regime em melhores caminhos: a palavra mgica era "abrasileimmento".

    "Minha gerao ( ... ) foi muito trabalhada pela tendncia de julgar a organizao constitucional ( . . . ) do regime da carta de 1891 como servil imitao de modelos estran-

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  • geiros, sem nenhuma correspondncia com a realidade brasileira".69

    A afinnao de Hermes Lima, que no participou da equipe de margem dahistri.a daRepblica, demonstra a percepo, generalizada no meio intelectual, da inadequao da Constituio de 1891 realidade brasileira. Explicitamente voltados para a crtica da Carta republicana, os ensaios "O idealismo da Constituio" e ''Preliunares para a reviso constitucional" denunciavam o carter peruiciosamente intativo da nossa lei magna. Os ''idealistas republicanos" foram, na avaliao de Oliveira Viana, "excelentes tradutores de males estranhos; pssimos intrpretes de nossos prprios males". O ambiente "agitado e instabilssimo" que marcou o surgimento da Repblica e a promulgao da Constituio no favorecera o florescer de um "esprito democrtico". A experincia descentralizadora e federativa da Carta de 1891 estaria fatalmente destinada ao fracasso, " medida que se fosse acentuando o desacordo entre os seus princpios e as condies mentais e estruturais do nosso povo".70 Os nossos "males" resultariam, pois, da malfica oombinao entre a falta de contato com a realidade nacional e a cpia de modelos estrangeiros.

    'Th.is idias, que claramente patenteavam o descrdito em relao onda civilizatria europia, orgulhosamente autodenominada de belle poque, adquiriam fora crescente entre os intelectuais brasileiros. O modelo liberal, tido oomo a suprema realizao poltica de qualquer nacionalidade, estava sob o fogo cruzado dos que, esquerda e direita, advogavam a regenerao da estrutura poltica. Para muitos, era preciso dar um basta a essa mentalidade "artificiaf', "utpica" e "apriorstica" das elites que haviam dirigido e ainda dirigiam o pas com os olhos voltados para o estrangeiro,

    'j que ningum de boa f, se pode referir nossa falta de organizao poltica, administrativa, ulitar, industrial, etc ... , depois do fracasso de todas essas organizaes na super-eivilizada Europa".71

    No mais possvel aturar que, precisamente no ano do Centenrio da nossa emancipao, "o delegado dos EUA na Exposio de 1922 nos venha lembrar a nossa soberania duvidosa,,?2

    Mas o que nos levava sistematicamente a importar idias estrangeiras? O que nos impedia de criar instituies "convenientes" e "adaptadas" nossa realidade? Porque no havamos construdo ainda um ''Brasil brasileiro',? Aindicao de Alberto 'lbrres precisa; 'Tenhamos em mente que as naes que se formam espontaneamente em

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  • nossa pqca so construdas por seus dirigentes, so obras d'arte polticas".73 A mensagem clara: a ao poltica atravs da imprensa, da educao, da opinio e do estudo - esferas de atuao do intelectual e do poltico - constituiNSe-iam em mtodos privilegiados para a formao da nao.

    Criar a nao brasileira seria, pois, tarefa dessa "milWrit agissanUI'. Este era o sentimento que animava os diferentes autores da coletnea orgaIzada por Vicente LicIO Cardoso, comungando a crena de que "o nacionalismo , antes de tudo, uma atitude intelectual ( ... ) no terreno das idias e teorias ( ... ) E como provoc-lo seno por meio de uma propaganda tenaz?,,74 A grande falha da Repblica brasileira foi no ter sido capaz de produzir uma elite bem preparada, pronta a assumir "em um pas como o nosso ( ... ) incapaz de se dirigir a si prprio ( ... ) essa tutela, essa ditadura mental que Jos Bonifcio quis exercer" . 75 Sem dvida, a teoria das elites, formulada por Gaetano Mosca (1896), e acolhida por Pareto (1902) e Michels (1912), teve boa aceitao em amplos setores da intelectualidade brasileira dos anos 20.

    A necessidade de uma elite "enrgica" em nosso pas crescia na medida em que o povo tinha sido incapaz de se organizar politica-

    " , . . 'bli ' ( ) - . n 76 mente - somos um povo em que a opmlao pu ca ... nao eXIste , afirmava enfaticamente Oliveira Viana. Da, a inviabilidade de constituio de um modelo nacional de organizao poltica.

    Essa interpretao de Oliveira Viana se canecta tanto ao pensamento conservador europeu quanto ao brasileiro, este solidamente aferrado s razes "saquaremas".77 Privilegia a orgaIzao e a atividade do Estado, conferindo-lhe um papel preeminente, baseado no pressuposto de urna sociedade civil dbil, de um povo cultural e politicamente despreparado para exercer um papel ativo nos negcios pblicos. Ao expressarem um anseio de fortalecimento do poder pblico central, intelectuais como Oliveira Viana, Gilberto Amado, Pontes de Miranda"! consolidaram o que LamouIer chamou de "ideologia de Estado". 8 Dotados de uma viso orgnico-rorporativista, percebiam esses autores a necessidade de um poder estatal forte para erradicar os males do passado e manter sob controle qualquer processo de mudana.

    Nesse contexto, estruturaram-se correntes de opiIo que passaram a conferir educao o papel de fora propulsora da sociedade e de elemento saneador das crises que aftavam o pas. Segundo o balano realizado pelos ensastas de A margem da histria da Repblica, o nosso problema bsico era a educao nacional; da, a concluso bvia de que a educao era a maior necessidade do Brasil.

    O tema da educao adquiriu um lugar de relevo na arena de debates em torno de projetos de reestruturao nacional e de afirmao das bases da nacionalidade. Assistiu-tle ao surgimento de um amplo movimento que Jorge Nagle chamou de "entusiasmo pela educao", o

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  • qual, de certa maneira, restaurava a bandeira de luta da gerao "ilustrada" de 1870. 'Ihl como no final do sculo passado, a preocupao principal nos anos 20 era preparar a elite, pois a ela caberia a tarefa de orientar a organizao do pas, formando o povo.79

    Ao ensino superior estava reservado o papel de fonnar os "iluminados", destinados a "ilustrar" o pas; a universidade era definida como o organismo concatenador da mentalidade nacional, de onde haveria de sair uma nao transfonnada sob a direo de uma elite "enrgica" e bem preparada: a criao da Universidade do Rio de Janeiro e a reforma Sampaio Dria, ambas em 1920, so momentos significativos desse esforo.

    Ao ensino bsico, cabia formar o povo brasileiro; ou melhor, tmnsfonnar a massa "impura", "desorganizada", "aptica" e "analfabeta" numa populao organizada, pautada pelos valores da ordem e do trabalho, e guiada ielo "esprito corporativo e pelas instituies de solidariedade sociar'.

    Ao lado da educao, a sade figurava como elemento fundamental para a regenerao nacional. Desde o incio do sculo, a questo sanitria vinha ocupando um espao importante nas polticas pblicas, com destaque para a Refonna Passos, na cidade do RiodeJaneiro.

    Na segunda metade da dcada de 1910, um relatrio de dois mdicos, Belisrio Pena e Artur Neiva, traou um minucioso inventrio das condies de sade dos habitantes do serto da Bahia, Pernambuco, Piau e Gois. Este documento gIUlhou imensa publicidade atravs da campanha do escritor Monteiro l.obato em prol da reformulao da sade pblica no Brasil. l.obato, conhecido por haver criado a figura do Jeca 'Iatu, prottipo do caboclo brasileiro, preguioso e atrasado, concedeu questo do saneamento o estatuto de ''problema vitar' do pas: "Fala-fle hoje em ptria mais do que nunca ( ... ) Programa patritico s h um: sanear o Brasif'. A "ressurreio" vivida por Jeca 'Iatu que, de caboclo indolente se transformara em ativo empresrio, graas a um eficaz tratamento mdico, deveria servir de exemplo para a "ressurreio" de todo o pas.SI Questes como sade pblica e condies sanitrias foram incorporadas temtica Jrltica, inserindo-se no amplo debate sobre a reconstruo nacional.

    O sentimento de urgncia que marca o debate intelectual na segunda metade da dcada de 1910 se acelera frente tarefa crucial de pensar a nao que celebrava o centenrio de sua independncia. O balano do pas feito no raiarda dcada de 1920 apontava a necessidade de um projeto de (re)construo nacional que garantisse o ingresso do Brasil na nova realidade do ps-guerra. Esse momento foi marcado pela tentativa de colocar o pas no ritmo da histria, de torn-lo contemporneo do seu tempo, de recri-lo altura do sculo xx. O lema era: tudo por uma nao moderna.

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  • POR UMA NAO MODERNA!

    "H milhares de jovens escritores e jovens artistas que foram mortos; h a iluso perdida de uma cultura europia e a demonstrao da

    impotncia do conhecimento pera salvar qualquer coisa; h a cincia mortalmente atingida e como que desonrada pela

    crueldade de suas aplicaes; h o idealismo dificilmente vencedor, profundamente magoado ( ... ) o realismo decepcionado ( .. . ) OS prprios cticos desconcertados por

    acontecimentos to sbitos ( ... ) perdem suas dvi reencontram-nas, tornam a perd-Ias .. .'

    o desabafo de Paul Valry representou bem o estado de esprito da intelectual idade europia, perplexa diante da bancarrota de uma poca orgulhosa de si mesma e de seus feitos a ponto de se autodenominar beUe poque.84 Para estes intelectuais, levantava- se o desafio de encontrar novos caminhos para viver a modernidade e bem express-la; modernidade esta nascida do sentimento de rompimento com o passado recente.85

    Parte pondervel da intelectualidade brasileira igualmente rejeitava o passado recente, configurado na trajetria pouco edificante de uma Repblica que buscou copiar a "belepoque" falida. O balano dos cem anos e a conseqente avaliao das condies concretas de atraso da sociedade brasileira indicavam a necess idade de novos parmetros que definissem uma nao moderna, pois o modelo at ento adotado parecia esgotado. Essa preocupao est presente nas obras de Oliveira Vlllna, Licnio Cardoso, Manoel Bonfim,MonteiroLobato, Mrio de Andrade, Alberto 'Ibrres, entre outros. Mltiplas e contraditrias so as interpretaes, divergentes os caminhos proll.,ostos, mas em comum a elaborao da idia de um Brasil moderno.

    Gerao marcada pela misso de fecundar idias singulares, no comprometidas com a "artificialidade" da importao, nem por isso se furtou a buscar a modernidade atravs de uma integrao crtica e seletiva das idias que circulavam na Europa. O ato de buscar

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  • modelos externos universal, o que no impede de ser ele um intrumento til para se entender uma sociedade especfica. Afinal, o que consciente ou inconscientemente os importadores admitem ou recusam, est profundamente influenciado pela sua prpria sociedade e suas maneiras de pensar. Dessa maneira, julgamos importante apreciar o papel que os modelos estrangeiros desempenharam na construo da nao brasileira no raiar da dcada de 1920; importanos verificar a funo que tais modelos ocuparam no projeto poltico e cultural pensado pela intelectualidade nesse momento.

    O desmoronar dos valores que sustentavam a beUe poque - o liberalismo, o otimismo cientificista, o racionalismo,j abalados desde antes de 1914 - traduziu-se, em todos os domnios do pensamento, por uma vontade de renovao. A inquietao intelectual se acelerou no final da dcada, com a Revoluo Russa e o fim da Grande Guerra. Em alguns anos, as "velhas" noes cientficas euclidianas e newtonianas, em que se apoiava o saber das cincias exatas, foram superadas, em grande parte, pelas novas concepes da Fsica determinadas pela Teoria da Relatividade de Einstein.

    O desencanto com os princpios racionais acentuou o papel do inconsciente, crescendo o interesse pelas filosofias que pregavam o predomnio dos sentimentos e emoes e apelavam para a imaginao. Ir ao fundo de ns mesmos significava, dentro dessa perspectiva, buscar as razes, as foras primitivas e mitolgicas que fundavam o nosso ser. Era fundamental fazer emergir o "verdadeiro esprito nacional", relegado a segundo plano pelo encanto que a mgica cosmopolita da belle poque prometera em grandiosas exposies universais.

    A decadncia espreitaria o Estado liberal burgus. Pregava-se a modernizao da estrutura poltica; acendiam-se as discusses sobre democracia e participao popular. A rejeio da "velha" poltica liberal de eleies e cadeiras no Parlamento,substituda pela organizao do proletariado em sindicatos e pela formao de uma ativa liderana que guiasse as massas, aproximava os homens de direita e de esquerda, conquanto seus objetivos finais fossem distintos.

    A virada para a terceira dcada do sculo XX foi marcada, pois, pela rejeio da belle poque, fortalecendo o antiintelectualismo, o antiliberalismo e o nacionalismo, componentes que alimentaram o pensamento tradicionalista, mas que foram igualmente levantados pela corrente da vanguarda para demolir todas as "tradies". Abastecidos nas mesmas fontes, os dois movimentos reivindicavam para si o monoplio de portadores da modernidade.

    Para os tradicionalistas, nada havia de moderno na realidade urbano-industrial marcada pelo desenraizamento e o artificialismo. Para enfrentar esse mundo que se desmanchava no ar, o homem "verdadeiramente" moderno precisava de razes firmemente ancoradas

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  • na tradio nacional. Ou seja, a melhor maneira de encarnar o novo e enfrentar o futuro no seria andar para frente, mas sim dar meia volta e buscar inspirao no passado. Como esclarece l.e Goff, "o 'moderno', beira do abismo do presente, volta-ee para o passado ( ... ) se pode cair no tradicionalismo 'por excesso de modernidadev.87

    Elaborada em grande parte no mbito da kti.on Franaise, movimento nacionalista francs fundado em 1889,88 a corrente tradicionalista pregava o respeito s leis da natureza, entendida como a verdadeira construtora da sociedade. Ao se afastar do mundo natural atravs da artificialidade do maquinismo e do meio urbano, o homem teria perdido o contato com as "reais" virtudes da civilizao. O retomo ao campo e a valorizao do setor agrrio eram difundidos como a possibilidade concreta de um mundo harmonioso, marcado pela gentileza e a honradez. A sociedade da mquina, intelectualizada, racionalizada e universalista, era entendida como decadente e catica. A nao, realidade afetiva, dever-ee-ia calcar nos vnculos familiares, naturais ao ser humano em sociedade, e no nas complexas e artificiais frmulas da democracia liberal. A perspectiva da segurana, harmonia e coeso, a imagem romntica do ''homem livre na teITa livre", a restaurao de uma "civilizao natural", foram elementos de atrao da ideologia nazi-fascista.

    A inquietao intelectual motivou uma pluralidade de investigaes em todos os campos da cultura, transformando os primeiros anos do nosso sculo em laboratrio de concepes que, sob o nome genrico de vanguarda, invadiram a pintura, a msica, a literatura e a escultura. Podemos citar, por exemplo, o Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadasmo (1916) e o Espiritonovismo (1918).

    Decorrente do culto modernidade, a vanguarda foi conseqncia do esgotamento de tcnicas e teorias estticas que j no corresponderiam realidade do mundo novo. Arquitetando novas teorias culturais, experimentando outras frmulas de eJ

  • o "Manifesto futurista", de Marinetti, marcado pela apologia aos "aeroplanos, locomotivas, oficinas", indicava o desejo, marcante na vanguarda europia, de exaltar a vida moderna, pregando a destruio do passado e a glorificao do presente. Presente corporificado no maquinismo e no panorama urbano, temas indissociveis de qualquer perspectiva que visasse traduzir o moderno. Era isso que se evidenciava nas caricatas figuras urbanas do expressionista alemo Georg Gross, nos tensos poemas dedicados s vles tentaculai.res, do belga Emile Verhaeren, ou ainda, na paisagem fragmentada de Cidade, de Fernand Lger.

    No Brasil, a intelectualidade comprometida com a construo de um Brasil moderno oscila entre a tradio e a vanguarda.

    marcante a diferena entre estas duas elites intelectuais: uma, composta por indivduos ligados s idias vanguardistas europias, rompendo cornos valores "clssicos" e buscando sintonizar a realidade nacional com o ritmo veloz e febril do novo mundo urbano e industrial; outra, igualmente filiada a correntes internacionais, de carter conservador, marcada pelo apelo aos valores da natureza e do campo, pelo repdio ao industrialismo e modalidade da vida urbana, litoralista, cosmopolita e liberal. Ambas se unem pela oposio s pretenses da razo universal derrotada na guerra e advogam a originalidade de cada nao. claro que, como em todas as classificaes excessivamente simples, a dicotomia, por vezes, torna-se artificial. Porm, como todas as distines encerram algum grau de verdade, a oposio ''tradicionalismo'' x "vanguarda" oferece um ponto de partida para a reflexo. Assim, no temos dvida sobre a diferena entre Oliveira Viana e Mrio de Andrade.

    Cidade e campo so palavras poderosas que detonam um conjunto de sentimentos fortemente arraigados na vivncia humana. O campo ora associado a uma forma natural de vida, de paz, de inocncia e virtudes simpl, ora visto como o lugar do atraso, da ignorncia e da limitao. A cidade associa-se idia de centro de realizaes, de saber, comunicaes, mas tambm de barulho, corrupo e perdio. Cristalizadas no imaginrio social, foIjadas principalmente pela literatura, essas imagens positivas e negativas de campo e cidade so constantemente atualizadas e acionadas. 92

    O chamado pensamento ruralista ou agraris ta, caracterizado pela defesa intransigente dos valores rurais e da economia agrria como expresses supremas da "genuna" nao brasileira, marcou a gerao intelectual dos anos 10 e 20. Considerada por grande parte da historiografia como apenas uma "manifestao ideolgica dos setores agrrios conservadores" frente ao crescente espao ocupado pelos interesses industriais no panorama econmico e poltico, essa corrente de idias vai ser recuperada como um momento de reflexo de

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  • cunho poltico-
  • corporativo" e pelas "instituies de solidariedade social". Como depositrio das tradies mais representativas da nossa histria, como portador dos valores bsicos da barmonia, ordem e coeso, o campo se qualificava para direcionar a nossa evoluo poltico;;;ocial, to carente de uma orientao.