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Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo A NARRATIVA FICCIONAL DE GRACILIANO RAMOS E O REGISTRO ETNOGRÁFICO: UMA ANÁLISE DO TEXTO ETNOGRÁFICO A PARTIR DO ROMANCE ANGÚSTIA LUCIANA PEREIRA LAUREANO RESUMO: Este texto analisa o romance Angústia, obra de Graciliano Ramos, escritor modernista brasileiro e a etnografia de autores clás- sicos da Teoria Antropológica. Utilizo a estrutura da narrativa literária utilizada por Ramos na tessitura do texto e na composição das personagens, suas interações sociais, a relação que estabelecem com o ambiente e verbalização de suas memórias como pretexto para estabelecer nexos com os textos etnográficos. A partir do texto de James Clifford: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX, pretendo estabelecer as con- fluências entre a narrativa ficcional e a narrativa etnográfica. O texto etnográfico é essencialmente uma narrativa. Com a função de reproduzir uma dinâmica social, está inserido num contex- to articulado e é reflexo das relações estabelecidas entre o pesquisa- dor e interlocutores que integram o grupo observado. Este registro traduz experiências, materializa situações compartilhadas. Recria circunstâncias e encontros cotidianos. O processo literário, enquanto constituído como discurso nar- rativo, segundo Samuel (1985), “estrutura o espaço, o Personagem e

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A NARRATIVA FICCIONAL DE GRACILIANO RAMOS E O REGISTRO ETNOGRÁFICO: UMA ANÁLISE DO TEXTO

ETNOGRÁFICO A PARTIR DO ROMANCE ANGÚSTIA

LUCIANA PEREIRA LAUREANO RESUMO:

Este texto analisa o romance Angústia, obra de Graciliano Ramos, escritor modernista brasileiro e a etnografia de autores clás-sicos da Teoria Antropológica.

Utilizo a estrutura da narrativa literária utilizada por Ramos na tessitura do texto e na composição das personagens, suas interações sociais, a relação que estabelecem com o ambiente e verbalização de suas memórias como pretexto para estabelecer nexos com os textos etnográficos.

A partir do texto de James Clifford: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX, pretendo estabelecer as con-fluências entre a narrativa ficcional e a narrativa etnográfica.

O texto etnográfico é essencialmente uma narrativa. Com a

função de reproduzir uma dinâmica social, está inserido num contex-

to articulado e é reflexo das relações estabelecidas entre o pesquisa-

dor e interlocutores que integram o grupo observado. Este registro

traduz experiências, materializa situações compartilhadas. Recria

circunstâncias e encontros cotidianos.

O processo literário, enquanto constituído como discurso nar-

rativo, segundo Samuel (1985), “estrutura o espaço, o Personagem e

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o Acontecimento, criando uma realidade imaginária”1 e estes ele-

mentos, ao representarem uma elaboração sígnica, constituem-se

numa expressão subjetiva das ocorrências e ações que relacionam o

homem com o mundo. Nesta perspectiva, estreitam-se as relações

entre as duas disciplinas.

Utilizando fragmentos da obra de Graciliano Ramos e tendo

como referência teórica básica A experiência etnográfica: antropo-

logia e literatura no século XX, de James Clifford (1998), formulo

minha argumentação, buscando subsídio em autores de extrema rele-

vância na formação da Teoria Antropológica.

A partir da revisão bibliográfica de textos da Teoria Antropo-

logia Clássica e da análise do livro “Angústia”2, pretendo estabelecer

um ponto de intersecção entre a narrativa ficcional e o registro etno-

gráfico, destacando em que pontos tais narrativas se assemelham

estruturalmente e intencionalmente. Assim, o objetivo deste texto é

analisar de que forma a Antropologia e a Literatura tratam das pecu-

liaridades, pensamentos e desejos individuais, na relação complexa

que se estabelece entre o tempo vivido, a memória – seja esta indivi-

dual ou coletiva - e a construção do texto etnográfico.

1 Samuel refere-se a criação da realidade que se dá através de uma operação

que hipoteticamente imita a dinâmica que estrutura o mundo, o homem e as ocorrências, criando uma realidade objetiva.

2 Angústia- Texto original publicado em 1936, difere-se de outros textos de Graciliano Ramos que geralmente tratam na realidade do sertanejo, este tem um ambientação urbana, Maceió na década de 30.

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A escolha de um texto literário integrante do universo estético

modernista justifica-se pela intencionalidade de construção de um

texto que denote autenticidade. Há nos textos modernistas uma preo-

cupação com a tematização do real, o homem inserido na vida cotidi-

ana. Seguindo a mesma trajetória, a antropologia busca métodos que

consigam evocar o autor como participante, visando minimizar os

equívocos na representação dos grupos estudados, com descrições

menos abstratas e descolados de um contexto social. Baseado na

premissa de que a literatura é fruto da realidade e reproduz de certa

forma a natureza e a vida social, se estabelece uma relação de con-

fluência entre as duas disciplinas.

A obra de Graciliano Ramos está marcada pela construção de

textos em que os personagens são mais expressivos que o ambiente.

A ambiência se exprime através das características dos tipos dese-

nhados por ele. Os conflitos, as dualidades e as vivências ganham

corpo nas descrições individuais e nas relações que estes estabelecem

com o grupo.

Ramos concebe seus personagens como indivíduos que corpo-

rificam a vivência compartilhada dentro do seu grupo social. Não há

em sua obra tipos cristalizados, eles transitam entre o vivido e o idea-

lizado. São personagens paradigmáticos, o que no romance “Angús-

tia” é marcadamente representado pelo personagem central. Luís

Silva é o personagem-narrador, conta sua própria história, vivida e

observada por ele.

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Os fatos elencados por ele nesta narrativa não apresentam uma

linearidade, muito menos nexos causais; suas experiências se reve-

lam por associações de situações relevantes e que estão guardadas

em sua memória.

Os recursos ficcionais que são utilizados para representar a re-

alidade revelam a importância da linguagem como mediadora da

relação do autor/texto. O antropólogo atua de forma semelhante,

segundo Boas (2006, p. 52), “os resultados de uma interpretação

simbólica dependem primeiramente da atitude subjetiva do investi-

gador, que ordena os fenômenos de acordo com o seu conceito do-

minante”.

No texto Angústia, Graciliano Ramos quase que

alegoricamente traça um perfil do que poderia ser a descrição de um

antropólogo que se afasta de seu objeto de estudo.

No trecho em que a personagem Luís da Silva explicita sua di-

ficuldade de articulação entre suas intenções e projetos, utiliza um

recurso que Lins (1943) define como “linha condutora em zigueza-

gue”3.

O que revelaria uma aparente desordem e incoerência no texto

se extingue com a opção que Ramos faz por uma narrativa em pri-

meira pessoa, que imprime uma verossimilhança ao personagem-

3 Álvaro Lins analisa a narrativa como um ziguezague. A memória se des-

dobra em idas e vindas, uma palavra explica a outra da mesma forma que uma ação se justifica por uma impressão anterior.

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narrador e passa a demonstrar a existência e força individual de seus

personagens; recurso este que fica nítido no trecho:

Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As mi-nhas ações surgem baralhadas e esmorecidas como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. (RAMOS, 1984, p. 110)

Segundo Samuel (Op. cit.), “a narrativa literária é uma mani-

festação do discurso narrativo, contaminado, todavia por uma con-

cepção literária específica e semiologicamente constituído pela se-

miótica literária.”4 O texto literário etnográfico é essencialmente a

imagem de uma experiência vivida, rememorada, traduzida num

texto em que seus signos são semanticamente compreendidos e com-

partilhados por um determinado grupo. Estes textos são construídos

obedecendo a certos critérios e procedimentos pertencentes à sintaxe

discursiva (FIORIN, 2006, p. 17).

Há uma impressão de verdade, de realidade reproduzida, de

proximidade com o real, tanto no discurso do informante, como no

texto produzido pelo antropólogo. O que não se pode desconsiderar é

que “a sintaxe discursiva é o campo da manipulação consciente. Nes-

te, o falante lança mão de estratégias argumentativas e de outros

procedimentos da sintaxe discursiva para criar efeitos de sentido de

4 O discurso narrativo, semiologicamente constituído, neste caso realiza-se

ficcionalmente na estruturação da matéria romanesca, ou discurso, como proposição de realidade.

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verdade ou de realidade vistas a convencer seu interlocutor” (Idibi-

dem, p. 18).

Clifford (1998, p. 12) aponta que, ao longo do século XX, al-

gumas concepções sobre cultura foram desestabilizadas, principal-

mente as que eram referentes a concepção de que “a cultura” apare-

ce como uma totalidade integrada no espaço e contínua no tempo,

dotada de uma “identidade” e de fronteiras muito bem definidas,

fundada em “raízes” e portadora de “autenticidade”.

Esta alteração de noção etnográfica traz à tona uma impossibi-

lidade de utilização de termos que pressuponham neutralidade, afas-

tamento ou distância do que se quer representar.

O antropólogo faz parte de um mundo natural em que as esco-

lhas, a indecisão, a utilização de elementos semânticos com valora-

ção positiva ou negativa serão utilizados. Assim, o texto etnográfico

é um texto permeado pelas relações pragmáticas que se materializam

nesta experiência textualizada.

Amorim (2006), em seu trabalho sobre a contribuição de Mi-

khail Bakhtin, faz a seguinte colocação:

[...] A produção de conhecimento e o texto em que se dá esse co-nhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discur-sos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhe-cido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir.Assumir esse caráter conflitual e para-digmático das Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto no discurso do outro quanto de seu pró-prio discurso. (AMORIM, 2006, p. 24)

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A Antropologia, tal qual a Literatura, faz escolhas, acentua ca-

racterísticas, potencializa facetas. Ao elencar dados ou eventos que

contribuam de alguma forma na elaboração de concepções, através

da simples descrição de fatos ou da comprovação de idéias pré-

concebidas, reduz-se a possibilidade de um trabalho etnográfico me-

nos superficial e contaminado por conceitos inadequados e ultrapas-

sados.

Esta rejeição pela tradição dogmática e busca pela liberdade

intelectual e política é identificada na obra de Franz Boas. Segundo

Yans-McLauhlin (1986), ele foi um homem de crenças morais e

políticas passionais, que foi contra uma tradição evolucionista. Enfa-

tiza em seu texto que “Boas acreditava que o conhecimento antropo-

lógico, amplamente compartilhado, poderia libertar homens e suas

mentes do preconceito e da intolerância”5. Crítico reconhecido do

racismo justificado por estudos científicos produzidos na década de

1920, torna-se referência na Antropologia Americana.

Boas (1930), assinala que “a maior parte da literatura Antropo-

lógica nos dá informações sobre vida econômica, invenções, estrutu-

ra social, crenças religiosas e arte de certos grupos tribais, como se

eles fossem unidades independentes, que não exercem influência

uma sobre as outras”.

5 O texto de Virginia Yans-McLaughlin, entitulado: Science, Democracy,

and Ethics, faz parte da coletânea organizada por George Stocking, His-tory of Anthropology, no volume dedicado aos estudos e Cultura e Perso-nalidade.

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Nesta perspectiva, cabe considerar as interações sociais, a as-

sociação de idéias e a reação do indivíduo a totalidade de seu ambi-

ente social como elementos que ampliam as possibilidades de afas-

tamento de um esquema reducionista. Em busca de uma mudança de

perspectiva, Yans-McLaughlin (1986), afirma que a Antropologia

que tradicionalmente limitava-se à observação/análise da distribuição

de “elementos” culturais, a partir dos estudos de Boas amplia esta

análise e estende-se para os “padrões” e “configurações” culturais e,

finalmente, para a formação individual em diferentes culturas.

A descrição de indivíduos como seres complexos, ambíguos,

dotados de paixões e razão é uma tarefa não muito fácil de ser cum-

prida nem pela Literatura, muito menos pela Antropologia. Fazer

referência a antropólogos que conseguiram traçar minuciosamente as

particularidades de um grupo é obrigatoriamente citar Bronislaw

Malinowski.

Segundo Frazer (1984), no prefácio de Argonautas do Pacífi-

co, a maestria de Malinowski está na “preocupação de levar em conta

a complexidade da natureza humana. Ele observa o ser humano em

sua totalidade”.

Em sua pesquisa nas ilhas Trobriand onde conviveu direta-

mente com os nativos em suas práticas rotineiras da vida cotidiana,

transformou sua experiência num relato meticuloso das manifesta-

ções concretas, obtido através de observação participante da estrutura

social nativa.

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Segundo Malinowski (1984), “o etnógrafo vê os costumes, ce-

rimônias, transações, etc., muitas e muitas vezes; obtém exemplos de

suas crenças, tais como os nativos realmente as vivem. Então, a carne

e o sangue da vida nativa real preenchem o esqueleto vazio das cons-

truções abstratas”.

Há indubitavelmente uma tendência de se abstrair do grupo ou

indivíduo que se descreve apenas o que nos relevante, o que coincide

com nossas expectativas.

Para Durham (1986), depreende-se do trabalho de Malinowski

que “a investigação etnográfica está presa aos conteúdos culturais

particulares, aos costumes e às representações dos nativos”. Nesta

perspectiva, há implicitamente uma confrontação com as categorias

de representação do etnógrafo e daquele que é estudado.

Clifford (Op. cit., p. 9), citando Lévi-Strauss, aponta que “a

etnografia é entendida como observação e análise de grupos huma-

nos considerados em sua particularidade”, acrescenta ainda que “os

textos etnográficos na verdade fazem parte, de um sistema complexo

de relações”.

O autor acrescenta que Os argonautas são uma complexa nar-

rativa simultaneamente sobre a vida trobriandesa e sobre o trabalho

de campo etnográfico.

Em Os Argonautas do Pacífico, Malinowski (Op. cit., p. 31)

dá pistas sobre a eficácia do trabalho etnográfico e ratifica que a

subjetividade do observador interfere tanto na observação, na análise

e principalmente na transcrição dos dados coletados; no entanto, o

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registro sistemático dos mais variados aspectos da vida cotidiana,

mesmo os considerados mais irrelevantes, podem contribuir para que

os fatos relatados se tornem mais importantes ou explícitos que a

subjetividade do etnógrafo. Enfaticamente define como “tolo e mío-

pe (...) o cientista que, ao deparar com todo tipo de fenômenos pron-

tos a serem coletados, permite que eles se percam, mesmo se no

momento, não visse a que fins teóricos poderiam servir!”; logo, se-

gundo ele, “devemos apresentar também os detalhes e o tom do

comportamento, e não exclusivamente o simples esboço dos aconte-

cimentos”.

Um dos pontos marcantes no trabalho de Malinowski , segun-

do Stocking (Op. cit. p. 99) é a forma como “suas anotações de cam-

po são ricamente documentadas em materiais de sua própria obser-

vação, com uma extensa parte registrada na língua nativa”. A opção

de aprender a língua do grupo a ser estudado traz uma diferenciação

das pesquisas etnográficas que geralmente eram feitas a partir dos

relatos de missionários e de informantes. Há uma mudança metodo-

lógica, que vai além do tempo de permanência com o grupo pesqui-

sado e do retorno ao local estudado após o afastamento do objeto e

sistematização do que foi visto e registrado.

O pesquisador toma notas na língua nativa, descola-se um

pouco do informante, pode investigar e questionar certos comporta-

mentos diretamente com o grupo, sem depender totalmente do in-

formante que possa mediar esta relação. Narrar fatos que foram

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compartilhados, não só na observação, mas também na interação

verbal, dá uma nova dimensão à pesquisa etnográfica.

Em relação à estrutura, o texto etnográfico aproxima-se de um

texto narrativo, por ter características descritivas, que impõem ao

leitor uma proximidade com a realidade que é representada. Esta

representação se dá através da tessitura do texto, do vocabulário que

foi utilizado, do sentido que o vocábulo é compreendido e apreendi-

do pelo leitor, se uma determinada palavra ocupa um campo semân-

tico positivo ou negativo dentro de uma comunidade lingüística es-

pecífica.

A utilização de recursos expressivos através de associação de

idéias e linguagem figurada está presente na construção do texto

etnográfico, sobretudo as metáforas, sinédoques e metonímias.

O léxico de uma comunidade lingüística não se reduz a um

simples agrupamento de vocábulos que traduzem aquele grupo. As

palavras podem permanecer no cotidiano de uma comunidade lin-

güística sendo compreendido de forma completamente diferente por

diferentes estratos.

A Língua é fluida, não é estática, muito menos inalterável.

No que se refere à relação do pesquisador com o informante

ou interlocutor, Malinowski também se distancia das práticas con-

vencionais de entrevista.

Não se contenta somente com a fala do informante, compreen-

de suas limitações e verifica prováveis incoerências com outros inte-

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grantes do grupo. Identifica que o discurso de outros agentes sociais

corrobora ou desconstrói o discurso do informante.

Dialoga com pessoas de faixa etária diferente, mesmo com al-

gumas restrições, por ocupar um lugar privilegiado, que é o de pes-

quisador, reporta-se às mulheres e consegue “testar” as informações.

Graciliano Ramos (1984, p. 27) consegue ilustrar a desconfiança

frente às verdades inquestionáveis no trecho em que Luís põe em

dúvida a veracidade dos relatos de seu amigo Moisés: “(...)Moisés

está contando as perseguições aos judeus, na Europa... digo comigo

que provavelmente a narração é exagerada. Se Moisés não fosse tão

inteligente, com certeza muitos daqueles fatos não existiriam...”

A consciência de que o discurso é contaminado por vaidades,

desejos pessoais, aproximação com o pesquisador e, por esta razão, é

legítimo verificá-lo na tentativa de minimizar as incoerências faz do

trabalho de Malinowski um referencial dentro da Antropologia Bri-

tânica, indo além do convencional desloca não só o objeto de estudo,

mas também a metodologia para estudá-lo e compreendê-lo. Não

desconsidera as motivações pessoais muito menos a capacidade de

articulação para construir uma argumentação que pareça verossímil.

Ao contrário, faz das incoerências um ponto importante na retomada

de questões que precisam ser elucidadas.

As relações que se estabelecem entre as pessoas ou grupos po-

dem ser compreendidos de formas completamente distintas. Mead

(2006) enfatiza que há aspectos que poderão ser minimizados, supe-

racentuados ou simplesmente ignorados. Utiliza a metáfora dos no-

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velos para descrever os caminhos e alternativas que cada grupo cons-

trói para si. Segundo ela, “o homem construiu para si mesmo uma

trama de cultura em cujo interior cada vida humana foi dignificada

pala forma e pelo significado... cada povo constrói essa tessitura de

maneira diferente, escolhe novelos e ignora outros”. Os novelos es-

colhidos, as facetas, os prismas ganham destaque em função da for-

ma como é traduzida.

Em Angústia, o personagem Luís traduz as escolhas que faze-

mos. As características que enfatizamos e os aspectos que despreza-

mos. Ao descrever a construção da personagem Marina, objeto de

adoração, atribui a ela uma imagem multifacetada, como um calei-

doscópio que cria uma imagem que capta sua atenção e o prende. A

figura de Marina era construída de fragmentos de realidade e de ima-

ginação; da mesma forma que nossa apreensão do mundo, fragmen-

tada e conflitante. O personagem revela-se consciente de sua impo-

tência frente à força que Marina exerce sobre ele, mas não demonstra

querer modificar sua relação de dependência. Conhece as ambigüi-

dades dela, mas opta por manter sua ligação com ela. Ramos no tre-

cho nos revela a inquietação de Luís,

Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir. Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela...me parecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às ve-zes os pedaços não se combinavam bem, davam a impressão de que estava desconjuntada.Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e de qualidades... foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com aquelas a máquina que ia me encon-trara à noite.Logo que se juntaram para formar o resto uma cria-

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tura completa, achei-os naturais, e não poderia imaginar Marina sem eles. (p. 69)

A construção idealizada de Marina é fruto da intencionalida-

de de Luís, ele a reconstrói em momentos diferentes, a coloca em

situações diferentes até que suas hipóteses se comprovem, não aceita

traços que contribuam para o demérito de sua escolha.

Clifford (Op. cit., p. 42), chama a atenção que processo simi-

lar ocorre com o pesquisador, “transforma as ambigüidades e as di-

versidades de significado da situação de pesquisa num retrato inte-

grado”.

No entanto, cabe ressaltar que ao elencar dados e fatos rele-

vantes ou mais significativos, deixa tantos outros de lado, opta, sele-

ciona, elege aspectos e versões. Bakhtin (2003), propõe uma inversão

de papéis ao definir a necessidade de transformar o objeto da pesqui-

sa em sujeito,

Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar; completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu de-sejo e de meu sentimento. (BAKHTIN, 2003, p. 45)6

6 A obra Estética da Comunicação Verbal é um conjunto de escritos de

diferentes épocas, de 1919 a 1974 e por isso é uma análise ampla da teori-a/análise do discurso.

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O objeto da narração é o fato, qualquer acontecimento que o

homem participe direta ou indiretamente.

Para Garcia (2004, p. 254), seja o relato de um evento real ou

fictício, a interferência de alguns elementos é inerente a este gênero -

personagem, fato e circunstância. Tanto a narrativa ficcional como a

narrativa etnográfica imprimem uma marca de veracidade, pois a

presença do narrador como personagem já denota uma participação

ativa no evento.

A vida ordinária dos personagens que é descrita em detalhes, o

corriqueiro, habitual, o que parece sem importância nos revela quem

são as personagens, sua interação com os outros, com espaço e com o

tempo. A linguagem que revela o que há de rústico e rebuscado, sim-

ples e complexo, singular e plural no indivíduo se desvela para o

leitor. As falas, as omissões, as ironias, as oposições e dicotomias

que se refletem no que Malinowski denomina de aspectos imponde-

ráveis da vida real e do comportamento típico, são inerentes a estas

narrativas.

A utilização da Literatura como fonte de pesquisa para instru-

mentalizar o antropólogo é uma prática citada por Benedict na intro-

dução de “O crisântemo e a espada”. Em função da guerra, o trabalho

de campo tornou-se inviável, a observação e análise da rotina dos

japoneses não seria possível. Recorrer a estudos produzidos por ja-

poneses e sobre a cultura constituiu-se naquela circunstância como

um instrumento valioso de pesquisa, através dos registros. O antro-

pólogo que opta pela utilização de textos produzidos por indivíduos

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de um determinado grupo social pode deparar-se com situações que,

aos olhos do pesquisador, não correspondem à realidade. O pesqui-

sador deve estar atento à representação que fazemos de nós mesmos.

Isso não significa que os textos são produzidos tentando dissimular a

realidade, escondê-la sob um manto ou esquivá-la atrás de um biom-

bo. Cada grupo percebe seus integrantes, ritos, mitos, crenças, dis-

cursos de uma forma particular, que é apreendida a partir de concep-

ções intrinsecamente ligadas ao grupo e que se adéquam a uma

lógica de pertencimento. A visão pragmática que temos pode, even-

tualmente, entrar em conflito com a imagem idealizada.

Benedict faz uma reflexão primorosa de como os escritores, ao

representarem suas nações, tentam de alguma forma se definir en-

quanto povo, expressar seus hábitos e esboçar uma descrição de si

próprios, porém, segundo ela, não é tarefa fácil, pois: “as lentes atra-

vés das quais uma nação olha a vida não são as mesmas que uma

outra usa. É difícil ser consciente com os olhos através dos quais

olhamos. Qualquer país os toma como certos e os truques de focali-

zação e perspectiva, que conferem a cada povo sua visão nacional da

vida”. Há um contexto a ser considerado em estas obras, quer literá-

rias, quer etnográficas, são produzidas; de onde emerge este discurso.

Há um núcleo constituinte que é extremamente relevante, tanto na

produção do discurso como na produção textual, Maingueneau

(1998, p. 33) pontua que “os participantes do discurso, seu quadro

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espaço-temporal e seu objetivo”7 compõem uma trama indissociá-

vel.

Um estudo interessante e que dá a dimensão da ambigüidade

que reside na unidade individual, está bem ilustrado no trabalho de

Benedict (2007).

Ao descrever o povo Japonês e utilizar termos dicotômicos,

como O crisântemo e a espada para defini-los, a autora utiliza oposi-

ções para constituir a unidade de um povo, “os japoneses são, no

mais alto grau, agressivos e amáveis, militaristas e estetas, insolen-

tes e corteses, rígidos e maleáveis, submissos e rancorosos, leais e

traiçoeiros, valentes e tímidos, conservadores e abertos aos novos

costumes. Preocupam-se muito com o que os outros possam pensar

de sua conduta, sendo também acometidos de sentimento de culpa

quando os demais nada sabem do seu deslize. Seus soldados são

disciplinados ao extremo, porém são igualmente insubordinados.”

Em relação ao tempo descrito na Literatura, afirma-se que é

uma categoria muito importante no desenvolvimento dos romances.

No gênero narrativo, geralmente utiliza-se a ordem de sucessão de

fatos, objetivando não comprometer a clareza e a coerência do texto.

O tempo cronológico, embora abstrato em sua essência, é palpável na

7 Dominique Mingueneau afirma que no que diz respeito aos participantes,

faz-se distinção entre os indivíduos social ou biologicamente descritíveis, independente do discurso, e os papéis que eles desempenham no discurso. Para o quadro espaço-temporal distingue-se entre o quadro empírico e o quadro institucional associado ao gênero do discurso. O objetivo que os participantes do discurso estabelecem, depende evidentemente, do gênero de discurso.

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descrição dos eventos pelas personagens. Tempo que marca através

dos verbos uma seqüência encadeada de fatos, segundos, horas, dias,

meses que se traduzem em sensações traduzidas nas ações ou lem-

branças, geralmente no relato de um tempo linear. Porém, “Angús-

tia” guarda, segundo Lins, um caráter de vertigem, de oscilação e de

ambivalência; é, para ele, um tempo relativo, tal qual o tempo conce-

bido pelo povo Nuer.

Revelado por Evans-Pritchard (1999) e metaforicamente tra-

duzido por “sóis” e “sonos”, o tempo de os Nuer, se assemelha com

o tempo de “Angústia”, à medida que se mostra como um tempo

relativo.

No fragmento “Mas no tempo não havia horas”8, Graciliano

Ramos traz para o texto uma ruptura com o tempo que aglutina e

imprime uma ordem cronológica à narrativa. Ao escolher o relógio,

que é um símbolo na medição do tempo e defini-lo como um objeto

que não cumpre com sua principal função, medir as horas, descons-

trói e principalmente, subverte o tempo convencional.

A temporalidade traduzida por segmentações, frações, contida

em unidades de tempo que não está presente no romance de Gracili-

ano, também não é concebida pelo povo Nuer. Semanticamente,

8 Álvaro Lins ao analisar Angústia propõe que a ausência do tempo vai

determinar a ausência de “ação” direta no romance. Para ele a ação de An-

gústia é uma ação reflexiva, é uma história, uma narração do passado, uma vida de memória. Enfatiza que de certa forma todos os romances são epi-sódios passados e por isso podem ser contados; mas o romancista lhes dá uma ilusão de vida presente, através do jogo malabarístico com o tempo. (LINS, Álvaro. Valores e misérias das vidas secas, 1947).

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segundo Pritchard (1999), não há um equivalente para tempo na lín-

gua Nuer.

O cálculo intercorrente aos acontecimentos não são bem defi-

nidos ou sistematizados, não há horas, da mesma forma que não se

pode mensurar se a “Angústia” de Luís da Silva, durou dias ou me-

ses, porque no relógio não há horas, logo, o tempo é indeterminado,

não é imprescindível para o desenvolvimento da narrativa.

A este tempo relativo, que é decorrente das relações ou acon-

tecimentos significativos, atividades coordenadas ou cooperativas

dentro do grupo social, Pritchard (Ibidem) denominou “tempo

estrutural”. Ao tempo, que por ser reflexo da relação estabelecida

com o meio ambiente e por ser apreendido pelo grupo como

absoluto, denominou “tempo ecológico”.

Registra em sua etnografia que “não há unidades de tempo

dentro do mês, dia e noite. As pessoas indicam a ocorrência de um

acontecimento há mais de um dia ou dois fazendo referência a algum

outro acontecimento que tenha ocorrido”. O espaço e o tempo são

determinados pelo ambiente físico, visto que há uma relação direta

com as relações ecológicas.

Pritchard (Ibidem) enfatiza que a relação estabelecida entre os

Nuer e o seu rebanho pode ser qualificada como simbiótica. Todas as

ações realizadas objetivam o bem estar do gado. As mudanças climá-

ticas e a característica hostil do terreno, em determinadas épocas do

ano, os obriga a um movimento migratório para proteger o rebanho,

em função da seca ou de alagamentos. Outro fator que pode eventu-

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almente contribuir para a mobilidade Nuer é a abundância de insetos,

que podem colocar em risco todo o gado. Toda a estrutura social

Nuer está diretamente ligada às mudanças climáticas. Este ambiente

físico e a relação com o gado são os medidores do tempo Nuer.

Para Durkheim (Op. cit.), “existe, na raiz de nossos juízos um

certo número de noções essenciais que dominam toda nossa vida

intelectual; são o que os filósofos, depois de Aristóteles, chamam de

categorias do entendimento: noções de tempo, de espaço, de gênero,

de número...”. Estas categorias são representações coletivas, em rela-

ção à concepção Nuer de tempo, a etnografia de Pritchard indica que

a percepção temporal não é referenciada pelos movimentos da natu-

reza, a noite e o dia, ou o sol e a lua, não são os parâmetros para o

cálculo do tempo.

Esta noção de tempo, similar a que Durkheim (Ibidem) des-

creve em “As formas elementares da vida religiosa”, definidas por

abstrações, por divisões e medições e expressos por meio de signos

objetivos, representados por anos, meses, semanas, dias, horas..., que

nos auxiliam na distinção entre o que é presente e o que é passado.

Este tempo que é uma experiência individual, mas que se insere num

contexto maior, se torna ponto de referência entre um passado vivido

e um futuro indefinido.

Uma narrativa literária pressupõe uma descrição de caracterís-

ticas dos objetos ou dos personagens e esta descrição é feita de forma

gradativa. É o que Garcia (Op, cit., p. 247) define como ponto de

vista físico ou ordem dos detalhes, que para ele é “perspectiva que o

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observador tem do objeto, a qual pode determinar a ordem na enu-

meração dos pormenores significativos”.

Os detalhes, os pormenores, as particularidades vão sendo a-

presentadas e formam uma combinação de imagens independentes

que se articulam para formar uma imagem única, uma impressão

totalizante dos fragmentos que vai sendo colocada ao leitor progres-

sivamente.

O romancista persegue a construção de uma obra que seja re-

cebida pelo leitor como uma imagem viva. De forma semelhante, o

antropólogo não descreve um quadro fixo, um objeto imóvel, sem

vida, descreve pessoas que interagem entre si e com o ambiente. Esta

descrição depreende recursos de expressão que possam minimamente

contemplar a multiplicidade dos grupos observados.

Logo, a descrição etnográfica, tal qual a descrição realista ou

objetiva é determinante. Nela, as minúcias e os pequenos detalhes

são primordiais na construção do texto. A descrição exata e dimensi-

onal da vida ordinária, rotineira, casual, descomprometida com os

rigores da formalidade ocupa um lugar de destaque na descrição

etnográfica.

Obviamente a impressão da coisa vista e compartilhada está

presente no texto, porém, em função da subjetividade do observador,

os aspectos que nos saltam aos olhos, que nos captam a atenção e os

que nos prendem os sentidos eventualmente terão mais destaque.

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