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A NATUREZA DO SERVIÇO SOCIAL Um ensaio sobre sua gênese, a “especificidade” e sua reprodução

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A NATUREZA DOSERVIÇO SOCIALUm ensaio sobre sua gênese,

a “especificidade” e sua reprodução

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Conselho Editorial daárea de Serviço Social

Ademir Alves da Silva

Dilséa Adeodata Bonetti

Elaine Rossetti Behring

Maria Lúcia Carvalho da Silva

Maria Lúcia Silva Barroco

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Carlos Montaño

A NATUREZA DOSERVIÇO SOCIAL

Um ensaio sobre sua gênese,a “especificidade” e sua reprodução

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Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autore do editor.

© 2007 by Autor

Direitos para esta ediçãoCORTEZ EDITORARua Monte Alegre, 1074 — Perdizes05014-001 — São Paulo-SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-mail: [email protected]

Impresso no Brasil — outubro de 2007

A NATUREZA DO SERVIÇO SOCIAL: Um ensaio sobre a gênese, a “especificidade”e sua reproduçãoCarlos Montaño

Capa: Estúdio GraalPreparação de originais: Ana Maria BarbosaRevisão: Maria de Lourdes de AlmeidaComposição: Dany Editora Ltda.Assessoria editorial: Elisabete BorgianniAssistente bilíngüe: Priscila F. AugustoCoordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

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Dedico a Luana

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Sumário

Prefácio (Maria Carmelita Yazbek) ........................................................... 9

Apresentação ............................................................................................ 13

CAPÍTULO I — A natureza do Serviço Social na sua gênese ................... 17

1. A gênese do Serviço Social. Duas teses sobre naturezaprofissional ...................................................................................... 19

2. A legitimidade tensionada dos assistentes sociais..................... 54

3. As políticas sociais e o Serviço Social. Instrumento dereversão ou manutenção das desigualdades?(Alejandra Pastorini) ..................................................................... 69

CAPÍTULO II — A reprodução da natureza e legitimidade doServiço Social .............................................................................................. 93

1. O caráter de subalternidade do Serviço Social ............................ 97

2. Em busca da “especificidade” prometida. O endogenismo doServiço Social .................................................................................. 118

3. O “praticismo” profissional. Uma crítica à análise darelação teoria/prática no Serviço Social .................................... 161

4. O assistente social, os “campos tradicionais” e as novasdemandas sociais ........................................................................... 194

Conclusões gerais .................................................................................... 201

Bibliografia ................................................................................................ 217

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Prefácio

Este livro, mais uma contribuição da fecunda trajetória intelectualde Carlos Montaño, no âmbito do Serviço Social brasileiro, tem comoobjeto uma aguda análise dos fundamentos da profissão, a partir desuas origens no continente latino-americano. Sem dúvida, enfrentar aquestão da natureza e da gênese do Serviço Social, problematizando sua“especificidade” e seu processo de reprodução no contexto da expansãocapitalista na América Latina é um desafio que o autor enfrenta comcompetência, desvendando para o leitor as principais tendências expli-cativas acerca desses processos históricos nas últimas três décadas.

Como sabemos, as tendências de análise, as explicações e interpre-tações que o Serviço Social vai construindo acerca de suas origens e de-senvolvimento social, não se configuram como homogêneas e são per-meadas por diversas clivagens, tensões e confrontos. Isso porque a com-preensão teórico metodológica da realidade, fundada no acervo intelec-tual que se constituiu a partir das principais matrizes do pensamentosocial e de suas expressões nos diferentes campos do conhecimento hu-mano não é um processo “neutro”. Ao contrário, é processo que vem seconstruindo na interlocução com o próprio movimento da sociedade,sendo desse modo construído à luz das explicações mais abrangentes etotalizantes acerca da vida social e de seu sentido histórico. Assim sen-do, desvendar questões relativas à emergência e desenvolvimento doServiço Social como profissão, implica em buscar compreender diferen-tes posicionamentos, lógicas e estratégias que permearam o pensamen-to e a ação profissional do Serviço Social, nessa trajetória histórica.

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10 CARLOS MONTAÑO

A análise do autor sobre a gênese e o processo de reprodução doServiço Social nos últimos trinta anos desenvolve-se em dois capítulos:o primeiro apresenta as duas teses claramente opostas que buscam ex-plicar a natureza e a gênese do Serviço Social do ponto de vista de seusdeterminantes históricos, sua lógica e seus protagonistas, a partir dainterlocução direta com autores responsáveis por essas teses. Estas tesespartem de posicionamentos valorativos e teórico metodológicos anta-gônicos: de um lado encontramos abordagens tradicionais e conserva-doras de distintos matizes que desenvolvem uma análise evolucionistae endogenista acerca da origem da profissão sustentando que o ServiçoSocial expressa a evolução e a profissionalização de formas “anteriores”da ajuda, da caridade e da filantropia. De outro lado, o autor explora atese desenvolvida a partir de uma apreensão totalizante do Serviço So-cial profissional, apoiada na matriz histórico crítica, que busca explicar aemergência da profissão nos marcos da sociedade capitalista, institucio-nalizada e legitimada para intervir nas contradições que permeiam asrelações entre capital e trabalho.

Na primeira posição o autor apresenta e problematiza o trabalhode alguns de seus autores mais significativos no Continente, tais como:Ezequiel Ander-Egg, Herman Kruse, Natálio Kisnerman, Boris AléxisLima, Ana Augusta de Almeida, Balbina Otoni Vieira e José LucenaDantas, entre outros.

Nas teses que situam a emergência da profissão nos marcos dodesenvolvimento capitalista, legitimada pelo papel que desempenha naordem burguesa, Montaño dialoga com os trabalhos de MarildaIamamoto, José Paulo Netto, Vicente Faleiros e Maria Lúcia Martinelli,entre outros.

Carlos Montaño buscou, portanto, a interlocução direta com os au-tores das duas teses, mostrando sua emergência, “internamente hetero-gênea” e os fundamentos legitimadores da profissão do ponto de vistateórico e interventivo nos dois posicionamentos, com particular ênfaseno âmbito das políticas sociais.

O segundo capítulo avança no tempo e nos situa no atual contexto,passando pela Reconceituação com suas tendências e distanciamentodas questões que marcaram as origens do Serviço Social no Continente.

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Neste capítulo o autor nos mostra as tensões que permeiam a dinâmicada auto reprodução profissional que repõe e recria o conservadorismode suas origens, marcadamente a perspectiva positivista, bem como omovimento de busca do rompimento com essa lógica no período emestudo. Elege como aspectos relevantes e indicativos desse processo deauto reprodução quatro pontos: o caráter subordinado da profissão nadivisão sócio-técnica do trabalho; a busca de uma especificidade profis-sional que responderia por sua legitimidade; a posição, derivada da teseanterior, de que a prática imediata é fonte da teoria profissional (prati-cismo) e a dificuldade da profissão em desvendar temáticas emergentese novas demandas na atualidade “conservando, pelo contrário, pratica-mente inalterado o campo da intervenção”. Sem dúvida, quatro tesesque permanecem atuais no Serviço Social brasileiro neste início de milê-nio e às quais poderíamos acrescentar o neoconservadorismo presentenos atuais modelos analíticos, incorporados das ciências sociais, que seexpressam no denominado pensamento pós-moderno, que questiona enivela os paradigmas marxista e positivista. A abordagem pós-modernadirige sua crítica à razão, recusa a abrangência das teorias sociais e res-taura o pensamento conservador e antimoderno trazendo à profissãonovas clivagens “teóricas” orientadoras de sua intervenção.

Em síntese, estamos diante de um livro de um jovem intelectual doServiço Social brasileiro e latino-americano: um texto instigante, que en-frenta desafios, polêmicas e nos leva a levantar novas questões, ao mes-mo tempo em que nos coloca diante de marcas históricas persistentes nahistória da profissão.

Leitura imprescindível para todos os que buscam superar as per-plexidades do presente.

Maria Carmelita Yazbek

Agosto 2007

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Apresentação

O livro que aqui apresentamos foi inicialmente publicado emcastelhano, na Biblioteca Latinoamericana de Servicio Social (Cortez,1998). A versão em português contou com uma importante revisão com-pleta do texto, feita em estreita relação de intercâmbio com a semprecrítica e aguda visão de Marilda Iamamoto. A ela, o agradecimento e oreconhecimento imensuráveis, pelas suas problematizações e sugestões,que em muito enriqueceram estas reflexões.

Neste sentido, a presente versão do livro contém certas alteraçõesdo texto original editado em castelhano — algumas notas novas, outrosparágrafos acrescidos e, em alguns pontos, alterações de nomenclaturaou até abordagens diferentemente desenvolvidas, especialmente nos itensI-2.2 e II-2.3. O texto tem clara orientação ensaística, com finalidadessintética e didática. Aqui radica a potencialidade e limite do trabalho.

O livro tem por objetivo, por um lado, apresentar sucintamente adiscussão feita, ao longo das últimas três décadas, sobre a gênese doServiço Social e, por outro, os rebatimentos da lógica positivista herda-da da sua emersão, reposta no desenvolvimento atual da profissão.

Assim, articulamos nossa análise em dois capítulos. No primeirodistinguimos duas teses contrapostas — sobre as causas, a lógica, osatores e o momento histórico — que tentam explicar a gênese do ServiçoSocial. A distinção destas duas formas de considerar sua emergência,internamente heterogênea para cada uma das teses, tem conexões dire-tas nas formas de compreender a legitimação desta profissão e nas for-mas de se caracterizarem as políticas sociais (aspecto este que fora de-

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senvolvido e cedido gentilmente por Alejandra Pastorini para comporeste trabalho).

Nossa abordagem sobre estas questões procura a interlocução dire-ta com os autores de uma e outra tese. Tentamos reproduzir, portanto,as passagens substantivas das principais considerações feitas numa enoutra forma de considerar estas temáticas. Acreditamos que a síntesedesses debates por um lado, tem a sua significação na medida em queprocura, primeiramente, resgatar o essencial sobre tais questões e, poroutro lado, interpela uma tese com a outra, enfrenta uma concepçãocom a outra, coisa não desenvolvida explicitada de forma substantivanesses trabalhos, na medida em que foram conduzidos em tempos dis-tantes (a primeira tese fundamentalmente vinculada tanto às concep-ções tradicionais quanto, no extremo oposto, ao debate da reconceitua-ção, enquanto a segunda surge a partir da década de 1980, particular-mente vinculada ao debate que retoma os fundamentos marxianos daontologia do ser social) e diferentes contextos (a primeira sendo a ver-são dominante nos países hispano-americanos, enquanto a segundahegemoniza o debate brasileiro).

No segundo capítulo voamos no tempo e nos situamos na análisenão já da emersão da profissão, mas do Serviço Social no atual contextoe com um estágio de desenvolvimento de mais de 60 anos que, via re-conceituação, debates, interlocução com outras disciplinas sociais, novacrise e reestruturação do capital, nos permitem observar um distancia-mento relativamente crítico em relação à sua gênese.

No entanto, sustentamos a hipótese de que há uma série de aspec-tos verdadeiramente (auto)reprodutores da lógica (conservadora e nosmoldes positivistas) e da razão de ser (tensamente funcional) que cria oServiço Social como profissão (dentro da divisão sociotécnica do traba-lho), que colocam aqueles movimentos críticos como “intenções” ou “bus-cas” de ruptura com a herança conservadora que, no entanto, não seefetivam numa nova lógica e legitimação para a profissão. Eles contêmelementos de ruptura e continuidade com conservadorismo tradicional.

Abordaremos, neste ponto, quatro elementos “(auto)reprodutores”que consideramos substantivos. Eles se referem a algumas das teses

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vinculadas à gênese do Serviço Social, à sua legitimidade como profis-são e à conceitualização das políticas sociais.

Não posso deixar de mencionar o reconhecimento àqueles que jáno início da minha vida acadêmica, no Uruguai, me inspiraram comsuas preocupações sobre a profissão na Universidad de la República,Enrique Iglesias e Javier Marsiglia. Vinculado aos estudos de pós-gradua-ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, tive a com-panhia dos meus amigos e eternos mestres, José Paulo Netto, MarildaIamamoto e Carlos Nelson Coutinho, de quem não termino de receber in-sumos para pensar a sociedade, na perspectiva crítico-dialética, e, nosdois primeiros casos, o Serviço Social dela constituído; vai a eles meuagradecimento pela amizade e contribuição.

Grato pelo apoio, sempre afetuoso, de María Cecilia Vega, a quemdevo o prefácio da edição castelhana, e de Zoila Silva, colega e amigasalvadorenha, sempre acreditando e contribuindo criticamente, além deuma das principais divulgadoras do texto em sua versão original. Damesma forma, aos meus irmãos Luis e Paula. A Alejandra Pastorini, tra-dutora para castelhano e co-partícipe do livro, estendo minha gratidão.

Desejo particularmente agradecer a José Cortez e Elisabete Borgianni,a quem devo impulso, afetivo e profissional, para a realização deste tra-balho, e rico debate.

Finalmente, gostaria expressar minha profunda e afetuosa grati-dão que me acompanhou e estimulou em grande parte deste trabalho;vai a Yolanda Guerra meu reconhecimento pelas suas contribuições, su-gestões e insistente apoio, me motivando a desenvolver e concluir opresente livro.

Carlos E. Montaño

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CAPÍTULO I

A Natureza do Serviço Social na sua Gênese

Os assistentes sociais, em diversas oportunidades, se “debatem”em torno de duas concepções, duas teses sobre a natureza e o processo dagênese do Serviço Social.

Tais concepções, que podemos com relativa generalização agruparem duas perspectivas, se comportam como verdadeiras teses. Elas con-têm um arsenal heurístico e teórico-metodológico que extrapola a meraconsideração sobre a gênese do Serviço Social. Efetivamente, a localiza-ção dos teóricos que pensam esta temática vincula-se, lógica e teorica-mente, a suas concepções sobre outros tópicos: qual é o fundamento dalegitimação desta profissão e como são interpretadas as funções das políticassociais dentro de determinada ordem socioeconômica e política.

Assim, o tripé “políticas sociais/gênese do Serviço Social/legiti-mação” apresenta uma relação lógico-histórica que nos permite situarcada tópico em uma ou outra posição, em certa harmonia com as respec-tivas concepções sobre as demais temáticas.

O que aqui estamos considerando são duas teses sobre três fenô-menos referidos ao período da criação, do surgimento desta profissão.Que eles tenham repercussões na prática e no debate do Serviço Socialcontemporâneo é uma realidade, mas também é verdade que a evolu-ção da profissão, da sua prática, da sua produção teórica, do seu instru-mental técnico-operativo, da sua postura e participação nas instituições

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públicas, e o surgimento de novas organizações empregadoras de assis-tentes sociais, tudo isto permite distinguir e distanciar a profissão naatualidade, demarcada da sua gênese.

Neste capítulo nos concentraremos, portanto, nas análises e con-cepções com que os profissionais têm se “debatido” sobre o momentoque marca o surgimento da profissão, sobre o fundamento que explica aemersão do Serviço Social. Os elementos de distanciamento ou conti-nuidade, de ruptura ou reprodução do Serviço Social contemporâneocom respeito à tradição da sua gênese serão tratados no capítulo II.

No entanto, falar nesse “debate” ente as duas teses não expressaum processo contundente de discussão aberta em relação às considera-ções feitas sobre estas temáticas. Poucos espaços relevantes têm sidoocupados por tal confronto, os quais devem ser creditados a Iamamotoe Manrique Castro (1979), Maguiña (1979) e Manrique Castro (1993). Asanálises que os diferentes autores de cada uma destas perspectivas rea-lizaram sobre a gênese do Serviço Social e suas derivações foram desen-volvidas, em geral, em contextos espaço-temporais diferentes. Efetiva-mente, se a primeira maneira de pensar a emersão da profissão se vin-cula ao período que vai até a reconceituação (inclusive) e, neste caso,fundamentalmente ligada ao debate hispano-americano, a segunda sur-ge no debate contemporâneo (segundo lustro dos 1980), particularmen-te no Brasil.

Neste sentido é que afirmamos que não houve um debate que te-nha sido apropriado pelo conjunto da categoria. A referência explícitaque os autores da segunda tese fazem da primeira é mínima ou nenhu-ma, o que confirma a quase ausência de debate crítico, explícito e abertosobre ambas as maneiras de pensar esta questão. Assim, as enormescontribuições, avanços e mudanças de perspectiva — com todos os des-dobramentos que eles contêm —, que tem se desenvolvido nas análisesdos autores vinculados à segunda tese, não parecem substituir os equí-vocos da primeira, gerando-se uma convivência pacífica entre elas. Con-vivência pacífica que, por se tratar de duas perspectivas antagônicas,pode redundar em erros de interpretação do real alcance das últimascontribuições, já que ao leitor e estudioso das obras dos autores da pri-meira perspectiva, que depois lera a bibliografia vinculada à segunda,

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pode não lhe aparecer com clareza o antagonismo entre as duas, con-cluindo numa visão eclética sobre a gênese e natureza do Serviço Social.

Nosso propósito, neste capítulo, centra-se na colocação das análi-ses dos autores mais significativos, primeiro agrupados em duas tesescontrárias e, segundo, como excludentes, enfrentadas num mesmo espa-ço e tempo e debatendo uma com a outra.

Assim, os objetivos delineados para o presente capítulo são os deestabelecer uma síntese crítica e organizada das distintas contribuiçõesque diversos autores aportaram ao debate destes tópicos. Portanto, éum estudo sintético sobre tais temáticas que tem a pretensão de trazer àreflexão certos elementos, estabelecendo padrões comuns numa síntesebipolarizada. A consideração em profundidade, necessária para a apro-priação real destes debates implica necessariamente a remissão às fon-tes, alcançando os elementos diferenciadores, originais e particularesdas considerações dos distintos teóricos. Evidentemente a análise minu-ciosa dos autores aqui tratados excede nossos objetivos.

1. A Gênese do Serviço Social: Duas teses sobre naturezaprofissional

O Serviço Social é uma profissão que, por sua ambigüidade nasexpectativas e conceituações, por suas mudanças de rumos, às vezessignificativos, tem dedicado um importante espaço intelectual à tenta-tiva de responder sobre as causas de sua origem como profissão esua legitimação, bem como das funções que cumpre na sociedade eno Estado.

Existem duas teses, claramente opostas, sobre a gênese do Serviço So-cial. Estas se enfrentam como interpretações extremas sobre o tema, sen-do que, tal como foram formuladas, se constituem em teses alternativase mutuamente excludentes.

1.1. A perspectiva endogenista: a primeira das teses sustenta a origem doServiço Social na evolução, organização e profissionalização das formas “ante-

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riores” de ajuda, da caridade e da filantropia, vinculada agora à intervenção na“questão social”.

Assim, as bases da profissão datam das primeiras formas de ajuda,encontrando-se geralmente nas obras de Tomas de Aquino e Vicente dePaula, alguns dos primeiros precursores da Assistência Social. Esta teseé sustentada pela maioria dos teóricos que consideraram o tema da his-tória, gênese ou natureza do Serviço Social, o que expressa uma amplagama de correntes e perspectivas que confluem para a consideração dagênese profissional, na mesma tese. No entanto, não podemos deixar dedestacar duas significativas distinções internas nos autores que aqui secondensam; primeiramente, aqui co-participam autores provenientes deum Serviço Social tradicional junto com membros do movimento quemarcou a “intenção de ruptura” com aquele, a reconceituação; em segun-do lugar, há autores nesta tese que entendem os “antecedentes” do Ser-viço Social como sendo qualquer forma anterior de ajuda, retroagindo suaanálise à Idade Média ou até à origem da história, enquanto outro con-junto de autores pensa os antecedentes apenas ligados às formas de aju-da, organizadas e vinculadas à “questão social”1 (pós-Revolução Industrial).

Aparecem como autores desta tese: Herman Kruse, Ezequiel Ander-Egg, Natálio Kisnerman, Boris Alexis Lima, Ana Augusta de Almeida,Balbina Ottoni Vieira, José Lucena Dantas, entre outros. É uma tese quetem, portanto, plena repercussão na atualidade, aparecendo como a única,a oficial ou a natural interpretação sobre a gênese do Serviço Social namaioria das instituições de ensino e dos profissionais.

• Nesta corrente, vinculada às primeiras etapas reconceituadoras,Herman Kruse (1972) recupera uma distinção de Greenwood,para definir as tendências do Serviço Social latino-americano:

Partindo de uma diferenciação entre a investigação pura e a investigaçãoaplicada, Greenwood classificou dois tipos de ciências sociais: as ciên-cias teóricas ou puras e as ciências aplicadas [...]. Para ele, o serviço so-cial era uma tecnologia, pois sua ação procurava a mudança. (Idem: 63)

1. Sobre a “questão social”, ver nota 15.

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Desta forma, Kruse identifica um paradigma do Serviço Social naperspectiva que o coloca como aplicação de teorias, e outro naquela quesitua sua prática como fonte de teorias (cf. Faleiros, 1993: 124). O primeirorepresenta a tradição do Serviço Social, cujos antecedentes datam deVicente de Paula; o segundo é caracterizado pela reconceituação.

• Num sentido semelhante, Natálio Kisnerman (1980) pretendecompreender a história do Serviço Social, avaliando “seu pró-prio destino” (idem: 11).2 Desta forma remonta a origem da pro-fissão ao positivismo de Comte, quer dizer, ao século XIX. Agênese do Serviço Social aparece identificada aqui “claramentecomo uma forma de ajuda sistemática de orientação protestan-te, por um lado, ou como forma prática da sociologia, por outrolado” (idem: 19), mas, ao contrário de Kruse, negando comoantecedentes da profissão todas as formas de ajuda não-siste-máticas. Assim, Kisnerman, esquematizando uma suposta pers-pectiva dialética, resume dizendo:

o processo do Serviço Social é dialético. A superação de cada etapa criauma nova, que a contém e a nega. A etapa Assistência Social constitui atese. Durou a partir de 1869 (fundação da C.O.S. de Londres) até 1917(aparecimento do Social Diagnoses, de Mary E. Richmond). Durantemuitos anos, não se pode confrontar com outra forma de auxílio, e aofazê-lo surge o Serviço Social como antítese, negando a Assistência Socialcomo momento, mas fica alienado ao não fundar uma nova teoria. A par-tir de 1965 os movimentos de Reconceituação negam o Serviço Social —que agora é qualificado de tradicional — e procuram superá-lo numasíntese... (Idem: 23)

Neste processo de sucessivas etapas, onde a origem do Serviço So-cial remonta ao século passado, Kisnerman não consegue diferenciaruma prática assistencial-benéfica de outra vinculada a uma estrutura

2. Vemos aqui uma concepção focalista da história: a evolução do Serviço Social é contida noseu “próprio destino”. Talvez esta naturalização (ou até predeterminação) da história explique ocaminho teórico seguido pelos autores desta tese.

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político-econômica, dentro de determinada divisão sociotécnica do tra-balho.

• Um caminho semelhante seguiram Ezequiel Ander-Egg (1975) eJuan Barreix (s.d.), ao estabelecerem distinções entre a assistênciasocial como uma ação benéfico-assistencial, o Serviço Social, comouma profissão paramédica e/ou parajurídica, asséptica, tecno-crática e desenvolvimentista, e o trabalho social como a interven-ção conscientizadora revolucionária.3

Para Barreix (idem: 17-19),

do confronto da tese “fazer o bem em nome do próprio bem” com a antí-tese “fazer bem o bem” surge a síntese, que denominamos pioneira. Afir-mam os pioneiros: — Há que prover de assistência, mas com conheci-mentos técnicos, ao carente [...]. Do confronto da tese pioneira com aantítese de Mary Richmond surge, como síntese, a chamada Escola So-ciológica, que predominará até a Primeira Guerra Mundial [...]. A sínteseanterior (Escola Sociológica), convertida em tese, enfrentar-se-á à antíte-se que, precisamente, nomeamos Escola Psicológica que, com suas duasramificações conhecidas (diagnóstica e funcional), tanto repercutirá noServiço Social.

Entretanto, Ander-Egg (1975: 125) argumenta que

a atenção aos pobres e desvalidos, durante a época da expansão capita-lista, surge principalmente nos ambientes cristão (protestantes e católi-cos), implicando que a assistência social que se organiza então se asse-melhe àquela desenvolvida na Idade Média.

• A idéia de etapas insinuada por Kisnerman, Barreix e Ander-Egg é retomada e desenvolvida por um autor marcadamentevinculado aos segmentos mais críticos e progressistas à recon-ceituação, Boris Alexis Lima (1986). Nesta ótica, o autor — se-

3. Como se a mera mudança de nomenclatura derivasse em alterações na natureza e na signi-ficação social da profissão.

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guindo os critérios de grau de desenvolvimento dos métodos einstrumental profissional, o nível de preparação profissional, onível de sistematização e organização dos serviços sociais e onível de elaboração teórico do Serviço Social4 — identifica qua-tro grandes etapas históricas: a etapa pré-técnica, a etapa técnica, apré-científica e a científica.

Assim, o Serviço Social, na sua primeira etapa, quer dizer, na suagênese, se caracteriza “fundamentalmente pela caridade, a beneficência ea filantropia como atitudes dominantes na Idade Média” (Lima, 1986: 56).

Desta forma, mesmo tendo uma visão mais estrutural,5 identificaa origem do Serviço Social mais remotamente que os autores anterio-res: na Idade Média! Assim, distinguindo dois tipos de ações assisten-ciais, a caridade e a filantropia,6 situa dentro desta primeira etapa dahistória do Serviço Social: João Luís Vives, Vicente de Paula, BenjamimThompson, Thomas Chalmers. É que Boris Lima aceita como válida eevidenciada a afirmação de que a origem da profissão está associada àsmúltiplas manifestações assumidas pela caridade e pela filantropia. Noentanto, para o autor, “a história do Serviço Social, na verdade, encon-tra-se ligada aos chamados ‘precursores do Trabalho Social’, os quaiselaboraram as primitivas formas de caridade e filantropia no nascentecapitalismo” (idem: 56).

• Com preocupação semelhante, mas neste caso pensando a gê-nese profissional na Argentina, Norberto Alayón (1980) chegaaté os primórdios do século XIX procurando os antecedentes doServiço Social, segundo relatam seus apresentadores (idem: 6).

4. Todos esses critérios demarcadores das etapas da história do Serviço Social, como podemosobservar, referem à internalidade da profissão.

5. Situa cada etapa na passagem de um tipo de sociedade a outra. Assim a “pré-técnica” serelaciona com a transição da sociedade feudal à pré-industrial; a “técnica” vincula-se à passagemdesta última para a sociedade industrial; a “pré-científica” surge a partir da Segunda Guerra Mun-dial (1946). Já a “científica” surge per se, apenas vinculada a um movimento interior da profissão (areconceituação).

6. Juan Barreix identifica a caridade como a “beneficência” de inspiração religiosa; e a filantro-pia como ajuda humanitária, não religiosa (maçonaria, burguesia, por exemplo).

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Na verdade, ele se distancia mais até, encontrando que “a princí-pios do século XVII foi fundada, em Buenos Aires, a Hermandadde la Santa Caridad, encomendando-se a ela a atenção aos po-bres” (idem: 13).

Desta forma, para Alayón, a passagem, em 1822, da Hermandad deCaridad para a administração estatal, e sua posterior “autorização paraestabelecer uma sociedade de damas, sob a denominação de Sociedadede Beneficência” (idem: 13-4), estariam marcando os antecedentes clarosdo que, em decorrência de um “processo de institucionalização” destas“tarefas benéfico-assistenciais”,7 será a profissão do assistente social.

• Já na perspectiva do Serviço Social tradicional, a idéia de etapas,mas dessa vez ligadas a modelos de intervenção, é também de-senvolvido por José Lucena Dantas (in Batista, 1980). Aqui o au-tor classifica:

a) “o modelo assistencial” como aquele que “define a natureza das práti-cas e da problemática social que antecederam historicamente ao apareci-mento do Serviço Social, vigindo na Europa em todo o período que vemda Idade Média ao século XIX, bem como nos Estados Unidos, até os anos30, quando a prática do Casework assumiu o seu enquadramento psicoló-gico-social do qual não mais evoluiu”;b) “o modelo de ajustamento”, que “se refere especificamente ao sentidode institucionalização das práticas conhecidas como Serviço Social e de-fine a natureza do Serviço Social norte-americano, cujas práticas, finali-dades e valores se voltam para o ajustamento ou adaptação dos indiví-duos ao Sistema Social”; ec) “o modelo de desenvolvimento e mudança social”, “ainda em elabora-ção” e ao qual pertencem duas correntes: a do “Serviço Social revolucio-nário” “eminentemente político-ideológico” e a do “Serviço Social para odesenvolvimento” “eminentemente científico” (in Batista, 1980: 74-5).

Mesmo tendo uma perspectiva teórico-metodológica e política dis-tinta dos autores anteriores, Lucena Dantas coincide com vários autoresque situam os “antecedentes” do Serviço Social desde a Idade Média.

7. Como salientam seus apresentadores (Alayón, 1980: 6).

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• Muito mais “ousada” que os teóricos já considerados, BalbinaOttoni Vieira (1977) inicia suas indagações sobre a gênese daprofissão esclarecendo que:

como fato social e intervenção do homem no mundo, o Serviço Social sófoi conhecido com este nome no século XX. Mas o fato ou o ato de ajudaro próximo, corrigir ou prevenir os males sociais, levar os homens a cons-truir seu próprio bem-estar, existe desde o aparecimento dos seres humanossobre a Terra. Com um ou outro nome, podemos seguir-lhe a evolução nodecorrer dos séculos. (Idem: 27; grifos nossos)

Ottoni Vieira leva sua análise dos antecedentes que criaram as con-dições para a emergência da profissão do assistente social às origens dahumanidade. Na verdade, esta autora, ao considerar que “um dos fato-res que nos permitirão compreender o Serviço Social de hoje é o estudodas formas passadas de ajuda ao próximo, da caridade, da filantropia”(Idem: 15), é mais conseqüente na sua análise: se as formas de ajudadesenvolvidas, por exemplo, por Vives, são consideradas como sendo“antecedentes”, precedentes do Serviço Social profissional, por que nãoconsiderar todas as formas de ajuda como antecedentes da profissão? Oque nos levaria necessariamente às origens da vida humana minima-mente socializada.

Para ela, falar de caridade, filantropia e Serviço Social, em quais-quer dos casos, significa considerar as formas de ajuda, apenas diferen-ciadas por seu modus operandi e sua organização. Assim, a “ajuda aosoutros [pode ser vista] em qualquer de suas dimensões, seja caracteriza-da como caridade, filantropia ou serviço social” (idem: 14).

• Num mais recente trabalho, García Salord (1990) avança na con-sideração da gênese do Serviço Social ao situar seu nascimentono século XX e decorrente de três elementos:

— a institucionalização da beneficência privada;

— a ampliação das funções do Estado, encarregado da confec-ção e da implementação das políticas sociais (que cria umespaço ocupacional e legitima a profissão sob a condição deassalariado e com um signo ideológico), e

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— o desenvolvimento das ciências sociais (que gera um campodiversificado de saberes teóricos e técnicos) (cf. idem: 30-1).

No entanto, a autora continua sustentando a tese de que a profis-são “decorre do exercício da caridade, entendida como a prática de ummandado divino: fazer o bem por amor a Deus; e devêm também doexercício da filantropia, como a execução de um imperativo ético: fazero bem por amor ao homem” (idem: 24); entendendo que “a referênciahistórica da especificidade do Serviço Social remete às chamadas formasde ajuda e assistência social, não como meros antecedentes, mas como aspráticas de onde deriva o Trabalho Social como uma profissão” (idem: 23).

Todas estas análises representam, na verdade, diferentes matizes edistintas ênfases da mesma tese: o Serviço Social é a profissionalização, or-ganização e sistematização da caridade e da filantropia. No entanto, esta tesesobre a gênese não congrega, como já foi dito, um conjunto harmônicoe homogêneo de profissionais; muito pelo contrário, aqui participamautores das mais variadas concepções político-ideológicas e teórico-metodológicas, e de estratos socioeconômicos diversos: desde um BorisLima, passando por um Ander-Egg, até o outro extremo numa OttoniVieira.

Como, então, podem coexistir nela autores com perspectivas teóri-cas, filosóficas e ideológicas, com opções de classe, com vínculos políti-cos e com histórias tão díspares, chegando, em alguns casos, a posiçõescontraditórias?

É que estes pensadores se diferenciam em relação ao seu vínculo adeterminada classe social, a suas convicções e filiações políticas, aos seusreferentes teóricos, a sua ideologia e, portanto, aos seus projetos profis-sionais; quer dizer, se confrontam em questões que dizem respeito àsconcepções e posicionamentos face à realidade social. No entanto, naanálise que fazem sobre a natureza e a funcionalidade do Serviço Social(na sua gênese) eles co-participam de uma postura endogenista: a profis-são é vista a partir de si mesma. Efetivamente, as análises desses auto-res quanto à natureza do Serviço Social (mesmo que diferente quandotratam a sociedade no seu conjunto e seu posicionamento perante a rea-lidade) não consideram o real (a história da sociedade) como o funda-

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mento e causalidade da gênese e desenvolvimento profissional, apenassituando as etapas do Serviço Social em contextos históricos. Nesse sen-tido, as diferenças entre eles, tão marcantes em se tratando do social,desaparecem quando tratam a profissão a partir de si mesma. Têm, porisso, uma perspectiva endógena, onde o tratamento teórico confere ao Ser-viço Social uma autonomia histórica com respeito à sociedade, às clas-ses e às lutas sociais.

Esta tese tem, por outro lado, uma clara visão particularista ou focalista,na medida em que vê o surgimento do Serviço Social diretamente vin-culado às opções particulares, mesmo que pessoais ou coletivas, dossujeitos “filántropo-profissionais”, em fazer evoluir (sistematizar, orga-nizar, profissionalizar) as ações que já desenvolviam de formaassistemática, desorganizada e voluntariamente. O surgimento da pro-fissão é visto como uma opção pessoal dos filantropos em organizarem-see profissionalizar, com o seja da Igreja, ou do Estado, pois a explicação desua gênese é intrínseca ao Serviço Social e remete sempre a si mesmo. Os“atores”, os “protagonistas” do surgimento e da evolução do ServiçoSocial (o mesmo ocorre com a análise que fazem da Reconceituação) são,nesta perspectiva, sempre pessoas singulares, nomes, em definitivo, indivi-dualidades:8 Vicente de Paula, João Luís Vives, Tomas de Aquino, ThomasChalmers, Mary Richmond, entre outros, (ou na Reconceituação: HermanKruse, Boris A. Lima, Vicente de P. Faleiros, Seno Cornely, Paulo Freire,Ezequiel Ander-Egg). Não se analisa, porque não se percebe, a existên-cia de atores coletivos,9 de atores e relações sociais vinculados a categoriassocioeconômicas e políticas e condicionados por um contexto sócio-his-tórico: a classe política dominante, a burguesia, a mulher, o trabalhadorassalariado etc., dentro da ordem burguesa (ou, na Reconceituação: omovimento estudantil, o profissional/docente, o profissional/militan-te, vinculados ao movimento operário).

8. Já disseram Marx e Engels “como é absurda a concepção da história até hoje corrente, que selimita às ações de líderes e de Estados e deixa de lado as relações reais” (Marx, K. e Engels, F. in:Bobbio, 1987: 31).

9. E quando se analisa (cf. Boris Lima, por exemplo) é apenas como referência de contexto, nãocomo atores em luta que determinam a necessidade histórica da nossa profissão e no qual se inse-rem aquelas personalidades.

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As análises, nessa tese, sobre a gênese (e história) do Serviço Socialdecorrem de uma perspectiva teórico-metodológica (muitas vezes nãoassumida — o que leva Netto a caracterizá-las como ingênuas e acríticas(cf. as notas de rodapé 33, deste capítulo, e 22, do capítulo II); que enten-de a história como a mera crônica dos fatos e sucessos, como historiografia(cf. Netto, 1992a: 65 ss.). Neste sentido, tal crônica serve apenas parasituar historicamente os eventos institucionais do Serviço Social e os pro-tagonistas do desenvolvimento profissional. A história e a sociedade sãopostas apenas como o cenário de desenvolvimento profissional (não comosua determinante), como uma maquete onde se insere uma peça autô-noma do contexto. Nessa crônica historiográfica realiza-se, portanto, umadescrição dos eventos históricos e neles, como autônomos, se situam oseventos profissionais, sem relação imanente visível entre o desenvolvi-mento do Serviço Social e a história da sociedade. Desta forma, os fatos,tanto do Serviço Social quanto da história, são naturalizados; constrói-sea “história” (e a “história do Serviço Social”) sem recuperar a processuali-dade histórica, num claro etapismo. Mas estas etapas se configuram emmeros cortes formais: separa-se o Serviço Social da sociedade eautonomiza-se o primeiro; definem-se etapas para um e outro (para ahistória da profissão e para a história social); vincula-se cronologica-mente as etapas de um (Serviço Social) às da outra (sociedade), sendoestas últimas os marcos onde se situam as primeiras (mesmo que nãonuma relação de determinação), e voilà: obtêm-se a “história do ServiçoSocial”.

Aqui não aparece uma análise do contexto social, econômico e políticocomo determinante ou condicionante do processo de criação desta pro-fissão; apenas, na melhor das hipóteses, situa-se historicamente este fe-nômeno sem que ele redunde em uma análise exógena, estrutural, dosurgimento do Serviço Social. A relação, portanto, do Serviço Social coma história e a sociedade é adjetiva, circunstancial, acidental. Há uma cla-ra visão de externalidade, de exterioridade, na consideração do social paraa análise da história profissional.10 Não se analisa as lutas das classes

10. Lembre-se como os fatos sociais são considerados por Durkheim: anteriores, exteriores esuperiores ao indivíduo.

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fundamentais como substrato no qual se elaboram projetos de socieda-de antagônicos, o que permite ver o vínculo da nossa profissão, comode tantas outras,11 ao predomínio hegemônico de uma delas, a alta bur-guesia. Não se analisa o Estado como instrumento do referido projetode classe, mas apenas o concebe como o campo privilegiado de empre-go desses profissionais.

Aqui não se considera o papel que o Serviço Social representa na ordemsocial. Ele não cumpre, nesta perspectiva, uma função socioeconômica epolítica dentro desta ordem; sua tarefa só é considerada autonomamen-te, na prestação de serviços a pessoas, grupos, comunidades particula-res. Quer dizer, vê-se o assistente social e as funções que desempenhaem relação aos “usuários”, aos destinatários da sua intervenção; não seconsegue visualizar, nesta perspectiva, o papel do Serviço Social em re-lação à instituição empregadora deste profissional e vinculado a umaordem socioeconômica e política.

A gênese do Serviço Social é considerada, aqui, uma evolução dasformas anteriores de assistência e ajuda, sendo que o limite posto nosantecedentes, nas fontes, nos precursores que teriam levado à criaçãodo Serviço Social, é absolutamente arbitrária.12 Será que não existiramformas de ajuda anteriores a Vicente de Paula, ou a João Luís Vives?Seguindo este critério, deveríamos então remontar a gênese do ServiçoSocial a Eva (para os cristãos) ou aos primeiros primatas (para osdarwinistas) como antecessores e precursores do Serviço Social.

Esta linha de pensamento representa um caminho que é metodoló-gica e teoricamente equivocado, na medida em que: 1) considera umnúmero tão vasto de “antecedentes” do Serviço Social que perde qual-quer perspectiva crítica da história da profissão; 2) não consegue expli-car por que não desaparecem aquelas práticas filantrópicas e caritativas,segundo essa tese, teriam dado lugar ao (e, portanto, teriam sido substi-

11. Ver o estudo de Lukács sobre o surgimento da sociologia e as ciências sociais particularesna sua obra El asalto a la razón.

12. Esta afirmação reconhece a exceção relativa na análise de Kisnerman, que limita os “ante-cedentes” do Serviço Social às formas organizadas e sistemáticas de ajuda, e nos autores que enten-dem estes “antecedentes” da profissão como sendo apenas aquelas formas de ajuda ligadas à “ques-tão social”.

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tuídas pelo) Serviço Social profissional; 3) não visualizam que se dá umaruptura do significado, da funcionalidade e da legitimação entre aque-las práticas filantrópicas, voluntaristas, e o Serviço Social, quando o as-sistente social aparece como um trabalhador assalariado, como um pro-fissional (o único elemento diferenciador entre os “antecedentes” e o“Serviço Social profissional” é, nessa tese, a própria racionalização, or-ganização e tecnificação desta última); 4) com o argumento de que osurgimento da “questão social” deu lugar à gênese do Serviço Social,não se consegue explicar como há mais de um século de distância entreaquelas e este — o Serviço Social surge nos anos 1890-1940, na Europaocidental e nos EUA, criando-se, em 1925, foi criada a primeira Escolalatino-americana (dr. Alejandro del Río), no Chile, e apareceu no Brasilna segunda metade dos anos 30. Enquanto isso as refrações da “questãosocial” aparecem com forte e maciço impacto, já na instauração da Re-volução Industrial.13

1.2. A perspectiva histórico-crítica: procurando um novo caminho de aná-lise, surge, em oposição à anterior, uma segunda tese de interpretaçãosobre a gênese e natureza do Serviço Social. A mesma entende o surgi-mento da profissão do assistente social como um produto da síntese dosprojetos político-econômicos que operam no desenvolvimento histórico, onde sereproduz material e ideologicamente a fração de classe hegemônica, quando, nocontexto do capitalismo na sua idade monopolista, o Estado toma para si asrespostas à “questão social”.

Nesta perspectiva, sustentada diferentemente por Marilda VillelaIamamoto, Raul de Carvalho, Manuel Manrique Castro, Vicente de PaulaFaleiros, Maria Lúcia Martinelli, José Paulo Netto, entre outros, enten-de-se o assistente social como um profissional que desempenha um pa-pel claramente político, tendo uma função que não se explica por simesma, mas pela posição que o profissional ocupa na divisão sociotécnicado trabalho.

13. Algumas destas idéias surgem tanto de inúmeras conversas sobre estas questões com Nettoquanto do seu curso de História do Serviço Social, no Programa de Pós-Graduação em ServiçoSocial da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1996.

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• A primeira a pensar nesta linha teórica, realizando uma verda-deira inflexão neste debate, Marilda Villela Iamamoto (1992a e1992b), pioneiramente já no início dos 80,14 procura captar

o significado social dessa profissão na sociedade capitalista, situando-a comoum dos elementos que participa da reprodução das relações de classes e dorelacionamento contraditório entre elas. Nesse sentido, efetua-se um es-forço de compreender a profissão historicamente situada, configuradacomo um tipo de especialização do trabalho coletivo dentro da divisãosocial do trabalho peculiar à sociedade industrial. (Iamamoto, 1991: 71;grifos nossos)

Assim visto, o Serviço Social tem um papel a cumprir dentro daordem social e econômica — como uma engrenagem da divisãosociotécnica do trabalho —, na prestação de serviços: ao assistente sociallhe é demandado (e para isso foi criada a profissão) participar na repro-dução tanto da força de trabalho, das relações sociais, quanto da ideolo-gia dominante.

A profissão é compreendida, por esta autora, como um “produtohistórico”, e não como um desenvolvimento interno das formas de aju-da, descontextualizada ou apenas, no melhor dos casos, inserida numarealidade social; ela é produto e reprodutora das relações sociais. “As-sim seu significado social depende da dinâmica das relações entre asclasses e destas com o Estado [...], no enfrentamento da ‘questão so-cial’.15 É na implementação de políticas sociais [...] que ingressa o ServiçoSocial”, segundo entende Iamamoto, ao avançar, nos anos 1990, suasreflexões sobre a gênese profissional (Iamamoto, 1992b: 2-3).

14. Como a própria autora expressa na introdução de sua obra para a edição castelhana, “estaé uma linha de análise que até o momento da elaboração deste trabalho não encontrava suporte nabibliografia especializada do Serviço Social e da sociologia das profissões, apontando para a ne-cessidade de recuperar a teoria e o método de autores clássicos. É nesse sentido que este livroexplicita os fundamentos do Serviço Social na divisão do trabalho, como uma contribuição crítica ao debateprofissional latino-americano” (Iamamoto, 1997: XXVI).

15. Entendida esta como expressão do “processo de formação e desenvolvimento da classeoperária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento comoclasse por parte do empresariado e do Estado” (cf. Iamamoto, 1992: 77 e Netto, 1992a: 13, nota 1).

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Desta forma, a autora entende que

o Assistente Social é solicitado não pelo seu caráter propriamente técni-co-especializado de suas ações, mas antes e basicamente pelas funçõesde cunho “educativo”, “moralizador” e “disciplinador” [...]. [Assim,] oassistente social aparece como o profissional da coerção e do consenso,cuja ação recai no campo político. (Iamamoto, 1992: 42).

• Numa perspectiva teórico-metodológica semelhante, José PauloNetto (1992a) contribui para esta tese, afirmando que é na inter-corrência do conjunto de processos econômicos, sociopolíticos eteórico-culturais que ocorrem na ordem burguesa, no capitalis-mo da idade dos monopólios, que se gestam as condições histó-rico-sociais que permitem a emergência do Serviço Social comoprofissão na Europa. Do contrário, “sem a consideração destemarco específico, a análise da história do Serviço Social perdeconcreção e acaba por transformar-se numa crônica essencial-mente historiográfica e linear”16 (idem: 65).

Assim, “a profissionalização do Serviço Social não se relaciona de-cisivamente à ‘evolução da ajuda’, à ‘racionalização da filantropia’ nemà ‘organização da caridade’; vincula-se à dinâmica da ordem monopólica”(idem: 69-70).

Segundo ele,

na emergência profissional do Serviço Social, não é este que se constituipara criar um dado espaço na rede sócio-ocupacional, mas é a existênciadeste espaço que leva à constituição profissional. [...] não é a continuidade evo-lutiva das protoformas ao Serviço Social que esclarece a sua profissiona-lização, e sim a ruptura com elas. (Idem: 69)

Por isto mesmo, diz o autor, não é um acidente cronológico que ainstitucionalização da profissão coincida rigorosamente com o trânsito do

16. Netto chama este caminho, tratado na tese anterior, de simples e, por vezes, ingênuo.

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capitalismo concorrencial ao monopolista, situado no segundo quarto deséculo, na Europa, após a Grande Depressão.17 Para Netto (1992a: 70),

o processo pelo qual a ordem monopólica instaura o espaço determina-do, que na divisão social (e técnica) do trabalho [...], propicia a profissio-nalização do Serviço Social tem sua base nas modalidades através dasquais o Estado burguês se enfrenta com a ‘questão social’, tipificadas naspolíticas sociais. Estas, ademais das suas medulares dimensões políticas,se constituem também como conjuntos de procedimentos técnico-opera-tivos; requerem, portanto, agentes técnicos em dois planos: o da sua for-mulação e o da sua implementação. (Grifos nossos)

Desta forma, a formulação e a implementação das políticas sociais,próprias desse novo estágio da ordem socioeconômica, estimulam a cria-ção de diversas novas profissões “especializadas”, dentre as quais oServiço Social aparece para desempenhar seu papel, ocupando umaposição subordinada na divisão sociotécnica do trabalho, vinculada àexecução terminal das políticas sociais.18

Enquanto profissão, conclui Netto, o Serviço Social não é apenasuma possibilidade, não se cria a partir de si mesmo, não surge somentecomo uma evolução das ações que os filantropos resolveram imprimiràs suas práticas. Ele é dinamizado e estimulado (pois é necessário aosfins e a manutenção desta ordem) pelo projeto conservador que contem-pla as reformas dentro deste sistema. É que, como afirma o autor, “ocapitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições, cria con-dições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação políti-ca através do jogo democrático, é permeável a demandas das classessubalternas” (Netto, 1992a: 25).

Assim, a emergência da profissão deve sua existência à síntese daslutas sociais que confluem num projeto político-econômico da classe he-gemônica de manutenção do sistema perante a necessidade de legitimá-lo em função das demandas populares e do aumento da acumulação

17. Período que vai desde 1873 a 1930, com algumas interrupções.

18. “Neste âmbito”, diz Netto, “está posto o mercado de trabalho para o assistente social: ele éinvestido como um dos agentes executores das políticas sociais” (1992a: 71).

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capitalista. Para Netto, a “questão social” não determina, por si só, agênese do Serviço Social (idem: 14). Ela apenas dá base para a emergên-cia da profissão quando se transforma em objeto de intervenção do Estado,quando surge uma mediação política entre a “questão social” e o Estado;mediação esta instrumentalizada pelas políticas sociais cujo executorterminal é o assistente social.19

• De outras fronteiras (nacionais e profissionais), mas a partir deuma pesquisa programada pelo Celats,20 Manuel Manrique Cas-tro (1993) procura pensar a gênese do Serviço Social latino-ame-ricano não como um “mero reflexo”21 do europeu, mas comoum produto histórico vinculado às relações sociais e à divisãodo trabalho, e não apenas por opções de um grupo de filantro-pos que queriam sistematizar suas tarefas caritativas.

Sua preocupação está em determinar “que forças concorrem na suagênese” (Manrique, 1993: 21), e não que pessoas participaram nela. Des-ta forma, diz Manrique,

decorrentemente [às mudanças e crises do capitalismo], diversas moda-lidades de ação social passaram a sofrer alterações substanciais; mudadaa perspectiva de sua função, reservam-se para elas — e este é o caso doServiço Social — certas tarefas que requisitavam níveis especiais de pre-paração. Note-se que não se ergue, sobre as formas prévias de ServiçoSocial, uma nova e moderna modalidade de ação que suprime as ante-riores — as formas de ação social não emergem ou sucumbem segundo a vonta-

19. Considerações desenvolvidas no curso proferido por Netto, sobre História do Serviço So-cial (UFRJ, 1996).

20. Pesquisa que teve também como resultados os trabalhos de Iamamoto e de Maguiña.

21. “Limitar-se”, diz Manrique, “a esta simples constatação fatual [de que o Serviço Sociallatino-americano foi, até o momento em que deu o salto qualitativo, um mero reflexo de concep-ções elaboradas no exterior] é um risco que não podemos deixar passar sem reservas” (idem: 33).Assim, continua, “se se coloca à margem a compreensão do papel das relações de produção e assuas formas específicas de articulação, se se recorre à experiência européia para entender o nossocontinente (e se se pensa que o desenvolvimento do Serviço Social pode ser apreendido como meroreflexo), então se forjam as premissas para apresentar a criação da primeira escola de Serviço So-cial na América Latina como resultante quase exclusiva da lucidez e do espírito visionário do dr.Alejandro del Río” (idem: 34).

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de dos seus agentes; ao contrário, são objetivações da situação social prevalecen-te, expressando, à sua maneira, as características das sociedades onde searticulam novas relações de produção. (Idem: 32)

Ocorre que Manrique está mais preocupado em “estabelecer comoentendemos a função concreta que o Serviço Social desempenha no interiordas relações sociais entre as classes” (idem: 39).

• Por sua vez, Maria Lúcia Martinelli (1991), marcando certainflexão com análises anteriores,22 propõe-se a “compreender oreal significado da profissão na sociedade do capital, sua partici-pação no processo de reprodução das relações sociais” (1991:15). Assim, entende a emergência do Serviço Social na Europa enos Estados Unidos como um instrumento necessário da bur-guesia que, aliada ao Estado e à Igreja Católica, buscava dotarde legitimidade a ordem social burguesa, ocultar suas contradi-ções e desmobilizar ou desarticular as reivindicações coletivasdos trabalhadores. A autora, após uma importante análise, apartir do referencial teórico marxista, da história do capitalismo— onde surge a necessidade histórica de “agentes executores daprática da assistência social” (1991: 66) como produto históricodas contradições do modo capitalista de produção e de pensar— vê

a origem do Serviço Social como profissão [...] [como tendo] a marca docapitalismo e do conjunto de variáveis subjacentes — alienação, contra-dição e antagonismo [...]; é [portanto] uma profissão que nasce articula-da com um projeto de hegemonia do poder burguês como uma impor-tante estratégia de controle social, como uma ilusão de servir [...]. (Idem:156, cf. também a p. 66)

22. Recorde-se que em 1978 Martinelli afirmava que “dentro de uma concepção histórico-sociológica, pode-se considerar que o Serviço Social, em sua versão profissional moderna, constituio estágio profissionalizado de um conjunto de práticas anteriores”; sendo que “o processo de profissiona-lização do Serviço Social tem, portanto, uma trajetória histórica, significando antes de mais nadauma evolução do fenômeno ‘assistência’, encontrado este como uma função persistente na história dohomem e da sociedade” (1978: 15).

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Assim, Martinelli examina “a complexa situação que se instauraquando a profissão, capitulando diante da lógica do capital, passa aoperar permanentemente com a identidade atribuída” (idem: 18, 157), ondeera prioritária “a sua função econômica, de fundo ideológico, mais doque sua função social” (idem: 126). Neste sentido, “a ausência de identi-dade profissional fragiliza a consciência social da categoria profissional,determinando um percurso alienado, alienante e alienador da práticaprofissional” (idem: 17), “impedindo-a de ingressar no universo da ‘classeem si’ e da ‘classe para si’ do movimento operário [...] [e de] participarda prática política da classe operária” (idem: 19).

Segundo Martinelli, este profissional estaria, na sua gênese, fatal-mente sujeito e condicionado por uma “identidade atribuída”, totalmenteexterna e independente da sua vontade, o que significaria para a autora,numa perspectiva em certa medida divergente dos autores preceden-tes,23 o furto da possibilidade histórica de construção da sua própriaidentidade, na medida em que aquela

expressava uma síntese das práticas sociais pré-capitalistas — repressorase controlistas — e dos mecanismos e estratégias produzidos pela classedominante para garantir a marcha expansionista e a definitiva consolida-ção do sistema capitalista. (Idem: 67)

Desse modo, considera a autora que o Serviço Social nasce comfunções controladoras, integradoras e, portanto, políticas, necessárias àmanutenção da ordem social, cobrindo-as de um manto “filantrópico”,o que conformaria um verdadeiro “fetiche da prática”24 (cf. Martinelli,

23. Martinelli procura a natureza do Serviço Social sob a forma de “identidade”.

Assim, a autora considera a gênese do Serviço Social a partir de uma “identidade atribuída”desde fora da profissão, desde o Estado burguês e a Igreja Católica, aliados da classe burguesa,transluzindo desta forma uma certa “perspectiva determinista” — a mesma que Iamamoto criticapor esta “considerar a prática profissional como socialmente determinada apenas pelas forças do-minantes da sociedade” (cf. Iamamoto, 1992a: 103).

24. “Fetichizado misticamente como uma prática a serviço da classe trabalhadora, o ServiçoSocial era, pois, na verdade, um importante instrumento da burguesia, que tratou de imediato deconsolidar sua identidade atribuída, afastando-o da trama das relações sociais, do espaço socialmais amplo da luta de classes e das contradições que as engendram e são por ela engendradas”(Martinelli, 1991: 67).

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1991: 18, 67, 89, 127). Para tanto, são chamados os assistentes sociais acumprir esta tarefa.

Martinelli faz uma clara distinção entre as duas tarefas que a bur-guesia devia enfrentar para atenuar os efeitos da “questão social”: “aprimeira [...] — reorganizar a assistência [...] — a classe dominante atri-buiu à Sociedade de Organização da Caridade”, enquanto “a segunda— propor políticas e implementar medidas legislativas — ficou reservada aoEstado burguês” (Martinelli, 1991: 87). Desta forma, a autora pareceria“voltar” à primeira tese (e a sua concepção de 1978), uma vez que colocaa londrina C.O.S., na segunda metade do século XIX, como palco noqual surgiram “os primeiros assistentes sociais, como agentes executores daprática da assistência social, atividade que se profissionalizou sob a deno-minação de ‘Serviço Social’” (Martinelli, 1991: 66), situando assim a gê-nese profissional anterior e independentemente do momento em que,no marco do capitalismo monopolista, o Estado toma para si as respos-tas à “questão social”.25

• Também podemos encontrar em Vicente de Paula Faleiros (1993)26

algumas contribuições a esta tese. Assim, estudando a profissãona América Latina, nega a existência de um Serviço Social pro-fissional anterior ao século XX. Para ele “o Serviço Social se ‘fun-damenta’ na negação dos antagonismos do modo de produçãocapitalista. Ele atua, na prática, na ‘camuflagem’ ou na diminui-ção desses antagonismos. Deriva daí sua própria contradição”(idem: 14).

Assim, esta profissão, segundo Faleiros, “nasceu dependente defatores que guardam relação com o surgimento do capitalismo: o desen-volvimento das forças produtivas na metrópole e o desenvolvimentodas técnicas e da ciência” (idem: 18-9).

25. Articulando a gênese da profissão ao “capitalismo industrial” (cf. Martinelli, 1991: 66) enão à sua fase monopolista, afirma a autora que, “ao iniciar-se o século XX, o Serviço Social estavapresente na maior parte dos países europeus e também nos Estados Unidos” (idem: 91).

26. Faleiros (1993) revisão crítica em Trabajo Social. Ideología y método, publicado originalmentepela Editora Ecro, de Buenos Aires, 1972.

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Esta perspectiva de análise se constitui, para o autor, em um para-digma — o das relações de força, poder e exploração —, em contraposição àtese anterior, que ele situa como o paradigma das relações interindividuais.

Em síntese, esta segunda tese sobre a gênese do Serviço Social27

parte de uma visão totalizante. Vê o surgimento da profissão vinculado,determinado e formando parte de uma ordem socioeconômica determi-nada, de um contexto, enfim, da síntese de projetos enfrentados e daestratégia da classe hegemônica nessa luta, no contexto do capitalismomonopolista. Nele se entende a “particularidade” — Serviço Social —inserida e constitutiva de uma “totalidade” mais desenvolvida que ocontém e o determina.

Aqui surge a análise de atores sociais coletivos, constituídos a partirde segmentos socioeconômicos e políticos, e formando parte de um con-texto, como os verdadeiros protagonistas. Não mais as individualida-des (as vontades individuais) e os nomes próprios (isolados) são vistoscomo agentes exclusivos da história (e da história do Serviço Social),mas agora são sujeitos coletivos e determinados historicamente.

O contexto emoldurado pelas lutas de classes em torno de projetosde sociedade antagônicos, na etapa monopolista do capitalismo, se apre-senta aqui como o marco explícito do surgimento do Serviço Social.

Desenvolve-se assim uma estratégia do capital para reverter a criseque vem se alastrando desde finais do século XIX (1870) e que se esten-de até 1929. Com ela procura-se também consolidar (legitimar, perpe-tuar e desenvolver) o sistema capitalista, bem como aumentar a acumu-lação ampliada do capital. Esta estratégia deriva na criação do monopólio(corporação que controla a produção e a comercialização de áreas estra-tégicas revertendo a queda tendencial da taxa de lucro), na expansão in-ternacional da produção e do comércio (necessidade imanente ao capitalis-mo), no desenvolvimento de um Estado intervencionista (Welfare State, Esta-do de Bem-estar Social, keynesianismo, “populismo”, segundo as dife-rentes experiências) — e nele, das políticas sociais, da expansão da de-

27. Note-se que aqui não cabe falar da gênese do Serviço Social “como profissão”. Nesta con-cepção, o Serviço Social refere-se sempre à profissão, não sendo qualquer forma de ajuda anteriorconsiderada como antecedente, como um Serviço Social “pré-profissional”.

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mocracia, da cidadania e dos direitos e legislação trabalhistas. Esta es-tratégia integral muitas vezes foi tratada por teóricos sobre diferentesóticas ou ênfases; assim, a nova fase do capitalismo que surge na passa-gem do século XIX para o XX e que se conforma a partir dessa estratégiaglobal do capital para reverter os efeitos da “Grande Depressão” foi de-nominada, sob diferentes aspectos, de maneiras diversas: imperialismo(Lenin, Rosa Luxemburgo), capitalismo monopolista (Baran, Sweezy),capitalismo monopolista de Estado (Boccara), e, em autores liberais, Es-tado de Bem-estar ou keynesianismo.

Efetivamente, a fração de classe hegemônica, na virada do capita-lismo concorrencial para sua fase monopolista, precisa dotar de legiti-midade o sistema socioeconômico e político que a sustenta. Desta for-ma, diante do aumento de conflitividade — real ou potencial —, produ-to do desemprego, das precárias condições de trabalho, da queda dosalário real e frente ao aumento da organização popular, especialmentesindical (lembremos das “internacionais”), a hegemonia burguesa am-plia o Estado (ver Coutinho, 1994), retirando a exclusividade das lutas declasses da órbita econômica e da sociedade civil e levando-a também àesfera política e estatal. Assim, a lógica vinculante que representa a parti-cipação democrática28 deveria institucionalizar as disputas políticas e eco-nômicas, reduzindo o fator crítico e revolucionário das lutas de classes.Neste marco democrático se desenvolvem lutas em torno da ampliaçãodos direitos civis (liberdades individuais), políticos (participação demo-crática) e sociais (legislação trabalhista, maior participação na distribui-ção dos bens produzidos) (a esse respeito, ver Marshall, 1967, e Barbalet,1989).

Dentro desse contexto de conflitos institucionalizados surgem aspolíticas sociais como instrumentos de legitimação e consolidação hege-mônica que, contraditoriamente, são permeadas por conquistas da clas-se trabalhadora (cf. item 1.3).

28. Num regime democrático, a participação social, eleitoral etc. faz com que os membros dasociedade aceitem as decisões estatais como legítimas, apesar de contrariar seus interesses. Asregras do jogo democrático estabelecem que todos os membros tem o direito (ou a obrigação) departicipar com seu voto nas decisões e que, portanto, estas últimas, adotadas pela maioria, devemser respeitadas pela(s) maioria(s), que deve(m) se sujeitar a tal veredito.

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Por outro lado, também devemos considerar o impulso (mais tar-dio, nos anos 1960, cf. Mota, 1991: 41) do Serviço Social no campo empresa-rial. É que, com lógica semelhante, o capitalista precisa, agora no âmbitoda indústria, minimizar o nível de conflitividade, maximizar a produti-vidade do trabalhador e, portanto, reduzir o valor da força de trabalho.29

Assim, como afirma Mota,

a questão social passa a ser assumida pela empresa dentro de um contex-to que é permeado tanto pela existência de “pactos de dominação”, istoé, com o Estado, através de suas políticas de reprodução geral do capital,como por uma tensão entre empregado-empregador, identificada na pres-são que a classe trabalhadora exerce pela via dos “seus” problemas, in-terferindo no processo organizativo da produção (Mota, 1991: 47).

Para a autora, os “problemas do trabalhador”, refrações do proces-so de exploração, são assumidos, pela empresa, como “obstáculos à pro-dução”, o que leva a empresa a criar “políticas assistenciais, quando nãoprivatiza os programas das instituições públicas, tentando manter emequilíbrio a relação empregado-empregador” (idem: 56), sendo que, “jus-tamente para executar tais políticas, a empresa requisita o assistente social”(ibidem; grifos nossos).

No entanto, continua Mota, o tratamento dos problemas do traba-lhador por parte do assistente social encontra seu limite nas questõessalariais, demissões, negociações sindicais, problemas caracterizadoscomo “da empresa”, e não “do pessoal” (idem: 60), — quer dizer, numalógica de segmentação do real (cf. infra e o item 2 do capítulo II) emesferas autonomizadas, estas questões seriam “econômicas”, e não “so-ciais” —, portanto fora da órbita da responsabilidade do assistente so-cial. É neste sentido, que “o profissional [de Serviço Social] recebe e, viade regra, assume um mandato institucional de agente conciliador e apazi-

29. Já em 1916, como afirma Harvey, procurando disciplinar os trabalhadores, dando-lhes“renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem”, “Ford enviou um exército de assistentessociais aos lares dos seus trabalhadores ‘privilegiados’” (Harvey, 1993: 122). No entanto, dado oabandono dessa experiência, “foi necessário o New Deal de Roosevelt para salvar o capitalismo —fazendo, através da intervenção do Estado, o que Ford tentara fazer sozinho” no âmbito empresa-rial (ibidem).

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guador de conflitos de interesses entre empresa e empregados” (idem: 61;grifos nossos), levando este controle para além da indústria até o espaçofamiliar do trabalhador.

Segundo Mota, o efeito dessa prática profissional está em despolitizar“a problematização do trabalhador acerca de suas condições de vida ede trabalho, metamorfoseando-a num desabafo momentâneo, emocio-nal, individual” (idem: 62).

Neste sentido, vinculado aos postulados do Movimento das Rela-ções Humanas (que teve em Kurt Lewin seu principal expoente) — cor-rente que substitui a hipótese taylorista do “homoeconomicus” (queestabelece a motivação do trabalhador mediante incentivos econômi-cos) pelo “homem social” (que propõe a idéia de que o trabalhador émais eficiente desde que se encontre num ambiente mais humano, comrelações mais diretas e amenas) —, a empresa contrata assistentes so-ciais para executar justamente as políticas de mudanças organizacionaise relacionais, e para gerir convênios (assistenciais e beneficientes paraos trabalhadores) desenvolvidos entre a empresa e outra organizaçãoexterna (geralmente o Estado).30 Desta forma é que o Serviço Social tam-bém se vincula às políticas sociais, não apenas estatais, mas agora tam-bém (fundamentalmente no Brasil) empresariais.

Essas políticas sociais (fundamentalmente estatais, mas tambémempresariais) se constituem em instrumentos privilegiados de reduçãode conflitos, já que contêm conquistas populares, sendo estas travestidasde concessões do Estado e/ou da empresa. Tudo indica que a preserva-ção dessas políticas sociais e a incorporação dos sujeitos a elas é umresultado de uma espécie de acordo, de um “pacto social”: o Estadoconcede esses benefícios à população carenciada em troca de que estaúltima aceite a legitimidade do primeiro. Assim, da mesma forma que oFMI, para destinar empréstimos a um país, exige deste uma “carta deintenção”, onde este último renuncia a certos graus de liberdade e auto-nomia na orientação da sua política econômica e social, determinando, o

30. Ver os tíquete-refeição, o vale-transporte, os refeitórios, convênios com colônias de férias,mas também a participação do assistente social, hoje, nos programas de qualidade total, de incen-tivo a demissões voluntárias, do processo de terceirização etc.

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primeiro, aspectos centrais da vida político-econômica do país, de for-ma semelhante o Estado (e os organismos representantes das classes he-gemônicas) ao aparentar “conceder” os benefícios das políticas sociais(mediadas pela intervenção dos assistentes sociais) — fetichizando o fatode que são produto de conquistas e direitos sociais usurpados pelos quedetentam o poder —, pretende a perda de liberdade da população e ocontrole da vida privada — dentro e fora da fábrica — do trabalhador.

Mas essas políticas sociais não são desenhadas a partir de uma pers-pectiva de totalidade da sociedade, a qual permite ver a realidade socialcomo histórica e estrutural. Pelo contrário, a racionalidade burguesa,fundamentalmente após os sucessos de 1848, incorpora uma visão re-cortada, pulverizada da realidade. Aqui surgem as ciências sociais par-ticulares (a este respeito, ver Lukács, 1992; Coutinho, 1994: 91 ss.); aquise deseconomiza e se despolitiza a esfera social; se deseconomiza a po-lítica e se despolitizam as relações econômicas, como se a sociedadepudesse ser entendida a partir de “recortes” da realidade. Desta forma,com essa perspectiva segmentada da realidade, as políticas sociais cons-tituem instrumentos focalizados em cada uma das refrações fragmenta-das da “questão social”, transformando-se em respostas pontuais (cf.Netto, 1992a: capítulo I).

Assim, para o desenvolvimento dessas políticas sociais fragmenta-das, são necessários dois tipos de atores: por um lado, profissionais queas concebam e as elaborem (a partir dos conhecimentos teóricos e dasorientações políticas de outros atores); por outro, profissionais que seencarreguem da implementação de tais instrumentos estatais.

Assim, o Serviço Social surge, dentro desta segunda perspectiva,como uma das profissões cuja função na sociedade remete fundamental-mente à execução terminal das políticas sociais segmentadas (ver Iamamoto,in Iamamoto e Carvalho, 1991; Netto, 1992a; Martinelli, 1991). Aparece,então, como um ator subalterno e com uma prática basicamente instru-mental. Seu campo privilegiado de trabalho é o Estado (subordinado,além dos “cientistas”, a uma lógica político-burocrática) e a sua base deatuação é conformada pelas políticas sociais.

Aqui recai, pois, a base de sustentação funcional-ocupacional do ServiçoSocial (cf. Montaño, 1997): um profissional que surge dentro de um pro-

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jeto político, no marco das lutas de classes desenvolvidas no contextodo capitalismo monopolista clássico, cujo meio fundamental de empre-go se encontra na órbita do Estado, este último contratando-o para de-sempenhar a função de participar na fase final da operacionalização daspolíticas sociais. Ali radica sua funcionalidade e sua legitimidade.

Não obstante essas determinações, a prática do Serviço Social (par-ticularmente na empresa e no Estado), assim como a de tantas outras (senão todas) profissões, apresenta-se como uma prática tensionada, satura-da de contradições, onde o assistente social aparece como um “profis-sional da coerção e do consenso” (Iamamoto, 1992a: 42 ss.), como umprofissional marcado pelo dilema de “servir a dois ou mais senhores”(Estevez, s./d.), como um profissional também pressionado pelos inte-resses dos trabalhadores (organizados ou não) (Mota, 1991: 63-4) (sobreesta discussão voltaremos no item 1.3 do capítulo II).

Vejamos então: a distância entre as duas teses apontadas não é ape-nas uma questão de ênfases dispares, não é simplesmente uma opiniãodiferente sobre as “causas” da gênese profissional. Expressa, pelo con-trário, análises cujos pontos de partida (perspectivas teórico-metodoló-gicas) distintos conduzem a conclusões radicalmente diferentes sobre anatureza, a funcionalidade e a legitimidade do Serviço Social.

Assim, na primeira tese, a natureza e a funcionalidade profissional apa-rece como sendo o fato de o Serviço Social consistir numa forma de ajuda(mais organizada, evoluída e tecnificada do que as anteriores — e si-multâneas — caridade, filantropia etc.) vinculada ao tratamento da “ques-tão social”. Sendo a natureza dos “antecedentes” profissionais a mesma (for-mas de ajuda), esta tese estaria entendendo como semelhante a natureza ea funcionalidade da profissão e das formas de ajuda “anteriores” — o que levaesses autores a ver a relação formas “anteriores” de ajuda/Serviço So-cial como uma relação de continuidade, fundada na idéia de “evolução”entre as “anteriores” formas de ajuda (caridade, filantropia etc.) com oServiço Social (ou com o “trabalho social”) na sua linha final.

Já numa perspectiva de análise relativa à segunda tese, a natureza e afuncionalidade da caridade e da filantropia devem ser entendidas comoformas de ajuda que têm como fundamento uma missão moral ou religio-sa (messiânica, missionária, de apostolado), que parte da vocação pes-

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soal de ajuda ao próximo como, a “missão confessional-cristã” da cari-dade, ou a “missão moral” da filantropia, vinculada aos “críticos ro-mânticos do capitalismo”, de reverter as injustiças sociais. Enquanto isso,nesta perspectiva, a natureza e a funcionalidade do Serviço Social são essen-cialmente diferentes; elas não recaem na ajuda como práticas altruístas,mas são entendidas a partir da sua funcionalidade com a ordem burguesa,quando o Estado toma para si, na passagem do capitalismo concorrencial à fasemonopolista, a resposta da “questão social”, mediante as políticas sociais.31

Aqui a função do Serviço Social é de legitimação da ordem e aumento daacumulação capitalista, tendo, portanto, natureza e funcionalidade polí-tico-econômicas e não altruístas (como nas formas de ajuda) — o que fazcom que, nesta perspectiva, a relação. Ajuda/Serviço Social seja enten-dida como uma relação de ruptura, fundante na compreensão de dife-rentes tipos de atores sociais, que, coincidindo em alguma medida nostipos de práticas desenvolvidas emtorno da “questão social”, são, nasua natureza e funcionalidade, essencialmente distintos.

Assim, enquanto a primeira tese entende que há continuidade (iden-tidade) entre a natureza do Serviço Social e as práticas de filantropia,caridade etc.: todas elas seriam formas de ajuda, mesmo existindo dife-renças nas características de cada uma: profissionalismo/voluntarismo,formação técnico-científica/espontaneísmo, institucionalização/desar-ticulação; inversamente, a segunda tese concebe a ruptura na essência ena funcionalidade do Serviço Social em relação às formas de ajuda, mes-mo tendo elas algumas características comuns. Em outros termos, con-siderando a relação “Serviço Social/formas de ajuda”, se na primeiratese a natureza é a mesma, com características diferentes, na segunda anatureza é distinta, com características semelhantes.

Desta forma, rejeitando a tese focalista e evolucionista sobre a pro-fissionalização das formas “anteriores” de ajuda, esta perspectiva históri-co-crítica se apresenta como uma alternativa teórico-explicativa inteira-mente distinta.

31. Como aponta Iamamoto, “aí se estabelece uma das linhas divisórias entre a atividadeassistencial voluntária, desencadeada por motivações puramente pessoais e idealistas, e a ativida-de profissional que se estabelece mediante uma relação contratual que regulamenta as condiçõesde obtenção de meios de vida necessários à reprodução desse trabalhador especializado” (inIamamoto e Carvalho, 1991: 85).

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Na verdade, estas teses engendram uma contraposição de perspec-tivas: “particularismo” versus “totalidade”,32 sendo elas necessária emutuamente excludentes. Porém, tal contraposição deve ser analisadamatizadamente.

• Para se poder compreender clara e historicamente as condiçõesde surgimento da profissão do Serviço Social, é necessário apreen-der a particularidade presente no Serviço Social como um pro-duto histórico, a partir de uma perspectiva de totalidade, da teseque entende a sua vinculação a uma ordem social e ao projetopolítico que viabilizou sua instauração e desenvolvimento, ven-do o assistente social como um trabalhador assalariado, queocupa um lugar específico dentro da divisão sociotécnica do tra-balho, vinculado à execução terminal das políticas sociais seg-mentadas.

• Não obstante, é necessário reconhecer a participação e a opção cons-ciente, mesmo que ser acrítica33 e até ingênua,34 dos primeiros agen-

32. Na verdade, não há oposição entre singularidade, particularidade e totalidade. Eles são mo-mentos, dimensões objetivas dos fenômenos e da apreensão intelectual destes; portanto, apenas exis-tem em relação entre si, e não como momentos separados. Nas palavras de Lessa, “não há universali-dade que não seja a síntese de singulares; não há singularidade que não seja partícipe de um uni-versal e, na enorme maioria das vezes, entre os dois pólos se desdobram mediações reais que cons-tituem a esfera da particularidade” (Lessa, in: Borgianni e Montaño, 2000). O procedimento onto-lógico marxiano/lukacsiano consiste em buscar as determinações da particularidade dos comple-xos sociais nas suas funções sociais (ibidem). Não há, portanto, oposição entre “particular” e “universal”,mas sim entre uma “perspectiva de totalidade” (que condensa as dimensões singulares e universaisdos fenômenos, mediatizadas pelas particularidades) e outro “enfoque particularista ou focalista” (quefocaliza e isola a dimensão particular afastada do universal, que não procura sua natureza nasfunções sociais dos fenômenos).

33. Entendemos a participação dos precursores como acrítica, do mesmo modo que Lukácsentende como acríticos tanto os “apologetas do capitalismo” quanto os “críticos românticos docapitalismo”. Eles, diz Lukács, fogem covardemente da expressão da realidade e mascaram a fugamediante o recurso ao “espírito científico objetivo” ou a “ornamentos românticos”. “Em ambos oscasos, é essencialmente acrítica, não vai além da superfície dos fenômenos, permanece na imediatici-dade e toma ao mesmo tempo migalhas contraditórias de pensamento, unidas pelo laço doecletismo” (Lukács, 1992: 120).

Esta opção acrítica e ingênua está carregada de resignação perante os “males” de uma socie-dade naturalizada e inalterável; parece fundada numa “tendência em buscar o caminho da salva-ção da barbárie da civilização não na direção do futuro, mas na do passado” (idem: 118).

34. Guerra afirma que “ocupando historicamente funções terminais, a intervenção profissio-nal realiza-se à margem das instâncias de formulação de diretrizes e da tomada de decisões acerca

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tes profissionais. Os assistentes sociais legitimaram com suas açõesaquela “identidade atribuída”, transformando-a em “identida-de própria”.35 Eles aceitaram e até racionalizaram suas funções eseu papel na ordem social; os revestiram, pela extração e origemsocial desses agentes, de um manto de filantropia, de uma ima-gem de ajuda ao carente, de características confessionais. Eles seespecializaram e desenvolveram um nível de profissionalização,de tecnicismo, de organização, que os levaram a ampliar o cam-po de ação, sua eficácia, “socializando” sua prática e ampliandoas políticas sociais que lhes dão emprego e que, contraditoria-mente, prestam serviços aos usuários, enquanto legitimam emantêm a ordem social, econômica e política que as cria.36

Uma observação deve ser feita. Verificar o relativo protagonismodos primeiros profissionais (e se quiserem, das “protoformas” do Servi-ço Social) não pode nos levar, sob nenhuma hipótese, a considerar agênese da profissão a partir da mera vontade de certas pessoas emtecnificarem suas práticas filantrópicas; nem o fato de que as primeirascamadas de assistentes sociais provinham de instituições filantrópicas ede caridade deve nos levar a supor o Serviço Social como a evolução daspráticas anteriores de ajuda.37

das políticas sociais. Aqui, a cisão entre trabalho manual e intelectual cumpre sua função histórica:limita a compreensão da totalidade dos interesses, intenções e estratégias contidas no projeto daclasse ou segmentos da classe que elabora e controla a execução das políticas sociais. A isto acres-ce-se o fato de que a ação do assistente social se realiza no âmbito das estruturas técnicas, legais,burocráticas, formais e, portanto, da lógica em que se inscrevem as políticas sociais” (1995: 158).

35. Como afirma Iamamoto na análise que faz sobre a constituição do espaço profissionalcomo produto histórico, deve-se considerar “a prática profissional como resultante da história e, aomesmo tempo, como produto teórico-prático dos agentes que a ela se dedicam” (1992a: 103).

Em outro trabalho, entende-se que “as respostas do agente profissional às demandas sociais,embora condicionadas fundamentalmente pelas variáveis sociais objetivas [...], dependem tam-bém do grau de desenvolvimento interno da profissão. Tais respostas são também um produtocriado pelos assistentes sociais, estando condicionadas por estes agentes” (Celats, 1991: 60-1).

36. Esta atitude parcialmente protagônica dos assistentes sociais foi levando a categoria pro-fissional a um relativo protagonismo e autonomia cada vez maiores, permitindo, em determinadascondições, tanto o desenvolvimento de correntes modernizadoras quanto processos de rupturaparcial com a sua herança, como foi a própria Reconceituação.

37. Como menciona Iamamoto, “afirmar que a instituição Serviço Social é produto ou ‘refle-xo’ da realidade social mais ampla apenas expressa um ângulo da questão, insuficiente se é consi-

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Estas confusões, próprias dos estudos vinculados à primeira tese,partem da verificação factual de as primeiras gerações de assistentessociais terem estado vinculadas a instituições de caridade, filantrópicasetc. Tal fato, num estudo meramente historiográfico ou empiricista, es-taria confirmando a idéia do Serviço Social como uma fase mais evoluí-da das formas (ou “protoformas”) de ajuda anteriores.

No entanto, devemos fazer algumas considerações analíticas.

Dentre os vários elementos que confluem para caracterizar umaprofissão (formação profissional, procedência de classe dos seus mem-bros, tipo de instituições das quais são recrutados etc.), um deles se cons-titui em fundante para o estudo da sua gênese: a prática que desenvolvecomo trabalhador vinculado a uma organização; o que lhe confere legiti-midade. Assim, o que dota de legitimidade uma profissão é basicamenteo fato de certas necessidades sociais serem reconhecidas, transformadasem demandas e respondidas por determinadas instituições e organiza-ções, as que empregam os profissionais para estudar e/ou intervir nes-sas realidades. Vale dizer, a demanda institucional que cria o espaçointerventivo do assistente social provém do órgão empregador do pro-fissional — aquele que transforma sua prática numa atividade ocupa-cional, onde se recebe um salário em troca da venda da sua força detrabalho, com o fim de dar resposta a uma necessidade social.

• Neste sentido, o Estado (como produto histórico das lutas sociais)se constitui, nos primórdios da profissão, no principal órgão em-pregador e, portanto, legitimador do Serviço Social. É desta for-ma que o estudo da gênese desta profissão deve conter a análisedo Estado, na fase monopolista do capital, que ampliado e in-corporando as lutas de classes se constitui em instrumento demanutenção da ordem e da hegemonia burguesa. Nele, as polí-ticas sociais conformam elementos significativos. Finalmente,

derado isoladamente. De outro lado, reduzir o tratamento aos elementos ‘internos’ — que suposta-mente atribuem à profissão um perfil peculiar: seu objeto, objetivos, procedimentos e técnicas deatuação etc. — significa extrair artificialmente ao Serviço Social das condições e relações sociaisque lhe dão inteligibilidade e nas quais torna-se possível e necessário. Significa privilegiar a visãofocalista e a-histórica que permeia muitas das análises institucionais” (1997: XXIV).

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para sua execução terminal, foi preciso a constituição de um atorespecial: o assistente social.

• Por outro lado, não deixamos de verificar certos elementos quecaracterizam, de forma diferenciada para cada país, os primei-ros profissionais, por exemplo: a maioria de gênero feminino;provenientes de frações sociais altas e média altas; recrutados,muitas vezes, em instituições de caridade e filantropia, tendosido formados, segundo as diversas realidades, em organismosministeriais na área da saúde, instituições ligadas à Igreja etc.Estes elementos caracterizam os primeiros assistentes sociais, po-rém nada nos dizem sobre a fundamentação e o sentido socialda gênese profissional.

Assim, se por um lado a análise do Estado, principal órgão empre-gador dos assistentes sociais, e das políticas sociais, principais instân-cias de inserção prático-profissional, ao determinarem a demanda insti-tucional da profissão, nos permite compreender a funcionalidade doServiço Social; por outro lado, o estudo das características das primeirascamadas de profissionais nos leva a verificar como esses elementos queparticularizaram os agentes termina redundando numa caracterizaçãoda profissão: as características dos primeiros assistentes sociais acabamaparecendo como características do Serviço Social.

É este fenômeno que leva erroneamente a identificar (e confundir)fundamentos da gênese profissional (e sua funcionalidade) com carac-terísticas dos precursores da profissão (e das chamadas “protoformas”profissionais).

Na verdade, somente por meio desta distinção analítica (entre fun-damentos e características) é que podemos perceber o duplo caráter dagênese e desenvolvimento profissional, que contêm semelhanças (con-tinuidades aparentes) e “rupturas” entre o Serviço Social e as formas deajuda. Ao estudar os fundamentos e a natureza do Serviço Social na suagênese — onde o Estado (e suas políticas sociais) aparece como o órgãoempregador e instrumento de controle popular e manutenção do statusquo —, não há evolução de formas de ajuda não-profissionais para uma

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forma dita mais desenvolvida: a profissão de Serviço Social.38 Portantonão há continuidade, e sim “ruptura”. Trata-se de práticas com papéis esignificados essencialmente distintos.

No entanto, ao estudar apenas as características dos primeiros assis-tentes sociais, individualmente considerados e/ou de forma isolada dasrelações sociais, — onde grande parte tinha pertencido (ou ainda per-tencia) a instituições filantrópicas, de caridade etc. —, os autores “evo-lucionistas” vêem uma aparente relação de continuidade, deduzindo daíuma evolução entre as práticas de ajuda assistencial e voluntarista parauma intervenção profissional, desenvolvida muitas vezes pelos mesmosindivíduos (agora profissionais do Serviço Social). Caracteriza-se ai, paraestes autores, a existência de continuidade e evolução entre essas práticas.Esta percepção fundamenta-se no fato de que as características que apre-sentam os primeiros profissionais (práticas voluntaristas, assistenciais,confessionais etc.) passam a caracterizar a profissão de Serviço Social.

Mas essa aparência de “continuidade” nas características leva os auto-res “evolucionistas” ora a estenderem automaticamente tal relação decontinuidade à natureza e fundamento, numa verdadeira e linear “evolu-ção” (se caridade/filantropia e Serviço Social possuem característicassemelhantes, parecem nos dizer, então eles têm a mesma natureza; umaprática deriva, evolui da outra), ora a conceberem, ambiguamente, con-tinuidades nas formas fenomênicas, “esquecendo” as rupturas na substân-cia, o que significa uma aceitação tácita, mesmo que não tão linear, deevolução.

O equívoco desses autores está em não perceber que se a suposta“continuidade” é encontrada por quem defende essa relação linear deevolução, na forma da prática (no nível fenomênico, imediato, aparente)dos pioneiros da profissão (muitos deles ex-membros de instituições deajuda), no entanto, no sentido e significação social do Serviço Social (nonível das relações sociais, do mediato, da essência, do seu conteúdo) o

38. Aqui, a confusa noção de “antecedentes”, “formas anteriores de ajuda” ou de “protoformas”da profissão (e até o discurso do “Serviço Social profissional”) leva à falsa idéia de “profissionali-zação” do Serviço Social, como se existisse um Serviço Social não profissional que sofreu um pro-cesso de profissionalização.

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que se verifica é a radical “ruptura”. O equívoco radica-se, portanto, naconsideração de que, por exemplo, se os primeiros assistentes sociais dedeterminado país foram recrutados de instituições filantrópicas, de ori-gem cristã e formados em instituições ligadas à Igreja, isso marcaria agênese profissional a partir das necessidades da própria Igreja, ou à or-ganização e tecnificação da caridade (vide COS). Neste caso, esquece-seque a classe demandante deste profissional é (direta ou indiretamente) acapitalista, e que os órgãos empregadores continuam sendo os repre-sentantes desta classe hegemônica (principalmente o Estado), num con-texto de lutas de classe, e que aí se deve procurar a explicação de funcio-nalidade profissional na sua emergência e desenvolvimento.

Ora, se são práticas de conteúdos sociais diferentes, de sentidossociais distintos, que ocupam lugares diversos na divisão sociotécnicado trabalho, trata-se então de instituições diversas, de agentes distintos;não há continuidade entre eles, apenas ruptura.39 Não há, portanto, umarelação de continuidade (na prática) e ruptura (no significado social) entreas formas de ajuda e o Serviço Social. Há, sim, semelhanças, dando umaaparência de continuidade (vista através da forma prática imediata), queescondem a verdadeira ruptura (no seu significado social) entre a práticaprofissional e as práticas de caridade e filantropia.

No entanto, Netto registra continuidades e rupturas entre as chama-das “protoformas” e o Serviço Social, o que constituiria certo paradoxo.40

Para o autor, “a profissionalização criou um ator novo [alterando de“modo significativo a inserção sócio-ocupacional do próprio assistente so-cial (e o próprio significado social do seu trabalho)”], que, alocado ao aten-

39. Dois exemplos do que estamos dizendo; Primeiro, não há continuidade entre a prática dacurandeiria e a medicina científica, mesmo que ambas tenham como objeto a relação doença/saú-de e possam atingir resultados semelhantes. Por outro lado, também não há continuidade entre oantigo trabalhador das tribos tupi-guaranis, e os trabalhadores do ABC paulista, mesmo que am-bos tenham produzido artigos de uso. A significação social, o papel de um trabalhador na socieda-de capitalista é a de produzir valores de troca (para além dos valores de uso), aportando mais valiaao capitalista; sentido este radicalmente distinto do papel do trabalhador da antiga comunidadeindígena. Não há, portanto, evolução entre eles, mesmo aparentemente existam semelhanças.

40. Paradoxo este que deve ser resolvido nas “condições para a intervenção sobre os fenômenossociais na sociedade burguesa consolidada e madura e a funcionalidade do seu Estado no confrontocom as refrações da ‘questão social’” (Netto, 1992a: 96; grifos nossos).

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dimento de uma demanda reconhecida previamente, não desenvolveuuma operacionalização prática substantivamente distinta em relaçãoàquela já dada [nas suas ‘protoformas’]” (Netto, 1992a: 95-6). Quer di-zer, se “a profissionalização instaurou idealmente um quadro de refe-rência e de inserção prático-institucional que cortou com as protoformasdo Serviço Social”, no entanto sua atividade “permaneceu jungida à mes-ma eficácia que validava a prática assistencialista”; ou até, em outrostermos, “se, idealmente, a profissão colocou as bases para uma peculiarintervenção sobre as refrações da ‘questão social’, faticamente, esta inter-venção não se ergueu como distinta” (idem: 96).

Ora, toda evolução supõe continuidades e rupturas, porém não háa menor sombra de “evolucionismo” nessas observações de Netto. Oobjetivo do autor, com tal caracterização de continuidades/rupturas entreo Serviço Social e as chamadas “protoformas”, está longe de esboçar aidéia de uma evolução entre estas práticas,41 como poderia parecer a al-gum leitor desatento, mas sim de mostrar suas semelhanças e, com elas,os limites dessa “nova prática”. Efetivamente, o autor fala de um atornovo, cuja inserção sócio-ocupacional e significado social são inteiramentediversos das “protoformas”, que cortou com elas.

Não obstante, para Netto, isto não pode derivar na falsa idéia deque este ator, sua prática e seus resultados são inteiramente distintosdos da caridade/filantropia (com as quais rompeu). Na verdade, exis-tem semelhanças e pontos de contato entre estas práticas, mesmo que comsignificados e processos históricos diferentes. Assim: semelhanças naestrutura interventiva sobre as refrações da “questão social” mediante amanipulação de variáveis empíricas e a polivalência operatória; no re-sultado da prática, reprodutor (ou cronificador) das refrações da “ques-tão social”; no sincretismo ideológico e científico, nos fundamentos po-sitivistas, empiristas, e formal-abstratos, que sustentam ecleticamente aracionalidade instrumental etc.

Falamos de continuidades/rupturas, de evolução, que repõem ovelho reconfigurado, ao considerarmos as respostas que o capital, nas

41. Como já indicamos, Netto afirma que “não é a continuidade evolutiva das protoformas aoServiço Social que esclarece a sua profissionalização, e sim a ruptura com elas...” (1992a: 69).

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fases concorrencial e monopolista, tem dado à “questão social” — a par-tir das refrações, segmentadas e setorializadas, e não das suas causas;respostas integradoras, individualistas e subjetivistas. Há continuidadenas formas de resposta social que o capital historicamente tem dado à“questão social”, mas continuidade transmutada, recriada, transforma-da, a partir dos contextos históricos de lutas de classes. A evolução, queapresenta continuidades e rupturas, refere às formas como a sociedadetem tratado a “questão social”; isto não implica (suposta) evolução en-tre os agentes que tem assumido a atividade fenomênica dessas respos-tas: ora agentes da filantropia e caridade, ora assistentes sociais etc. Sepensarmos macroscopicamente, nas respostas sociais, há evolução; sepensarmos particularmente nos agentes que diferenciadamente assu-miram a atividade epidérmica desse processo societal, estes não apre-sentam uma relação linear evolutiva.

A questão para Netto não é buscar os elementos de “continuidade”como fundamento de evolução, mas determinar as semelhanças, os pon-tos de contato entre o Serviço Social e as formas de ajuda, para perceberque, “cortando com as práticas das suas protoformas, [a profissão] nãose legitima socialmente por resultantes muito diversas”, o que constituio “anel de ferro que aprisiona a profissão” (Netto, 1992: 99).

Com estas considerações, estamos agora em condições de compreen-der mais adequadamente o alcance e a significação das análises que osautores fazem sobre a história do Serviço Social.

Assim, Ottoni Vieira, ao pesquisar a origem profissional, entendeque esta se constitui numa fase mais evoluída das anteriores formas deajuda, uma vez que o estudo que realiza refere-se apenas ao que aquidenominamos como as “características” dos primeiros profissionais (tipode prática, procedência social, gênero, instituições das quais são recru-tados, instituições nas quais se formaram etc.), de forma tal que consi-dera essas características (dos “precursores”) como sendo da própriaprofissão de Serviço Social, estendendo a suposta “continuidade nas ca-racterísticas” a uma “continuidade da natureza”. Neste sentido, para aautora o Serviço Social “profissionalizado” teria uma relação de conti-nuidade com as formas não-profissionais de ajuda; seria uma evoluçãodelas.

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Contrariamente, Martinelli remete seu estudo sobre a emergênciada profissão à análise do desenvolvimento do capitalismo, que concebeo Estado intervencionista como instrumento estratégico de controle po-pular e manutenção do status quo, e onde surge a necessidade de consti-tuição de um profissional encarregado da prática da assistência. Porémo fato de não relevar as características e o protagonismo dos primeirosprofissionais leva a autora a entender a identidade do Serviço Socialcomo meramente “atribuída” externamente. Por outro lado, a diferen-ciação pouco expressiva da significação do organismo empregador (o Esta-do e as organizações das classes dominantes) em relação às instituiçõesformadoras dos profissionais (em muitos casos instituições ministeriaisou ligadas à Igreja) ou de onde são recrutados inicialmente (agências decaridade, filantropia etc.) leva Martinelli a entender a gênese do ServiçoSocial como um instrumento da burguesia que se vale tanto do Estadoquanto da Igreja católica.42 Não obstante isso, Martinelli estabelece umaclara distinção entre as tendências inglesas e européias (social service —como sendo “uma prática servil, de doação, de ajuda, de prestação deserviço”) das norte-americanas (social work — que, diferentemente daexpressão inglesa labour, que refere à venda da força de trabalho, à ativi-dade de subsistência, “se reportava a um ‘trabalho’ que buscava mais arealização pessoal, a re-criação intelectual, do que a remuneração pro-priamente dita” (Martinelli, 1991: 112).

Já outros autores, como é o caso de Boris Lima, mesmo fazendouma análise do Estado dentro de um contexto de desenvolvimento docapitalismo e de lutas de classes, não fazem mais do que remeter o estu-do das características dos primeiros assistentes sociais àquele cenáriosócio-histórico; este, apenas um “pano de fundo” daquele. Na hora deentender a natureza e o significado do Serviço Social subordinam a análi-se social-global (que é utilizada para contextualizar a etapa histórica) aoestudo das características e formas práticas, fenoménicas, imediatas, dosprimeiros profissionais (e das formas de ajuda). Desta maneira, volta-se àidéia do Serviço Social como evolução das formas de ajuda anteriores.

42. Uma análise diferenciadora a esse respeito encontra-se em Netto, 1992a, esp. a seção 2.4, eem Carvalho, in: Iamamoto e Carvalho, 1991.

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É em autores como Iamamoto, Carvalho, Netto e Manrique quepodemos observar uma clara distinção entre a análise dos fundamentose o sentido social da gênese profissional — vinculada à estratégia bur-guesa de transformar o Estado (e suas políticas sociais) num instrumen-to de controle e manutenção do sistema, tanto quanto da luta das clas-ses trabalhadoras em permear o Estado com suas demandas e reivindi-cações — e as características dos primeiros profissionais — característi-cas estas que, mesmo que tenham sido transferidas para a profissão econstituídas em particularidades do Serviço Social, nada dizem a res-peito de funcionalidade, sentido e papel social e legitimidade da profis-são. Assim, para eles, não há evolução (de formas anteriores de ajudapara o Serviço Social “profissionalizado”), e sim criação de um novo ator,de uma nova profissão, que, no entanto, não se constitui com uma iden-tidade meramente atribuída, na medida em que os primeiros profissio-nais “levam” consigo suas próprias características (sua subalternidadede gênero, suas formas de prática voluntarista ligadas à assistência e àfilantropia, sua formação confessional, sua origem de classe etc.), tendotido um relativo protagonismo na constituição do Serviço Social.

2. A legitimidade tensionada dos assistentes sociais

Em decorrência da discussão sobre a gênese do Serviço Social exis-tem duas teses que remetem à legitimação da profissão perante a so-ciedade e suas classes sociais e frente ao Estado e demais organismoscontratantes.

2.1. Assim, a primeira tese, vinculada à perspectiva evolucionista eendogenista, entende que a legitimidade do Serviço Social radica na “es-pecificidade” da sua prática profissional.

Na primeira tese, considerando-se o Serviço Social uma forma deajuda profissionalizada, a legitimação dele derivaria dos elementos dife-renciadores tanto das outras formas de ajuda quanto das outras profissões;ou seja, a sua especificidade. Aqui, a estratégia profissional de legitima-ção é montar uma barreira interprofissional, sob o acordo de cada profis-

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são não invadir o espaço específico dos outros. Este espaço específico,no caso do Serviço Social, estaria dado, segundo os autores, pelo objeto,pelo método próprio ou pelo seu fundamento na prática de campo, pe-los seus objetivos etc. (sobre isso voltaremos no item 2 do capítulo II).

Essa especificidade, ao ser considerada, segundo esta tese, como oelemento que dá sentido à profissão, tem sido o centro de inúmerosdebates e análises por parte categoria profissional. Nesta perspectiva,entende-se como “específico” do Serviço Social a prestação de serviçosdirecionados aos setores empobrecidos e carentes da população. Tam-bém seria “específica” sua pesquisa social, a qual aparece como orienta-da para a ação, contrariamente às demais disciplinas sociais. Define-se,da mesma maneira, a metodologia como “específica”, os objetivos pro-fissionais como “específicos”, os objetos de intervenção como “específi-cos”. De igual forma, encontra-se um sujeito “específico” próprio doServiço Social: os “pobres”, os carentes, ou, na melhor das hipóteses, osassistidos pelas políticas sociais onde trabalham esses profissionais.

Todas estas “especificidades” não passam, na realidade, de umagrande ilusão,43 de quem necessita demonstrar o que há de diferente, depróprio, de “específico” no seu desempenho profissional. Parece que senão se encontrasse o que há de próprio no Serviço Social, ele, então, nãoteria motivo de existir como profissão, não estaria legitimado, não teriarazão de ser.

Mas que profissão não é criada para responder à realidade? Qualdelas pesquisa sem ter como horizonte iluminar sua prática profissio-nal? Poder-se-ia afirmar que só o Serviço Social trabalha com setorescarentes da população?

Parece que essas “ilusões” estão mesmo longe de ser reais.

No entanto, uma das ilusões mais problemáticas sobre essas “espe-cificidades” refere-se à suposta exclusividade dos tradicionais campos deintervenção profissional: saúde, trabalho, criança e adolescente, família.44

43. Para Martinelli (1991: 67), “o conjunto de expressões que se tem como manifestações espe-cíficas de sua prática são [na verdade] exteriorizações de sua identidade atribuída”.

44. Ver, por exemplo, os “campos do Serviço Social” que propõe Balbina Ottoni Vieira: da famí-lia, de menores, escolar, de saúde, psiquiátrico, correcional, de empresas (Ottoni Vieira, 1977: 66-70).

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Pensa-se que uma profissão pode se constituir pela intervenção nas áreasonde atuava no momento em que foi criada (desenvolvemos esta ques-tão no item 4 do capítulo II). Pensa-se, portanto, que as refrações da“questão social” existentes num dado período do desenvolvimento docapitalismo são as mesmas agora e, conseqüentemente, serão as mes-mas no futuro: esta visão congela o desenvolvimento social, econômicoe político e leva à consideração ou à interpretação dos “problemas so-ciais” como “disfunções”, desajustes que mantêm as mesmas caracte-rísticas (aistoricamente) no decorrer do tempo.

Aqui trata-se não só de uma ilusão fetichizada. Esta concepção éprofundamente conservadora: dificulta fortemente a incorporação denovas áreas e demandas sociais emergentes como campos de interven-ção profissional e de novas estratégias de intervenção, congelando a le-gitimação e funcionalidade profissional ao momento de sua gênese. Naverdade, esta tese reflete uma profunda ansiedade,45 que leva a catego-ria a rejeitar qualquer modificação que enfraqueça a “estabilidade”, pre-ferindo a cômoda e estável subordinação e subalternidade profissional(na conservação daquela “especificidade” que exclui os “outros”) à ins-tável e insegura ruptura de limites, com a conseqüente ampliação dosseus espaços, fronteiras e possibilidades de transformação da realidade.

• Parece difícil aceitar a tese de que a legitimidade do Serviço So-cial recaia na “especificidade” de sua prática, em especial emmomentos nos quais espaços tradicionalmente ocupados por as-sistentes sociais estão sendo disputados com sociólogos, psicó-logos sociais, terapeutas familiares e até profissionais não liga-dos diretamente ao “social”: agrônomos, médicos, arquitetos,entre outros.

Desta forma, esta primeira tese resulta falsa e ilusória. Sem perce-ber o lugar que ocupa a profissão na ordem socioeconômica, aparececomo inteiramente “funcional” ao sistema e ao capital. Propõe, geral-

45. Ansiedade provocada pela invasão dos tradicionais campos de trabalho do assistente so-cial por outros profissionais e técnicos, assim como por um sentimento de perda do seu locus, doseu espaço de trabalho, de intervenção, da sua “especificidade” e, portanto, do seu emprego.

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mente, nessa dita “especificidade”, um técnico encarregado de desem-penhar certas tarefas executivas, “apolíticas” e “neutras”, ou, na melhordas hipóteses, “praticista”, iluminado pelo conhecimento científico, tam-bém “neutro”, e orientado pelas definições políticas de um Estado queprocura “o bem comum”, ocultando assim, atrás de um manto de “equi-dade”, as orientações de uma classe dominante e hegemônica. Esta tesese caracteriza por uma perspectiva rígida, sem movimento, ahistórica,sobre os processos de demanda/resposta às necessidades sociais, nasquais o Serviço Social se insere historicamente como prática legítima.

2.2. Em oposição a isto, ligado à visão de totalidade (perspectiva históri-co-crítica), surge uma segunda tese que parte de um Serviço Social legi-timado oficialmente pelo papel que cumpre na e para a ordem burguesa (e noe para o Estado capitalista, seu principal empregador).

Aqui, numa perspectiva histórico-sistemática, vê-se o Serviço So-cial ocupando um lugar na divisão sociotécnica do trabalho, dentro deum projeto político-econômico hegemônico, desempenhando funçõesde controle e apaziguamento da população em geral e das classes traba-lhadoras em particular, e contribuindo com a acumulação capitalista —através da socialização dos custos de reprodução da força de trabalho edo crescimento da demanda efetiva, e, dentro da empresa, mediante oestímulo ao aumento da produtividade e intensificação do trabalho.

Sua legitimidade recai na função prestada à ordem burguesa, me-diante sua participação fundamentalmente no Estado, como executorterminal de políticas sociais, e não na sua eventual “especificidade”.Como afirmou Iamamoto (Iamamoto e Carvalho, 1991: 71), a legitimi-dade do assistente social surge, não tanto pelo seu caráter técnico espe-cífico, mas pela função política, de cunho “educativo”, “moralizador” e“disciplinador”. Ela entende que

o Serviço Social se institucionaliza e legitima como profissão [...] quandoo Estado centraliza a política assistencial, efetivando através da presta-ção de serviços sociais implementados pelas grandes instituições; comisso, as fontes de legitimação do fazer profissional passam a emanar do pró-prio Estado e do conjunto dominante. (Iamamoto, 1992a: 95)

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Assim, para Netto (1992a: 77), a legitimação é dada pelo desempe-nho das

funções executivas, independentemente da (auto-)representação que de-las façam. Estruturando-se como categoria profissional a partir de tipossociais preexistentes à ordem monopólica, originalmente conectados aum compósito referencial ideal incorporado pelo projeto sociopolíticoconservador (aberto às reformas “dentro da ordem”) próprio à burgue-sia monopolista.

Segundo o autor, é só na ordem monopólica “que a atividade dosagentes do Serviço Social pode receber, pública e socialmente, um cará-ter profissional: a legitimação [...] pelo desempenho de papéis, atribuiçõese funções a partir da ocupação de um espaço na divisão social (e técnica)do trabalho na sociedade burguesa consolidada e madura” (1992a: 69-70). Netto, criticando a influência positivista que leva a atribuir o “fun-damento de legitimidade” profissional desde que tenha uma estruturacientífica e método próprio, entende que “o que tem legitimado a nossaprofissão, é primeiro, uma consagrada divisão social do trabalho” e, so-bretudo, “no atendimento a demandas, sejam elas institucionais ou não”(Netto, 1993: 56-7).

É neste sentido que Mota, estudando o Serviço Social de empresa,entende que “se, aparentemente, a empresa apenas dá legitimidade a umaprática profissional, ratificando sua utilidade social [no sentido de presta-ção de serviços], ao aprofundarmos a questão veremos que, para alémdo que é veiculado como aspecto técnico, está presente o componente polí-tico da requisição, identificado na necessidade de mediar interesses de clas-se” (Mota, 1991: 17; grifos nossos). Para a autora, há que se distinguirentre as necessidades sociais e as demandas profissionais. Estas últi-mas, “a rigor, são requisições técnico-operativas que, através do merca-do de trabalho, incorporam as exigências dos sujeitos demandantes”(Mota e Amaral, in Mota, 1998: 25).

Nesta perspectiva, o que legitima uma profissão, é, portanto:

1) dar respostas (não importa se exclusivas ou não) a determinadasnecessidades sociais;

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2) a existência de instituições e organizações com interesse e capa-cidade de contratar esses profissionais para dar tais respostas.

No caso do Serviço Social, a existência de: 1) a chamada “questãosocial” e suas refrações — sempre presentes no sistema capitalista in-dustrial — e 2) organismos — historicamente o Estado e organizaçõesfundamentalmente ligadas às classes dominantes — que desenvolvampolíticas sociais.46

Neste sentido, entre a necessidade social e a demanda profissionaldo mercado (ou institucional) deve mediar um processo de conversão,que transforme necessidades sociais em demandas e reivindicações dapopulação, e estas em respostas institucionalizadas por parte da socie-dade. Este processo de conversão é histórico, dinâmico. Portanto, sóquando esta conversão de necessidades a respostas assume a forma depolíticas e serviços sociais e assistenciais desenvolvidos fundamental-mente pelo Estado, socializando a responsabilidade e universalizando odireito à satisfação da necessidade, é que aparece legitimamente insti-tuída uma profissão como a de Serviço Social.

A legitimidade profissional apresenta, assim, duas dimensões, ten-cionadas, porém formando necessariamente parte de uma unidade: adimensão hegemônica da legitimidade e a dimensão subalterna.47 Dimen-sões emanadas das partes que compõem o processo de necessidade/demanda/resposta, de reivindicação (das classes subalternas)/deman-da profissional (das classes hegemônicas). Dimensões que expressamum processo tenso e contraditório, da dinâmica social, de luta/conces-são, de conquistas sociais e incorporação funcional das demandas traba-lhistas pela classe hegemônica. Dimensões que remetem a uma relação

46. Então, se em contextos de Estados fortes, intervencionistas e com importante peso empolíticas sociais o Serviço Social prolifera, o que acontece quando o Estado é minimizado e osrecursos para políticas sociais recortados? É uma questão em aberto (sobre isto, ver Netto, 1996;Montaño, 1997; Mota, org., 1998 e Iamamoto, 1998).

47. Em Netto aparecem algumas fontes que sustentam as crises de identidade profissional doServiço Social, dentre elas, duas que nos interessam para ilustrar o que vimos dizendo: “Do lado dasua clientela imediata, toda a validação profissional tende a ser promovida no interior de uma moldu-ra que derroga a base própria da profissionalização — a moldura das suas protoformas filantrópi-cas. Do ângulo dos seus financiadores diretos, a sua legitimação torna-se variável da sua funcionali-dade em relação aos objetivos particulares que colimam” (1992a: 100).

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diferenciada de classes (hegemônica e subalterna) com o profissional.Ambos os aspectos, no entanto, são articulados ao conjunto das relaçõessociais, num determinado estágio de desenvolvimento da sociedadecapitalista, não conformando, assim, “esferas” autônomas, processosdiferentes, mas aspectos relacionais articulados a uma única funcionali-dade e significação social da profissão, no sistema capitalista monopo-lista, a partir da condensação das contradições e lutas de classes.

Por um lado, a dimensão hegemônica remete à relação assistente social/classe demandante-empregador (a classe hegemônica, o capital e seus bra-ços institucionais: o Estado, a empresa e outras instituições).48 Quer di-zer, remete à funcionalidade que a profissão tem para com a classe que oemprega maciçamente, o capital, e seus representantes: o Estado (ou o“capitalista total ideal” — termo cunhado por Mandel (1982: 336), inspi-rado no Anti-Dühring de Engels) e demais instituições.49 Porém este as-pecto não esgota a legitimidade e a significação social da profissão, comoveremos a seguir.

Segundo Martinelli, o Estado “como o criador [do Serviço Social]não podia deixar de legitimar a criatura, tanto essa identidade atribuí-da quanto a prática social desenvolvida pelos assistentes sociais eramplenamente ratificadas pela burguesia”, instalando-se aí um grandeparadoxo: “a legitimação de sua prática não decorreu da populaçãousuária, mas sim da classe dominante — os mandantes da prática — e,depois, os contratantes dos serviços profissionais dos assistentes sociais”(1991: 118-9).

Para Iamamoto, “as fontes de legitimação da demanda do ServiçoSocial não tem sido, ao longo da sua história, derivadas daqueles segmen-tos sociais que são particularmente o foco da ação profissional, mas dossegmentos que controlam as organizações onde atua o assistente social,e através dos quais procuram sedimentar sua influência sobre o conjun-to da sociedade” (1997: XXXI).

48. Por exemplo, o chamado Sistema S: Senai, Sesi, Sesc; ou as fundações de “filantropia em-presarial”: Fundação “Roberto Marinho”, Bradesco etc.

49. Que este aspecto da legitimidade seja caracterizado pela sua relação com o empregador nãopode nos levar a pensar que ele remete à “organização”, mas à classe hegemônica.

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Netto afirma, nesse sentido, que “o Serviço Social se constitui comoprofissão [legítima], inserindo-se no mercado de trabalho, com todas asconseqüências daí decorrentes (principalmente com o seu agente tor-nando-se vendedor da suas força de trabalho)” (1992a: 69).

Desta maneira, é “a condição do agente e o significado social da suaação” (Netto, 1992a: 69), é, em definitivo, a existência de um campo detrabalho (que é ocupado pelo profissional de Serviço Social) constituídofundamentalmente no âmbito do Estado a partir de um projeto de inter-venção estatal nas refrações da “questão social” — em decorrência dasnecessidades da classe hegemônica de se perpetuar no poder e de con-solidar econômica e politicamente o sistema, e das lutas das classes tra-balhistas —, o que configura a dimensão hegemônica da legitimidadeprofissional. São as refrações da “questão social”, postas como proble-mas pontuais (“disfunções”) que afetam o suposto “equilíbrio” do siste-ma, as que constituem os espaços sobre os quais deve intervir o assis-tente social, a partir da demanda da classe hegemônica, via Estado eorganismos representantes do capital.

Assim, afirma Iamamoto, “é nesse contexto, em que se afirma ahegemonia do capital industrial e financeiro, que emerge sob novas for-mas a chamada ‘questão social’, a qual se torna a base de justificação dessetipo de profissional especializado” (Iamamoto e Carvalho, 1991: 77).

Por outro lado, a dimensão subalterna refere-se à relação assistente so-cial/usuário (classes subalternas: os sujeitos para os quais vão dirigidasas políticas e serviços sociais e assistenciais, portanto, para quem é de-senvolvida a ação profissional). Relação esta quase sempre mediatizadapelo Estado ou outros organismos oficiais e empresariais. Não obstanteo usuário não ser o demandante direto da intervenção profissional, nãoser o requisitante e contratante do assistente social, é este sujeito quetransforma suas necessidades e carências em reivindicações e deman-das ao Estado e/ou em lutas contra as classes hegemônicas (ou até con-tra o sistema). É também ele responsável pelo processo de transforma-ção de necessidades (sociais) em demandas (profissionais), do processonecessidades/demandas/respostas, que historicamente, no contextomonopolista, tem tomado a forma de políticas e serviços socais e assis-

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tenciais fundamentalmente sob responsabilidade estatal, e que tem cria-do o espaço para a inserção do assistente social.

É o conjunto das classes trabalhadoras que demanda, pressiona,luta por serviços sociais, assistência, previdência, direitos sociais e tra-balhistas. São essas demandas que obrigam as classes hegemônicas a res-ponder, a incorporar ou a se antecipar a tais demandas, atribuindo (fun-damentalmente) ao Estado este papel e contratando o assistente socialpara tal.

Paralelamente, este profissional só pode desempenhar o papel parao qual é contratado desde que seja aceito e legitimado pela populaçãoassistida. As políticas sociais que ele executa só se tornam eficientes aosseus objetivos se elas conseguem se inserir na realidade dos seus desti-natários. Assim seu executor deve possuir certo grau de legitimidadeperante a população assistida. Desta forma, a gênese do Serviço Socialestá vinculada a uma estratégia da classe hegemônica de controlar nãoapenas o espaço público das pessoas, mas também de levar o controleà esfera do privado, à vida cotidiana, à intimidade das pessoas, decontrolar o trabalhador não apenas na esfera da produção, mas no con-junto da sua vida. Portanto, esse profissional deve estar legitimadopela população, que deve ver no assistente social o “solucionador”dos seus problemas.

A “questão social” se torna, assim, não apenas o fator “disfuncio-nal” e ameaçador do “equilíbrio”, levando a classe dominante, mediati-zada pelo Estado e outras organizações, a desenvolver uma estratégiade controle social por meio das políticas sociais e contratando o assis-tente social como executor delas (dimensão hegemônica da legitimidade pro-fissional), mas a “questão social” se constitui também no motivo peloqual a população demanda ao Estado e aceita a intervenção desse pro-fissional para a solução das suas carências (dimensão subalterna).

O círculo se fecha de forma tensa e contraditória: a classe hegemô-nica deve legitimar o sistema e controlar/conter as insatisfações popu-lares que possam ameaçar seu “equilíbrio natural”, desenvolvendo aacumulação do capital. Para isso, no contexto de um dito “pacto social”,de uma estratégia de “bem-estar”, atua fundamentalmente mediante a

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intervenção estatal nas refrações da “questão social”, implementandopolíticas e serviços sociais e assistenciais. Estes últimos precisam de cer-tos agentes que os executem entre eles o assistente social (o que o legiti-ma perante a classe hegemônica). Contrata-se, assim, esse profissional,que desempenhará sua função em troca de um salário. Desta forma, oassistente social vai intervir nos problemas da população, que o recebe-rá em função da imagem de ajuda, de nexo com o Estado, de que gozamos profissionais, e por “solucionar” suas carências, por responder a suasdemandas (o que o legitima perante a população). Como resultado dis-to o que se espera em meios oficiais (e da classe hegemônica), é a legiti-mação e a consolidação do sistema; o que o usuário espera é a soluçãode suas carências.

Na verdade estas duas dimensões da legitimação não podem servistas como fenômenos divorciados. Há aqui dois tipos de “demandas”que, inter-relacionadas, partem de atores (de classes) diferentes e reque-rem coisas distintas. Primeiramente, a população carente demanda ao Esta-do serviços sociais e assistenciais. Assim, dentro de uma lógica de “pactosocial” (Estados “populistas”, de Bem-estar, keynesianos, enfim, as di-ferentes formas de Estados-providência), com um Estado ampliado, nãomeramente coercitivo, mas que precisa se legitimar também mediante oconsenso (cf. Coutinho, 1994), as classes hegemônicas e o Estado porelas instrumentalizado precisam responder a algumas dessas deman-das como forma de evitar revoltas populares e de potenciar a acumula-ção. É aqui que aparece o segundo tipo de demanda: o Estado e os orga-nismos “oficiais” do capital demandam a intervenção (dentre outros) dos assis-tentes sociais para implementar as políticas sociais, as que irão respondera algumas daquelas demandas sociais. Neste sentido, a demanda dire-tamente feita ao profissional de Serviço Social parte do Estado, da em-presa etc. — da classe hegemônica —, e é a eles que o assistentes socialvincula-se orgânica e institucionalmente através de um contrato de tra-balho. Não obstante, mesmo que de forma indireta, mediatamente, suademanda tem como verdadeiro ponto de partida as necessidades so-ciais, trabalhistas: se a população deixasse de demandar serviços (ou delutar por eles, por novos direitos ou pela preservação dos já conquista-dos), o resultado seria que o capital e o Estado deixariam de demandar

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a intervenção de assistentes sociais.50 Assim, esta dupla relação (quederiva nos dois aspectos da legitimidade profissional), “assistente so-cial/empregador” e “assistente social/usuário”, deve ser entendida comoum processo único: demanda social por serviços estatais — ampliação do Es-tado e intervenção social deste por meio de políticas sociais — demanda e recru-tamento de assistentes sociais (para executarem estas últimas) por parte do Es-tado — legitimação (hegemônica) e consolidação profissional.

A fonte da demanda profissional está na existência da chamada“questão social”, castigando os setores trabalhadores, mesmo que elanão seja direta nem visível e sim mediatizada pelo Estado e outras insti-tuições. O compromisso ético-profissional, portanto, deve estar voltadopara atender os problemas que afetam essas classes sociais (que vivemdo trabalho, cf. Antunes, 1995). É por isso que a opção político-profissio-nal deve, além das orientações ídeopolíticas de cada assistente socialindividualmente (o que pode reforçar ou não aquela opção), se voltarfundamentalmente para a defesa dos interesses e direitos das classestrabalhadoras e para a defesa dos princípios de democracia e justiça so-cial, pois, mesmo que diretamente a demanda do profissional parta dosorganismos ligados às classes dominantes, a verdadeira fonte — apesarde indireta e fetichizada — da demanda por serviços sociais (e, assim,por assistentes sociais), e portanto o fundamento último da legitimaçãoprofissional, está na demanda e luta que a população trabalhadora fazpor serviços sociais e assistenciais, e da conquista de direitos universais, oque indiretamente significa demanda (desta vez feita pelo Estado, empre-sas e organizações) de agentes para elaborar e executar tais serviços.

50. No contexto das sociedades capitalistas é infundado pensar que os trabalhadores deixem dedemandar serviços ao Estado (são direitos do trabalhador, mesmo que disfarçados de “concessões”).Não obstante, se pensarmos num contexto diferente do que emoldurou o Estado-providência, o “pac-to de classes”, se considerarmos um contexto onde, dada a retração das lutas de classes, o Estadotende a ser “minimizado” na sua intervenção social, as políticas sociais reduzidas, onde, enfim, asclasses dominantes não precisam legitimar o Estado com tais medidas, pois o sistema é aceito pelo“livre jogo do mercado” (uma discussão sobre isto encontra-se em Montaño, 1999b: 48), e não sejamais necessário reverter a tendência ao subconsumo nem diminuir o custo de produção da força detrabalho, pois o mercado de consumo e produção estão “globalizados” (qualquer semelhança com arealidade atual não é mera coincidência), neste contexto, mesmo se mantendo e se complexificandoas necessidades sociais e demandas por serviços sociais e assistenciais do Estado (e das empresas),o espaço sócio-ocupacional dos assistentes sociais, sua legitimação, estarão ameaçados.

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É que, travestido naquela “dualidade de relações”, como separa-das, retira-se do imaginário profissional o vínculo direto com a verda-deira demanda social, aparecendo ao profissional sua relação com a po-pulação como mediada pelo Estado e organizações. Assim como o Esta-do transforma direitos e conquistas populares em aparentes “conces-sões” de serviços, também transfigura a verdadeira fonte e fundamentoda demanda por assistentes sociais: toma a demanda por serviços que par-te daqueles direitos e conquistas da população e a mostra (transfiguran-do-a) como uma demanda de emprego (requisição de assistentes sociais)que parte do Estado e organismos da classe hegemônica. Ao mediar arelação entre as classes, o Estado esconde as lutas e demandas por servi-ços e as transforma em atividades estatais autônomas e neutras. Ao fa-zer isto, o assistente social percebe-se, ele próprio, como um mediadorentre a população e o Estado, e percebe a origem da sua demanda pro-fissional não na demanda social (das classes trabalhistas em luta pordireitos), mas na demanda de emprego provinda do Estado.

As dimensões hegemônica e social da legitimidade profissional são,por sua vez, elementos por vezes contraditórios, em constante tensão,de tal forma que fazem do assistente social, com já observou Iamamoto,um “profissional da coerção e do consenso” (1992a: 40-53), um profis-sional que se debate entre “servir a dois senhores”: o empregador e ousuário. Dois sujeitos (duas classes) claramente diferenciados nos seusinteresses, objetivos, tempos etc. Esta tensão que vive o assistente socialentre desenvolver uma intervenção a serviço do seu patrão (e da ordemsocioeconômica e política que representa) ou servir ao usuário das polí-ticas sociais é “resolvida” rápida mas intermitentemente por meio dacrença ilusória de que os interesses de ambos os sujeitos são semelhan-tes, ou, no mínimo, complementares.51 Pensa-se que o Estado, e as polí-ticas sociais perseguem o “bem comum”, entende-se que não há lutas

51. Ou, como afirma Iamamoto, “esta tensão tem sido ‘resolvida’ na trajetória histórica doServiço Social no sentido da adesão objetiva de seus agentes, conscientes ou não, aos interessessociais das classes hegemônicas, traduzidos na direção imprimida à prática e ao modo de pensar que aenforma, o que vem marcando o Serviço Social com o distintivo da imposição. Este caráter socialmenteimpositivo encontra-se na tensão permanente como um dos requisitos dessa ação que supõe obteradesão dos ‘clientes’ a seus propósitos e fundamentos” (Iamamoto, 1997: XXXI).

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de classes, que honesta e “patrioticamente” todos, capitalistas e traba-lhadores, se beneficiam mutuamente, sem haver nisso nenhum tipo decontradição estrutural, apenas problemáticas “disfuncionais”. Não obs-tante isso, nos serviços sociais e assistenciais estão contidas demandas dapopulação historicamente conquistadas. É assim que Iamamoto afirma:

se, por um lado, o profissional é solicitado para responder às exigênciasdo capital, por outro, participa, mesmo que subordinadamete, das res-postas às necessidades legítimas de sobrevivência das classes trabalha-doras. Dessa forma procura-se apreender o movimento contraditório das prá-ticas profissionais no jogo das forças sociais presentes na sociedade. (Iamamoto,1997: XXXVI)

Na verdade, as classes hegemônicas — e o Estado capitalista porelas instrumentalizado — necessitam perpetuar a ordem socioeconômi-ca e política. Para isto, perante a insatisfação (e lutas) popular, produtodas desigualdades sociais, políticas e econômicas, e face às crisessistêmicas e queda da taxa de lucro, precisava-se criar políticas sociais“aprovadas” e “aceitas” pela população, de tal forma que reduzissemreal e ficticiamente aquelas desigualdades, diminuindo com isso a insa-tisfação e a mobilização popular em geral e sindical em particular, e quedestravassem a livre acumulação do capital. Era necessário, portanto,camuflar sua estratégia e seus implementadores. Assim, por um lado,necessitava-se recrutar pessoas que fossem aceitas pela população, quetivessem facilidade de “entrar” em suas vidas. Por outro lado, aquelaspessoas tinham o fundamental papel de viabilizar e tornar possível aimplementação das políticas sociais, necessárias para a diminuição dasrevoltas e mobilização sociais e para a acumulação ampliada do capital.Finalmente, o vínculo empregatício deveria ser mediado pelo Estadocom sua aparência de “neutralidade” e promotor do bem comum.

Desta maneira, “a ideologia dominante encobre, no cotidiano, aapreensão das relações de classe. As relações Serviço Social/usuários sepersonalizam, mascarando seu caráter de classe. Mais: aparece reforçadoum humanitarismo que legitima melhor os interesses institucionais”(Celats, 1991: 60; grifos nossos).

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Esses atores, essenciais para tornar efetivas estas políticas sociais e,portanto, para garantir a estratégia de manutenção e consolidação daordem capitalista na sua fase monopólica, deveriam estar revestidos deum manto que encobrisse sua verdadeira identidade, sua real função,imprimindo na sua “cara visível” uma identidade transportada da filantro-pia. No entanto, disfarçar o caráter funcional ao sistema dominante sig-nifica ocultá-lo tanto da população quanto dos próprios executores52

dessas políticas sociais.

• Assim, por um lado, para tornar imperceptível a funcionalidadedas políticas sociais e para que estas fossem aceitas pela popula-ção, o Estado recruta originalmente, como implementadoresdestas, as pessoas outrora vinculadas às organizações filantró-picas.53 Recrutou-se então, as “damas da caridade”, as quais dis-punham de legitimidade social e aceitação pela sua imagem “ino-fensiva” e caritativa:54 mulheres “bondosas” que desempenha-vam atividades de ajuda, caridade, filantropia. Esta aceitação lhespermitia “entrar” na vida cotidiana do povo, levando com elasas políticas sociais e seus efeitos (os benéficos e os nocivos)55

52. Segundo Guerra, “o vínculo entre a força de trabalho do assistente social e o capital não serealiza de maneira direta. [...] na maioria dos casos essa relação é mediatizada pelo Estado: ainterpolação do Estado engendra uma representação fetichizada da posição que o assistente socialocupa no mercado de trabalho, já que a requisição pelo trabalho profissional aparece como umademanda do Estado, e não do capital”; assim, acrescenta, “de uma parte, esta concepção obscureceas condições concretas que determinam a intervenção profissional, quais sejam, seu vínculo de assalaria-mento. [...] De outra parte, a intervenção profissional enquanto prestação de serviços, ao ser retiradado confronto direto entre capital-trabalho, tem obscurecida sua função política na mediação dos antago-nismos entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista” (Guerra, 1995: 155-156).

53. Martinelli afirma que “era para criar tais ‘bases de sustentação’ [ideológicas e sociais],capazes de garantir a irreversibilidade do capitalismo, que a burguesia desejava utilizar a práticasocial dos filantropos, entre outras estratégias”; o que faziam “utilizando-se da facilidade do aces-so desses agentes à família operária” e “ocultando suas reais intenções em um abstrato discursohumanista” (Martinelli, 1991: 65).

54. Assim, “a Ação Social e a Ação Católica logo se tornam uma das fontes preferenciais derecrutamento desses profissionais” (Iamamoto, 1992a: 20). A autora entende que “essa origemconfessional [das assistentes sociais], articulada aos movimentos de Ação Social e Ação Católica,conforma um tipo de legitimidade à profissão cujas fontes de justificação ideológica encontram-sena doutrina social da Igreja” (1991: 83).

55. Vejam como a procedência dos primeiros assistentes sociais é aleatória, adjetiva, secundá-ria em relação ao fato, este sim fundante, substantivo, da sua funcionalidade a um projeto da classehegemônica.

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transfiguradas em “concessões” e “benesses” estatais e “solu-ções” para os problemas.

• Por outro lado, para encobrir o fundamento político-econômicodas políticas sociais de seus próprios implementadores, fazen-do-os sentir sua função como “ajuda ao trabalhador” — no queMartinelli chama de “fetiche da prática” —, os assistentes so-ciais deveriam submeter sua prática aos controles políticos (ecientíficos), deslocando-a da elaboração, feita externamente aoServiço Social, das políticas sociais. Desta forma, o Serviço So-cial pôde se desenvolver técnica e até teoricamente, desde quenão contivesse pontos de vista críticos e totalizantes. Neste sen-tido, a profissão aparece vinculada subalternamente às “ciên-cias”, as que lhe dotariam do conhecimento (segmentado) darealidade sobre a qual o assistente social deveria intervir. Segun-do afirma Iamamoto,

a reificação dos métodos e técnicas de intervenção, a burocratização dasatividades, a psicologização das relações sociais, a absorção de uma ter-minologia mais adequada à estratégia de crescimento econômico acele-rado são fatores, entre outros, que contribuem para encobrir na consciênciado profissional as reais implicações de sua prática [...]. Essa perspectiva impli-ca a reafirmação e aprofundamento da subordinação do Serviço Social àsnecessidades da política estatal da dominação e controle. (Iamamoto,1992: 34-35)

Desta forma, este ator aparece como um profissional subalterno,onde a extrema “especialização” (e compartimentalização) do conheci-mento não permitia aos assistentes sociais apreender globalmente o ver-dadeiro sentido de sua prática.56 Assim, segundo Martinelli, num ver-dadeiro “fetichismo da prática”,

envolvendo seus agentes na ilusão de servir e os destinatários de suaprática na ilusão de que eram servidos, a classe dominante procurava

56. Os desdobramentos disto na atualidade serão tematizados no item 2 do capítulo II.

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mascarar as reais intenções do sistema capitalista, impedindo que este setornasse transparente. (1991: 67)

Assim, se as formas de ajuda (caridade e filantropia) vão caracteri-zar certas respostas às refrações da “questão social” que, institucionali-zadas, qualificadas e organizadas, serão agora (no monopolismo) de-senvolvidas fundamentalmente pela profissão de Serviço Social, no en-tanto, não pode se ignorar a substantiva diferença nos papeis e signifi-cação sociais, na funcionalidade, na base de sustentação e, portanto, nalegitimidade entre a caridade/filantropia e a profissão de Serviço Social:um trabalhador assalariado, recrutado pelo Estado (e órgão da classehegemônica) para executar políticas sociais como respostas oficiais àsrefrações da “questão social”, de forma tal de mediar os interesses dasclasses subalternas, diminuindo conflitos e favorecendo a acumulaçãocapitalista.

3. As políticas sociais e o Serviço SocialInstrumento de reversão ou manutenção das desigualdades?

por Alejandra Pastorini*

O terceiro ponto a considerar, conformando o tripé gênese-legiti-mação-políticas sociais, onde se contrapõem duas teses, refere a comosão entendidas, sob as diversas perspectivas do Serviço Social, as políti-cas sociais e sua funcionalidade em relação ao sistema socioeconômico epolítico.

As análises desenvolvidas nos pontos precedentes, sobre a gêne-se e legitimação da profissão, permitem-nos visualizar a existência de

* O presente texto sobre “As políticas sociais e o Serviço Social” é da autoria de AlejandraPastorini. O mesmo foi gentilmente cedido com o fim de completar a análise global tal como foiexposta em: “Génesis y Legitimidad del Servicio Social. Dos tesis sobre el origen del Servicio So-cial, su legitimidad y su función en relación a las Políticas Sociales”, publicado pela Fundación dela Cultura Universitaria, Documentos de Trabajo Social nº 20, Montevidéu, 1994.

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um vínculo genético entre o Serviço Social e as políticas sociais, não só peloseu surgimento simultâneo mas também por seu posterior desenvolvimen-to paralelo.

Esse vínculo estreito deriva, tal como foi salientado, do lugar que,no nosso entender, o Serviço Social ocupa na divisão sociotécnica dotrabalho no início de uma sociedade capitalista na fase monopolista.Assim, esse assistente social legitima-se profissionalmente enquantoexecutor terminal das políticas sociais, quer dizer, legitima-se a partirdo desempenho de papéis e funções a ele atribuídos pelo Estado, ondeessas políticas sociais são criadas e implementadas. Desta forma, a se-gunda tese de ambos os pontos anteriores nos outorga elementos essen-ciais para a compreensão da intrínseca relação, fundamentalmente nasua gênese, entre o Serviço Social e as políticas sociais. Estas últimas nãosão apenas um campo de trabalho privilegiado, mas o fundamento dagênese profissional do assistente social.

Podemos visualizar a existência de diferentes formas de conceberas políticas sociais. Vale dizer, estas são pensadas diferentemente se-gundo a concepção que se tenha do Estado e segundo a ênfase dada àsdiferentes funções que elas cumprem na sociedade.

Desta forma, estabelecemos a hipótese de que: a cada uma das gran-des concepções sobre as políticas sociais relaciona-se, teórica e logicamente, e deforma coerente, uma das teses referidas à gênese/legitimação do Serviço Social.

Isto não quer dizer que esse vínculo seja mecânico, mas que existeuma correlação lógica, que mostra maior compatibilidade entre cada umadas considerações sobre políticas sociais e as teses já analisadas, o quepermite ver uma tendência a vincular cada uma das concepções sobrepolíticas sociais e a gênese/legitimação do Serviço Social entre elas. Éválido mencionar, novamente, que essas posições, longe de carecer desentido, derivam de e integram as considerações que seus detentoresfazem em relação ao Estado, à sociedade capitalista e à mudança social,quer dizer, segundo os paradigmas econômicos, sociológicos e políticosnos quais eles têm seu ponto de partida. Assim:

3.1. Os autores que entendem as políticas sociais como aquelas ações queprocuram diminuir as desigualdades sociais geradas a partir das “naturais”

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diferenças entre os sujeitos e suas relações na sociedade e no mercado,tendem a conceber a gênese do Serviço Social “como profissão” a partirda profissionalização da filantropia (primeira tese).

As políticas sociais são aqui entendidas como um conjunto siste-mático de ações que têm como principal função a redistribuição social darenda. Assim, nesta concepção de política social, que também é endogenista,ela é pensada e definida como meramente “redistributiva”.

Aqui, elas são concebidas como um conjunto organizado de ativi-dades voltadas para corrigir ou reduzir os efeitos negativos que, parauma parte da população, produz a “natural” lógica do sistema capitalis-ta. Quer dizer, as políticas sociais seriam aquelas ações que orientam oesforço social para a obtenção de um aumento nos níveis e qualidade devida da população, contribuindo, dessa forma, para a diminuição dasdesigualdades sociais. Assim, estes pensadores definem como meta daspolíticas sociais e, portanto, do assistente social a elas vinculado, a admi-nistração, a racionalização e redistribuição dos “escassos” recursos co-munitários e/ou sociais, como forma de melhorar o bem-estar da popu-lação em seu conjunto.

• Desta forma Jorge Graciarena dirá que:

as políticas sociais [...] [são] elaborações apendiculares, cuja função cen-tral é a correção, mediante a assistência social, dos efeitos malignos que pro-duz uma determinada estratégia de crescimento capitalista (1982: 77).

Este autor entende que as políticas sociais surgem no momento emque o mercado, como instância distributiva e eqüitativa, começa a serquestionado, aparecendo assim a necessidade de uma importante inter-venção estatal — sendo as políticas sociais, para este autor, a alternativapara tais desigualdades sociais.

Assim, essas ações desenvolvidas pelo Estado, são denominadasgenericamente como políticas sociais, teriam, nessa perspectiva, um ca-ráter compensatório, paliativo e corretivo suficiente para reverter as desi-gualdades produzidas no mercado em conseqüência do desenvolvimentocapitalista.

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• Numa linha de análise semelhante, Rolando Franco conceituaas políticas sociais como

a intervenção na realidade, por meio de ações (se possível, coordenadas)que destinam recursos escassos para aumentar o bem-estar da populaçãoem seu conjunto, o que em geral se atinge (principalmente) diminuindoos setores que vivem em situação de pobreza (1988: 65).

Evidencia-se, nesta definição, a exaltação da busca do “bem-comum”por parte do Estado, a “naturalização” sem remédio da origem das desi-gualdades e da pobreza, geradas em sociedades de “recursos escassos”e a diminuição “quase mágica” dos setores espoliados, através da meraexecução de políticas sociais, sem que sequer seja tocado nenhum ele-mento sistêmico ou estrutural, sem que seja alterada a distribuição ori-ginal. Assim, pensando que em toda sociedade existem “naturalmente”desigualdades, Franco afirma que “a desigualdade é um componenteestrutural inevitável de toda sociedade” (ibidem), onde “as políticas so-ciais, segundo este autor, são apenas um elemento entre outros paragerar sociedades menos desiguais” (idem: 23).

Desta forma, perante a naturalização das desigualdades, apresen-ta-se como alternativa válida uma melhor “redistribuição”, ou seja, uma“redistribuição menos desigual” dos recursos sociais. É assim e paraisso que entram em cena as políticas sociais, fundamentalmente ligadasa modelos de Estado benfeitores, populistas etc. Procurando reverter asdesigualdades “naturais” produzidas na sociedade e no mercado, elasse fundamentam em uma lógica de “desigualdade de signo contrário”.

Quer dizer, as políticas sociais são criadas, segundo esta perspecti-va, para compensar as desigualdades, de forma que tal como se fosseum homeostato, torna-se necessário que estas sejam tão desiguais quantoé a distribuição original desenvolvida no mercado — a partir da partici-pação na esfera produtiva —, porém em sentido contrário. Se a distri-buição original do “livre” mercado privilegia uns e desfavorece outros,as políticas sociais “redistributivas” devem favorecer aqueles outros, semprivilegiar esses uns. Com este mecanismo de compensação, pensamesses autores, estar-se-ia equilibrando as desigualdades, estar-se-ia com-

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batendo a pobreza, o que, na realidade, não passa de uma românticaesperança.

Na verdade, a redistribuição por via das políticas sociais não é su-ficiente sequer para compensar as desigualdades socioeconômicas epolíticas geradas inicialmente no mercado ou na esfera produtiva. É que,na realidade, esses pensadores fazem alusão à “redistribuição” e não à“distribuição”, ou seja, as políticas sociais têm a finalidade de repartir osrecursos escassos e cujos custos são socializados (todos contribuem para pro-duzi-los, não só aqueles que são mais favorecidos ou privilegiados nasociedade) por meio da tributação (hoje, cada vez mais indireta).

Assim, por um lado, os recursos com que contam as políticas so-ciais para “reverter” a situação de desigualdade são sumamente escas-sos, reduzidos, insuficientes para atingir tal objetivo e, além de mais, sãoobtidos desconsiderando-se, em certos casos, quase totalmente o nívelde riqueza dos “contribuintes”; quer dizer, socializando quase homoge-neamente os custos das políticas sociais, carregando em toda a popula-ção quase por igual (e o imposto ao valor agregado — IVA — é o melhorexemplo disso) a responsabilidade de dotar de recursos as políticas so-ciais. Elas são absolutamente insuficientes para reverter as enormes dis-tâncias geradas nas esferas produtivas e mercantil da sociedade, ondeos recursos produzidos e distribuídos são, na verdade, abundantes. Des-ta forma, as desigualdades geradas a partir de recursos abundantes (nasesferas da produção e do mercado) não podem ser revertidas pela(re)distribuição desigual, mas ao contrário, via políticas sociais, dos es-cassos recursos com que elas contam. Da mesma maneira que, para usarum exemplo banal, a divisão desigual de um bolo de casamento de trêsandares não pode ser revertida com outra divisão desigual, que benefi-cie os prejudicados na primeira distribuição, sobre os restos dos pratos.Na verdade, o que estamos querendo sublinhar, é que esta tal “redistri-buição”, mesmo sendo “desigual e de signo contrário” (ao da distribui-ção original), não reverte a situação de desequilíbrio social, na medidaem que a “distribuição original” é feita sobre a totalidade dos recursossociais produzidos, enquanto esta “redistribuição”, via políticas sociais,é feita sobre uma pequeníssima parcela deles.

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Por outro lado, esta ligação das políticas sociais à “redistribuição”(e não à distribuição) faz delas um instrumento “dócil” e funcional aosistema capitalista, que para nada incide, questiona ou condiciona a dis-tribuição desigual original que tem início na esfera produtiva e que serealiza no nível do mercado. Quer dizer, a intervenção estatal por meiodas políticas sociais não implica que se intervenha na economia de for-ma significativa (revertendo as desigualdades), salvo para reforçar a ló-gica capitalista (contribuindo para a valorização do capital) por meio dealguns poucos benefícios outorgados àqueles prejudicados no mercado.

Como pode se ver, esta concepção de política social aborda priori-tariamente uma faceta da questão; aqui o aspecto econômico redistributi-vo é exaltado por sobre outros elementos (político e político-econômico),e até pode, em muitos casos, ser visto como exclusivo. Esta visão é re-sultante de um duplo divórcio, que entendemos profundamente equi-vocado:

a) por um lado, aos aspectos econômicos lhes é retirada qualquer co-notação política ou social, quer dizer, são “despolitizados”, transforman-do-os em elementos naturais a toda sociedade;

b) por outro lado, os aspectos políticos são “deseconomizados”; as-sim, separando a política da economia, aquela é convertida apenas na“administração das coisas”.

Existe, portanto, um evidente divórcio, nesta perspectiva, entre adimensão política e a econômica, sendo que, desta forma, priorizando oaspecto econômico redistributivo (“despolitizado”) das políticas sociais,nunca se poderia chegar além da mera constatação destas como meca-nismos redistributivos, corretivos e paliativos.

É que ao “despolitizar” a esfera econômica, tanto na produção quan-to na distribuição, ela é “naturalizada” e considerada “um mal necessá-rio”, como uma instância que, sem remédio, necessariamente gera desi-gualdades, o que implica também naturalizar as diferenças socioeconô-micas. Desta forma, esses autores esquecem obviamente que as políti-cas sociais são um produto concreto do desenvolvimento capitalista, desuas contradições, da acumulação crescente do capital etc.; são, assim,um produto histórico, e não um desenvolvimento “natural”.

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Como sugerem as expressões dos autores dessa corrente, existe aimagem de um Estado representante do “bem comum”, como um ins-trumento que atende igualmente aos diversos interesses da sociedadeem seu conjunto, quer dizer, como uma instância “deseconomizada”que, considerada sob uma perspectiva eminentemente administrativa,procura elevar os níveis de vida de todos os habitantes, maximizando aigualdade e o bem-estar da população. Tudo isto num pretendido con-texto de escassa conflitividade sociopolítica.

Em decorrência disso, para esses autores estamos na presença depolíticas sociais redistributivas, paliativas e corretivas dos efeitos nega-tivos (para alguns) gerados pelo “natural” e “necessário” desenvolvi-mento capitalista, pela “modernização”. Políticas públicas planejadasno âmbito político e executadas por profissionais preocupados com obem-estar social, com o bem comum, com o combate à miséria. Nosdefrontamos então, com os assistentes sociais, profissionais vinculados àviabilização dessas políticas sociais redistributivas, que aparecem, nes-sa tese, como os instrumentos organizados e eficientes de suas antigasações filantrópicas.

Partindo, portanto, dessa perspectiva de sociedade, naturalmentedesigual; de concepções do Estado como promotor do bem comum, edas políticas sociais como instrumento de “reequilíbrio”, diminuição dedesigualdades e, portanto, de redistribuição, visualiza-se, então, logica-mente, o vínculo com a tese que entende a gênese do Serviço Social comoa profissionalização da filantropia.

Efetivamente, se as políticas sociais são vistas como instrumentosde combate à miséria e de redução das desigualdades sociais, jamaispoder-se-ia ver o assistente social como um ator (ligado à execução daspolíticas sociais) conformado e legitimado por um projeto político-eco-nômico da classe hegemônica, de barateamento da força de trabalho, dediminuição dos conflitos sociais, de legitimação do sistema.

A partir de uma perspectiva “endogenista” e particularista, vê-se oServiço Social como uma etapa mais desenvolvida (organizada etecnificada) da caridade e da filantropia. Esta profissionalização da filantro-pia implicaria, como sujeito, a constituição da profissão do assistente social, ecomo instrumento, a elaboração de políticas sociais.

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• Assim, Helena Iraci Junqueira, caracterizando a realidade socialcomo desigual em relação às oportunidades que oferece, conce-be as políticas sociais como objeto de intervenção do assistentesocial. Neste sentido, a autora define estas últimas como

conjunto orgânico de diretrizes que orientam a ação governamental noque diz respeito:a) ao atendimento das necessidades básicas do homem;b) à otimização dos níveis de vida da população;c) à equalização de oportunidades;d) à adequação ou reformulação das estruturas, instituições e sistemas,com vistas a que venham a responder às exigências da efetivação da pró-pria política. (In Batista, 1980: 50)

• Por outro lado, os documentos do CBCISS (Centro Brasileiro deCooperação e Intercâmbio de Serviço Social), fundamentalmen-te através dos trabalhos de Ottoni Vieira, refletem como são pen-sadas, nesta perspectiva, as políticas sociais no Serviço Social.Assim, elas são entendidas como:

conjunto de programas e medidas cujo objetivo é assegurar o bem-estarsocial, tal como definido por determinada sociedade, tanto a curto comoa longo prazo, e que reflete certas prioridades e valores tidos como im-portantes para a referida sociedade (CBCISS: “Formas de consulta e asnecessárias prioridades para implementar políticas sociais adequadas”,in Ottoni Vieira, 1979: 14).

• Esta conceitualização das políticas sociais é complementada porBalbina Ottoni Vieira, que estabelece que estas têm por finalidade

“alcançar o bem-estar para toda a população”. E acrescenta, “é difícildefinir o bem-estar social: designa uma situação, uma condição, um esta-do, um conjunto de medidas, capazes de proporcionar aos indivíduos eàs famílias condições normais de vida e oportunidades para tornar a vidasempre mais feliz, em todos seus aspectos” (1979: 25).

Estas duas últimas posições refletem a concepção abstrata do bem-estar humano perseguido, segundo esses autores, pelas políticas sociais.

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Este bem-estar é pensado como um estado relativo, ou seja, como umasituação que varia de uma sociedade para outra, e que ao mesmo tempoproporcionará ao indivíduo (perfectível, único, particular, digno etc.)felicidade dentro da família (entendida esta como a célula básica da so-ciedade).

O vínculo entre esta concepção de políticas sociais (como redistri-butivas) e a tese sobre a gênese do Serviço Social (como profissionaliza-ção da caridade e da filantropia) resulta, portanto, lógica e coerente.

Desta forma, nesta perspectiva o assistente social, segundoIamamoto, converte-se num mensageiro da “ideologia do trabalho”,confirmando

a condição do trabalho assalariado como elemento constitutivo da or-dem social “natural”, ao mesmo tempo em que propõe como objetivofazer da prática profissional um instrumento de reconhecimento da pes-soa do trabalhador, enquanto indivíduo particular, enquanto “sujeito”.Os efeitos da exploração capitalista do trabalho são reconhecidos e trans-formados em “problemas sociais” justificadores da ação profissional;mas não se colocam em questão as razões históricas dessa exploração. 57

(1992: 28-9)

3.2. Assim, contrariamente ao anterior, aqueles profissionais que enfati-zam os aspectos políticos e político-econômicos das políticas sociais, tendem apensar a gênese do Serviço Social vinculada a um projeto político, ondeo profissional assume um papel de executor terminal de políticas sociais(segunda tese).

Desta forma, na medida em que as políticas sociais são vistas, paraalém da sua função social, como mecanismos de articulação tanto de proces-sos políticos (que perseguem o consenso social, a aceitação e a legitima-ção da ordem social, a integração e desmobilização da população, amanutenção das relações, a redução de conflitos etc.) quanto econômicos

57. Com esta reflexão, a autora trata do “Serviço Social conservador” que, embora não sereferindo ao mesmo caso entendemos que nos aponta igualmente elementos para compreender asignificação desta perspectiva sobre as políticas sociais.

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(contratendência ao subconsumo, redução dos custos de manutenção ereprodução da força de trabalho, favorecendo a acumulação do capital,conforme infra) e se o Serviço Social surge como uma profissão vincula-da à execução dessas políticas sociais, então, confirmando nossa hipóte-se, o assistente social se legitima como ator através do desempenho dasmesmas funções: a prestação de serviços — função social — que, mesmoque real, se apresenta como função aparente que encobre as outras duasfunções: a econômica e a política. Esta funcionalidade do Serviço Social,derivada da funcionalidade das políticas sociais, só pode ser desvenda-da desde que se supere a perspectiva endogenista, procurando enten-der a profissão a partir da luta de classes no momento em que o Estadotoma para si as respostas à “questão social”.

As políticas sociais assim compreendidas têm como alvo as seqüe-las da “questão social”, quer dizer, aquele conjunto de problemáticassociais, políticas e econômicas geradas com o surgimento da classe ope-rária, dentro de uma sociedade capitalista (Netto, 1992a: 13). Seu objeti-vo, portanto, é assegurar as condições necessárias para o desenvolvi-mento do capitalismo monopolista e as conseqüentes concentração ecentralização do capital, e não a mera correção dos efeitos negativosdesses processos.

a) Desta forma, com acentuada ênfase nos aspectos políticos, as po-líticas sociais são pensadas como mecanismos de legitimação do Estado ca-pitalista e, desse modo, indiretamente, elas contribuem para a legitima-ção da ordem sociopolítica vigente, supondo ser o Estado, por elas legitima-do, um instrumento de dominação e controle de um grupo sobre outro.

Nessa ótica, relaciona-se a emergência das políticas sociais, alémdo já apontado aspecto legitimador, à necessidade de regulação e con-trole dos conflitos sociais por parte do Estado.

• Assim, Wanderley Guilherme dos Santos (1987), que faz estudohistórico da interferência governamental na regulação social noBrasil, afirma, segundo a análise que dele faz Werneck Vianna,que “a emergência da política social [está relacionada] à necessi-dade de regulação estatal dos conflitos gerados pela forma in-dustrial de produção e acumulação capitalista” (in WerneckVianna, 1989: 9).

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Vê-se claramente aqui o estreito vínculo, estabelecido pelo autor,entre as políticas sociais e os processos de legitimação social e de elimi-nação da conflitividade, das tensões etc., em certo período de capitalis-mo monopolista.

Embora essa interpretação seja correta, é necessário levar em cons-ta outros elementos (tanto econômicos quanto sociais) que dão uma idéiamais abrangente da questão. Ao pensar as políticas sociais exclusiva-mente como ações por parte do Estado capitalista tendentes à regulaçãoe ao controle de uma classe (ou fração de classe) sobre as outras, descui-da-se do papel por elas desempenhado dentro dos processos econômi-cos na produção e na distribuição dos bens sociais e a importância socialque elas carregam. Uma análise mais precisa seria, em nosso entender,aquela que levasse em consideração tanto a presença dos aspectos eco-nômicos quanto dos políticos e sociais.

Por outro lado, o autor analisa as políticas sociais a partir do Estadoe, por fim, do ponto de vista do capital, descuidando, nos seus estudos,da perspectiva da sociedade, dos trabalhadores, dos usuários dessaspolíticas sociais. Assim percebidas, elas só podem ser entendidas comoações do Estado voltadas para o controle, a hegemonia e legitimação,mas nunca como um mecanismo, vinculado ao aspecto econômico-polí-tico, de socialização dos custos de produção (através da passagem dareprodução da força de trabalho do capitalista à sociedade civil comoum todo) e de acumulação de capital (que compensa a queda tendencialda taxa de lucro).

É baseado nesta forma de pensar as políticas sociais, e especifica-mente sua gênese, que Santos estrutura sua concepção de “cidadaniaregulada”:

por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes en-contram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistemade estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratifica-ção ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são ci-dadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram locali-zados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei.(1987: 68)

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Desta forma, o autor tenta explicar o mecanismo por meio do qualo Estado consegue institucionalizar a vida da população, enquadrá-lainstitucionalmente e, com ela, a participação social, os reclamos e até osprováveis conflitos derivados do processo de acumulação capitalista.

• Também Aldaíza Sposati realça a função política das políticassociais. Ao analisar as políticas de assistência social, afirma que:

as políticas de assistência social contêm um efeito político que compõemsua aparência e operação: emprestam uma face humanitária de bem ebondade a seus gestores e um ocultamento, pela dependência e subalter-nidade, à capacidade política de seus usuários. Assim, enquanto osgestores aparecem como benfeitores, “doutores caridosos”, [...], a popu-lação mecânica e burocraticamente incluída em tais serviços, transformasua pobreza econômico-financeira em pobreza social e política. (1988: 40)

Esta autora, sem deixar de reconhecer a função econômica dessaspolíticas sociais, dará uma maior ênfase à questão política, ou seja, àqueleselementos que dizem respeito à dominação social, à legitimação da or-dem estabelecida e à fragmentação dos setores subalternos; para Sposati(1988: 39-40),

a “atenção” à “pobreza”, [...] é mais uma ação a conter as sublevaçõessociais e não uma das formas dos serviços estatais assegurarem direitosaos mais espoliados [...]. Vistas como inimigas públicas da ordem, asmassas empobrecidas são estrategicamente mantidas na exclusão, o quereforça sua impotência e desorganização. Com isto, o poder político do-minante, além de impedir seu reconhecimento como classe e sua partici-pação nos grupos institucionalizados, a mantém como alvo de promessae demagogia populista.

Sposati, ao fazer esta afirmação em relação às políticas sociais, en-quanto mecanismos que enfrentam a “questão social” decorrente dacontradição capital-trabalho, deixa transparecer a sua concepção de queeste é um movimento multidireccional, quer dizer, do o Estado para asociedade e vice-versa. Assim, nesse duplo movimento, o Estado, paramanter a exclusão econômica e política dos subalternos, deve ao mesmo

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tempo atender algumas das suas demandas e reivindicações. É aqui olugar que ocupam, segundo a autora, as leis trabalhistas.

Desta forma, as políticas sociais serão pensadas principalmente soba ótica política, como mecanismos que contribuem para a legitimidadedos grupos no poder, promovendo a subordinação “tranqüila” dos se-tores subalternos.

b) Por outro lado, enfatizando, numa perspectiva de totalidade, osaspectos econômico-políticos, as políticas sociais são vistas como mecanis-mos de redução dos custos de manutenção e reprodução da força de trabalho,favorecendo a acumulação e a valorização do capital, além de ser instrumentosde legitimação da ordem e de redução de conflitos.

• É assim que Vicente de Paula Faleiros define as políticas sociaiscomo “formas de manutenção da força de trabalho econômica epoliticamente articuladas para não afetar o processo de explora-ção capitalista e dentro do processo de hegemonia e contra-he-gemonia da luta de classes” (1986: 80).

Na ótica do autor (pioneira dentro do Serviço Social), as políticassociais são percebidas como formas ou mecanismos de relação entreaqueles processos políticos e os processos político-econômicos. Assim, Faleiros(relativizando sua concepção anteriormente exposta, e manifestando certaambigüidade), acrescenta que

as políticas sociais do Estado não são instrumentos de realização de umbem-estar abstrato, não são medidas boas em si mesmas, como soemapresentá-las os representantes das classes dominantes e os tecnocratasestatais. Não são, também, medidas más em si mesmas, como algunsapologetas de esquerda soem dizer, afirmando que as políticas sociaissão instrumentos de manipulação, e de pura escamoteação da realidadeda exploração da classe operária. (1991: 55)

Para Faleiros, as políticas sociais cumprem diversas funções: ideoló-gica, onde, “ao mesmo tempo que estigmatiza e controla, esconde dapopulação as relações dos problemas sentidos com o contexto globaldas sociedade” (idem: 58); de contratendência à queda tendencial da taxa de

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lucro, assumindo o Estado investimentos não-rentáveis ou que exigemelevado volume de capital, estimulando o capital privado com recursospúblicos (crédito, subvenções), dotando o capital de infra-estrutura parasua circulação etc. (Idem: 59-60); de valorização e validação da força de traba-lho, mantendo um exército industrial de reserva, qualificando o traba-lhador e brindando condições para sua manutenção (idem: 63-67); dereprodução das desigualdades, criando uma “‘perversidade’ social” me-diante um ciclo vicioso de exploração e manutenção do trabalhador(idem: 68) e de manutenção da ordem social, através de sua legitimaçãopolítica (idem: 69-72).

As políticas sociais, desde o variado ponto de vista de Faleiros, sópodem ser entendidas como um produto histórico concreto, dentro do con-texto da estrutura capitalista na idade dos monopólios.

• As reflexões de José Paulo Netto avançam mais ao destacar que

o capitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições, cria con-dições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação políticaatravés do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas,que podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações ime-diatas [...].

É somente nestas condições que as seqüelas da “questão social” [...] po-dem tornar-se objeto de uma intervenção contínua e sistemática por par-te do Estado. (1992: 25; grifos nossos)

Para este autor é necessário pensar as políticas sociais a partir de umaótica econômica e política, quer dizer, nem meramente econômica (e aindamenos se se restringe, como fazem na perspectiva anterior, aos aspectosredistributivos), nem exclusivamente como mecanismos políticos, massim como produtos da articulação de ambos os aspectos.58

58. “É a política social do Estado burguês no capitalismo monopolista, [como diz Netto], [...]configurando a sua intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as seqüelas da ‘questãosocial’, que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções econômicas epolíticas que é própria do sistema estatal da sociedade burguesa madura e consolidada” (Netto,1992: 26).

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Netto entende a política social como imbricada e certamente res-ponsável na socialização dos custos de reprodução da força de trabalho.Assim, para ele,

no capitalismo dos monopólios, tanto pelas características do novo or-denamento econômico quanto pela consolidação política do movimen-to operário e pelas necessidades de legitimação política do Estado bur-guês, a “questão social” como que se internaliza na ordem econômico-política: não só apenas o acrescido excedente que chega ao exército in-dustrial de reserva que deve ter a sua manutenção “socializada”; não ésomente a preservação de um patamar aquisitivo mínimo para as cate-gorias afastadas do mundo do consumo que se põe como imperiosa;não são apenas os mecanismos que devem ser criados para que se dê adistribuição, pelo conjunto da sociedade, dos ônus que asseguram oslucros monopolistas — é tudo isto que, caindo no âmbito das condiçõesgerais para a produção capitalista monopolista (condições externas einternas, técnicas, econômicas e sociais), articula o enlace, já referido,das funções econômicas e políticas do Estado burguês capturado pelocapital monopolista, com a efetivação dessas funções se realizando aomesmo tempo em que o Estado continua ocultando a sua essência declasse. (Idem: 25-6)

Assinala com isso o cumprimento dos dois objetivos: por um lado“a funcionalidade essencial da política social do Estado burguês no ca-pitalismo monopolista se expressa nos processos referentes à preserva-ção e ao controle da força de trabalho”; por outro lado, “são instrumen-tos para contrarrestar a tendência ao subconsumo” (idem: 27). Assim,manifesta-se seu verdadeiro sentido, pois, como afirma Netto, “o pesodestas políticas sociais é evidente, no sentido de assegurar as condiçõesadequadas ao desenvolvimento monopolista” (ibidem).

Outorgam o sustento necessário à ordem sociopolítica, oferecemrespaldo para criar uma imagem do Estado como “social”. A políticasocial, por outro lado, é fragmentada em “políticas sociais” devido àsegmentação da “questão social” como “problemas sociais” parciais (tal-vez como “disfunções”), ficando apenas a possibilidade de atacar as re-frações, e não as causas, da “questão social” (cf. Netto, 1992a: 27-8).

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• Numa perspectiva semelhante, Marilda Villela Iamamoto anali-sa o significado dos serviços sociais desenvolvidos através daspolíticas sociais, tanto para os usuários quanto para os setoresresponsáveis de sua implementação. Assim, diz Iamamoto

do ponto de vista das classes trabalhadoras, estes serviços podem ser encara-dos como complementares, mas necessários à sua sobrevivência, diante deuma política salarial que mantém os salários aquém das necessidadesmínimas historicamente estabelecidas para a reprodução de suas condi-ções de vida [...]. Porém, à medida que a gestão de tais serviços escapainteiramente ao controle dos trabalhadores [...] tendem a ser utilizadas comomeio de subordinação dessa população aos padrões vigentes.

Do ponto de vista do capital, tais serviços constituem meios de socializar oscustos de reprodução da força de trabalho [...]. São encarados, portanto como“salário indireto” [...]. Tornam-se meio de reduzir os custos de reprodução daforça de trabalho. Também são um dos meios de manutenção do exército in-dustrial de reserva. (Iamamoto, 1992: 97; (grifos nossos)

Desta forma, ficam evidenciadas as funções econômica e social queessas políticas públicas cumprem. Mas a autora enfatizará que elas cum-prem outra função não menos importante, quer dizer, função política.Assim, fazendo referência ao assistente social como um dos executoresterminais dessas políticas sociais, dirá, como já foi exposto, que:

o assistente social é solicitado não tanto pelo caráter propriamente “téc-nico-especializado” de suas ações, mas antes e basicamente, pelas fun-ções de cunho “educativo”, “moralizador” e “disciplinador” que, me-diante um suporte administrativo-burocrático, exerce sobre as classes tra-balhadoras [...]. Radicalizando uma característica de todas as demais pro-fissões, o assistente social aparece como profissional da coerção e do consen-so, cuja ação recai no campo político. (Idem: 42)

Esta análise de Iamamoto permite observar como as políticas so-ciais são depositárias de uma dualidade contraditória. Elas mostram aosbeneficiários uma imagem “redistributiva”, reparadora, enquanto de-sempenham, para as classes dominantes, um papel econômico de dimi-

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nuição dos custos de manutenção e reprodução da força de trabalho,socializando o que antes era uma carga exclusiva do empregador.

• Partindo assim do pressuposto de que as políticas sociais de-vem ser pensadas sob uma perspectiva de totalidade, estrutural ehistórica, entendemos necessário analisá-las como instrumentosque desempenham não uma, mas sim várias funções:59

— Por um lado, as políticas sociais cumprem uma função social.

Elas têm uma clara e real função de gerar certa redistribuição dosrecursos sociais. Assim, primeiramente, prestam serviços sociais e assis-tenciais necessários para a população (urbanização, atendimento sani-tário e educação públicas, subsídios no transporte etc.) e, em segundolugar, outorgam um complemento ou substituto salarial por meio dadotação, direta ou indireta, de dinheiro às populações carentes. No en-tanto, na verdade, esta função mascara e encobre as funções essenciaisque as políticas sociais desempenham.

Estas políticas sociais, por sua vez, contêm um duplo processo con-traditório e complementar que implica uma passagem do público aoprivado e vice-versa, dependendo da ótica da análise. Assim, sob a óticado usuário, o atendimento das demandas populares por intermédio daspolíticas sociais gera um processo que implica uma passagem do público(onde os indivíduos são pensados enquanto sujeitos ativos, que partici-pam ativamente no mundo, como possuidores de direitos que eles mes-mos conquistaram) ao privado (onde estes sujeitos são pensados enquan-to individualidade, com sua problemática pessoal e como clientes doEstado e das políticas sociais). Por outro lado, analisando este processosob a ótica do fornecedor, quer dizer, sob a ótica do Estado, vemos que eleimplica um movimento do privado (da figura do capitalista com únicoresponsável de reproduzir e capacitar sua força de trabalho em condi-ções adequadas para a produção) ao público (os custos de produção ereprodução da força de trabalho são socializados, saem parcialmenteda responsabilidades privada capitalista e passam em grande parte à

59. Para uma análise mais detalhada das funções das políticas sociais, ver Pastorini, 1995.

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responsabilidade do Estado e da sociedade no seu conjunto). Com aimplementação das políticas sociais, o Estado passa a se encarregardas lacunas deixadas pelo mercado; é agora o Estado, e não o capitalis-ta, quem se responsabilizará pela produção e reprodução da força detrabalho, por um lado, e pela facilitação da satisfação das necessidadesbásicas daqueles sujeitos carenciados, excluídos do mercado de traba-lho, por outro.

Iniciamos nossa análise da funcionalidade das políticas sociais pelafunção social por considerar que ela constitui a realidade aparente“fenomênica” das políticas sociais; é o véu que encobre as funções es-senciais que elas contêm. Isto não implica, de forma nenhuma, desco-nhecer a importância que esta função possui para com a população des-tinatária de tais serviços. Assim, Iamamoto ajuda-nos a desvendar estedilema, quando entende que

tais serviços, públicos ou privados, nada mais são do que a devolução àclasse trabalhadora de parcela mínima do produto por ela criado masnão apropriado, sob uma nova roupagem: a de serviços ou benefíciossociais. Porém, ao assumirem esta forma, aparecem como sendo doados oufornecidos ao trabalhador pelo poder político diretamente ou pelo capital, comoexpressão da face humanitária do Estado ou da empresa privada. (Iamamoto, inIamamoto e Carvalho, 1991: 92)

O que queremos destacar aqui é que as políticas sociais se apresen-tam perante os indivíduos como aqueles mecanismos tendentes a dimi-nuir as desigualdades sociais, redistribuindo seus escassos recursos numsentido contrário ao do mercado: quem menos tem será a que mais rece-berá das políticas sociais. Mas, na verdade, este sistema de “solidarieda-de social”, sobre a qual se baseiam as políticas sociais, não é outra coisasenão a “casca”, a superfície que recobre e encobre o “caroço”, o centroda questão, neste caso as suas funções política e econômica (que tratare-mos a seguir).

Dessa forma, destacamos a real importância que tem a função so-cial. Por isso é necessário partir dela, quer dizer, tomar como ponto departida a realidade visível, aparente, das políticas sociais (sua função

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social) como forma de poder desvendar a sua medula, já que só é possí-vel chegar à essência se partirmos dos fenômenos concretos. Como afir-ma Kosik na sua Dialética do concreto, “as formas fenomênicas da reali-dade [...] são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias coma lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleointerno essencial e o seu conceito correspondente”. Neste sentido “omundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e enga-no. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essên-cia e, ao mesmo tempo, a esconde” (Kosik, 1989: 10-1). Ou, nas palavras deMarx, a realidade concreta “é para o pensamento um processo de sínte-se, um resultado, e não um ponto de partida, a pesar de ser o verdadeiroponto de partida e portanto, igualmente o ponto de partida da observa-ção imediata e da representação” (Marx, 1977: 218-9), dado que, comoexpressa o mesmo pensador octocentista, “se essência e aparência coin-cidissem, a ciência seria supérflua”.

Isto significa que a essência pode ser desvelada a partir do mesmoelemento que a esconde: o fenômeno. Este último, ao mesmo tempo quepermite chegar até a essência, esconde-a, isso porque os fenômenos secomportam de forma dialética e contraditória.

• No que se refere a sua função econômica, entende-se, dentro des-sa concepção, que as políticas sociais do Estado capitalista con-tribuem para reverter o subconsumo, para o barateamento da forçade trabalho e, conseqüentemente, para a acumulação ampliada docapital.

Esta função se concretiza por meio da transferência, direta ou indi-reta, de bens, dinheiro, bônus etc. (vale dizer, complementos salariais)do Estado para os setores mais carentes, ou por intermédio da prestaçãode serviços sociais, como são a saúde pública, os seguros sociais etc.

Essas medidas alternativas que se apresentam sob a forma de sa-lários indiretos ou complementos salariais têm como objetivo compen-sar a queda do salário real. Quer dizer, as políticas sociais contribuempara o barateamento dos custos de produção e de reprodução da forçade trabalho (portanto, dos custos de produção de mercadorias), na

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medida em que agora o capitalista não tem exclusivamente a obriga-ção de atender por si só as necessidades de sobrevivência e reproduçãoda força de trabalho, como era sua função até o século XIX. Hoje, parteimportante desses custos são retirados das empresas e levados à órbitaestatal, onde passa a complementar as insuficiências salariais e a cobriras necessidades básicas insatisfeitas (fundamentais à sobrevivência dotrabalhador).

Os mecanismos para isto são as políticas sociais, as que são finan-ciadas por meio dos recursos tributários, quer dizer, socializando seuscustos. Hoje, é toda a população que financia as políticas sociais, as queservem como complemento salarial. Antes, só o capitalista tinha a fun-ção de, com um salário, cobrir as necessidades de sobrevivência e repro-dução da força de trabalho.

Em outras palavras, quando o salário recebido pelo trabalhador,em troca do seu trabalho despendido, não é suficiente para satisfazer asnecessidades básicas, entram em cena os complementos salariais, aspolíticas sociais e, portanto, uma das formas mais eficientes de socializaros custos de reprodução da força de trabalho, fato que tem como contra-partida a privatização dos lucros. Como diz Lojkine,

a intervenção estatal é a forma mais elaborada, mais desenvolvida, daresposta capitalista à necessidade de socialização das forças produtivas, o quepossibilita “dar uma primeira definição das políticas urbanas dos Esta-dos capitalistas desenvolvidos: são ‘contratendências’ produzidas pelopróprio MPC [Modo de Produção Capitalista] para regular, atenuar osefeitos negativos” do capitalismo sobre a população (e sobre os equipa-mentos urbanos, como aponta o próprio Lojkine) (1981: 168-169).

Entretanto, outra forma de barateamento da força de trabalho édesenvolvida mediante os subsídios e subvenções que o Estado realizasobre certos produtos e serviços que afetam a sobrevivência do traba-lhador, como transporte, alimentação etc.

Com isto, a população trabalhadora pode ter condições de consu-mo, revertendo-se, assim, a nefasta tendência ao subconsumo (cf. Netto,1992a: 27).

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Desta forma, as políticas sociais, seus programas de “ajuda social”(por exemplo, as transferências de bens e serviços), seus subsídios esubvenções etc., têm como um de seus objetivos principais contribuircom a reprodução da força de trabalho. Mas essas políticas sociais são finan-ciadas com recursos públicos, provenientes dos impostos (principalmenteos indiretos, como o já citado IVA) pagos pela população toda. É assimque todos — e não só aqueles que são favorecidos no processo de pro-dução — subsidiam e contribuem para a produção dos recursos queserão destinados à reprodução dos trabalhadores.

Deve-se reconhecer o papel que o Estado desenvolve como fatoranticrise — quer dizer, o Estado (que é uma garantia da manutenção dascondições necessárias à produção e reprodução do capital) intervém coma intencionalidade de estabelecer um contrapeso à queda tendencial da taxade lucro. Para isso, ele assume os investimentos não rentáveis para ocapital (investimentos de infra-estrutura, equipamentos físicos de con-sumo coletivo etc.) Quer dizer, as políticas sociais também atuam comocontratendência à queda tendencial da taxa de lucro.

• Chegamos finalmente à função política dessas políticas sociais.

Estas, primeiramente, devem ser pensadas dentro de um contextode lutas entre classes contraditórias e opostas — portanto, não podemser vistas nem como “simples” concessões das classes dominantes paracom os subalternos, nem como fruto exclusivo das pressões e reivindi-cações dos setores populares.

Desde o momento em que o Estado é pensado sob uma “concepçãoampliada” (cf. Coutinho, 1994: 44 e ss.), ele converte-se num espaço dedisputas de interesses entre classes, não sendo mais mero instrumentoda burguesia. Assim, nessa ótica, o Estado e as políticas sociais são ex-pressões da correlação de forças e das lutas presentes na sociedade civil;e isso também não significa que as políticas sociais sejam conquistasabsolutas dos setores subalternos — pelo contrário, são a resultante pro-duzida entre as reivindicações e pressões populares e as concessões dosgrupos majoritários no poder com o objetivo de obter legitimidade econtrole social.

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As políticas sociais, da mesma forma que o Estado, não podemser analisadas estritamente como mecanismos que contribuem para aacumulação do capital (como mecanismos de produção e reproduçãoda ordem capitalista). Pelo contrário, devem ser pensadas como umarelação entre classes, como uma mediação entre a sociedade civil e oEstado, que reflete sua dupla característica de coerção e consenso, deconcessão e “conquista”.60

É assim que, contraditoriamente, se por um lado elas operam pormeio da prestação de serviços, como um elevador dos níveis de vida dapopulação, entretanto, por outro lado geram as condições de aceitação elegitimação da ordem social vigente, perante as classes populares. Isto trazconseqüências diretas e significativas revertendo a insatisfação e a mo-bilização da população, desestimulando a participação popular, o queoutorga ao Estado e aos setores hegemônicos certo controle sobre asclasses subalternas da sociedade civil.

As políticas sociais são entendidas, em segundo lugar, como umdos mecanismos por meio dos quais se procura garantir a integração doscidadãos à ordem social, o sentimento de pertencimento, adesão e as lealdadesnecessárias para a preservação da estabilidade sociopolítica. Quer dizer,para evitar a “saída” e controlar a “voz”, o Estado deve procurar a “leal-dade” dos membros da sociedade, diria Hirschman (1977).

Assim, os avanços no espaço da cidadania e da democracia (mes-mo que parciais), quer dizer, nos direitos civis, políticos e sociais, nãopodem ser entendidos nem como um resultado natural, nem como umaconcessão dos setores dominantes. Muito pelo contrário, são o resultadofundamentalmente de longas lutas sociais. Mas, por outro lado, tambémnão é possível desconhecer que essa participação eleitoral é uma forma maisde legitimar a ordem social, política e econômica, e, ao mesmo tempo, é ummeio de controlar e manipular a participação dos cidadãos na vida pública.

60. Para nós, em lugar de falar do binômio “concessão-conquista” seria mais correto falar deum processo que se inicia com a reivindicação de demandas dos subalternos, o que implica (devi-do ao caráter contraditório do sistema) uma luta entre setores e classes contraditórias, e onde seestabelece uma negociação entre as partes (negociação que implica ganhos e perdas de ambos oslados) e que tem como ponto de chegada o outorgamento, via políticas sociais, de “concessões”para alguma das demandas dos setores subalternos. Esta temática encontra-se analisada mais emdetalhe in Pastorini, 1997.

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Por esta via obtém-se maior integração dos setores subalternos à vidapolítica e social e, portanto, à ordem socioeconômica, estabelecendo pa-drões de participação, instâncias onde participar etc., o que não faz maisdo que limitar a real participação, ao mesmo tempo que elimina e geramaior adaptação à ordem estabelecida; obtendo-se, dessa forma, um senti-mento de pertencimento e lealdade dos sujeitos para com o sistema doqual eles mesmos formam parte e sob o qual “decidem”.

No nosso entender, este é um mecanismo para enquadrar, limitan-do institucionalmente a participação. Ou seja: pretende-se, por meio daintegração e adaptação dos indivíduos ao sistema, conjuntamente comas alianças entre os diferentes setores, contrapor o avanço dos subalter-nos, como forma de ampliar o controle social.

Assim, finalmente, as políticas sociais participam da reprodução daestrutura política, econômica e social (reprodução das condições de domi-nação, subordinação e das desigualdades sociais) e contribuem paraobter a aceitação e a legitimidade necessárias para a manutenção da or-dem social.

O Estado apresenta-se perante os indivíduos como se fosse neutro,acima dos interesses de classes, como mediador e amortecedor dos con-flitos sociais. Dessa forma, ao mesmo tempo em que dá resposta a algu-mas das necessidades dos trabalhadores — quer dizer: ao mesmo tem-po que fornece as condições (mínimas) de sobrevivência dos indivíduos—, contribui também para reproduzir a sua situação de classe subordi-nada e as desigualdades inerentes ao sistema capitalista.

Dessa forma, a questão das desigualdades sociais não aparece maiscomo uma questão vinculada à esfera produtiva e passa a ser um pro-blema de distribuição, onde a solução seria uma melhor (re)distribuição,que deve ser resolvida fora da instância produtiva.

Para obter tal legitimação é necessário que o Estado, por intermé-dio das políticas sociais, atenda as demandas da população, já que sóassim poderão ser controlados e contidos os eventuais conflitos sociais,econômicos e políticos. Ou seja, essas políticas sociais operam como um“colchão” amortecedor dos conflitos (potenciais ou reais) derivados dascondições do processo de produção capitalista.

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Para tornar isto possível, é necessário que técnicos e profissionaisse encarreguem da formulação e da execução das políticas sociais. Nestesentido, como entende Netto, “enquanto profissão, o Serviço Social éindissociável da ordem monopólica — ela cria e funda a profissão doServiço Social” (1992a: 70).

Esta busca de legitimação e consenso é canalizada por meio daspolíticas públicas e especialmente mediante as ações desenvolvidas pe-los assistentes sociais, enquanto “executores terminais” destas. Assim,por um lado tende-se ao estabelecimento de uma espécie de “acordo”entre os setores sociais, entre as classes, como forma de manter a ordem,atendendo algumas demandas pontuais dos setores subalternos. Poroutro lado, parece necessário o controle social, a desmobilização me-diante a diminuição da insatisfação.

Este duplo caráter sublinhado, a coerção e o consenso, é reproduzidopelas políticas sociais e conseqüentemente, pelo assistente social, um dosprofissionais encarregados da sua execução (cf. Iamamoto, 1992a: 42).

Digamos que é perfeitamente lógica e coerente esta concepção depolítica social com a segunda tese sob a gênese do Serviço Social. Efeti-vamente, se partirmos da consideração de que essas políticas públicasrepresentam, numa dupla lógica de consenso e coerção, o desenvolvimen-to de três funções — uma social (a prestação de serviços e a transferênciade recursos sociais à população carente — “redistribuição”), uma econô-mica (a desresponsabilização parcial do capitalista em relação aos custosde produção e reprodução da força de trabalho, e sua socialização) eoutra política (a diminuição da insatisfação popular, tendendo à desmo-bilização e ao controle social, com o fim de obter a legitimação e aceita-ção do Estado e do sistema político-econômico) é lógica e teoricamentecoerente considerar a gênese do Serviço Social não como desenvolvi-mento, organização e profissionalização da filantropia (herdada desdelonge na história), mas como um profissional criado e legitimado a par-tir da sua participação na necessária execução terminal dessas políticassociais.

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CAPÍTULO II

A reprodução da natureza elegitimidade do Serviço Social

Embora as análises feitas no capítulo anterior se refiram às diferen-tes teses ou formas de compreender os fundamentos e a funcionalidadedo Serviço Social e seu vínculo com as políticas sociais, elas remetemapenas à sua gênese, ao momento de criação da profissão. É preciso, noentanto, distinguir gênese de estrutura, surgimento de evolução.

O desenvolvimento profissional e político do Serviço Social mostrasubstanciais diferenças entre esta emergência e a situação posterior aela, especialmente após o movimento reconceituador.

Hoje temos uma profissão cuja massa crítica intelectual aparececomo certamente consciente da natureza, funcionalidade, do papel so-cioprofissional e dos fundamentos políticos do Serviço Social; um pro-fissional que provem de diversos estratos socioeconômicos; que maciça-mente possui certas destrezas e conhece uma série de técnicas, desen-volvidas, muitas vezes, a partir de opções teórico-metodológicas explí-citas. A massa crítica intelectual do Serviço Social contemporâneo, já háalgum tempo, apresenta elementos de interlocução no debate das ciên-cias sociais e nas áreas onde o profissional trabalha interdisciplinarmen-te. Há uma produção, no âmbito profissional, de pesquisas substanti-vas, não apenas sobre a prática profissional, mas também sobre a reali-dade social e suas manifestações objetivas (atuais e emergentes), tendo

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se consolidado a produção de bibliografia própria. Na produção de me-lhor qualidade, o debate teórico-metodológico substitui as análises“metodologistas” ao mesmo tempo em que abandonou-se a perspectiva“epistemologista” para adotar uma visão ontológica do ser social. A cate-goria profissional, no Brasil, vem desenvolvendo um currículo mínimo,tendo instaurado, desde 1970, a pós-graduação em sentido estrito (mes-trado e doutorado), e conta com a existência de instituições como a atualAbepss (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social),organizando e coordenando debates e pesquisas do coletivo profissio-nal. No resto do continente existem diversos cursos de pós-graduação— iniciado com o mestrado latino-americano em Honduras, desde 1979,mas hoje extensivo à Argentina (convênio com a PUC-SP), Chile, CostaRica, Porto Rico, Uruguai (convênio com a UFRJ), Venezuela, e diversospaíses onde estão em processo de instauração. Também a relevânciapolítico-profissional da Alaets (Associação Latino-Americana de Esco-las de Trabalho Social), assim como diversas associações profissionaisnos diferentes países, não deve ser desconhecida.

Sem dúvida nenhuma, nossa profissão tem evoluído e se distanci-ado em muitos aspectos próprios dos fundamentos da sua gênese. OServiço Social não é, hoje, o mesmo. No entanto, esta profissão e estesprofissionais desenvolvem, eles próprios, uma dinâmica (auto)reprodutorados seus aspectos genéticos, que reforçam a razão de ser imprimida nasua emergência pelo projeto político-econômico que a concebeu. Efeti-vamente, o Serviço Social, mesmo tendo evoluído e se distanciado dasua gênese, mesmo tendo questionado e criticado diversos elementosque marcam as origens da profissão, não conseguiu romper com sualógica fundacional. Nem a contundente crítica desenvolvida no maisimportante movimento da profissão na América-Latina desde sua cria-ção, a Reconceituação, conseguiu romper de vez com sua tradição e seufundamento genético, não indo além de uma “intenção de ruptura” (cf.Netto, 1991; Silva e Silva, 1995 e 1999). O conservadorismo profissionaltem se reposto e recriado sob novas roupagens, (auto)reproduzindo a“crítica romântica do capitalismo”; a segmentação positivista do real e aseparação entre ciência e técnica; a autonomização do processointerventivo e seu instrumental, de um projeto societal; os diagnósticos

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situacionais isolados da dinâmica social mais ampla; a rigidez da consi-deração dos campos de intervenção (sem sair das áreas tradicionais) etc.

Esta dinâmica “(auto)reprodutora”, por vezes até perversa, recriano presente (repõe, na atualidade, de forma atualizada) certos aspectosque provêm da sua origem, da sua gênese, sem permitir um desenvol-vimento profissional de maior relevância. Assim, “o trato crítico [ao con-siderar a gênese do Serviço Social] do passado, desmitificando as apa-rências humanitárias universalistas veiculadas na cultura profissional, éparte constitutiva e indissociável deste esforço de ruptura com a preten-dida ‘ingenuidade epistemológica e ideológica’ que encobriu historica-mente o forte teor conservador da cultura teórico-prática do Serviço So-cial, cujas marcas, sob novo visual, ainda hoje sobrevivem” (Iamamoto,1997: XXIII). Isto, obviamente, não identifica o Serviço Social na sua ori-gem e na atualidade, porém certos aspectos são reciclados, como numaciranda, e constituem os elementos intrínsecos que impedem uma rup-tura mais sólida com os elementos de subalternidade, acriticidade e fun-cionalidade instrumental para a manutenção do status quo, próprios dasua emergência.

Esta grande dificuldade de romper com a lógica conservadora quemarcou a gênese do Serviço Social, no caso brasileiro, fundamenta-seessencialmente no fato de que, até finais dos anos 1970, como apontaIamamoto,

diante do clima repressivo e autoritário, fruto das mudanças políticasda década de 60, os assistentes sociais refugiam-se, cada vez mais, emuma discussão dos elementos que supostamente conferem um perfil pe-culiar à profissão: objetos, objetivos, métodos e procedimentos de inter-venção, enfatizando a metodologia profissional. (Iamamoto, 1992: 33;grifos nossos)

Ou, como afirma Netto, “em outras palavras: impossibilitado dequestionar-se socialmente, o Serviço Social brasileiro se questionou meto-dologicamente” (in Iamamoto, 1992a: 33). Em conseqüência, “a tecnificaçãoeufemiza o paternalismo autoritário presente na ação profissional”(Iamamoto, 1992a: 33).

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Isto significa que o contexto político autoritário dos anos 1960, 1970e início dos 1980, no Brasil, restringe as possibilidades de que o ServiçoSocial se questione política e socialmente, que discuta seu lugar na divi-são sociotécnica do trabalho, seu papel político como reprodutor dasrelações sociais. Apenas lhe é permitido (ou possível) aperfeiçoar seuinstrumental técnico-metodológico, ou seja, somente pode se tornar maiseficiente no que faz sem questionar por que o faz e para quem o faz.

Desta forma, fundamentalmente em países onde a repressão deum golpe militar de Estado não chega senão na década de 1970, umconjunto de profissionais que — noutra perspectiva teórica e ideológica,e até com outra origem de classe (trabalhadores de classe média e médiabaixa) e tradição política (em muitos casos vinculados a partidos políti-cos de esquerda, a sindicatos e/ou com participação no movimento es-tudantil, ou noutros movimentos populares, e na “esquerda cristã”) —procuraram a ruptura com a tradição profissional, com sua herança con-servadora, não conseguiram, no entanto, obter êxito na tentativa.

Efetivamente, inspirados no e/ou vinculados ao Movimento deReconceituação, esses profissionais criticam o “metodologismo”, supe-rando a mera análise das técnicas e a perspectiva modernizadora daprofissão. Eles assumem a realidade política da profissão, o papel queela desempenha como adaptador e moralizador, procurando “colocar-se, objetivamente, a serviço dos interesses dos usuários, isto é dos seto-res dominados da sociedade” (Iamamoto, 1992a: 37).

No entanto, esse movimento não consegue passar de uma “buscade ruptura com a herança conservadora” (idem: 35 e 122), de uma mera“intenção de ruptura” (Netto, 1991: 247) sem sucesso contundente, fi-cando, portanto, amarrado à sua herança, a certos aspectos da tradiçãoque marcou a gênese da profissão e desenvolvendo uma prática ambí-gua de inovação/conservação, de mudança/permanência, de ruptura1/continuidade.2 “O trabalho do Assistente Social se insere numa relação

1. “A profissionalização”, diz Netto, “instaurou idealmente um quadro de referência e deinserção prático-institucional que cortou com as protoformas do Serviço Social” (1992a: 96).

2. “A validação efetiva”, acrescenta Netto, “destes passos [metodológicos], todavia, perma-neceu jungida à mesma eficácia que validava a prática assistencialista — a eficácia na manipula-ção de variáveis empíricas, no rearranjo da organização do cotidiano” (ibidem).

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de compra e venda de mercadorias em que sua força de trabalho émercantilizada. Aí se estabelece uma das linhas divisórias entre a ativi-dade assistencial voluntária [...] e a atividade profissional” (Iamamoto eCarvalho, 1991: 85).

Trataremos, no presente capítulo, tomando como referência o con-texto atual, apenas dos aspectos internos à profissão, não tematizando,portanto, as pressões sociais, o projeto político-econômico atual da clas-se hegemônica que refuncionaliza o Serviço Social, o presente contextosociopolítico e econômico (realidades sumamente necessárias para com-por um quadro completo do panorama e da realidade profissional). Éque o nosso objetivo, nesta obra, não é realizar uma análise sobre a atualfuncionalidade/legitimidade da profissão (sobre a mudança atual da“base de sustentação funcional-ocupacional do Serviço Social” (cf.Montaño, 1997); veja-se também o contundente artigo de Netto, 1996).Nossa intenção agora é colocar, não de forma autônoma, descontextua-lizada, mas sim analiticamente, alguns dos aspectos (auto)reprodutoresda lógica genética do Serviço Social. Aqueles que, segundo entendemos,nos permitem compreender melhor este fenômeno, como a subalternida-de funcional/profissional do assistente social, a constante busca da preten-dida especificidade profissional, onde supostamente recairia sua legitimi-dade (a perspectiva endogenista), a idéia, derivada do anterior, de que aprática profissional imediata constitui a fonte da sua teoria (o praticismodo Serviço Social) e a necessidade de superar as dificuldades para deter-minar e intervir em realidades emergentes.

Procuraremos relacionar cada ponto com a reprodução de algunsdos aspectos considerados no capítulo anterior.

1. O caráter de subalternidade do Serviço Social

Um dos fatores que reproduzem, mesmo que de forma diferencia-da, a lógica da gênese do Serviço Social é o seu caráter de subordinação.Efetivamente, a profissão do assistente social encontra-se ancorada emdiversos aspectos que a colocam em posições de limitada liberdade eautonomia para romper com a lógica do seu passado, lógica que, como

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já foi dito, caracteriza o Serviço Social como uma profissão vinculada àexecução terminal das políticas sociais que visam a reprodução da forçade trabalho e a legitimação da ordem capitalista.

Desta forma, o presente ponto vincula-se com a reprodução do carátercom que a segunda tese sobre a gênese do Serviço Social fundamenta aorigem desta profissão dentro da divisão sociotécnica do trabalho.

Como veremos, o presente é o único aspecto que refere a relaçõesou condições que não dependem basicamente das opções, escolhas ouvontades dos protagonistas do próprio Serviço Social. Por este motivo éque as questões que serão aqui tratadas relacionam-se com as conside-rações que fazem os autores que, no capítulo anterior, situamos na se-gunda tese (os que sustentam a emersão da profissão vinculada a umprojeto sociopolítico da fração da classe hegemônica, onde a legitimaçãoda profissão deriva da sua funcionalidade socioeconômica e política e aspolíticas sociais como instrumentos que desenvolvem funções, para alémde social-assistencial, também política e econômica), enquanto as de-mais considerações vinculam-se às análises dos autores da primeira tese(aqueles que entendem a gênese do Serviço Social constituída na/pelaorganização e tecnificação da filantropia e caridade, a legitimação da pro-fissão sendo atribuída à(s) especificidade(s), e que concebem as políticassociais como instrumentos meramente redistributivos). Assim, dos vá-rios aspectos vinculados à subordinação e subalternidade do ServiçoSocial trataremos apenas de quatro, considerados substantivos: a ques-tão do gênero, o empobrecimento do estudante/profissional, a condi-ção de funcionário público e a conceituação do Serviço Social como tec-nologia e sua relação com as “ciências sociais”.

1.1. A questão do gênero no Serviço Social

Este aspecto será considerado brevemente, apenas para ressaltarque sua evidência empírica não elimina sua relevância.

O Serviço Social, como profissão eminentemente feminina, tem, nestefato, o seu primeiro elemento de subalternidade, na medida em que se in-

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sere em sociedades marcadas e regidas por padrões patriarcais e “ma-chistas”.

Netto, tematizando os fundamentos e o estatuto “científicos” doServiço Social, identifica uma relação importante entre “a institucionali-zação profissional do Serviço Social e o fenômeno, universalizado e in-discutível, de ele apresentar-se como ‘profissão feminina’” (Netto, 1992:84). Para o autor, esta questão é substantiva para a caracterização doestatuto profissional, substituindo a afirmação de que este se sustentano substrato “científico” da profissão, sendo que esta condição reafirmao caráter subalterno do Serviço Social. Para ele, “entre outros elementos,compõe-se aí o quadro, prenhe de dilemas, da afirmação socioprofissio-nal de atores neste mesmo âmbito (socioprofissional) profundamentemarginalizados” (ibidem); o que o leva a afirmar que “isso reproduz umcerto tipo de destino da profissão” (in Abess, 1993: 74).3 O fato de amulher ser “executiva do assistencialismo”, ligado a “um estatuto su-balterno de mulher, a um estatuto verdadeiramente de dominação” des-ta sociedade, já que “na nossa cultura, o assistencialismo é predominan-temente feminino”, está vinculado e reproduz o “substrato assistencia-lista da profissão” (ibidem).

Por outro lado, distinguindo o trabalho obrigatório (aquele que otrabalhador é compelido a fazer para obter um salário e prover a suasubsistência própria) do voluntário (o de busca e doação da subsistênciapara outrem), Faleiros identifica a passagem do Serviço Social como prá-tica voluntarista — ligada à caridade e filantropia das instituições reli-giosas, burguesas etc., pertencentes à sociedade civil — a um desempe-nho profissional ligado ao trabalho obrigatório, assalariado, “quando oEstado assumiu esse serviço na dinâmica das suas relações com a socie-

3. Para o autor, esta temática é tão importante na afirmação do seu estatuto profissional, nasua gênese, pois, nesta sociedade, “a mulher não deve cuidar de coisas muito importantes. Quandoela sai de casa, se não é para tocar piano e dançar ballet, vamos deixar que ela fazer a caridadezinha,esse negocinho menor, subalterno” (Netto, In Abess, 1993: 74).

Alguns exemplos ilustrarão o que estamos dizendo. Temos nos deparado diversas vezes, nanossa vida profissional, com assistentes sociais de enorme valia e capacidade; não obstante isso,elas não têm de seus cônjuges o reconhecimento da sua importância, “deixando” portanto que sedesempenhem profissionalmente apenas quando as tarefas do lar estiverem terminadas e muitasvezes como um papel secundário.

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dade, [e] foi transformando os serviços sociais em atividades estatais,incorporando, cooptando ou subsidiando uma série de ações que eramdesenvolvidas pela sociedade civil” (Faleiros, In Abess, 1993: 76).

Deve-se enfatizar, nesta análise, o papel dos movimentos femi-nistas e as lutas das mulheres por melhores condições de inserção navida laborativa, democrática, na vida profissional, além de condiçõesde igualdade no seio do lar. Efetivamente, não pode se pensar o desen-volvimento de uma profissão eminentemente feminina se não se rele-var a inserção da mulher no mercado de trabalho, e esta inserção nãopode ser explicada senão a partir de uma tensa e contraditória lutafeminista por ampliar seus espaços na sociedade. Tensa e contraditó-ria porque, se esta luta conduziu a verdadeiras conquistas das mulhe-res na vida social, paralelamente significou para o capital contar commão-de-obra mais barata e com menores custos para a reprodução daforça de trabalho.4 O papel das lutas feministas, ampliando os direitose inserção das mulheres na sociedade ocidental, torna-se peça funda-mental para compreender o surgimento de uma profissão como a deServiço Social.

Mesmo assim, como afirma Netto “a ruptura com o regime do vo-luntariado não equivaleu à ruptura com a subalternidade técnica (e social) àqual se destinava e alocava a força de trabalho feminina” (1992a: 84).

Para o autor — que compunha o painel da Abess, onde ele e Faleirostematizaram estas questões —, é válida a hipótese de que “pela via daprofissionalização no Serviço Social, contingentes femininos conquista-ram papéis sociais e cívicos que, fora desta alternativa, não lhes seriamacessíveis” (idem: 85, nota 7). No entanto, se o Serviço Social se consti-tuiu num espaço de inserção social e ocupacional para as mulheres (talcomo outras profissões), ele não foi suficiente para colocar a mulher numaposição de igualdade (social, ocupacional e política). E, circularmente, a

4. Agora não é apenas um trabalhador, o “chefe de família”, que recebe um salário (direto e/ou indireto) suficiente para reproduzir socialmente a força de trabalho (o trabalhador e sua famí-lia), mas dois trabalhadores, ou mais, por família, os que dividem os recursos necessários parareproduzir a força de trabalho. Mais trabalhadores para os mesmos recursos. Sobre isto, cf. Marx,1980, 1, I: 449 ss. (“Apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares. O trabalho dasmulheres e das crianças”).

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profissão do assistente social não pôde romper com sua condição subal-terna na relação com as “profissões masculinas”.

Nestas condições, o Serviço Social é estigmatizado como uma pro-fissão auxiliar, de assistência. De assistência num duplo sentido: por um lado,a assistência que realiza aos setores carenciados da população, aos seus“usuários”; mas também, por outro lado, aquela assistência que dirige,como profissional subalterno e auxiliar, a outros profissionais — médi-cos, advogados etc.

O Serviço Social não é visto, portanto, como uma profissão quetoma decisões, que participa “produtivamente” na divisão do trabalho,que participa na definição dos objetivos gerais das políticas sociais ouno seu desenho, com autonomia para definir os recursos a empregar, osbeneficiários da sus ação, que possui um conhecimento teórico-univer-sal sobre o social (apesar de que diversos assistentes sociais sim atuemnestes níveis). Pelo contrário, o Serviço Social é em geral identificado,em concordância com o papel que as sociedades “patriarcais” atribuemàs mulheres,5 como uma profissão que executa as decisões dos outros(os “políticos”), que conhece a realidade social por meio dos olhares dooutros (os “cientistas sociais”) e que assiste às populações carentes, mascomo auxiliar de outros profissionais (médicos, advogados etc.).

5. Mesmo tendo se alterado, ao longo dos dois últimos séculos, a participação socioeconômicae política da mulher (hoje ela pode eleger e ser eleita na maioria dos países, também 45% dosmatriculados no sistema educacional é de sexo feminino e 41% da força de trabalho nos paísesindustrializados — e 35% a nível mundial — se compõe de mulheres), dois terços da populaçãoanalfabeta do mundo são mulheres, elas ganham entre 30% e 40% menos que os homens por igualtrabalho, em 1993 apenas 10% dos cargos parlamentares eram ocupados por mulheres (fonte: Bre-cha, Montevidéu, 1/9/95: 12 — surpreendentemente muitos destes indicadores mantêm-seinalterados, cf. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13/11/97: 26), sem descartar a violência familiar esocial a que está sujeita a mulher, o assédio sexual, a segregação no trabalho etc.

Iamamoto destaca alguns “atributos” essenciais às mulheres: “seriedade, modéstia, gosto deservir, negação de si mesma [...], capacidade de ‘entrar’ na vida alheia, de compreender os demais,além de fina intuição peculiar” (Iamamoto, 1992a: 49, nota 8).

Além do mais, as “Rosa Luxemburgo” constituem verdadeiras exceções ao impenetrável se-xismo intelectual e acadêmico, composto por franca maioria masculina. Basta dar uma rápida olhadaem qualquer biblioteca de profissionais ou institutos acadêmicos. A exceção é constituída pelopróprio Serviço Social, onde a maioria dos seus interlocutores são mulheres.

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E esta representação, esta imagem, existe não apenas entre outrosprofissionais, mas entre os usuários dos serviços sociais e até entre ospróprios assistentes sociais.6

1.2. O empobrecimento do estudante/profissional de Serviço Social

Uma outra questão, que atinge, especialmente a partir dos anos1960 e 1970, as universidades como um todo é a massificação do ensinode terceiro grau. Com aumento da matrícula de todas as disciplinasuniversitárias — produto, entre outras coisas, do crescimento popula-cional, de migração campo/cidade, do aumento do desemprego (quefaz com que o jovem, não podendo se iniciar no mercado de trabalho,tenha que prolongar seus estudos), da inserção da mulher no mercadode trabalho (que a obriga agora a se preparar para isso) e do desenvolvi-mento tecnológico (que leva a necessidade de especializar os profissio-nais, prolongar o período de estudo e aumentar o número de técnicoscapacitados — uma espécie de “exército profissional de reserva”) —, cria-se uma superpopulação nas universidades, que redunda no ingresso deum leque mais abrangente no perfil socioeconômico dos estudantes.

Efetivamente, pela primeira vez, jovens provenientes de estratossocioeconômicos médio-baixos e baixos podem (e por vezes são quasecoagidos, como única forma de acesso ao mercado de trabalho) ingres-sar na universidade.

No entanto, esta realidade significa — ou vai acompanhada de —um empobrecimento real (socioeconômico e cultural) dos alunos em certasdisciplinas consideradas como “menos dispendiosas”:7 assim, as ciên-

6. Da mesma forma que a “dona-de-casa” fala, quando é inquirida por um recenseador deopinião política: “Não, sobre este tema é o meu marido quem entende!”, muitas vezes o assistentesocial parece afirmar: “Não, sobre esta realidade é o sociólogo ou o economista quem entende!”(isto será tratado no item 1.4).

7. Para o caso do Serviço Social, Netto distingue dois fenômenos: “1) uma perceptível mudan-ça no perfil socioeconômico da massa do alunado, cada vez mais recrutada em estratos médio-baixos e baixos das camadas urbanas; 2) um visível empobrecimento do universo cultural doalunado” (1996: 110).

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cias sociais, a psicologia, as disciplinas agrárias, entre outras, e especifi-camente o Serviço Social.8

Não há juízo de valor nisto; nada mais longe do nosso pensamentodo que criticar a “socialização” ou “democratização” do saber. Apenassublinhamos este fato pois está claramente vinculado a um aspecto dasegregação socioeconômica, política e também cultural da profissão. Estesnovos estratos universitários terão uma margem significativamente maiorde dificuldades que os outros mais abastados para concluir seus estu-dos e se inserir no mercado de trabalho segundo suas expectativas. Es-pecialmente nas profissões onde a maioria dos seus estudantes provémde classes sociais baixas e média-baixas, a profissão como um todoterá maiores probabilidades de ser estigmatizada como uma “profis-são de pobres”. No caso do Serviço Social: “uma profissão de pobres,para pobres”.

Este fato, que marca uma diferença substantiva com o perfil dasgerações anteriores de estudantes/profissionais de Serviço Social, —outrora mulheres de classes média-alta, vinculadas a instituições filan-trópicas ou caritativas e cuja prática era mais voluntarista,9 sem contribuirsignificativamente no orçamento familiar —, não elimina, ao contrário,apenas reformula, seu segundo elemento de subalternidade profissional.

Efetivamente, as mudanças sociais, políticas e econômicas, ocorri-das nos últimos trinta anos, permitiram às camadas médias e baixas oingresso às universidades; inclusive aos cursos de Serviço Social. Istoconduziu a profissão, antes mais voluntarista, mais assistencialista, aum processo de constante e ascendente nível de (se me é permitido di-zer) “assalariamentação” do assistente social. É que o voluntarismo demulheres que não precisam do seu salário para manter seus padrões devida é substituído por trabalhadores(as) com uma profissão determina-

8. “Se nos seus primórdios, os pioneiros tinham uma origem de classe definida, os setoresabastados da sociedade, com o evoluir da instituição as fontes de recrutamento se ampliam e, aomesmo tempo, ocorre um processo de secularização relativa, e de ‘purificação profissional’ ouprofissionalização” (Iamamoto, 1992a: 48).

9. Como aponta Iamamoto, “associações assistenciais e de militantismo católico constituemas bases organizacionais e humanas mais importantes para a emergência da profissão no Brasil...”(idem: 19, nota 4).

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da, com uma relação de emprego e um salário, necessário para este novoperfil de profissionais. Neste sentido, o assistente social passa

a perceber um salário, preço de sua mercadoria força de trabalho emtroca de serviços prestados, determinado como o preço de qualquer ou-tra mercadoria, ingressando sua atividade no reino do valor. Uma daspré-condições para tal ingresso é a transformação de sua força de traba-lho em mercadoria e de seu trabalho em atividade subordinada à classe capi-talista. (Iamamoto e Carvalho, 1991: 85).

Assim, as condições particulares de assalariamento dos assistentessociais — sendo em geral seu salário (muitas vezes seu único meio desustento) extremamente limitado; colocando-se numa tensa relação entreo patrão, ligado aos interesses das classes hegemônicas, ao capital, e o“usuário”, ligado às classes subalternas, ao trabalhador; administrandoou implementando geralmente recursos escassos — põem esses profis-sionais em situação política, econômica e funcionalmente subordinada.Ele aparece como um funcionário que, por suas condições sociolaborativas,encontra-se, muitas vezes, mais próximo da realidade socioeconômicados setores com os quais trabalha — também por isso mesmo é recruta-do, por aparecer como necessário para dar esse vínculo empático, essaponte, essa mediação, entre as políticas sociais e seus destinatários.

No entanto, esta proximidade das condições socioeconômicas doassistente social com as classes populares de, por um lado, facilita imen-samente sua capacidade de empatia, contribui também para conformara autoimagem de identidade entre este profissional e os estratos maisempobrecidos. Esta, apesar de no plano socioeconômico pessoal ter fun-damento, fetichiza a relação profissional com o usuário das políticas so-ciais, levando o assistente social, em diversos casos, a ignorar sua fun-cionalidade e significação social, percebendo-se como “intelectual orgâ-nico” das classes trabalhadoras.

1.3. O assistente social como funcionário público e empregado do capital

Como já vimos, o assistente social surge como um profissional cujafuncionalidade se expressa na execução terminal das políticas sociais;

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aquelas que visavam a reprodução da força de trabalho e a legitimação econsolidação da ordem.

Desta forma, o Estado constitui-se a fonte privilegiada de empre-go do assistente social: o Estado. Este profissional é recrutado paraocupar postos tanto nas instituições de saúde pública, naquelas que tra-tam a questão da criança, em juizados, em centros educacionais públi-cos, nas dependências do Ministério do Trabalho, nas prefeituras, quan-do como nas instituições públicas que ocupam um número importantede trabalhadores.

Em decorrência deste fato, o assistente social se converte, via deregra, num servidor público, regido, como os demais, por normas buro-cráticas e subordinado hierarquicamente segundo estratos político-ins-titucionais, não necessariamente técnico-políticos.

Assim, como expressa Netto, ao se referir ao “anel de ferro” queaprisiona o Serviço Social: além das “resultantes empíricas” e das“valorações sociais, intelectuais e institucionais” do assistente social,“somam-se a subalternidade técnica e o trato executivo (administrativo) daproblemática social”. Para o autor, “tudo isso reflui sobre a prática profis-sional e os seus agentes, que se vêem requisitados para um papel socialcujo conteúdo difuso só pode ser preenchido através de uma aparentepolivalência que exaure qualquer diferenciação prática profissional”(Netto, 1992a: 101; grifos nossos).

Como aponta Faleiros (1985: 36), “o Assistente Social é antes detudo um funcionário público e ainda não devidamente classificado na fun-ção pública, ao lado de outras profissões de nível superior, embora atual-mente já haja uma luta da categoria para melhorar sua classificação”.Para ele, “a autonomia desse profissional na atribuição de recursos e naprestação de serviços é limitada” (ibidem).

Estas questões trazem diversas conseqüências ao desempenho pro-fissional, subordinando, aqui também, sua prática, pois “o débil e in-suficiente desenvolvimento teórico-metodológico da profissão fá-lamais vulnerável à manipulação política por parte dos empregadores”(Celats, 1991: 59).

Mas esta tendência a um débil desenvolvimento e desatualizaçãoteóricos não se explica apenas pela existência de profissionais forma-

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dos, com currículos já defasados teórica e tecnicamente, em função daimportante evolução que tem sofrido a formação dos assistentes so-ciais. Também não podemos atribuir esta tendência ao pouco interesseou preocupação de profissionais em se atualizarem. Tudo isso podeser comprovado em muitos casos; não obstante, não explica o funda-mento da tendência profissional à baixa qualificação/especialização/desatualização.

O elemento fundante para entender a essência deste fenômeno está,mais uma vez, ligado à demanda social/organizacional feita ao assis-tente social.

Quem consultaria um cardiologista desqualificado ou desatualiza-do? É que o médico é requisitado (pela organização e pelo paciente)para responder a demandas que exigem elevada qualificação/especiali-zação/atualização.

No entanto, a demanda (organizacional) geralmente dirigida aoassistente social está fundamentalmente relacionada à gestão final, à“execução terminal das políticas sociais segmentadas” (cf. Netto, 1992a),às atividades imediatas, às situações emergenciais.

Com isto percebemos, primeiramente, que o tipo de demanda en-caminhada ao assistente social, por parte do contratante — que frag-menta e autonomiza a realidade social, que transforma a “questão so-cial” em “problemáticas” isoladas, as contradições estruturais em “dis-funções” individuais, as conseqüências em causas, a “demanda social”em “demanda por serviços institucional-profissionais”, os processosmediatizados pelas lutas de classe em questões imediatas e emergen-ciais —, usualmente não exige conhecimento teórico-crítico das teoriassociais e atualização acadêmica, numa perspectiva de totalidade, quepermita o domínio dos fundamentos da “questão social”. Exige, sim,conhecimento apurado de técnicas e informações dos recursos organi-zacionais, tanto quanto da população atendida, com a qual estabeleçauma boa relação de empatia, e sólidos conhecimentos setoriais. Pede-seao assistente social atividades de triagem, encaminhamento, relatórios,comunicação e divulgação de ações, coordenação de grupos etc., ou seja,respostas imediatas a demandas emergenciais.

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Porém o profissional qualificado, comprometido e crítico não seconforma com tais demandas imediatistas e rotineiras. Ele procura iralém delas e desenvolver outro tipo de prática — que incorpore as de-mandas (do empregador), mas que as transcenda (atingindo a compreen-são das verdadeiras causas das necessidades/demandas da populaçãoe intervindo nesta perspectiva de totalidade).

Aqui surge a segunda questão. Não apenas o assistente social, apartir da demanda profissional imediata, provinda do organismo con-tratante (representante direto ou indireto das classes hegemônicas), emgeral não é exigido, como parece não precisar de profundos, críticos e atua-lizados conhecimentos teóricos, numa perspectiva de totalidade (por-tanto, conhecimento não apenas instrumental ou setorial), para respon-der às demandas que lhes são imediatamente colocadas pelo emprega-dor. Mais do que isso, para este último — desde que representante docapital e, portanto, com claros interesses de subsumir a prática profis-sional a uma atividade técnica, acrítica e disciplinadora — ele não deveriapossuí-los. Um profissional crítico, teoricamente sólido e atualizado éum ator que questiona, que propõe, que tem autonomia relativa (políti-ca e intelectual), mas é, fundamentalmente, um profissional que nãoresponde “imediatamente” às demandas finalistas e emergenciais daorganização. Desde a demanda até a resposta, este profissional interpõereflexão crítica, análise de realidade, organização e/ou participação dosusuários. Quer dizer, este profissional desenvolve uma resposta crítica emediata (sobre a categoria de mediação no Serviço Social, cf. Pontes, 1995),duas características que o organismo demandante (e a classe por elerepresentada) pode não estar querendo. E, neste caso, a organizaçãopoderá opor sua burocracia contra essa atitude profissional, incentivan-do e premiando a rápida (e mais “eficiente”) resposta, alienada e termi-nal (imediata), desestimulando e castigando o profissional “lento” quemedeia sua resposta com reflexão crítica e participação popular.

Mais ainda, se analisados no atual contexto, os presentes modelosde Estados regidos por princípios neoliberais conduzem a um aprofun-damento da subordinação do Serviço Social. Efetivamente, neles se pre-ga (e pratica) a drástica diminuição e a minimização do Estado, dos re-

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cursos destinados às políticas sociais.10 As palavras de ordem são priva-tização, Estado mínimo, “liberdade” de mercado, redução do gasto pú-blico, controle da inflação, reforma tributária. Pretende-se reduzir (po-rém não eliminar)11 o investimento do orçamento estatal destinado àquestão social e jogar para o mercado seu impacto. Isto significa nãoapenas a tendência à redução do número de assistentes sociais contratados noEstado — e a paralela terceirização dos mesmos —, como também, fun-damentalmente, a diminuição do financiamento e dos recursos com os quaisestes executam as políticas sociais e desenvolvem seu trabalho de campo.Isto aumenta a subordinação do assistente social, agora com menos re-cursos à sua disposição — e com menor demanda organizacional —,por ser um dos executores dessas políticas sociais, algumas das quais jásão, para esses Estados, prescindíveis ou descartáveis.12

Isto pode ser comprovado, duas perspectivas diversas mas tam-bém enfrentado ou inclusive alterado, pois a subordinação do assistentesocial é um fenômeno histórico e não natural. Portanto, assim como éconstruída, também pode ser destruída.13

a) O assistente social trabalha fortemente pressionado por “expec-tativas institucionais de papéis” e demandas ambíguas e até contraditó-rias. Numa análise estratégica no nível organizacional (cf. Crozier, 1981, e

10. Onde o conceito de justiça social é contraposto ao de “liberdade” (Hayek, 1985: 86-7),onde o mercado aparece como um aspecto tão democrático quanto o voto universal (cf. Alford eFriedland, 1991: 73).

11. As funções do Estado, para os neoliberais, consistem em “promover uma estrutura para omercado, e prover serviços que o mercado não pode fornecer” (Hayek, In Merquior, 1991: 191).

12. Segundo Diego Palma (1986: 129), “a administração de serviços sociais é a base materialsobre a qual [o assistente social] desenvolve o processo educativo”. É a partir desta idéia que Serraentende que no presente contexto se comprova “uma crise na materialidade” do Serviço Social(1987: 148). Como já manifestamos (Montaño, 1997), entendemos que a complexidade desta “cri-se” nos obriga a pensar nas repercussões no âmbito da legitimação da profissão, de sua funcionalida-de e significação social, de sua situação ocupacional etc., superando a mera “materialidade”. A nossover, esta “crise de materialidade” não deriva numa “hipertrofia da função sócio-educativa”; estaúltima também está em crise no meio da real crise na “base de sustentação funcional-ocupacio-nal”. Para uma análise das conseqüências do atual contexto no Serviço Social, ver Netto, 1996,Iamamoto, 1995 e Montaño, 1997.

13. O Código de Ética Profissional reza que o assistente social deve “contribuir para a altera-ção da correlação de forças institucionais, apoiando as legítimas demandas de interesse da popula-ção usuária” (CFESS, 1994: 16).

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Friedberg, 1987) vê-se como a situação de um ator no seio de uma orga-nização e seu comportamento não estão, mesmo que pareça, totalmentedeterminados. Existe o que Crozier chama de “zonas de incertezas”,onde ele pode ser mais “livre”. Assim, para beneficiar a relativa liberda-de de que dispõe, para privilegiar sua estratégia de ação e seu poder debarganha, este ator depende basicamente de quatro recursos: 1) o sabere a perícia, 2) a informação conjuntural, 3) o domínio da regra institucio-nal e 4) o controle do entorno institucional (cf. Crozier, 1981). No caso doassistente social alguns autores (cf. Estevez, 1985) concluem que a suafonte privilegiada de poder recai no seu contato com o meio social, comos beneficiários, com o “entorno” da instituição, quer dizer, dependefundamentalmente da sua “situação de fronteira institucional”;14 elemen-to em geral insuficiente para enfrentar vitoriosamente tais pressões ins-titucionais, no contexto das lutas de classes (geralmente encobertas).Assim, estas expectativas de papéis, os objetivos burocráticos, os escas-sos recursos, levam com freqüência a limitar e subordinar a liberdade doprofissional, a rotinizar suas funções e a burocratizar sua prática profissional.

Não obstante, não podemos cair na visão fatalista, de que nadapode ser feito dentro das “amarras das organizações burocráticas”, pro-pondo um “Serviço Social contra-institucional”.15 Já Faleiros, critican-do a “brechologia”, apontava para o caráter conflitante das relaçõesorganizacionais onde o assistente social é mais um ator e, portanto,com possibilidades de aumentar seu poder na organização e onde “asinstituições [aparecem] como lugar de luta” (Faleiros, 1985: 36). Para oautor, “no âmbito institucional ‘a guerra de posições’ implica lutas pelopoder de decisão e de manipulação de recursos” (idem: 37). Segundoele, “ao mesmo tempo em que são controle e manutenção, os mecanis-mos institucionais são mediações de estratégias de sobrevivência, objetode reivindicações sindicais, de movimentos sociais, de pressões devários segmentos sociais” (idem: 35), sendo que o assistente social pode(e deve), através da análise da conjuntura — social e organizacional —

14. Conceito difundido originalmente pelo chileno Rafael Estevez (1985).

15. Lima Santos (1993: 117) afirma que “nem os organismos estatais ou os particulares sãofortalezas inexpugnáveis da ideologia dominante, nem as comunidades ou os grupos popularestransmitem, infalivelmente, o ponto de vista proletário”.

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estabelecer estratégias e táticas para fortalecer o pólo popular da rela-ção organização-usuário, procurando mudar a correlação de forçasmediante a facilitação do saber, dos recursos e do poder de decisão àspopulações atendidas. Evidentemente esta via exige do profissional ofortalecimento dos recursos acima mencionados (em Faleiros [1985: 38]são: saber, recursos e poder de decisão), o que significa maior qualifi-cação profissional e nível de informação para além da sua situação defronteira institucional.

Para Errandonea — seguindo a idéia de Weber de que para que aautoridade burocrática goze de legitimidade deve haver um mínimo deaceitação e obediência do subordinado refletindo uma relação desigualmas bilateral e normativizada —, o próprio limite da legitimidade dopoder é móvel, podendo-se ampliar ou contrair as áreas de autoridade eaumentando ou diminuindo o poder do líder e dos subordinados, tantoquanto para qualquer membro da organização.

b) Por outro lado, numa análise histórico-estrutural em âmbito societal,o assistente social se apresenta como um “profissional da coerção e doconsenso” (cf. Iamamoto, 1992a: 40-53), se debatendo ambígua e contra-ditoriamente entre os interesses institucionais e as necessidades popu-lares. Por ser ele um empregado assalariado do capital (diretamente,nas empresas, ou indireta e contraditoriamente, no Estado), e paralela-mente dirigir, contraditória e tensamente, sua intervenção às classessubalternas, por se alojar aí uma contradição de interesses em luta, mui-tos profissionais possuem (ou se conforma com) pouca margem de ação,pouco poder de barganha, e uma função técnica dentro da divisãosociotécnica do trabalho, e isto por vezes leva o assistente social a cum-prir um papel “basicamente instrumental, de difusão de teorias e ideo-logias, de articulação das classes trabalhadoras na órbita das institui-ções do poder da classe dominante” (Iamamoto, 1992a: 53). O assistentesocial parece ser um profissional cujo papel não é tanto definido peladisputa com a burocracia institucional, quanto por uma função social,determinada macroscopicamente, a partir dos projetos veiculados pelaslutas de classes. Trata-se, portanto, como afirma Iamamoto, “de um in-telectual subalterno, de um profissional da coerção e do consenso”(ibidem), o que o coloca numa tensão imanente à sua prática.

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Esta tensão que vive todo profissional na sua atividade de campoaparece como mais marcada na realidade do assistente social (em espe-cial na empresa, no Estado, mas também nas ONGs e demais institui-ções públicas e privadas) na medida em que geralmente este profissio-nal é contratado por uma classe (ou representante dela), categoria so-cial, segmento, para intervir na realidade de outra classe etc. Quer dizer,ele é contratado por uma categoria social com interesses específicos edemandando do assistente social funções determinadas, porém sua in-tervenção se desenvolve em torno da realidade de outra categoria so-cial, com interesses geralmente contrários aos do contratante, e deman-dando outras funções (e opções) do profissional. Tal tensão, que marca aprática profissional do assistente social, se dá pelo fato de ele atuar pro-fissionalmente entre os diferentes interesses, entre as necessidade e de-mandas diversas que provêm de categorias distintas: a do contratante(do assistente social) e a do “usuário” (dos serviços que presta na suaintervenção). É por este motivo que a legitimação do assistente social arti-cula-se, como já apontamos, em dois níveis: hegemônico e subalterno.

No entanto, como afirma Iamamoto na análise que faz sobre a cons-tituição do espaço profissional como produto histórico, deve-se consi-derar “a prática profissional como resultante da história e, ao mesmo tem-po, como produto teórico-prático dos agentes que a ela se dedicam” (1992a:103), sendo que, para a autora,

apreender o movimento contraditório da prática profissional como ativi-dade socialmente determinada pelas condições histórico-conjunturais,reconhecendo, no entanto, que estas são mediatizadas pelas respostasdadas pela categoria — dentro dos limites estabelecidos pela própria rea-lidade —, é condição básica para se apreender o perfil e as possibilidadesdo Serviço Social hoje, as novas perspectivas do espaço profissional.(Ibidem)

Assim ela entende o espaço profissional como “conjunção dessesfatores contraditórios”: como resultante histórica tanto da “luta pelahegemonia que se estabelece entre as classes fundamentais e suas res-pectivas alianças” e “as respostas teórico-práticas, carregadas de con-teúdo político, efetuadas pela categoria profissional”, podendo, desta

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forma, conceber a mudança da funcionalidade da profissão, do seu pa-pel político, permitindo visualizar um profissional crítico e preparadopara conhecer e intervir eficazmente na realidade social, um profissio-nal comprometido com as classes populares.

Para Iamamoto,

o espaço profissional não deve ser visto apenas na ótica da demanda profissionaljá consolidada socialmente [da expectativa organizacional de papel e dopapel efetivamente desenvolvido]: trata-se de, tendo por base um dis-tanciamento crítico do panorama ocupacional, apropriar-se das possibi-lidades teórico-práticas abertas à profissão pela própria dinâmica da rea-lidade. (Iamamoto, 1992: 104).

O profissional deve, segundo esta autora, “a partir do jogo de forçassociais presentes nas circunstâncias de seu trabalho, reorientar a práticaprofissional a serviço dos interesses e necessidades dos segmentos majo-ritários da população, consolidando junto a eles novas fontes de legitimi-dade para o Serviço Social” (Iamamoto, 1991: 122; grifos nossos). Assim,para Iamamoto, “à medida que o contingente profissional se expande,passando a ser recrutado fundamentalmente nas ‘camadas médias’ dasociedade, que sofre os embates de uma política econômica amplamen-te desfavorável aos setores populares”, torna-se possível “uma rupturade parte do meio profissional com o papel tradicionalmente assumido,na procura de somar-se às forças propulsoras de um novo projeto desociedade. A isto se alia a busca de fundamentos científicos mais sólidosque orientem a atuação, ultrapassando a mera atividade técnica”(ibidem).

Dessa forma, Iamamoto supera a postura “fatalista”16 (cf. Iamamoto,1992: 113 ss.), depositária de uma visão “perversa” da profissão, de que

16. O fatalismo, diz Iamamoto (1992a: 115), é “inspirado em análises que naturalizam a vidasocial, traduzido numa visão ‘perversa’ da profissão. Como a ordem do capital é tida como naturale perene, apesar das desigualdades evidentes, o Serviço Social encontrar-se-ia atrelado às malhasde um poder tido como monolítico, nada lhe restando fazer. No máximo, caberia a ele aperfeiçoarformal e burocraticamente as tarefas que são atribuídas aos quadros profissionais pelos deman-dantes da profissão”.

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nada pode ser feito na órbita do Estado (por ser este o “comitê da bur-guesia”), nas empresas (espaços de dominação e exploração econômi-ca), nas Igrejas (sementeiro de um saber mítico) desde que o vínculocom essas instituições se dê na base de um contrato salarial e, portanto,da submissão aos objetivos organizacionais.

Contrariamente a esta postura, Iamamoto defende a idéia de que épossível e necessária a luta dos profissionais visando a ruptura com oconservadorismo do Serviço Social, mesmo que tal ruptura dependa decondições históricas além da esfera profissional. Isto significa aceitar quea identidade dos profissionais não é meramente atribuída de fora doServiço Social, sem nenhuma participação (tanto para sua afirmaçãoquanto para sua rejeição) dos agentes profissionais. Recai, também, nocompromisso com a melhor capacitação e qualificação dos assistentessociais, na pesquisa crítica e criadora sobre os objetos a partir de umaperspectiva de totalidade da realidade, no desvendamento da realidadepolítica e do papel político que contém o exercício da profissão; recaineles, então, a possibilidade de ruptura com a condição subalterna esubalternizante, dentro das condições históricas e lutas de classes.

Portanto, o profissional tem um compromisso e uma obrigação éti-co-política:17 estar ciente desta tensão, saber exatamente por onde ela perpassa(o que exige do assistente social um conhecimento da realidade socioe-conômica e política em geral, das categorias teóricas com as quais sedepara na sua prática cotidiana, podendo então compreender a funcio-nalidade e o verdadeiro significado de fenômenos diretamente relacio-nados a sua intervenção, tais como: políticas sociais, terceirização, valese tíquetes como salários indiretos, qualidade total, privatizações, incen-tivos a demissões voluntárias etc.), o que exige que o assistente socialassuma uma postura, uma opção ética e político-profissional e que, dentrodesse campo de tensão, participe profissionalmente com claras perspec-tivas ideopolíticas e teórico-metodológicas.

17. Compromisso em quatro níveis: primeiramente como trabalhador que vive do seu salário;portanto, em segundo lugar, com aquele que o contrata; em terceiro lugar, com o/s sujeitos com osquais e para os quais vai dirigida sua intervenção; finalmente, com a profissão e sua normativaética.

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1.4. O Serviço Social visto como “tecnologia” e sua relação com as “ciências”

Quando o Serviço Social é entendido como uma “tecnologia”, nassuas diversas versões,18 não corresponde a ele a produção de conheci-mentos científicos, apenas a importação do acervo teórico das “ciências”e sua aplicação na prática. Esta separação radical e positivizada entredisciplinas que produzem conhecimentos científicos e disciplinas queos aplicam na prática (ou que os “transformam” em conhecimentos ins-trumentais) constitui a base do que chamamos de “praticismo” do Servi-ço Social.

Esta relação polarizada: ciência/técnica, teoria/prática, determinauma quarta subalternidade do assistente social;19 desta vez em relação ao“cientista” como pessoa, às “ciências” tidas como profissões ou aos co-nhecimentos científicos como norteadores da sua prática profissional.

Como aponta Iamamoto, seguindo Gramsci,

na atividade intelectual podem-se distinguir diferentes graus: “os cria-dores dos valores, das ciências, artes e filosofia” e os “administradores edivulgadores da riqueza intelectual existente, tradicionalmente acumu-lada”. O assistente social, que na sua qualidade de intelectual tem comoinstrumento básico de trabalho a linguagem, poderia ser caracterizado

18. No Documento de Araxá considera-se o Serviço Social “como uma técnica social, porquantoinfluencia o comportamento humano e o meio, nos seus inter-relacionamentos” (CBCISS, 1986: 23);enquanto no Encontro de Sumaré, “O Serviço Social caracteriza-se como prática ou disciplina profis-sional em virtude de atuar em realidades sociais concretas” (idem: 139). Por outro lado, para Kisnerman,o Serviço Social constitui “uma ocupação profissional que, estudando as situações-problemas, traduznecessidades sociais em ações concretas” (1980: 123). Outro autor de relevância na profissãolatino-americana, Boris Lima, associa “o conceito de ciência técnica ao de tecnologia social [e alisitua]... o novo trabalho social” (Lima, 1986: 41). Já noutra perspectiva, entende-se que “a práticaprofissional tem um caráter técnico, subordinado à sua dimensão política” (Lima Santos, In Pal-ma; 1986: 129).

19. “A subalternidade técnica”, segundo Netto, “derivou [...] em marginalidade teórica” (1992a:141). Para ele, “situando-se [...] como uma espécie de desaguadouro das produções das ciênciassociais, o Serviço Social se vulnerabilizava duplamente: primeiro, porque se lhe atrofiava a capaci-dade crítica para sopesar a natureza, a funcionalidade e o sentido daquelas produções, cujo pro-cessamento se lhe escapava; segundo, porque ficava à mercê dos movimentos institucionais queconferiam ou não àquelas produções a chancela da ‘cientificidade’” (idem: 143).

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nesse segundo grupo.20 Historicamente, não constitui atividade proemi-nente para essa categoria profissional a produção de conhecimentos cien-tíficos. Emerge e se afirma em sua evolução como uma categoria voltadapara a intervenção na realidade, utilizando-se dos conhecimentos social-mente acumulados e produzidos por outras ciências, aplicando-os à rea-lidade social para subsidiar sua prática.

A consideração do assistente social como um intelectual subalterno situa,necessariamente, a reflexão de seu papel profissional numa dimensãoeminentemente política... (Iamamoto e Carvalho, 1991: 88-9)

As alternativas na definição do perfil do assistente social, comocaracteriza Netto, são, portanto, a de “técnico treinado para intervir numcampo de ação determinado com a máxima eficácia operativa”, ou a de“intelectual que, habilitado para operar numa área particular, compreen-de o sentido social da operação e a significância da área no conjunto daproblemática social” (Netto, 1996: 125-6).

Porém, tais alternativas entre o “técnico” e o “intelectual” nada têma ver com um eventual contraponto entre “prática acadêmica” (suposta-mente dona do conhecimento crítico e veraz) e “prática de campo” (su-postamente ingênua, acrítica, conservadora).21 As alternativas expostaspor Netto não se referem ao âmbito de atuação (um teórico acadêmico eoutro interventivo), mas às modalidades de desempenho profissional (um“técnico” nos moldes positivistas e formal abstratos, segmentando a rea-lidade em esferas independentes e divorciando a teoria da prática, eoutro “intelectual”, na razão crítico-dialética, numa perspectiva de tota-lidade). O “intelectual” aqui não é sinônimo de “acadêmico”, e o “técni-co” de “profissional de campo”. “Intelectual” se refere, nesta caracteri-zação, ao desempenho intelectual, crítico, racional-dialético, numa pers-pectiva de totalidade, que tanto pode ser desenvolvido pelo profissionaldocente e pesquisador na academia, como por aquele que intervém emcampo, na execução de políticas e serviços sociais e assistenciais, por

20. Desde que a divisão entre os dois graus (ou grupos) se realize entre profissões, e não nointerior de cada uma delas (cf. o item 2-II deste capítulo).

21. Contraponto entre os “acadêmicos” e os “profissionais” tão presente e marcante na nossacategoria, tão reprodutor da lógica positivista, tão nocivo.

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aquele que planeja ou avalia tais políticas, ou até por aquele profissionalque ocupa cargos de direção institucional.

Neste sentido, estamos longe de reforçar o divórcio “teoria-práti-ca”, de reproduzir a idéia de que todo assistente social deve, para ser“crítico”, elaborar conhecimento teórico. Esta afirmação, equalizadora daprática profissional, resulta inteiramente afinada com os moldesmetodologistas-formais do tipo: pesquisa-diagnóstico-planejamento-execução-avaliação. Nessa concepção apriorista, não são reconhecidosos tempos e as necessidades teóricas da atividade de campo, e acaba seexigindo deste profissional atribuições para as quais não dispõe derecursos (temporais, financeiros e, muitas vezes, até de qualificaçãoteórica). Um excelente profissional de campo não tem por que mostrarexcelência teórica e vice-versa. Com isto, o que ocorre é que equaliza-se “conhecimento teórico” com “sistematização da prática” ou com“diagnóstico situacional”, e acaba se identificando esta sistematiza-ção e este diagnóstico com a suposta teoria específica do Serviço Social(cf. infra).

É esta subsunção do “conhecimento teórico” num “conhecimento instru-mental”, tido como específico, que deriva na (auto)reprodução da subalternida-de técnica do assistente social face os “cientistas”.

O assistente social de campo não tem por que ser subalterno aoacadêmico; assim como o conhecimento situacional não é menos im-portante que o teórico. Ele o é apenas quando se reproduz o divórciopositivista teoria-prática, e quando a forma de “resolvê-la” deriva naatribuição de uma suposta “teoria própria” do Serviço Social, consi-derando esta como a sistematização e o diagnóstico da sua práticaimediata.

Cada um, conhecimento teórico e situacional, tem funções e espa-ços próprios de produção. No âmbito interventivo, a produção de conhe-cimento teórico (científico) quase não é possível nem necessária;22 nestaatividade é fundamental a apropriação da teoria, como recurso explicati-

22. Notem que não estamos afirmando que o conhecimento teórico não seja necessário naatividade interventiva (pelo contrário, ele é fundamental), mas que a produção deste não o é.

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vo dos processos sociais, e a elaboração de conhecimento situacional (dodiagnóstico e das técnicas de intervenção). Isto é, se o profissional decampo não produz teoria, mas, usando os conhecimentos já acumula-dos para explicar a estrutura e dinâmica do fenômeno com o qual sedepara, numa perspectiva de totalidade, elabora um conhecimento si-tuacional (diagnóstico) para intervir crítica e efetivamente nos proces-sos, então esta atividade não é subordinada ou subalterna à atividade“científica”, mas elas comportam-se como complementares.

Somente quando se reproduz a separação (positivista) entre teoria(para os “cientistas”) e prática (para os “técnicos”), ou quando se exigede todo assistente social a elaboração teórica (como suposta forma de“resolver” tal divórcio), o que deriva na utópica idéia de uma “teoriaprópria do Serviço Social”, é que o assistente social de campo aparececlaramente subordinado ao “cientista”.

Neste sentido, salienta-se que, além da predominante idéia do “pra-ticismo” (da prática profissional como fonte de teoria (cf. item 3), há noServiço Social um fundamento “endogenista”. Efetivamente, o assisten-te social preocupa-se mais com a sua auto-análise, com a pesquisa de sipróprio e a partir de si mesmo, como um objeto autônomo (assim, doseu “método específico” e da sua “teoria própria”), do que com o estudocientífico da realidade social.23 Isto, na medida em que este último é,muitas vezes, considerado patrimônio das disciplinas com status “cien-tífico”, ficando para o Serviço Social apenas o estudo da sua endogeniae seus processos — do método próprio, da prática específica, da sua“teoria” instrumental —; o que estaria definindo a “especificidade” des-ta profissão (cf. item 2).

Finalmente, a conseqüência lógica deste processo é levar o ServiçoSocial a se ancorar nos campos tradicionais de intervenção, desatendendoassim as novas demandas sociais, as problemáticas emergentes, gera-das por e numa sociedade altamente dinâmica e complexa (cf. item 4).

23. A partir de uma pesquisa sobre dissertações de mestrado e teses de doutorado em ServiçoSocial no Brasil, apoiada pelo CNPq e coordenada por Kameyama, Netto observa que “o peso daspreocupações com a ‘internalidade’ do Serviço Social” é 44,5% (Netto, 1996: 107).

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2. Em busca da “especificidade” prometidaO endogenismo do Serviço Social*

Um segundo elemento reprodutor da lógica geradora do ServiçoSocial ou da razão de ser da sua gênese vincula-se à autopercepção dosprofissionais quanto à consideração de qual é a “especificidade” quecaracteriza diferenciadamente a profissão.

Este ponto, por sua vez, vincula-se à (auto)reprodução da idéia que de-senvolve a primeira tese sobre a legitimidade do Serviço Social.24

2.1. Uma visão crítica sobre a “especificidade” do Serviço Social

Efetivamente, um dos temas preferidos, quase sempre presente nosdebates dos assistentes sociais está vinculado à busca da sua “especificida-de”,25 da sua diferença com as demais disciplinas sociais, do seu estatuto

* Após as primeiras saídas a público deste ensaio — no V Encontro Regional de TrabalhoSocial, Porto Rico, julho de 1997; e no Foro Sura nº 24 (internet), Costa Rica, 1998 —, dois artigosestabeleceram debate polêmico com o mesmo. O primeiro, de autoria da profa. Ruth Noemi Parola(Mendoza-Argentina), intitulado: “Consideraciones acerca de la producción de conocimientos y laconstitución de un saber especializado en Trabajo Social. Diálogos en torno a una búsqueda”, apre-sentado no Seminário Regional de Escolas de Trabalho Social, Concepción-Chile, em outubro de1997. O segundo, de autoria do prof. Evaristo Colmán, sob o título: “O que é o Serviço Social?Vigência de um ‘velho’ problema e desafio para a formação profissional”, in Serviço Social em Revis-ta nº 1, Londrina, UEL, 1998. Em ambos os casos o embate se desenvolve na reposição (pelos autores)dos tradicionais pontos de partida do debate; a saber: a) a existência de “especificidade/s” no ServiçoSocial, b) a “especificidade” como elemento legitimador da profissão e c) a identificação da “especificidade”com “o que é” o Serviço Social (sua natureza e sua significação social). Evidentemente que, com taiscaracterísticas (reprodutoras destes pontos de partida), estas reflexões críticas (com poucas novi-dades) devem ser remetidas ao mesmo conteúdo do presente ensaio. Pouca coisa, para além do seuconteúdo, seria necessário acrescentar para fundar o debate.

24. Netto entende que “o apelo a diferentes ciências sociais [...] para subsidiar práticas e re-presentações que desbordam o limite de cada uma” apresenta-se para o Serviço Social como “umaestrutura reiterativa” (1992a: 145). Igualmente, entende que mantida a pretensão de uma teoria euma metodologia “própria e autônoma” “e, com ela, sub-repticiamente, as incidências da tradiçãopositivista (e neopositivista) —, a renovação do Serviço Social reitera o ecletismo” (idem: 148).

25. Tematizada, ora como especificidade, ora como identidade, ora como natureza, ora comoperfil, ou até como cultura.

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teórico.26 Pareceria que sem um “saber específico”, sem um “campo es-pecífico de intervenção”, sem “sujeitos próprios”, sem “métodos e téc-nicas específicas”, sem “objetivos exclusivos”, a profissão, por lado, nãoteria motivo de existir e/ou, por outro lado, ficaria extremamente vul-nerável e indefessa perante as demais profissões que eventualmentecompartam estas características.

Qual o fundamento desta peregrinação profissional à procura deuma lendária especificidade?27

26. Segundo Netto, alguns dos temas mais presentes nos debates do Serviço Social desde suaprópria institucionalização como profissão têm como pano de fundo “a clarificação do estatutoteórico do Serviço Social e a localização da sua especificidade como prática profissional”. Conside-rando, o autor, que “o tratamento distinto delas é uma exigência básica para iluminar conveniente-mente as peculiaridades de cada uma e, em especial, para infirmar a equivocada relação causalque a tradição profissional veio estabelecendo entre ambas, consistente em derivar a legitimidadeda prática profissional a partir dos seus fundamentos pretensamente científicos. E, bem mais signi-ficativamente, porque permite remeter a análise da problemática teórico-cultural do Serviço Socialao seu terreno fundamental — aquele que se põe no âmbito das relações entre projeto de interven-ção e rigor teórico possível no conhecimento do social, nos quadros da sociedade burguesa” (Netto,1992a: 82).

27. Três pesquisas, de diferente magnitude, no estudo da especificidade do Serviço Socialdevem ser destacadas, pela sua precursora tentativa de desmistificação de certos aspectos destaquestão:

• Primeiramente a obra de Josefa Batista Lopes, de enorme significação para o Serviço Social:Objeto e especificidade do Serviço Social. Pensamento latino-americano, onde os autores que tra-balham estas duas questões dentro do Movimento de Reconceituação são agrupados emtrês tendências (da integração social: José Lucena Dantas, Helena Iraci Junqueira e TeclaMachado Soeiro; da libertação social: Vicente de Paula Faleiros e Boris Alexis Lima e a pers-pectiva mista: Ricardo Hill, Natálio Kisnerman e Antolin Lopez Medina) e analisadas criti-camente suas propostas. Aqui a autora propõe a inovadora idéia de que “a especificidadenão é assim exclusividade” (Batista Lopes, 1980: 30). (Para sua consideração, cf. infra).

• Em segundo lugar, uma pesquisa sobre a Especificidade do Serviço Social, onde Teixeira Cal-das e D’Auria realizam entrevistas com profissionais da área e de outras disciplinas, revelaque os assistentes sociais entendem a “especificidade” da sua profissão nos seguintes as-pectos: “objeto, objetivos, natureza, valores, ideologia, conhecimentos e a própria práticaprofissional” (1981: 54). Aqui, as autoras entendem que, para evitar se deter “em discussõesinfrutíferas no sentido de encontrar uma exclusividade”, sua “inquietação não estava em abor-dar os elementos que iriam determinar a especificidade do Serviço Social, e sim encontraro que há de comum na ação de todos os assistentes sociais” (Teixeira Caldas e D’Auria,1981: 55).

• Mais recentemente, um trabalho, — neste caso elaborado no México —, sobre Especificidadee papel no Trabalho Social — currículo, saber e formação, redigido em 1990 por García Salord(Argentina), entende os elementos constitutivos da especificidade profissional alocados nos

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Vejamos. O conceito de “especificidade” refere à qualidade que cer-ta espécie possui e pela qual esta última se torna especial, diferente dasoutras. Assim, o caráter de específico de alguma coisa atribui duas con-dições: primeiramente, esta característica, por ser específica, deve se re-fletir, deve estar presente em todos os membros desta espécie, tendo uma di-mensão inclusiva; em segundo lugar, ela não pode existir em membros deoutras espécies, o que mostra sua dimensão exclusiva;28 quer dizer: o que nosdiferencia dos outros e o que nos identifica como corpo.29 Em outras palavras,aqueles supostos elementos que conformam a “especificidade” do Ser-viço Social devem permear todos e cada um dos profissionais desta cate-goria, assim como em nenhum sujeito que não integre o corpo profissio-nal do Serviço Social poderão existir tais atributos, se constituindo, comodiz Neto, num “demarcador profissional” (cf. Netto, 1992: 94). Estes de-vem ser exclusivos e abrangentes dos membros do Serviço Social.

Mas, procurar a “especificidade” do Serviço Social significa, na di-visão sociotécnica do trabalho, determinar a sua “especialidade” — ou,se quiserem, determinar a especialização do Serviço Social.30 Assim, aoestudar “a divisão social do trabalho”, Lukács mostra como para osanticapitalistas românticos

a especialização cada vez mais estreita é o “destino” da nossa época, umdestino do qual ninguém pode escapar. Em favor desta concepção, ado-ta-se freqüentemente o argumento de que a extensão da ciência moderna

sujeitos, no objeto e no marco de referência (objetivos específicos; função social e procedi-mentos metodológicos); enquanto as dimensões desta especificidade estariam conformadaspelo saber especializado, pelo exercício profissional, pelo mercado de trabalho, pela iden-tidade e pelo status profissional (cf. García, 1990: 19-21). Sobre as análises mais detalhadasdestas considerações, cf. infra.

28. Se a especificidade dos mamíferos é estes possuírem mamas, todos eles e só eles devem tertais características.

29. Por este motivo, muitas análises sobre a especificidade são tratados sob a forma de “iden-tidade”.

30. Quando a especialização é interprofissional, tende a substituir a qualificação; aquela setransforma no elemento diferenciador de cada profissão na divisão sociotécnica do trabalho. As-sim surgem as disciplinas “especializadas” em áreas diversas. Diferente é o caso da especializaçãointraprofissional, sempre posterior à qualificação e em harmonia com uma perspectiva de totali-dade. (Sobre isto cf. item 3 das Conclusões deste livro).

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atingiu uma amplitude que não mais permite à capacidade de trabalhode um só homem dominar enciclopedicamente todo o campo do saberhumano. (Lukács, 1992: 122)

Para Lukács, Weber é o representante mais conspícuo do saber es-pecializado31 e este último se expressa nas “ciências sociais particula-res”. Assim, por exemplo, a sociologia32

surge como ciência autônoma porque os ideólogos burgueses pretendemestudar as leis e a história do desenvolvimento social separando-as da eco-nomia. A tendência objetivamente apologética desta orientação não deixalugar a dúvidas. Após o surgimento da economia marxista, seria impos-sível ignorar a luta de classes como fato fundamental do desenvolvimen-to social, sempre que as relações sociais fossem estudadas a partir daeconomia. Para fugir desta necessidade, surgiu a sociologia como ciênciaautônoma; quanto mais ela elaborou seu método, tão mais formalista setornou, tanto mais substituiu, à investigação das reais conexões causaisna vida social, análises formalistas e vazios raciocínios analógicos.33 [...]Assim, como a sociologia deveria constituir uma “ciência normativa”,sem conteúdo histórico e econômico, do mesmo modo a História deverialimitar-se à exposição da ‘unicidade’ do decurso histórico, sem levar emconsideração as leis da vida social.34 (Lukács, 1992: 123).

31. “Weber era economista, sociólogo, historiador, filósofo e político. Em todos esses campos,tinha à sua disposição profundos conhecimentos, muito superiores à média e, além disso, sentia-sea vontade em todos os campos da arte e da sua história. Apesar disto, não existe nele qualquersombra de um verdadeiro universalismo” (Lukács, 1992: 122-123). E ainda, herdeiro da filosofianeokantiana, há em Weber uma “ausência de relações entre pensamento e ação, entre teoria e práxis”(idem: 124).

32. A análise que Lukács realiza para o surgimento da sociologia pode ser estendida a todas as“ciências sociais particulares” que surgem a partir dos acontecimentos desencadeados entre 1830e 1848; também é extensiva ao conjunto de disciplinas (“técnicas”) sociais.

33. Qualquer semelhança entre o formalismo da sociologia e a preocupação do Serviço Socialcom o seu método (o seu “metodologismo”) não é mera coincidência.

34. Acrescenta Lukács, em outro texto, que “o nascimento da sociologia como disciplina inde-pendente faz com que o tratamento do problema da sociedade deixe de lado a sua base econômica;a suposta independência entre as questões sociais e as questões econômicas constitui o ponto departida metodológico da sociologia.” (Lukács, 1992: 132). Assim, as crises geradas pelas dissolu-ções da escola ricardiana e do socialismo utópico “põem fim à economia burguesa no sentido dosclássicos, ou seja, no sentido de ciência fundamental para o conhecimento da sociedade. Por um

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Em decorrência, segundo este contundente teórico húngaro, “aoburguês médio, sua atividade profissional parece ser uma pequena engrena-gem numa enorme maquinaria de cujo funcionamento geral não pode ter amínima idéia” (idem: 125).

Entre estas atividades profissionais encontra-se, é claro, a do Servi-ço Social, como profissão fundamentada na ação, na intervenção desco-nectada do conhecimento veraz da realidade e onde “a sociedade apare-ce como um místico e obscuro poder, cuja objetividade fatalista edesumanizada se contrapõe, ameaçadora e incompreendida, ao indiví-duo” (ibidem), portanto, sem possibilidade de compreensão e transfor-mação.

A hegemonia do sistema capitalista consolidado se mantém nãoapenas com a coerção, mas precisa de certo grau de aceitação geral (cf.Weber), de consenso (cf. Gramsci). Assim, a ideologia, os valores e nor-mas burgueses devem ser incorporados pelo conjunto da população como“cultura oficial”,35 o que obriga a classe hegemônica a dois artifícios: a

lado, nasce a economia burguesa vulgar [...]; por outro lado, nasce a sociologia enquanto ciência doespírito desvinculada da economia” (idem: 132) e assim nascem outras “ciências sociais particula-res” e “disciplinas técnicas”.

35. Como manifestam Marx e Engels em Ideologia alemã, “as idéias (Gedanken) da classe domi-nante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante é,ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios deprodução materiais, tem ao mesmo tempo os meios de produção espiritual, o que faz com que a elasejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles a que faltam os meios de pro-dução espiritual. As idéias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações materiaisdominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe aclasse dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classedominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isto, pensam; na medida emque dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que ofaçam em toda a sua extensão e, conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também comopensadores, como produtores de idéias; que regulem a produção e distribuição de idéias de seutempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época” (Marx e Engels,1977: 72).

Na tradição marxista, Lefebvre também trata da questão: “À medida que não existe socieda-de baseada na violência pura é a ideologia que obtém o consentimento dos oprimidos, dos explora-dos. A ideologia os representa de maneira tal, que lhes extorque, além da riqueza material, a acei-tação e mesmo a adesão espiritual” (Lefebvre, In Iamamoto e Carvalho, 1991: 109, nota 38).

Tematizado por Iamamoto, “o controle social e a difusão de ideologia dominante constituemrecursos essenciais, complementando outras maneiras de pressão social com base na violência,

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“naturalização” e o ocultamento ou até fetichização daqueles. Os valorese normas “naturalizados” e “fetichizados” são, então, desistoricizados(veja-se, por exemplo, as considerações de Netto, 1992a: 57 ss.; tambémLessa, 1996); nesse sentido, são vistos como naturais e incompreensí-veis ou indecifráveis, portanto, imutáveis. A forma de fazer isso é de-senvolvendo um tipo de racionalidade que seja ao mesmo temposegmentadora e manipuladora do real.

Como expressa Lukács, ao analisar as leis que regem o sistema ca-pitalista,

essa “lei” [...] terá que ser [por um lado] uma lei das “contingências” quereagem reciprocamente e não a de uma organização realmente racional.Por outro lado, este sistema de leis não apenas deve impor-se aos indiví-duos: terá também que não ser nunca susceptível de um conhecimento inte-gral e adequado, porque o conhecimento integral da totalidade assegurariaao sujeito desse conhecimento uma tal posição de monopólio que tantobastaria para suprimir a economia capitalista. (Lukács, 1974: 117)

Desta forma, o positivismo se apresenta como a racionalidade hege-mônica da cultura “oficial” do mundo ocidental, dada a sua funcionali-dade com a ordem burguesa. Assim, segmentada a realidade em “esfe-ras” autonomizadas: a econômica (como sendo o campo das relações en-tre atores que ocupam lugares diferentes no processo produtivo; semclasses, nem lutas de classes, nem interesses contrapostos — despoliti-zando este espaço, convertendo a “economia política” em “economiavulgar”, quase identificável à contabilidade, à engenharia industrial e àadministração), a política (como sendo o espaço das lutas de interesses,

para a obtenção do consenso social. [...] a ideologia dominante é um meio de obtenção do consen-timento dos dominados e oprimidos socialmente, adaptando-os à ordem vigente” (ibidem); sendoque para a autora, “o modo capitalista de reproduzir e o de pensar são inseparáveis, e ambos seexpressam no cotidiano da vida social” (idem: 110).

É que para Martins, “o modo capitalista de produção [...] é também um modo capitalista depensar [...]. Enquanto modo de produção de idéias, marca tanto o senso comum quanto o conheci-mento científico [...]. Não se refere estritamente ao modo como pensa o capitalista, mas ao modo depensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração de suas bases de sustentação ideo-lógicas e sociais” (Martins, In Martinelli, 1991: 64-5).

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mas que, por serem deseconomizados — retirada a conexão econômica,das classes, em relação a esses interesses —, elas são entendidas comosendo operadas na órbita do Estado, e não da produção, e entre partidospolíticos, e não classes sociais; são os movimentos sociais extraclasses ea luta parlamentar do sistema democrático que institucionaliza, desca-racteriza e controla — minimiza e normatiza — os conflitos) e a social(como sendo a interação entre indivíduos no seu espaço cotidiano,despolitizado e deseconomizado), opera-se, portanto, a desistoricização dosocial: o “sistema” não mais pode ser alterado na sua totalidade; a revo-lução e a transformação desaparecem como opção ou possibilidade his-tórica; só é possível alterar, controlar ou manipular “variáveis”, “dis-funções”, “partes” do todo, permanecendo o sistema no seu “naturalequilíbrio”. Surgem as teorias da “mudança”, substituindo a perspecti-va de revolução.

Para isto, a forma de conhecimento produzido sobre esta “histórianatural da sociedade” deve ser fragmentária e fenomênica: surgem e sedesenvolvem as ciências sociais particulares como disciplinas que re-partem entre si o conhecimento (parcial e fenomênico) dos “retalhos derealidade” e a intervenção (manipulação) “corretiva” de variáveis destasfrações do real (ou “realidades”). O Serviço Social tem sua gênese nestecontexto histórico e nesta perspectiva e racionalidade: segmentadora emanipuladora desses segmentos do real.36

36. “A filiação teórica do Serviço Social”, diz Netto, “é indesmentível: vem, precisamente, naesteira da consolidação das ciências sociais [particulares]” (1992a: 141).

Em concordância, Iamamoto entende que “o Serviço Social nasce e se desenvolve na órbitadesse universo teórico [da “tradição conservadora do pensamento europeu do século XIX”]. Passada influência do pensamento conservador europeu, franco-belga, nos seus primórdios, para a so-ciologia conservadora norte-americana, a partir dos anos 40” (1992a: 26).

Também Ammann conclui que “ao longo do processo de construção do conhecimento, predo-minou historicamente a tendência que postula a definição apriorística de um objeto exclusivo paracada ramo das ciências. Fundada no corte positivista que separa os que pensam dos que agem, osque produzem conhecimento dos que aplicam esses conhecimentos tal tendência vinha respondera interesses sociais e relações de poder reforçadores da divisão social do trabalho no seio da socie-dade. De tal postura — que separa ciência e técnica, disciplinas que produzem de disciplinas queaplicam o conhecimento — derivou a classificação das áreas, sendo o Serviço Social caracterizadocomo disciplina de aplicação. Em seu processo de institucionalização é ele, então, marcado pelopragmatismo e impedido de pensar os fenômenos sociais sobre os quais intervêm...” (Ammann,1984: 144).

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É assim que esta busca da “especialização”37 do Serviço Social éempreendida a partir de uma perspectiva de pulverização e segmentaçãodo real em “questões sociais” (cf. Iamamoto, 1992a: 76-86 e Netto, 1992a:15-30) e de uma diversificação compartimentada dos estudos e respos-tas a esses problemas particulares (cf. Netto, 1992: 136). Efetivamente,surge, vinculada à ordem burguesa — especialmente ao que Lukácschama de “decadência ideológica da burguesia”, que se instaura funda-mentalmente a partir de 1848, “em face da dissolução do hegelianismo”,no momento em que a classe burguesa perde seu caráter crítico-revolu-cionário perante as lutas proletárias38 (Lukács, 1992: 109 ss.) —, um tipode racionalidade que, procurando a mistificação da realidade, cria umaimagem fetichizada e pulverizada desta.39 O conhecimento segmentadoda realidade condiciona a segmentação das respostas e leva a mudanças

37. Vale a pena apontar que “Marx e Engels consideravam a especialização como limitadora eprejudicial a todos os trabalhadores, tanto intelectuais quanto manuais” (In Bottomore, 1988: 194).

38. A decadência ideológica da burguesia, diz Lukács, “tem início quando a burguesia domi-na o poder político e a luta de classe entre ela e o proletariado se coloca no centro do cenáriohistórico. Esta luta de classe, diz Marx, ‘significou o dobrar de sinos pela ciência econômica bur-guesa. Agora não se trata de saber se este ou aquele teorema é verdadeiro, mas sim se é útil ouprejudicial ao capital” (Lukács, 1992: 110). Para Coutinho, “a distinção atual entre várias ciênciassociais particulares, cada uma constituindo uma ‘especificidade’ dotada de um pretenso objetopróprio [...] surge no momento em que se dá esse eclipse da reflexão totalizante sobre o social. Eesse eclipse tem lugar [...] no momento em que a burguesia deixa de ser uma classe revolucionária”(Coutinho, 1994: 95-6).

39. Seguindo a crítica de Marx e Engels, Lukács entende que “antes de 1848, Guizot é umdaqueles notáveis historiadores franceses que descobriram cientificamente a função da luta declasses na história das origens da sociedade burguesa. Após 1848, Guizot pretende demonstrar atodo custo que a manutenção da monarquia de julho é um imperativo da razão histórica e que o1848 foi nada mais que um grande equívoco [...]. Assim, sob a influência da revolução de 1848, umdos fundadores da ciência histórica moderna transformou-se num apologeta mistificador” (Lukács,1992: 112). Segundo o autor, perante as revoltas proletárias, “agora também fogem os ideólogos daburguesia, preferindo inventar os mais vulgares e insípidos misticismos a encarar de frente a lutade classes entre burguesia e proletariado, a compreender cientificamente as causas e a essênciadesta luta. Metodologicamente, essa mudança de orientação manifesta-se no fato de que [...] osteóricos evitam cada vez mais entrar em contato diretamente com a própria realidade, colocando,ao contrário, no centro de suas considerações, as disputas formais e verbais com as doutrinas pre-cedentes” (ibidem). Segundo Coutinho, “essa rígida divisão científica do trabalho [...] estimula aemergência de um pensamento fragmentário, favorável aos interesses particulares da burguesia”;concluindo que “o nascimento das ‘ciências sociais’ é um dos momentos constitutivos da atualideologia burguesa” que tende a aceitar a realidade social “como um agregado de ‘dados’ insupe-ráveis” (Coutinho, 1994: 114).

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parciais da mesma. Assim, a segmentação da realidade em “questõessociais” propicia que o tratamento delas seja desenvolvido medianteinstrumentos parciais e compartimentados: as políticas sociais setoriais epontuais.

Neste sentido, segundo Guerra (1995: 137)

esta forma de conceber e explicar os processos sociais, peculiar ao “racio-nalismo burguês moderno”, posta nas/pelas políticas sociais, repercutena intervenção profissional dos assistentes sociais, já que estas se consti-tuem na base material sob a qual o profissional se movimenta e, ao mes-mo tempo, atribuem contornos, prescrições e ordenamentos à interven-ção profissional.

Desta maneira, se a racionalidade burguesa segmenta a realidade,“recortando-a” segundo especializações correspondentes às variadas“perspectivas” ou pontos de vistas de cada profissão particular — a pers-pectiva “econômica”, a “sociológica”, a “política” e, também, a do Servi-ço Social —, se as políticas sociais surgem como mediações político-ideo-lógicas entre o Estado — hegemonizado pela classe burguesa e consti-tuído por esta racionalidade — e a população carenciada, e se o ServiçoSocial aparece como uma profissão instrumental ao projeto político daburguesia e vinculada à execução terminal destas políticas sociais com-partimentadas — constituindo, estas últimas, a “base de sustentaçãofuncional-ocupacional” (cf. Montaño, 1997) deste profissional —, pode-se então concluir que o próprio Serviço Social tem tanto sua gênese quantoseu desenvolvimento intimamente atrelados a esta racionalidade for-mal e pulverizadora do real, assumindo como “natural” a compartimen-talização das profissões, o divórcio entre conhecimento e ação, a seg-mentação de respostas a micro-realidades “independentes”,40 perten-centes elas a uma globalidade que aos profissionais aparece incompreen-

40. Segundo Netto (1992: 140), “a divisão social (e técnica) do trabalho, no plano intelectual,foi entronizada na especialização e a positividade foi erigida em critério empírico último para aprova da ‘cientificidade’; a totalidade social concreta foi subsumida na vaga noção do ‘todo’, comas ‘partes’ nele integrando-se funcionalmente; o objeto das ciências sociais passou a ser ‘construí-do’ não em função de sua objetividade concreta, mas da divisão social (e intelectual) do trabalho; ométodo (freqüentemente reduzido a pauta de operações técnicas) divorciou-se da teoria”.

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sível, e se ancorando no cômodo porto do “não invadir para não serinvadido”, que estabelece fronteiras rígidas e intransponíveis entre asdiferentes profissões.

Assim, consolida-se a estrutura que, primeiramente, separa profis-sões científicas de profissões técnicas (proposta claramente positivistada divisão do trabalho; cf. Comte, 1988: 22 e Durkheim, 1983: 4 ss.) eque, em segundo lugar, divide o trabalho em profissões particulares eindependentes, com “perspectivas” pontuais (e “específicas”) sobre obje-tos parciais (sobre particularidades do todo real concreto), criando “cam-pos de saber especializados” que não conseguem apreender a totalida-de real.41

Há quem sustente, portanto, que a falta de especificidade do Servi-ço Social, — a inexistência de um corpo teórico próprio, a carência deum método único, a ausência de objetos, de questões sociais particula-res a estes — faz dele uma profissão prescindível, substituível por vá-rios outros profissionais (sociólogos, psicólogos sociais, antropólogosetc.) ou técnicos (animadores socioculturais, terapeutas familiares, ge-rente social etc.) e, portanto, não teria sentido de existir como profissãoautônoma.

Contra esta visão, mas baseados na mesma idéia de que sem espe-cificidade nenhuma profissão tem sentido, outros tentam, com a pre-ocupação de justificar sua existência, encontrar esta “terra prometida”:o que supostamente haveria de “específico” no Serviço Social?.42 Tem seinvestido preciosas horas, anos, décadas, nesta tarefa. ParafraseandoOliveira, “vastas florestas transformadas em papel” já foram devasta-das para conduzir estas discussões (cf. Oliveira, 1990: 60).

41. Para a crítica desta “divisão especializada” do trabalho, além do já apontado, cf. os estu-dos de Lukács sobre “a decadência ideológica” e “o nascimento da sociologia” (Lukács, 1992: 109ss. e 132 ss.).

42. Em García (1990) aparece que a ambigüidade estrutural (que coloca a profissão como “umsentido comum ilustrado” — definido por “um saber e um fazer especializado conformado poruma ‘interdisciplinariedade indeterminada’”), inerente à especificidade profissional (idem: 5 e 54)tende a gerar desprofissionalização no Serviço Social (idem: 59). Neste sentido, a autora investe naprocura da especificidade profissional propondo a criação e a consolidação de uma “teoria daintervenção” própria da profissão (cf. infra).

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Desta forma, como Iamamoto reconhece, o profissional de ServiçoSocial “almeja ter um campo ‘próprio’ de trabalho, enquanto área ‘específi-ca’ que lhe atribua status e facilite o seu reconhecimento profissional”(1992a: 41).

Assim, a necessidade de estabelecer essa tal “especificidade” éprocurada obsessivamente devido à crença de que recai nela a razão deser da profissão, sua legitimidade (cf. capítulo I, item 2.1), podendo-seobservar ornamentos paranóicos por estar ligada à necessidade de fecharas fronteiras aos profissionais de fora, caindo numa “endogenia”43 doServiço Social: “não invadir para não ser invadido”, como forma de ga-rantir os espaços profissionais e ocupacionais, sem necessidade de ele-var o nível de qualificação do Serviço Social, dada a ausência de concor-rência (nos campos de trabalho “específicos”) com outros profissionais.

Esta estratégia comodista (e conformista) encontra o seu fundamentona idéia de que há especificidade(s) no Serviço Social; efetivamente, setodos os assistentes sociais e exclusivamente eles são depositários decertas funções, métodos, teorias etc., nenhum outro profissional poderáinvadir este “quintal” sem que isto atente contra o princípio de preser-vação da “propriedade privada”, alma do sistema social no qual se de-senvolve. E se para isso a condição de “não ser invadidos” é “não inva-dir”, a troca parece-lhes justa. Nada mais positivista, nada mais subal-ternizante, nada mais conformista e comodista do que este princípio.

Procurando respostas a esta questão é que surgiram diversas ten-tativas:

• existem análises que derivam a particularidade da profissão dotipo de inserção e funcionalidade institucional e do lugar queeste ocupa na divisão sociotécnica do trabalho:44 decorrente dasegunda tese sobre a legitimação do Serviço Social;

43. Esta “endogenia” se expressa na tentativa da explicação sobre a existência e desenvolvi-mento do Serviço Social a partir de si próprio — tal como Natálio Kisnerman, que busca compreen-der a história do Serviço Social avaliando “seu próprio destino” (1980: 11) —, e não a partir daordem social que a funda e a fundamenta: a ordem capitalista na era dos monopólios.

44. Iamamoto, por exemplo, realiza “mais do que uma análise centrada nos elementos consti-tutivos que dão um perfil peculiar ao Serviço Social, face a outras profissões”; pelo contrário, seu“esforço orienta-se no sentido de apreender as implicações sociais que conformam as condiçõesdesse exercício profissional na sociedade atual” (1991: 71).

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• apesar sisso, a esmagadora maioria dos debates em torno des-ta questão vincula a especificidade do Serviço Social ao objeto(de intervenção e de estudo), método, objetivos e sujeito “pró-prios” da profissão: postura vinculada à primeira tese sobre alegitimação.

Trataremos de quatro dos principais elementos com que os autoresdefinem a “especificidade” do Serviço Social serão tratados a seguir:

I — Buscando legitimar a profissão, mas ainda procurando rever-ter a subalternidade gerada pela separação positivista entre ciência etécnica”, alguns autores tentam achar esta “especificidade” profissionalpensando na existência de um saber “específico”, no sentido de uma “teo-ria” própria.45 Aqui distinguimos três tendências.

1) Primeiramente, aqueles que entendem que há efetivamente um“campo de conhecimento científico”, um objeto social próprio do ServiçoSocial. Neste caso, geralmente deriva-se na idéia de que o Serviço Socialconstitui uma ciência.

Na pesquisa desenvolvida por Teixeira Caldas e D’Auria, “doisassistentes sociais afirmaram que a especificação de uma dada ciênciaconsiste na determinação de seu objeto, e o definiram como ‘condiçõesinternas no interior das classes dominadas’” (1981: 48), sendo que, paraoutro entrevistado, o objeto de pesquisa do Serviço Social estaria em“investigar e interpretar as necessidades e potencialidades da popula-ção” (idem: 53).

Ora, esta perspectiva, fortemente difundida por alguns reconcei-tuadores, é falsa; qual seria este objeto social que só é estudado pelo

45. Netto, ao analisar os fundamentos “científicos” e o estatuto profissional, afirma que osassistentes sociais, para cortar com o tipo de exercício profissional das suas protoformas, construí-ram uma auto-imagem que ligasse o “atribuído (ou suposto) fundamento ‘científico’ do ServiçoSocial e o seu estatuto profissional” (Netto, 1992a: 82). Para o autor, esta “inversão generalizada naconstrução da auto-imagem do Serviço Social” supõe que “a raiz da especificidade (ou de partesubstantiva dela) profissional advém de um estoque ‘científico’” (idem: 84). Segundo ele, “a cha-mada teorização do Serviço Social desenvolveu-se em duas linhas principais: ou a constituição dessesaber de segundo grau, com o ecletismo operando elementarmente, ou a sistematização da prática pro-fissional, conforme cânones interpretativos subordinados imediatamente às ciências sociais emediatamente ao referencial ideológico do horizonte profissional” (idem: 145-6).

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assistente social e que estaria dando-lhe um “estatuto científico”?46 Naverdade, esta concepção condiz com a idéia de que o Serviço Socialconformaria uma “ciência social particular”, a partir da já analisadasegmentação, pulverização ou fragmentação da realidade, cabendo umdesses “fragmentos” à nossa profissão, o qual conformaria o pretendi-do “objeto” específico. Segmenta-se, desta forma, a realidade globalem “partes” ou subobjetos e atribui-se a cada profissão uma dessas“parcelas” da realidade, criando-se a falsa idéia de que aquele objetopode ser estudado apenas a partir de tal ou qual aspecto particular eautônomo.

2) Em segundo lugar, há aqueles que determinam o “campo depesquisa” que caracteriza o objeto de conhecimento “específico” do Servi-ço Social como sendo a própria prática profissional, a sistematização dasua prática.47 Esta maneira de conceber o espaço próprio do saber profis-sional se funda na idéia de que a característica deste tipo de pesquisa,que seria própria do Serviço Social, é ela estar orientada para a ação, nãosendo uma investigação “pura”, como aquela que comportaria as pro-fissões “científicas”, mas um momento da intervenção de campo.

Assim, o Celats entende que “a pesquisa é um instrumento quenos ajuda a desenvolver nosso objetivo principal: intervir numa situa-ção para modificá-la” (Celats, 1983: 113).

Para Faleiros, “a sistematização [da prática profissional] significa omovimento de conhecimento que se vincula à construção de categorias”(1993: 77).

46. Netto estuda a falsa idéia de um “fundamento científico” do Serviço Social comodemarcador do seu “estatuto profissional” em relação às protoformas e às demais disciplinas so-ciais (cf. Netto, 1992a: seção 2.1).

Também Martinelli, numa inflexão em relação a análises anteriores — onde entendia que “so-mente no momento em que a profissão alcança ‘sua identidade específica e distintiva’ é que ela atingesua autonomia científica” (Martinelli, 1978: 16) — afirma que a busca de novas totalizações porparte da profissão “já não se dirige mais teleologicamente para a ‘autonomia científica’ do ServiçoSocial, mas para sua legitimação como prática social de caráter popular...” (Martinelli, 1991: 19).

47. Estamos nos referindo aqui às práticas profissionais singulares, não à prática do ServiçoSocial como um todo (sua funcionalidade, sua significação). Quer dizer, não é a pesquisa que tratao Serviço Social como seu objeto, mas aquela que se desenvolve dentro de variados processos sin-gulares de intervenção.

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Mitjavila, por sua vez, entende o assistente social “não [como]um cientista social, mas [como] um pesquisador social de objetos teórico-práticos” (1990: 11). Para ela este tipo de pesquisa encontra-se “sob asexigências teórico-práticas de uma intervenção técnica no social”(ibidem).

Para Bosco Pinto, o Serviço Social “como ciência técnica é uma áreade aplicação cujo objeto não difere das disciplinas matrizes, mas que sediferencia pelos seus objetivos práticos, isto é, pelo tipo de transforma-ção específica do objeto” (1986: 48); assim, a construção de uma “teoriado Serviço Social” não como “teoria da sociedade” mas a “teoria damudança social” (idem: 51), “inserida na própria prática do assistentesocial” (idem: 54).

Numa publicação mais recente, García Salord,48 criticando a atualtendência da pesquisa de Serviço Social de estar “orientada por um inte-resse sociológico” e de ter “uma direção independente das problemáti-cas teóricas e metodológicas do saber e do fazer especializados” da pro-fissão (sic) (1990: 70), entende que o Serviço Social, como “campo profis-sional”, para avançar no desenvolvimento da sua especificidade e dasua profissionalização, deve procurar cada vez mais a definição e conso-lidação deste “saber especializado” no sentido de elaborar uma “teoriada intervenção” (idem: 71).

A sistematização da prática profissional e a sua pretendida meto-dologia única e própria não constitui um objeto específico deste profis-sional e não produz teoria (apenas saber instrumental). Neste sentido,será objeto de análise como os “praticistas” tentam extrair da práticaprofissional imediata o que consideram a “teoria” própria do ServiçoSocial (cf. item 3).

3) Finalmente, mesmo que marcando importante distância com asduas perspectivas anteriores, encontramos aqueles que, não conceben-do a existência de um objeto específico, próprio e exclusivo do Serviço

48. Posterioridade à nossa pesquisa, duas obras sobre esta questão aparecem no meio profis-sional. A primeira, produto do Encontro Acadêmico Nacional da Fauats (Federação Argentina deUnidades Acadêmicas de Trabalho Social) (Fauats, 1996). A segunda, na linha de determinar o“saber específico” do Serviço Social, de autoria de Ruth N. Parola (1997).

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Social — nem um objeto social, nem a sistematização da própria práticaprofissional —, entendem que há uma “perspectiva” determinada, um certo“olhar” ou um dado “recorte” específico da realidade, do objeto social, pró-prio à profissão. Neste caso, o Serviço Social é visto como parte de umcorpo interdisciplinar.

Nesta perspectiva, entende Ezequiel Ander-Egg, segundo expressaMitjavila, que “o trabalhador social constrói um objeto próprio a partirde um ponto de vista interdisciplinar” (in Mitjavila, 1990: 11). Para o au-tor, a originalidade da profissão “radica na capacidade e criatividadepara obter a integração de todos esses elementos [os conhecimentosteóricos proporcionados pelas ciências sociais e as técnicas de pesqui-sa, planejamento, intervenção e avaliação comuns a outras profissões]desde a própria perspectiva operativa” (in García Salord, 1990: 52; grifosnossos).

A postura deste autor tão difundido durante a Reconceituação — eque ainda desempenha significativa influência em certos países latino-americanos — é, na verdade, uma síntese das três perspectivas: ele con-cebe que há efetivamente um objeto próprio do Serviço Social, no entantoeste é construído pelo profissional por meio da sua perspectiva interdisci-plinar. Isto aparece sustentado na hipótese, até hoje defendida pelo au-tor, de que o Serviço Social é, em si mesmo, uma profissão internamenteinterdisciplinar.

Desde outra perspectiva, Josefa Batista, numa precursora pesquisasobre objeto e especificidade do Serviço Social, afasta “qualquer hipótese nosentido da apropriação pelo Serviço Social, ao nível do ‘real’, de umfenômeno social que seja de sua única e ‘específica’ competência, comose fosse possível uma ‘divisão real do real’” (Batista Lopes, 1980: 73);enfatizando que sua preocupação,

no que se refere ao objeto e à especificidade do Serviço Social não é dabusca de um “lugar ao sol para o Serviço Social” [como, segundo a auto-ra, aparece em Suely Gomes Costa], nem se propõe a uma redução darealidade social, no sentido de sua fragmentação para definir o objeto e aespecificidade do Serviço Social [...]. Entendemos [diz ela] que a realida-de social é uma totalidade que [...] opõe-se à fragmentação. (Idem: 16)

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No entanto, seguindo as recomendações de Bachelard,49 a autoraaceita e defende a idéia de que “o objeto é construído” (idem: 17) porcada profissão a partir de determinada “perspectiva”, que lhe outorga-ria sua especificidade. Desta forma, para Batista, “a especificidade não éassim exclusividade adquirida por uma disciplina no domínio de um obje-to ‘real’, a partir dos ‘fenômenos reais’ com os quais estabelece relação.A especificidade consiste nas formas particulares assumidas pela disci-plina nesta relação. Ela é o próprio projeto na sua totalidade” (BatistaLopes, 1980: 30; grifos nossos).

Neste sentido, a autora propõe que esta perspectiva específica aoServiço Social, que “pode caracterizar e construir seu domínio e nele ad-quirir níveis de competência quanto à teoria que produz e à açãointerventiva que empreende” (idem: 29), se determina em função doprojeto profissional “proposto na relação com os diversos fenômenos,atribuindo características especificadoras de perspectivas que formam uni-dades ou diversidades no âmbito do Serviço Social” (ibidem; grifos nos-sos). É esta relação, entre o projeto profissional e os objetos a que estaria“configurando modos diferentes de encarar a realidade” (ibidem), cons-tituindo-se, desta forma, “um corpo teórico determinado”,50 ou, em ou-tros termos, “é o conteúdo atribuído a esses fenômenos, através da rela-ção estabelecida com eles, que define a especificidade, e só identificando-se a especificidade identifica-se o objeto” (idem: 30; grifos nossos); e mais,entendendo as realidades como resultantes de um processo de constru-ção, num duplo sentido: “por um lado existem como produto das rela-ções sociais e, portanto, construídas socialmente; por outro, tornam-seobjeto do Serviço Social quando este propõe a elas uma relação de co-

49. “Um objeto pode determinar muitos tipos de objetivação, muitas perspectivas de preci-são, pode pertencer a problemáticas diferentes. O estudo de uma molécula química pode desen-volver-se na perspectiva da química e da espectrografia. De qualquer forma, um objeto científicosó é instrutor a respeito de uma construção preliminar que deve consolidar” (Bachelard, in Batista,1980: 17).

50. “Como elemento da construção do objeto, diz a autora, o método é aqui ‘compreendidocomo uma relação que é parte de um conjunto de relações que especificam um corpo teórico determina-do” (Batista Lopes, 1980: 26) da profissão, sendo que “é preciso que se atente, de princípio, que já aprópria formulação de cada método contém uma marca teórica, atribuindo-lhe especificidade”(idem: 27).

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nhecimento e de intervenção, sempre segundo uma determinada pers-pectiva” (idem: 73).

Ocorre que, na medida em que se entenda que o objeto de estudo eintervenção de uma dada profissão é construído a partir de certa “pers-pectiva” — esta definida em virtude da relação que o sujeito estabelececom a realidade, mediada pelo projeto profissional — e na medida emque se suponha que esta dita “perspectiva”, própria a cada profissão,demarca sua “especificidade”, então estará se realizando também um“recorte” da realidade. Recorte este que, no entanto, poderá, nesta pers-pectiva, “reconstruir” a totalidade do real desde que se trabalhe interdisci-plinarmente.51

Se, por um lado, Batista Lopes reconhece a diversidade de caracte-rísticas no interior da profissão — eliminando o caráter inclusivo desta“especificidade” — e, por outro, reconhece a sua não exclusividade, noentanto a autora aceita a existência de uma “especificidade” do ServiçoSocial, definida a partir da delimitação da tal “perspectiva” própria daprofissão.

O que seria, então, esta “especificidade” do Serviço Social que nãoé exclusiva da profissão nem envolve todos os profissionais? Pareceriahaver certa ambigüidade no tratamento da autora: por vezes, quandoconsidera o objeto real concreto, este não é nem exclusivo do assistentesocial nem inclui todos os profissionais (já que qualquer objeto socialmobiliza diversas profissões e os membros de cada uma delas traba-lham com realidades variadas), porém, noutras passagens, quando tra-ta o objeto construído pela “perspectiva” que a profissão tem sobre o real,aí sim aparece a especificidade (inclusiva e exclusiva) do Serviço Social.Especificidade que significa a existência de uma perspectiva especialsobre a realidade e que, na verdade, não deixa de representar, no queconcerne ao tratamento do objeto, a segmentação do real em “recortes”ou “domínios” de cada profissão sobre a realidade social, mesmo conce-

51. “A abordagem a essa realidade é, portanto, interdisciplinar”, diz a autora quem, seguindoJapiassu, entende que “é preciso que cada um [dos estudiosos das diversas disciplinas] esteja im-pregnado de um espírito epistemológico suficientemente amplo para que possa observar as rela-ções de sua disciplina com as demais sem negligenciar o terreno de sua especialidade” (in Batista Lopes,1980: 11).

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bendo que estes recortes eventualmente possam se reintegrar no mo-mento do trabalho interdisciplinar.

O fato de ter analisado, em geral, obras distantes no tempo nãoelimina a relevância destas considerações. Estas perspectivas têm signi-ficativa repercussão no presente. Assim, análises mais recentes aindareafirmam estes problemas. É o caso de Rodrigues On, que entende que“apesar da dimensão e da especificidade de sua proposta profissional, oServiço Social não assume o desafio de ‘constituir-se numa profissãoprodutora de conhecimentos’, ainda que eles resultem das ações maispeculiares que desenvolve” (1995: 154).

Para a autora, “nesta perspectiva, a apropriação e a transformaçãode conhecimentos subjacentes ao agir profissional podem representarum modo inédito de exteriorizar e sistematizar conhecimentos já elabo-rados, ao mesmo tempo em que a prática neles fundamentada propiciaa elaboração de outros” (idem: 155). E ainda:

há um espaço de construção de conhecimento para as chamadas “ciên-cias aplicadas”, que se dá na intermediação entre as “ciências puras” euma profissão da prática como é o Serviço Social. Esses conhecimentosestão voltados para a compreensão de uma práxis enquanto atuação no real.

Se o Serviço Social não contribui diretamente para o avanço das teoriassociológicas ou antropológicas entre outras, contribui efetivamente parao avanço das formas de abordagens práticas do real. A originalidade [“es-pecificidade”?] do “conhecimento” construído em Serviço Social está,portanto, na forma como articula conhecimentos e transforma essa arti-culação em mediações para sua ação específica. (Ibidem; grifos nossos)

A autora entende a existência de um conhecimento específico e“construído” a partir de um método próprio (de importação de teoriasdas “ciências puras”, de elaboração de conhecimento a partir da suaprática e a articulação destes saberes) o que demarca “a legitimidade desua configuração profissional” (ibidem) e que se constitui em mediaçãoda sua intervenção. Este saber “específico” seria o resultado da “objeti-vação própria de sua prática profissional” (ibidem).

Entendemos que a assertiva da autora, de que “o Serviço Socialnão contribui diretamente para o avanço das teorias” sociais, no míni-

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mo não consegue relevar a significação que pesquisadores/assistentessociais tem no conjunto das ciências sociais: Iamamoto, Netto, Martinelli,Verdès-Leroux, nas análises sobre a sociedade capitalista da era dosmonopólios e o surgimento de um ator determinado: o assistente social;Faleiros, Sposati, Yazbek, entre outros, com os estudos de um particularinstrumento estatal: a assistência e a política social; Netto, Quiroga eSimionato, debatendo sobre categorias e fundamentos da tradição mar-xista; Mota e Iamamoto discutindo as alterações no mundo do trabalho;e poderíamos seguir citando vários outros.

Na verdade, o Serviço Social não possui um objeto de conhecimentopróprio, portanto não produz teoria própria.52 Possui, isto sim, um sabertécnico-operativo autóctone, mas seus objetos de pesquisa, seu arsenalheurístico e suas teorias são comuns a outras profissões sociais; ele podeelaborar, portanto, “teoria sobre o social” e não “teoria de Serviço So-cial”. Dito de outra forma, o Serviço Social como um todo possui uma“cultura profissional” própria, mas este “saber” é conformado pelasparticularidades da sua história, pela sua identidade e pelo seu instru-mental técnico-operativo;53 por outro lado, este profissional pode produ-zir “teoria”, mas ela não é própria, e sim teoria ou conhecimento teóricosobre o social, que formará parte do acervo do conhecimento teórico so-bre a sociedade.54

Neste sentido, se esta perspectiva (de uma teoria própria do Servi-ço Social) tende a eliminar a separação positivista entre “ciência” e “téc-

52. Para Netto, com o Serviço Social “ergue-se, pois, um sistema de saber que, de segundograu, é eminentemente sincrético — e, na elaboração do saber, o sincretismo é a face visível doecletismo” (1992a: 145); sendo que, “a superação do ecletismo teórico implica a interdição de qual-quer pretensão do Serviço Social de posicionar-se como um sistema original de saber, como porta-dor de uma teoria particular referenciada à sua intervenção prático-profissional” (idem: 147).

53. Netto entende que a prática do assistente social, pelo seu sincretismo, “demanda um co-nhecimento do social capaz de mostrar-se diretamente instrumentalizável. Menos que uma repro-dução veraz do movimento do ser social, extraída da análise concreta de formas sociais determina-das, o que a intervenção manipuladora reclama freqüentemente são paradigmas explicativos ap-tos a permitirem um direcionamento de processos sociais tomados segmentadamente”; e isto, se-gundo o autor, “disponibiliza, à partida, o sistema de saber que referencia o Serviço Social aos maisvariados influxos empiricistas e pragmáticos” (Netto, 1992a: 94).

54. Para Netto, se a produção teórica do assistente social “tiver efetivamente uma natureza eum conteúdo teóricos, inserir-se-á no contexto de uma teoria social — e, pois, transcenderá a pro-fissão como tal” (1992a: 147).

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nica” — igualando o status profissional do Serviço Social ao das demaisdisciplinas sociais —, ela não consegue superar — e reproduz — a seg-mentação também positivista entre diferentes esferas autonomizadas darealidade social.

II — Em outros casos procura-se a “especificidade” do ServiçoSocial a partir da pretensa existência de una metodologia “própria”: aprática profissional específica. Aqui entende-se o Serviço Social como umatecnologia, como uma profissão cuja essência, cujo fundamento, recai napeculiar atividade interventiva, na prática de campo e cujo método deintervenção lhe é específico.

Neste caso, se algumas propostas pretendem superar a perspecti-va segmentadora do real, de clara orientação positivista — propondo oespaço profissional como a prática reintegradora dos diferentes saberesdas ciências sociais, como uma profissão ela mesma “interdisciplinar”—, apesar disso, elas reproduzem a separação que o positivismo realizaentre conhecimento e ação, entre “ciência” e “técnica”, atribuindo comoespecífico do Serviço Social a prática interventiva.

O CBCISS, fundamentalmente nos seus documentos de Teresópolis(CBCISS, 1986) e de Funções do Serviço Social (CBCISS, 1971), tematizaa “especificidade” profissional, no primeiro vinculada ao método, nummomento em que, nas palavras de Martinelli, “atribuía-se-lhe [a este] opapel de elemento definidor da participação do Serviço Social na divisãosocial do trabalho, e, portanto, fundamental para delimitar os espaçosocupacionais da profissão” (Martinelli, 1991: 22), enquanto, no segundocaso, aquela é pensada fundamentalmente a partir das funções profis-sionais, levando Martinelli a decifrar que, “na verdade, o que estava emjogo realmente era a questão de sua ‘identidade específica e distintiva’”(idem, 23; grifos nossos).

Mais recentemente, García Salord entende que “a especificidadedo trabalho social recai no fato de intervir nos efeitos das contradiçõesestruturais da sociedade sobre as condições de vida das classes explora-das e oprimidas, estabelecendo vínculos entre os recursos e satisfactorese as necessidades e carências envolvidos em cada intervenção” (García,1990: 59). Desta forma, o específico da profissão estaria na “intermedia-ção” que o assistente social estabelece entre estes recursos e aquelas ne-

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cessidades (cf. idem: 4, 35 e 42). No entanto, a autora reconhece que aespecificidade do assistente social não recai no fato de ele intervir noterreno das interações sociais vinculadas às condições de vida, pois ne-las atuam diversas profissões. O assistente social, para a autora, nãointervém diretamente no fenômeno colocado como problema (correspon-deria ao médico, ao advogado, ao arquiteto etc. a intervenção direta);55 oServiço Social intervêm nesses problemas (indiretamente)

criando as condições propícias para a intervenção direta do tratamentoespecializado do médico, o advogado, o psicólogo, o arquiteto etc., oucriando condições adequadas à implementação de programas de desen-volvimento, políticas de bem-estar social, projetos autogestionários etc.,assim como para a organização e administração de serviços. (Idem: 39)

Neste fato, segundo a autora, estaria embutida a especificidadeprofissional.

Para a consideração deste ponto, primeiramente deveríamos dife-renciar “especificidade” de “característica”. Efetivamente é característicodo Serviço Social a atividade interventiva na realidade, mas nem todosos profissionais atuam aqui — há assistentes sociais pesquisadores, do-centes, vinculados a funções político-administrativas, que não desen-volvem uma “prática de campo” — e nem isto é exclusivo da nossaprofissão. Existem, cada vez mais, sociólogos, antropólogos, psicólogossociais e até, saindo da “área social”, médicos, agrônomos etc. que li-dam diretamente com as refrações da “questão social”. Portanto, mes-mo sendo característico, a prática interventiva não é “específica” do Servi-ço Social.56

Por outro lado, observemos a diversidade de “métodos” formula-dos e implementados na profissão. Os métodos tradicionais: de caso, de

55. Esta afirmação estaria recolocando, de forma tácita, a caracterização do Serviço Socialcomo uma profissão paramédica, parajurídica (e agora, também, subsidiária de outras profissões).

56. “Não é cariz exclusivo do Serviço Social”, diz Netto, “esta funcionalidade, que ele com-partilha com um crescente elenco de especializações profissionais (cientistas sociais de todo o tipoque se dedicam a ‘tarefas práticas’ a serviço do Estado e do capital, publicitários, expert em ‘rela-ções industriais’ etc.)” (1992a: 92).

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grupo e de desenvolvimento da comunidade; os métodos de transição(cf., Lima, 1986: 127-41): integrado, polivalente, básico, único etc.; osmétodos pretendidamente dialéticos: Belo Horizonte (Leila Lima San-tos), de Intervenção na Realidade (Boris A. Lima), sem esquecer as inú-meras propostas de diversos autores, tais como: Kisnerman, Faleiros,Ottoni Vieira, Celats, Aylwin de Barros, CBCISS etc. Qual de todos estesseria o “específico”? Ou será que são todos?

É absurdo pensar que seja possível elaborar um método específicoapenas dos assistentes sociais, comum para todos eles e aplicável a to-das as realidades. Pensar que a intervenção de um profissional que atuanuma comunidade indígena ou numa cooperativa de produtores possa(ou deva) ser idêntica que a daquele que trabalha num hospital comdoentes terminais de câncer ou HIV resulta uma alegoria do pensamen-to, fantasiosa e divorciada do real. Os tempos, os objetivos, os pontos departida, os recursos, as necessidades e demandas dos sujeitos são essen-cialmente distintas.

Um método desenhado a priori das realidades singulares com asque se defronta o profissional não faz mais do que aprisionar o assisten-te social, os sujeitos e as realidades a uma moldura comum (ao estilopositivista: anterior, superior e exterior). A homogeneização do suposto“método profissional” significa, portanto, a tentativa de padronizar a rea-lidade social: classificá-la, hierarquizá-la e eternizá-la.57

Lukács, ao estudar os aspectos ontológicos da obra de Marx, afir-ma que

o sistema enquanto ideal de síntese filosófica contém antes de mais nadao princípio da completicidade e do acabamento, idéias que são a priori incon-ciliáveis com a historicidade ontológica do ser [...]. Mas uma tal unidadeestática surge inevitavelmente no pensamento quando as categorias são or-

57. Guerra argumenta a necessidade que os profissionais têm de encontrar um método únicono sentido de que “a ausência de entendimento sobre as representações da consciência, sobretudoda base material que as produz e as mantém, encaminha o assistente social a tomar os fatos, fenôme-nos e processos tal como eles aparecem à sua consciência e a buscar em modelos teóricos explicativos dasociedade seu referencial operativo de atuação que, pela reincidência dos problemas enfrentados, tendea se cristalizar em modelos de intervenção profissional” (1995: 150; grifos nossos).

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denadas segundo uma determinada conexão hierárquica. E também essa aspi-ração a uma ordem hierárquica contrasta com a concepção ontológicaem Marx. (Lukács, 1992: 102-3; grifos nossos)

Com estas considerações, vemos o pretendido “método” único eespecífico do Serviço Social como sendo um tipo de sistema, completo eacabado, produto da síntese das sistematizações das práticas profissio-nais singulares, que estaria outorgando um sentido e uma racionalidadeao fazer profissional, que se sustenta na categorização, hierarquização eeternização do ser social e dos fenômenos a ele ligados, e que, portanto,passa a cumprir uma função de manual a priori do “fazer” profissional.

O assistente social se defronta com objetos singulares de diversasnaturezas e com particularidades variadas e variantes. A intervençãonesta realidade não pode ser (e não é) nunca desinteressada. Tanto oconhecimento do real quanto a intervenção nele têm uma teleologia,uma intencionalidade e, portanto, estão saturados de interesses.58

A padronização de um método a priori, apto para conhecer e inter-vir na realidade, qualquer que seja ela, retira o substrato teleológico ehistórico do sujeito, enxuga a intencionalidade levando-a a objetivosabstratos do tipo: “contribuir para o bem-estar social da população”,“ajudar a conscientização do grupo na compreensão da sua realidade”,59

e rotinizar a prática profissional.

Se conhecer um objeto, numa perspectiva ontológica, significa des-vendar sua essência partindo da sua aparência,60 do fenomênico, da pseu-doconcreticidade,61 estabelecendo seu processo a posteriori e a partir doobjeto, intervir nesta realidade não deve comportar uma lógica diferen-

58. Lukács (1992: 102) mostra que “a especificidade da relação entre essência e fenômeno noser social passa pelo problema do agir interessado”. Para Habermas, por outro lado, o conhecimentonão está isento de interesse.

59. E até “transformar a sociedade”, o que levou a muitos assistentes sociais a se atribuir opapel de “agentes de transformação”.

60. É bem conhecida a sentença de Marx de que “toda ciência seria supérflua se a essência dascoisas e a sua forma fenomênica coincidissem imediatamente” (Marx, in Lukács, 1992: 101).

61. Cf. Kosik (1989: 19), quem afirma que “a destruição da pseudoconcreticidade significa quea verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo,se desenvolve e se realiza”.

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te: deve-se partir do real e construir, em função dele, das condições histórico-materiais e dos interesses dos atores, a estratégia mais adequada. Mais quemétodo único, a priori, o Serviço Social estabelece estratégias variadas, aposteriori do objeto.

Neste sentido, o conjunto de processos, de passos e referências queorientam a ação do profissional não constitui, na verdade, um método,mas apenas orientações, estratégias, processos, interesses, para a inter-venção que, por centrar-se em realidades diferentes e dinâmicas, devemser necessariamente flexíveis, variadas e a posteriori do contato com arealidade.62 No máximo, o que podemos constatar é uma estratégia jásistematizada e organizada que possa ser, de certa forma, padronizadapara diferentes práticas singulares numa mesma área temática, da mes-ma instituição, que perseguem idênticos objetivos e com uma popula-ção que apresenta características semelhantes.

Podemos afirmar, portanto, que o Serviço Social não possui um méto-do, nem único e comum para todos os assistentes sociais, nem exclusivo daprofissão; a idéia de que existe um método profissional, portanto, é falá-cia.63 Apenas podemos afirmar que as práticas de intervenção em reali-dades comuns podem manter, com certa estabilidade, um conjunto deprocedimentos, de intenções e de instrumentos operativos que confor-mam uma estratégia determinada.

III — Em terceiro lugar, há quem tente definir o “específico” doServiço Social no tipo de sujeito com o qual trabalha (seu público-alvo): na

62. Guerra, entendendo que a perspectiva de classe “define o nível de racionalidade que se apro-xima mais ou menos do conhecimento da verdade”, propõe que o método, “enquanto mediaçãoentre sujeito e objeto do conhecimento, indica a direção da análise, mas, não obstante, o movimentodo objeto aponta o caminho a ser seguido pelo método. Há, portanto, diferentes métodos com maiores oumenores possibilidades e limites de expressarem a realidade objetiva” (1995: 99; grifos nossos). Damesma maneira, há diversas estratégias de intervenção profissional segundo as características,particulares e singulares, do objeto concreto.

63. Para Netto, “se, idealmente, a profissão colocou as bases para uma peculiar intervençãosobre as refrações da ‘questão social’, faticamente esta intervenção não se ergueu como distinta [das‘protoformas’]. Noutros termos: a forma da prática profissional, nas suas resultantes, não obteve umcoeficiente de eficácia capaz de diferenciá-la de outras práticas, profissionais ou não, incidentes sobrea mesma problemática” (1992: 96). Assim, “o que resulta é que a especificidade profissional conver-te-se em incógnita para os assistentes sociais (e não só para eles): a profissionalização permanecenum circuito ideal, que não se traduz operacionalmente (idem: 100).

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relação profissional-povo. Neste caso a profissão geralmente é vista comouma espécie de militância política vinculada, organicamente ou não, aum sujeito popular organizado: movimentos sociais, trabalhadores sin-dicalizados, cooperativas populares, organizações comunais etc.

Porém esse vínculo profissional-povo, como sendo próprio do Ser-viço Social, não passa de uma pretensão que não é mais que um desco-nhecimento das práticas de outros profissionais e técnicos. Nem o povo,nem o povo organizado, constituem-se em público-alvo exclusivo daprática do assistente social. Mas esta pretensa especificidade se desdo-bra numa outra:

IV — Aqueles que encontram a existência de um tipo de sujeitocom o qual só se vincula o assistente social (público-alvo) geralmentetendem a identificar uma outra “especificidade” da profissão nospretensos objetivos próprios do Serviço Social: a conscientização das clas-ses populares, a organização e a transformação social. Aqui, freqüente-mente, deriva-se a formas tais como a do “educador popular”, do “ani-mador sociocultural”, e hoje, do “gerente social”.

Desta forma, segundo Boris Lima, “a teleologia do Serviço Social seencaminha para libertar as massas, situando sua meta na transformaçãodas relações sociais — mundo objetivo — e no próprio homem, objetode sua ação” (In Guerra, 1995: 174).

Na pesquisa já apontada, um assistente social define a especificida-de profissional no “processo de conscientização do homem; objetivandoformas para o homem ter mais clara a dimensão crítica e analítica darealidade” (Teixeira Caldas e D’Auria, 1981: 52).

García Salord, da sua parte, entende que os “objetivos específicos”correspondem aos modelos e níveis de intervenção que constituem ametodologia específica do Serviço Social (1990: 45)

Nesta visão, geralmente tende-se a conceber o assistente social comoconscientizador e/ou agente de mudança. Pretensão esta que não conseguever que todas as profissões convocam, dentre seu quadro profissional,membros que, seja na sua condição de cidadãos políticos ou como pro-fissionais, procuram se envolver em objetivos desta índole.

Portanto, não existem, no âmbito do Serviço Social, como ficoudemostrado com estas breves considerações, atribuições específicas da

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profissão, no duplo sentido exclusivo e inclusivo, na sua imutabilidadea-histórica. Resta saber, primeiramente, se esta “não-especificidade” doServiço Social é uma característica específica desta profissão, ou se elaaparece nas restantes disciplinas da área social; ou seja, só o ServiçoSocial é inespecífico ou o são todas as profissões sociais? Em segundolugar, a questão é, não tendo a profissão componentes específicos, pos-sui ele (e quais são as) particularidades? É o que veremos a seguir.

2.2. Há especificidades nas profissões da área social?

Agora, se o Serviço Social não possui propriedades específicas, podese afirmar que as outras profissões da área social sim as possuem? Quaisseriam, em caso afirmativo, aqueles demarcadores que dotariam de es-pecificidade essas profissões?

Caberia, então, perguntar: é possível hoje pensar numa estruturasociotécnica do trabalho claramente diferenciada, compartimentada edefinida? Seria possível encontrar hoje uma relação linear entre ciência eprofissão? Quer dizer, a cada profissão corresponde um, e só um, cam-po específico de saber, um método próprio de intervenção e um públi-co-alvo específico? Podemos, portanto, afirmar que para uma profissãoexistir é necessária a identificação da sua “especificidade”?

Na verdade, este esquema de questionamento faria estremecer asprofissões mais sólidas e prestigiadas. Estas questões levariam a inter-mináveis congressos de arquitetos debaterem sobre onde fica a “especi-ficidade” dos seus saberes e técnicas perante as construções de mora-dias de até três andares, existentes nas favelas, e feitas em condiçõesprecárias e por pessoas que muitas vezes não concluíram sequer os es-tudos primários. Estas idéias fariam com que os médicos formasseminúmeros ateneus para discutir seu campo profissional “específico”: asaúde, tendo como contraponto os conhecimentos e as práticas de quemmexe com “ervas medicinais”, de homeopatas, de acupunturistas e detantas outras “profissões paramédicas”, cujos resultados são muitas ve-zes surpreendentes e até há em casos em que os processos sequer sãocompreendidos pela medicina científica.

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O que ocorre é que, em primeiro lugar, hoje não se pode mais (se éque alguma vez foi possível) demarcar claramente o “espaço profissional”,os limites teórico-práticos de cada disciplina, especialmente na área so-cial. Não mais é possível dividir as profissões em compartimentos es-tanques. Na verdade, na medida em que as profissões se desenvolvem,criando novos e aprofundando os velhos saberes, os campos de conhe-cimento se “especializam” intraprofissionalmente; quer dizer, se criam“subcampos” e “especialidades” no interior de cada profissão, como,por exemplo, a sociologia do trabalho, a economia industrial, a medicinado trabalho, o direito trabalhista e, por que não, o Serviço Social de empre-sa, dentre vários possíveis exemplos. A especialização dos saberes, dos cam-pos e subcampos de estudo e intervenção profissional, leva, cada vez mais, asprofissões a estabelecerem laços de interação e interligação. Pode um advoga-do especializado em direito trabalhista atuar sem interligação com o sa-ber produzido pela sociologia do trabalho, pela medicina do trabalhoetc.? É neste sentido que a discussão sobre inter, multi e transdisciplina-riedade começa a se posicionar no centro do debate no que se refere àdivisão sociotécnica do trabalho.64 E, como afirma Netto (1992a: 140), “overdadeiro problema da pesquisa da totalidade social concreta foi substi-tuído [tergiversadamente] pela ‘interdisciplinariedade’”.

Em decorrência, especificidade nos objetos de estudo e intervenção paranenhuma profissão da área social;65 apenas, como para o Serviço Social, ca-

64. Mas, vejam bem, não se trata de afirmar que um advogado trabalhista, seguindo nossoexemplo, precisa necessariamente do acompanhamento direto de um sociólogo da mesma área.Ele precisa o primeiro é do saber produzido pela sociologia do trabalho.

65. Permito-me, neste caso, discordar do meu mestre, José Paulo Netto, que, afirmando a au-sência de especificidade do Serviço Social nos itens acima considerados, no entanto, entende que“o específico prático-profissional do Serviço Social mostrar-se-ia na fenomenalidade empírica como ainespecificidade operatória” (1992a: 100; grifos nossos), acrescentando que “a polivalência aparente é amais nítida conseqüência da peculiaridade operatória do Serviço Social — v.g., da sua intervençãoindiferenciada” (idem: 101). Quer dizer, a especificidade da profissão seria sua própria inespecificidadeoperatória, seu sincretismo. Desta maneira, a afirmação estaria tacitamente aceitando que as outrasprofissões possuem sim uma especificidade operatória, o que acreditamos não seja real.

Por outro lado, em García Salard (1990: 5 e 54) aparece que a ambigüidade estrutural é ineren-te à especificidade profissional.

Na verdade, a sentença de que o Serviço Social possui uma particularidade, como apontaNetto, no seu sincretismo teórico e prático, é veraz. No entanto esta característica não é específica (no

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racterísticas (não inclusivas nem excludentes) que geram uma identida-de interna nas categorias profissionais. Efetivamente, negar a existênciade especificidades nas profissões sociais não significa desconhecer queelas possuam características geradoras de certa auto-representação, sen-timento de grupo e identidade profissional.

Em segundo lugar, cada profissão não pode ser reduzida a umaárea específica de saber, a um campo determinado de conhecimento,nem vice-versa, o conhecimento científico não pode ser reduzido a umaprofissão. Ou seja, não existe, nem pode haver, uma relação direta entre pro-fissão e ciência.

Qual é a ciência própria da profissão médica? Qual é a ciência espe-cífica da arquitetura?

Parece claro que as profissões se servem de vários campos de co-nhecimento humano. A medicina toma, assim, elementos da biologia,da química orgânica, da anatomia e fisiologia humanas etc. A arquitetu-ra se vale dos conhecimentos matemáticos, físicos, da química inorgânica,da mineralogia etc.

Mas este fato não pode ser atribuído apenas a algumas profissões(as consideradas “técnicas”), excluindo outras (as chamadas “científi-cas”). Estas considerações abrangem todas as profissões, especialmenteas sociais.

É que, na verdade, as profissões sociais são, cada vez mais, formas detrabalho humano mais ou menos organizadas, mais ou menos diferenciadas emais ou menos interligadas, que consistem na aplicação de um conjunto maisou menos delimitado de conhecimento, teórico e técnico, cujo objetivo é darresposta a um tipo ou a uma parcela mais ou menos determinada da realidadesocial global.

sentido de exclusiva) do Serviço Social; as profissões da área social em seu conjunto são co-partícipesdessa inespecificidade operatória.

Marx entendida que existe uma única ciência social — e, portanto, apenas um objeto social —que é a história. O conhecimento da realidade e a intervenção a partir de uma perspectiva de tota-lidade não podem se dar “recortando”, para cada ciência, um aspecto do todo e uma intervençãoparcial: as pretendidas “perspectivas” sociológica, psicológica, econômica, política, antropológicae do Serviço Social.

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Parece até que o “próprio”, o “específico” de cada profissão na áreasocial, o que delimita as fronteiras interprofissionais, é seu “mais oumenos” particular.

No final, uma profissão existe enquanto pode aportar elementospara a satisfação de determinada demanda, para a solução de certasproblemáticas; e ela só poderá se manter dentro da divisão sociotécnicado trabalho enquanto possa captar e interpretar situações e fenômenosemergentes, estudá-los e pesquisá-los, valendo-se de todos os conheci-mentos e campos do saber que lhe forem necessários e elaborando pro-postas de intervenção que contribuam para a sua solução.66

O assistente social é um profissional que, partindo de conhecimen-tos históricos, sociológicos, econômicos, estatísticos, demográficos, psi-cológicos, jurídicos, antropológicos, de administração etc., tem comocampo de ação (teórico e/ou prático) a “questão social” nas suas diver-sas manifestações, intervindo, quando é o caso, por meio, fundamental-mente, de um instrumento peculiar: a política social. Compartem, as-sim, o campo de pesquisa e de intervenção com outros profissionais —sociólogos, terapeutas familiares, educadores, psicólogos sociais, eco-nomistas etc. —, cada um deles intervindo (interdisciplinarmente ounão) de acordo com sua qualificação e das suas aptidões.

Convém aqui nos determos para esclarecer nosso ponto de vistasobre algumas questões:

1º) Nenhum campo de saber teórico (ou “ciência social”) é patrimônioexclusivo de qualquer profissão (contra a pulverização do forma-lismo abstrato, da realidade e sua equiparação a profissões par-ticulares).

Não se pode, mesmo considerando a concordância histórica na gê-nese e até constatando a identidade nas denominações, identificar hoje

66. Para Netto (1992: 85), “a afirmação e o desenvolvimento de um estatuto profissional (edos papéis a ele vinculados) se opera mediante a intercorrência de um duplo dinamismo: de umaparte, aquele que é deflagrado pelas demandas que lhe são socialmente colocadas; de outra, aqueleque é viabilizado pelas suas reservas próprias de forças (teóricas e prático-profissionais), aptas ounão para responder às requisições extrínsecas — e este é, enfim, o campo em que incide o seusistema de saber”.

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a teoria social com certa profissão, equalizar um campo de saber teóricoa uma categoria ou atividade profissional. Agrônomos podem produzirconhecimento teórico referente à “sociologia rural”, arquitetos utilizamteorias sobre “sociologia urbana”, médicos se valem da informática, so-ciólogos podem criar teoria sobre relações econômico-produtivas, e as-sim poderíamos seguir indefinidamente. Desta forma, por exemplo, ocampo de saber particular que tem como objeto as relações sociais(conhecido como “sociologia”) não é patrimônio exclusivo, numa pers-pectiva ontológica (e não positivista) — nem na produção teórica nemno uso do conhecimento — da profissão de “sociólogo”, mesmo e ape-sar de possuírem idêntico nome e de terem tido uma gênese simultâ-nea. Não são apenas sociólogos os que produzem e usam o conheci-mento “sociológico”.

Em que pese o fato de as profissões consideradas “científicas” te-rem surgido atreladas ao desenvolvimento de determinada área parcialdo conhecimento humano, este último nunca é desenvolvido apenaspor aqueles profissionais, mas também por um conjunto de outros pro-fissionais.

Os objetos de conhecimento (que compõem a totalidade social con-creta) não são “positivamente” subdivisíveis e, portanto, não perten-cem exclusivamente a tal ou qual profissão. As relações sociais podemser (e são) estudadas também por assistentes sociais, as relações econô-micas são analisadas inclusive por cientistas políticos, as relações depoder são pesquisadas também por sociólogos, e assim por diante.

Apenas numa perspectiva pulverizadora do real, onde seautonomizam frações como “campos particulares de saber” (como ocor-re na racionalidade positivista) pode se pensar em cada um desses “cam-pos autônomos” como constituintes do objeto específico das diferentesprofissões sociais particulares.

2º) Prática profissional (como “campo de ação”) não equivale a “prática decampo” (contra a segmentação positivista entre ciência e técnica).

Em decorrência do anterior, não podemos, “positivamente”, sepa-rar “profissões científicas” de “profissões técnicas”. Não devemos con-

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siderar que há umas que produzem conhecimento teórico e outras queintervêm na realidade valendo-se do saber criado pelas primeiras. Estetipo de divisão do trabalho apenas reproduz a hierarquização positivis-ta que separa a ação política, o saber “neutro” e a intervenção técnica e“ingênua” na realidade. E, evidentemente, nesta hierarquização o Servi-ço Social fica no extremo inferior, subordinado às outras funções. Umacoisa é distinguir o ato de produzir conhecimento teórico — a pesquisacientífica sobre um objeto ligado a determinada área de conhecimento— do uso que deste se faz para agir sobre tal objeto; outra coisa é preten-der que essa produção seja específica de algumas profissões e que aque-las práticas interventivas sejam próprias de outras, reproduzindo o di-vórcio comteano entre conhecimento e ação. A “prática profissional”inclui tanto a intervenção na realidade quanto seu planejamento e co-nhecimento (a pesquisa) dessa realidade, mas nem todas estas práticasprofissionais são desempenhadas pelos mesmos indivíduos.

Desta forma, por exemplo, não é a sociologia a profissão encomen-dada exclusivamente de estudar a “questão social”, e a profissão de Ser-viço Social apenas encarregada de nela intervir.

A posição que o Serviço Social vem historicamente ocupando naorganização sociotécnica do trabalho desde sua gênese, se, de um lado,restringe a intervenção do profissional à sua herança de subalternidade,de outro, possibilita um certo distanciamento, permitindo que se dedi-que a identificar problemáticas e demandas sociais, manifestas ou emer-gentes, estudá-las e pesquisá-las em profundidade, na sua essência, comtodo o rigor científico, definir pautas de intervenção e, finalmente, pôrem prática tudo aquilo: desenvolver o “trabalho de campo”.

O problema é que, na maior parte do debate no Serviço Social, comojá foi apontado, considera-se como específico da profissão apenas o últi-mo ponto: a prática de campo, a dimensão operativa, deixando aos “cien-tistas” e “políticos” os pontos anteriores: o conhecimento da realidade ea definição política dos objetivos que se perseguem em torno dela.67

67. É isto mesmo que faz o assistente social desconhecer sua significação e papel político, e ocoloca numa posição subordinada e subalterna na divisão sociotécnica do trabalho, fazendo dele,nessas condições, um agente praticamente prescindível, substituível.

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Nenhuma profissão exige de todos e cada um dos seus membros,como em muitos casos ocorre no Serviço Social,68 a realização de todosos passos, procedimentos, tarefas ou etapas de certo processo profissio-nal, preconcebido, definido como “método específico”. Muito emboranão se pretenda negar que cabe a todos e cada um dos profissionais oconhecimento da realidade que o convoca e certo domínio do processode trabalho tanto no nível teórico como prático.

Na arquitetura há profissionais que só desenham o que outros pro-jetam, enquanto a supervisão da obra recai num terceiro. Nem todos osarquitetos realizam na sua prática profissional o processo completo deconstrução, desde a concepção, o desenho do projeto até a fase final darealização da obra.69

Na medicina há quem atenda pacientes doentes, existe quem so-mente se dedica à pesquisa das causas sociais, biológicas, ecológicasetc. dos processos de doença e sua propagação, outros investigam oorganismo humano, experimentam as reações animais de certosreativos, e até há quem se concentra na pesquisa sobre fármacos. Ne-nhum deles deixa, por isso, de ser médico, nem sua prática perde ocaráter de atividade profissional. A medicina é uma profissão, e comotal não é uma ciência, no entanto ela é impensável sem o avanço daciência, da produção e da incorporação do conhecimento teórico dabiologia, da química, da física, da informática etc., assim como estasciências são impensáveis sem as contribuições de diversos médicos.Nem se excluem os aportes científicos de nenhuma área de conheci-mento necessária à sua prática, nem se marginaliza o médico dedicadoà mera pesquisa e à produção do conhecimento científico por não teruma “prática de campo”, uma relação direta com o paciente. A medici-

68. Netto afirma que “no centro desta modalidade de intervenção [a do Serviço Social] situa-se, com invulgar ponderação, a manipulação de variáveis empíricas de um contexto determinado.[...] toda operação sua que não se coroa com uma alteração de variáveis empíricas [...] é tomadacomo inconclusa, ainda que se valorizem seus passos prévios e preparatórios. O curso da interven-ção profissional está dirigido para ela e deve resultar nela. Não por azar, o traço de intervenção doServiço Social é freqüentemente identificado com uma tal alteração — que a formulação tradicio-nal subsumiu na rubrica do ‘tratamento’” (1992a: 93).

69. No entanto, todos eles devem conhecer o processo completo, o já feito e a projeção dasfases seguintes.

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na não é uma ciência, mas o médico que pesquisa e produz conheci-mento teórico, ele sim é um cientista.

Não há, portanto, numa perspectiva ontológica do ser social, profis-sões científicas, mas práticas ou atividades científicas; e estas podem serdesempenhadas por alguns membros das diversas profissões.

No entanto, no Serviço Social, muitas vezes se exige de todos ecada um dos profissionais a realização de todo um processo metodológicodefinido a priori como “o” processo e aplicável a todas as circunstâncias.Quem não realiza um diagnóstico da realidade não poderia planejar;quem não planeja não poderia tomar decisões para a ação; quem nãoatua não poderia “só” pesquisar (pois esta seria uma “investigação pura”,e ela estaria reservada aos “cientistas”).

Notem que não estamos afirmando que para o Serviço Social agircomo profissão numa realidade não necessite do diagnóstico desta. O queafirmamos é que todas essas fases de um processo de intervenção sobreuma dada realidade, desde o conhecimento dele até a ação direta, nãotêm por que ser realizadas pelo mesmo profissional, pela mesma pessoa.

No fundo, o que estamos propondo é a ruptura com a clássica divi-são positivista do trabalho que distingue algumas profissões científicase outras técnico-operativas. A distinção, para nós, não deve ser interpro-fissões e sim intraprofissão. Na verdade, há e deve haver divisão de traba-lho no interior de cada profissão,70 seus membros fazem (e devem fazer)coisas diferentes, em lugar de todos percorrerem, como um calvário, omesmo ritual.

No Serviço Social pareceria então que aquela é a sua “especificida-de prometida”: a procura da homogeneidade profissional. Todos devemfazer tudo aquilo que forma parte do processo de intervenção profissio-nal preestabelecido.

Assim, no caso do assistente social que “apenas” pesquisa a reali-dade social, não é em geral reconhecida sua atividade profissional como

70. Netto (1996: 112) sustenta que a “divisão de trabalho” ou “especialização” no interior decada profissão é “própria das profissões amadurecidas”. Neste sentido, o Serviço Social, com “acriação de um segmento diretamente vinculado à pesquisa e à produção de conhecimentos” tem,nos anos 1980 a sua maioridade.

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própria do Serviço Social e, por oposição, um sociólogo que “apenas”trabalha “em campo” não é considerado, geralmente, pela nossa catego-ria profissional, como prática sociológica e sim como a invasão do espa-ço específico do Serviço Social. Nesta concepção, estaria reservado aosociólogo a pesquisa e ao assistente social a prática de campo. Assim,cada qual conserva o domínio do seu “quintal”.

No entanto, esta separação não reflete a realidade atual. A divisãotécnica do trabalho é cada vez mais difusa, mais interligada e interde-pendente. Já não há compartimentos estanques rígidos e plenos de visi-bilidade, e o Serviço Social deve perceber isto com toda clareza, para nãosucumbir numa “morte anunciada”, na tentativa de continuar na buscada “especificidade prometida”.71 Há sociólogos, psicólogos, antropólo-gos, agrônomos, médicos e tantos outros profissionais realizando ativi-dades outrora consideradas como específicas do Serviço Social. Em con-cordância, deve se reconhecer e até se estimular a atividade de pesquisano interior da nossa profissão; pesquisa esta que crie conhecimento teóri-co sobre o social, e não apenas conhecimento sobre a prática profissional.O problema é que esta pesquisa, mesmo realizada em espaço e tempodiferentes do trabalho de campo, deve permear esta prática e integrar aformação profissional. O conhecimento dos diversos e variados fenô-menos com que o profissional de campo se defronta deve subsidiar aformulação da sua estratégia interventiva, esta a posteriori do contatocom o objeto, numa perspectiva ontológica e histórica, não concebendoum método a priori, rotinizado, para todas as práticas.

O Serviço Social deve reconhecer como prática profissional nãoapenas aquilo cujo processo completo é realizado pelo mesmo indiví-duo. O processo deve ser desenvolvido pela profissão como um todo enão necessariamente por cada profissional particular. Não deve se des-prezar a atividade do “profissional de campo” por considerá-la limitadateoricamente, nem deve se deslegitimar as elaborações teóricas de um“profissional acadêmico” acusando-o de não estar sustentada na expe-riência prática. Este mútuo enfrentamento trouxe experiências nocivas

71. Como aclama Lucien Febvre: “Historiadores, sejam geógrafos, sejam juristas também, esociólogos e psicólogos. Ponham abaixo os compartimentos” (In Fiori, 10/5/1996).

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ao Serviço Social, reproduzindo a lógica positivista da sua gênese, ondea produção de conhecimento é questão das “ciências” e ao assistentesocial corresponde a aplicação deles na prática.

Como primeira instância na divisão sociotécnica do trabalho pode-mos identificar profissões diversas. Num segundo plano desta divisão,encontramos, no interior de cada profissão, a atividade científica e a ativi-dade interventiva. Ciência é a denominação que se dá à atividade inves-tigativa feita sobre objetos reais de certa realidade e que procura repro-duzi-la no plano ideal; outra coisa é o que chamamos de profissão, sendocaracterizada por um conjunto de atividades, dentre as quais a científi-ca, e que envolve tanto o nível teórico-científico quanto técnico-instru-mental, político-institucional e prático-interventivo.

Portanto, nenhum profissional é cientista por si só, pelo tipo deprofissão ou formação que tenha.72 Não é a profissão determinada a queoutorga o caráter de cientista a um profissional. Ele se converte em cien-tista desde que pesquise cientificamente, desde que produza conheci-mento teórico sobre o real. Não é cientista por “aplicar” os conhecimen-tos já elaborados, não importa de onde venham, o profissional faz ciên-cia desde que se dedique à atividade científica.73

O caráter de cientista de uma pessoa não lhe é dado mecanicamente pela pro-fissão que tem, mas sim pela atividade científica, de pesquisa, que desempenha.74

72. Um físico, por exemplo, que trabalha “apenas” interventivamente, aplicando seus conhe-cimentos, não é, pelo mero fato de ter uma formação em física, um cientista. Um arquiteto que sededica à construção não realiza uma atividade científica, portanto, não é um cientista. Um médicocuja atividade é clínica não faz ciência. Um sociólogo que desempenha atividades de assessoria oude pesquisa de mercado, não produz conhecimento científico. Um assistente social que se dedica àprática de campo também não se constitui num cientista.

73. O físico que pesquisa novos fenômenos, o arquiteto que desenvolve, mediante a pesquisacriadora, novos conceitos arquitetônicos, o médico que investiga sobre o câncer ou o HIV, o soció-logo que estuda os novos fenômenos sociais dos anos 1990, e o assistente social que estuda a “ques-tão social”, enquanto cria novo saber científico, enquanto produz conhecimento teórico, tem eleuma atividade científica, se desempenhando, portanto, como um cientista.

74. Quais formações ou profissões tiveram Marx, Weber ou Comte? Na verdade, as ciências sedesenvolvem pelo conhecimento criado a respeito de determinada área da realidade e não depen-dem exclusivamente da profissão, da formação que o pesquisador tenha.

Marx não tinha formação universitária de economista, no entanto a ciência econômica é im-pensável sem a contribuição marxiana. Comte não era sociólogo mas advogado, nem por isso pode

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Portanto, também não pode lhe ser retirado o caráter de cientista de qual-quer profissional que desenvolva uma atividade teórico-científica, apenas porpossuir ele tal ou qual formação, por exemplo, de médico ou de assistentesocial.

Da mesma forma que não se pode dizer que todo físico, todo biólo-go, todo sociólogo etc., pelo simples fato de ter determinada formaçãoprofissional, seja um cientista, independentemente de criar ou não co-nhecimento teórico. Também não se pode afirmar que um assistente socialque produza saber teórico original não seja, pelo fato de possuir estaformação profissional, um verdadeiro cientista.75 O Serviço Social — comotoda categoria que integra a divisão sociotécnica do trabalho — não éuma ciência mas uma profissão. No entanto, o assistente social que produzsaber científico (não apenas instrumental, extraído direta e imediatamente deuma situação ou prática singular), assim como todo profissional que sevincula à produção de conhecimento, é, ele, um cientista social.

Logo, o saber científico não é propriedade nem especificidade decertas profissões. O conhecimento aportado por sociólogos, antropólo-gos, assistentes sociais, economistas, psicólogos sociais, politólogos etc.é um saber comum às ciências sociais; forma parte da teoria sobre o social,utilizável por todas as profissões sociais. Não há teoria de Serviço Social(talvez apenas um saber instrumental e um diagnóstico situacional, ne-

se desconhecer que ele deu à sociologia um status oficial. Freud era um médico, no entanto é cria-dor de um novo campo de saber psicológico.

75. Para Iamamoto, “o Serviço Social em sua trajetória não adquire o status de ciência, o quenão exclui a possibilidade e necessidade de o profissional produzir conhecimentos científicos, contribuindopara o acervo das ciências humanas e sociais, numa linha de articulação dinâmica entre teoria eprática” (1991: 89).

Por outro lado, em Netto, se “a filiação teórica do Serviço Social às ciências sociais da extra-ção positivista não é um dado irreversível” e se, igualmente, “sua vinculação ao pensamento con-servador não é um componente inevitável”, não pode se pensar que a profissão possa ter uma teoriaespecífica ou uma metodologia particular (Netto, 1992a: 146-7). Para o autor, “em qualquer hipótese, oServiço Social não se instaurará como núcleo produtor teórico específico — permanecerá comoprofissão, e seu objeto será um complexo heteróclito de situações que demandam intervenções so-bre variáveis empíricas”; no entanto, continua, “esta argumentação não cancela nem a produçãoteórica dos assistentes sociais (que não será a ‘teoria’ do Serviço Social e que, naturalmente, suporá asistematização da sua prática, mas sem se confundir ou identificar com ela) nem o estabelecimentoformal-abstrato de pautas orientadoras para a intervenção profissional” (idem: 147; grifos nossos).

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cessário para agir em situações singulares), mas teoria ou conhecimentoteórico sobre o social.

2.3. Breves considerações sobre a particularidade do Serviço Social

Não há, portanto, segundo procuramos demostrar, uma “especifici-dade” do Serviço Social. Existem sim “particularidades”, que são, desdobra-mentos da inserção da profissão na divisão sociotécnica do trabalho e das suascaracterísticas históricas — a intervenção de campo como atividade maisrecorrente, a ação imediata nas refrações da “questão social”, a manipu-lação de variáveis empíricas como limite na maior parte das interven-ções, seu conhecimento fundamentalemente instrumental, as políticas eserviços sociais e assistenciais como campos mais freqüentes da sua ati-vidade, o Estado como espaço privilegiado de emprego, as formas orga-nizativas da categoria, a identificação com certas bandeiras e lutas so-ciais —, que atribuem certa identidade76 e certa cultura profissional (cf. Netto,1996: 124).

Estas características são históricas e, portanto, variáveis, e não es-tão necessariamente presentes em todos os membros da categoria77 e

76. No sentido, aqui, do sentimento de pertencimento dos profissionais à categoria.

Para Martinelli, perguntar sobre a identidade do assistente social significava, na corrente “mo-dernizadora”, perguntar sobre a especificidade da sua prática profissional; para os fenomenólogos, eraquestionar sobre a posição de Serviço Social enquanto ser-no-mundo; entretanto para as concepçõeshistórico-críticas, esta pergunta remetia ao papel que desempenha a profissão no processo de repro-dução das relações sociais (Martinelli, 1991: 24 e 159).

77. Há assistentes sociais que se dedicam apenas à pesquisa ou a atividades de direção insti-tucional, há os que não se vinculam a políticas sociais e até os que não se empregam no aparatoestatal.

Na pesquisa já mencionada, as autoras acertadamente concluem que: primeira “se torna difí-cil encontrar uma única especificidade na ação dos assistentes sociais”; em segundo lugar, paraevitar se deter “em discussões infrutíferas no sentido de encontrar uma exclusividade”, sua “in-quietação não estava em abordar os elementos que iriam determinar a especificidade do ServiçoSocial, e sim encontrar o que há de comum na ação de todos os assistentes sociais” (Teixeira Caldase D’Auria, 1981: 55). Até aí foi um grande passo dado pelas autoras na desmitificação de um tabuna profissão; no entanto, na hora de encontrar esse “elemento comum”, mesmo que não específico(no sentido de exclusividade), elas o vinculam inclusivamente à “prestação de serviços no sentido de‘ajudar’ os homens a satisfazerem suas necessidades básicas”, quer dizer, desconsiderando como

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demarcando clara e rígida diferença com outras profissões.78 Como afir-ma Iamamoto,

reduzir a análise dos elementos constitutivos “internos” — que, suposta-mente, peculiarizam à profissão um perfil específico: seu objeto, objeti-vos, procedimentos e técnicas de atuação etc. — significa extrair, artifi-cialmente, o Serviço Social das condições e relações sociais que lhe dãointeligibilidade e nas quais se torna possível e necessário. Significa privi-legiar a visão focalista e a-histórica que permeia muitas das análises institu-cionais. (In Iamamoto e Carvalho, 1991: 5-16; grifos nossos)

A questão é não supor que a falta de especificidade deslegitima oServiço Social — como se deriva da primeira tese. Este se legitima pelafunção socioeconômica e política que cumpre (e que não lhe é específi-ca) e não pela sua suposta especificidade.

Porém, não tendo especificidade, todas as profissões da área socialpossuem particularidades. Particularidade, no seu real sentido, não comoexclusividade/inclusividade, mas mediada pela inserção da profissãona divisão sociotécnica do trabalho, mediada pela sua significação so-cial, pela sua funcionalidade, pela sua inclusão no universal. Particula-ridade dada pela sua história — portanto, histórica, não imutável —,pela sua gênese e processo, inserido no desenvolvimento social maisamplo. As profissões sim possuem particularidades, mas estas não deri-vam de diferentes objetos para cada uma (numa verdadeira pulveriza-ção positivista da realidade social: os objetos da sociologia, da econo-mia, da ciência política, do Serviço Social etc.) ou de diferentes esferasou “recortes” particulares da realidade social para cada profissão. Ouseja, as particularidades de cada profissão não derivam das particularidades doser social — atribuindo cada particularidade a cada profissão —, mas daparticular forma de inserção profissional na divisão sociotécnica do trabalho.

atividade profissional tudo aquilo que não for “prestação de serviços”: a pesquisa teórica, porexemplo, o que reproduz a lógica positivista de profissões técnicas e científicas.

78. Há outras profissões cujo predomínio é feminino ou, ainda, que se vinculam à execução depolíticas sociais. Há profissionais de outras áreas que trabalham interventivamente na realidade,direto com a população carente etc.

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Quer dizer, da sua história, da sua cultura profissional, do seu projetoético-político hegemônico (e da sua direção social), da sua organizaçãopolítico-corporativa, da sua inserção no mercado de trabalho.

Assim, o debate sobre a “especificidade” remete à imutabilidade dasatribuições, portando um caráter aistórico, e às suas dimensões inclusiva eexclusiva. Contrariamente, a análise da particularidade da profissão reme-te a categorias que são históricas, dinâmicas e tendenciais. Por outro lado,se o objetivo das discussões da “especificidade” é demarcar, estabelecerfronteiras interprofissionais, tentando garantir um espaço autônomo deintervenção, a análise da particularidade procura articular o Serviço So-cial com o universal, no interior da divisão sociotécnica do trabalho.Desta forma, o debate sobre a “especificidade” contém um caráter unidi-mensional — a “especificidade” se explica por si só, desconectada daestrutura e do movimento da história, ocultando as mediações com ouniversal —; entretanto, a abordagem da particularidade profissional con-templa os três níveis da realidade: a singularidade, a universalidade, e amediação da particularidade, onde as categorias singulares são partícipesde um universal, de uma totalidade, carregada de historicidade.

Não é mister, neste texto, tratar da particularidade do Serviço So-cial, mas apenas estabelecer um debate crítico com as teses endogenistassobre a “especificidade” e seus rebatimentos. No entanto, ao desmitifi-car a “especificidade” profissional é relevante estabelecer algumas pis-tas para caracterizar a particularidade, relegando qualquer hipótese deinexistência da mesma. Assim:

• A estrutura sincrética (Netto, 1992a) é uma particularidade do Ser-viço Social. Ou seja, uma profissão que se pretende diferenciadadas suas ditas “protoformas” a partir de (supostos) fundamen-tos científicos; fundamentos estes sincréticos, na medida em quese dirigem a compreender/intervir imediatamente nas refrações(segmentadas e autonomizadas) da “questão social”, recortes darealidade social, intervindo instrumentalmente a partir de polí-ticas sociais setoriais (e hoje, focalizadas),79 mediante o procedi-

79. Para Netto, “a problemática que demanda a intervenção operativa do assistente social seapresenta, em si mesma, como um conjunto sincrético; a sua fenomenalidade é o sincretismo — deixan-

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mento da manipulação de variáveis empíricas no cotidiano, numapriorismo metodológico nos “moldes formal-abstratos”. Desen-volve-se, assim, uma permanente reposição, sob novas formas,do conservadorismo das práticas tradicionais de ajuda, caracte-rizando sua “polivalência” e sua “inespecificidade operatória”.Netto aborda também o sincretismo ideológico, recriando o pensa-mento conservador, sob as formas positivista, empirista, prag-matista, anticapitalista romântico, humanista, modernizadora,e hoje pós-moderna, e o sincretismo científico, que adota eclética eacriticamente um saber provindo das “ciências sociais particula-res” e que desenvolve um conhecimento instrumental que sepretende “específico”.

Segundo o autor, “o sincretismo nos parece ser o fio condutor daafirmação e desenvolvimento do Serviço Social como profissão, seu nú-cleo e sua norma de atuação. [...] O sincretismo foi um princípio consti-tutivo do Serviço Social” (Netto, 1992a: 88).

• O seu embrionário vínculo com as políticas e serviços sociais e assis-tenciais, fundamentalmente na órbita do Estado, quando este as-sume funções de resposta às refrações da “questão social”, cons-titui outra particularidade da profissão, sendo esta a sua base desustentação funcional-ocupacional. Não sendo as políticas sociaismediações entre o assistente social e a população, mas entre asclasses sociais, o profissional de Serviço Social insere-se na divi-são sociotécnica do trabalho requisitado fundamentalmente paraexecutar, mas também para planejar e avaliar, as políticas so-ciais setoriais. A atual focalização das políticas sociais, e conse-qüente desuniversalização, a sua desestatização, e conseqüenterefilantropização, a desvinculação das políticas sociais dos direi-tos de cidadania, tudo isto cria uma tensa situação crítica para oServiço Social.

do na sombra a estrutura profunda daquela que é a categoria ontológica central da própria realida-de social, a totalidade” (Netto, 1992a: 91).

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• O caráter setorial da área de conhecimento e/ou de intervenção narealidade social, como se existisse um objeto próprio, um “olhar”específico, um “recorte” do objeto, do ser social, ou até uma moda-lidade interventiva específica, bem ao gosto da racionalidade posi-tivista, constitui uma particularidade da profissão. O Serviço Socialnasce como prática setorial, atrelado às setoriais políticas sociais.Tende, portanto, a não incorporar uma visão de totalidade sobre oser social, que fundamente sua pesquisa e sua intervenção.

No entanto, para se desempenhar profissionalmente (seja o assistentesocial ou outros profissionais da área social) não pode nem deve se ter umaperspectiva parcial da realidade: a “perspectiva do Serviço Social”, ou a do“sociólogo”, ou de “economista” etc., bem ao capricho positivista.

Estas perspectivas particulares (consideradas “específicas”) signifi-cam, como já foi mencionado, a especialização profissional como substitu-tiva da qualificação (ampliaremos isto no item 3 das Conclusões), acompartimentação e pulverização dos campos de conhecimentos e a sepa-ração de ciência e técnica, o que se traduz, para o Serviço Social, em subal-ternidade funcional, alheamento da realidade global, perda de criticidadee incapacidade de dar respostas substantivas às realidades complexas.

A perspectiva a adotar por parte do profissional (no conhecimentoe na intervenção) para poder ter uma prática crítica e transformadora,mesmo em nível micro, deve ser dada pelo próprio objeto, consideradona sua universalidade. O profissional comprometido, crítico e compe-tente deve adotar a perspectiva de totalidade, procurando apreender a rea-lidade concreta na sua complexidade, negatividade e totalidade, não seg-mentando ou “recortando” artificialmente o objeto em diversas “pers-pectivas”, ou em várias “esferas” ou até em distintos níveis da realidadesocial; portanto, uma perspectiva definida a partir do objeto, a posteriori, enão a partir desta ou aquela profissão, a priori; una perspectiva ontológica.

• A tensão da prática, vivida pelo profissional de Serviço Social, inseri-do entre contraditórios interesses de classes, entre as lutas declasses, entre uma demanda social por serviços (originada nasclasses subalternas) e uma demanda profissional da instituiçãopara responder àquelas (originada nas classes hegemônicas e

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seus representantes), conforma uma outra particularidade da pro-fissão. Esta tensão derivada da contradição capital-trabalho e odiferenciado vínculo profissional com ambas as classes, leva oassistente social a, contraditoriamente, ser um “profissional dacoerção e do consenso” (cf. Iamamoto, 1992a: 42).

• A composição de gênero, eminentemente feminino, do Serviço Social,constitui mais uma particularidade da profissão, que a acompa-nha desde sua gênese. Como já se viu, ela expressa claramentedesdobramentos do processo de inserção da mulher no merca-do de trabalho e das lutas e conquistas feministas, porém repro-duzindo em parte uma situação de subalternidade profissionalnuma sociedade marcadamente sexista.

• Outra particularidade, marcadamente presente na profissão, é adimensão técnico-interventiva. Aí recai fundamentalmente o espa-ço de inserção ocupacional dos assistentes sociais. É ela que acom-panha, na execução terminal de políticas sociais segmentadas, agênese e o desenvolvimento do Serviço Social. Esta dimensão,mesmo não atingindo o conjunto absoluto da categoria, se ex-pressa como fundamental nos debates sobre demanda do mer-cado de trabalho e sobre formação profissional.

• Parece conveniente, a esta altura, desmitificar a idéia que pu-desse permanecer ainda de que, numa perspectiva crítica, o ex-clusivo (e “específico”) do Serviço Social seja a sua funçãomanipuladora e controladora dos setores populares e legitima-dora da ordem burguesa, a sua funcionalidade com o sistema(tal como foi analisado a partir da Reconceituação). Nesta pers-pectiva, os assistentes sociais progressistas, comprometidos comas causas populares, deveria abandonar o barco do Serviço So-cial por ser este um instrumento de dominação da classe hege-mônica, e transbordar para outras práticas (profissionais) nãofuncionais ao status quo.80

80. Netto sustenta que “a hipótese de um Serviço Social correndo por fora do marco institu-cional” [...] “a meados da década de setenta, ganhou corpo entre segmentos renovadores da profis-são” (1992a: 72, nota 136).

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Se é verdade a funcionalidade do Serviço Social com a ordem socialque o institui como profissão, é falso pensar que esta é uma característi-ca exclusiva da nossa profissão,81 e que inclui todos os profissionais.Contra a exclusividade, basta fazer uma análise histórico-crítica (segun-da tese) — rompendo com análises “endogenistas” e com a perspectivada “sociologia das profissões” — do conjunto das profissões para obser-var a adequação e a funcionalidade de todas elas com a ordem social (cf.a nota 11 do capítulo I). Contra a inclusividade, basta observar diver-sas experiências profissionais que claramente superam a lógica fun-cional à ordem (ver algumas experiências em prefeituras oposicionis-tas, em sindicatos, a participação de assistentes sociais no debate doECA e da Loas etc.)

Isto quer dizer que não todos os profissionais são intelectuais orgâ-nicos da burguesia (sobre isto, ver as Conclusões Gerais). A fração hege-mônica da classe burguesa cria (e/ou determina) as profissões segundoos modelos de racionalidade e manipulação que a beneficiavam (umaracionalidade segmentadora, mistificadora e instrumental da realida-de). No entanto não cria (e/ou determina) para todos e cada um dosprofissionais a sua razão, orientação ideológica e prática político-profis-sional. Os profissionais, em determinadas condições, possuem certaautonomia relativa, como para beneficiar sua opção ideopolítica na prá-tica profissional.

Paralelamente, o coletivo profissional constrói, como ocorre clara-mente no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, a partir de uma direçãosocial estratégica, um projeto ético-político hegemônico, que pode colo-car no horizonte profissional a defesa de certos valores — democracia,justiça social, participação popular nas decisões sobre alocação da ri-queza social, defesa e ampliação dos direitos universais conquistadospelas lutas dos trabalhadores organizados —, a finalidade de transcen-der a ordem do capital; que pode estabelecer uma organização político-

81. Como aponta Iamamoto, “radicalizando uma característica de todas as demais profissões,o assistente social aparece como o profissional da coerção e do consenso, cuja ação recai no campopolítico. Esta é, pois, uma característica que, não lhe sendo exclusiva, aparece nele com maior inten-sidade...” (Iamamoto, 1992: 42; grifos nossos). “Não é cariz exclusivo”, afirma Netto, “do ServiçoSocial esta funcionalidade...” (1992a: 92).

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corporativa ligada às organizações trabalhistas; que planeja a formaçãoprofissional que, incorporando as demandas profissionais do mercado,as transcenda e forme profissionais críticos e competentes teórica e tec-nicamente. O Código de Ética, o debate sobre Currículo Mínimo, osmovimentos CFAS/CFESS e Abess-Cedepss/Abepss, os CBASS quecongregam maciçamente os assistentes sociais, as pós-graduações dequalidade, a importante produção bibliográfica, tudo isto atesta a im-portância de uma profissão se movendo, com relativa autonomia, paraalém da reposição atualizada do conservadorismo, consolidando a rup-tura, no plano ideopolítico, com o conservadorismo profissional.

3. O “praticismo” profissionalUma crítica à análise da relação teoria/prática no Serviço Social

Estas considerações, na verdade, são desdobramentos do item an-terior, pois se referem à análise da relação, não de qualquer teoria e prá-tica, mas da teoria e da prática consideradas (pelos praticistas) comopróprias do Serviço Social.

Assim, este item refere-se também à (auto-)reprodução da primeira tesesobre a legitimidade profissional.

É fato notório, nos meios profissionais, como o assistente social temfeito e faz uma apologia do praticismo. Em geral, ele tende a rejeitar aprodução teórica na profissão se esta não “partir” da “prática profissio-nal”. Estigmatiza-se o assistente social que pesquisa sem desenvolveruma atividade de campo como “teórico puro”. Chama-se a sua pesquisade “abstração” ou de “conhecimento não orientado para a ação”. Simul-taneamente, estes mesmos assistentes sociais encantam-se com os pro-dutos teóricos elaborados por sociólogos, psicólogos sociais, antropólo-gos, pedagogos e economistas.

Evidentemente, isto é resultado da necessidade de encontrar a “es-pecificidade” da profissão e, a partir daí, dividir as águas, demarcar cla-ramente os espaços de cada profissão: não invadir para não ser invadido.

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Assim, “positivamente”, o “espaço”, a “especificidade” do ServiçoSocial, a partir da divisão de ciência e técnica, conhecimento e ação, pare-ceria ser a prática.82 Se assim fosse, o assistente social que produz teoria, e“só” isso, não estaria realizando uma atividade profissional “específica” doServiço Social e não estaria respeitando o “acordo” com os “cientistas so-ciais”, estes sim produtores de teoria. Ora, este acordo repousa sobre a tesede uma “teoria própria” do Serviço Social. Percebe-se, assim, uma clara cor-relação, e até identidade, entre a “prática profissional” e a “atividade de campo”.

Desta forma, com esta concepção de “teoria” — específica e pró-pria — e com esta idéia de “prática profissional” — como atividade decampo —, obtêm-se a convicção de que “a prática (profissional) é fonteda teoria”.83

Esta é uma bandeira levantada pela esmagadora maioria dos pro-fissionais reconceituadores, nas décadas de 1960 e 1970, porém com enor-me repercussão e vigência até nossos dias.84 Até por aqueles que preten-dem, com base nesse argumento, nessas conceituações de teoria e práti-

82. “Todos os trabalhos humanos são especulações ou ações. Assim a divisão mais geral denossos conhecimentos reais consiste em distingui-los em teóricos e práticos” (Comte, 1988: 22).Deste modo a ciência é para previr, e a Previdência para agir (idem: 23).

O Serviço Social seria, nesta perspectiva, exclusivamente uma atividade prática, curativa epreventiva.

83. No Método Belo Horizonte, postula-se: “o pensamento teórico se torna possível unicamen-te baseado nos dados sensíveis” (Lima Santos, 1993: 23), e “a construção teórica se faz pela sistematiza-ção e abstração dos dados advindos das experimentações práticas” (idem: 27); “a prática é produtora deconhecimentos. Estes, organizados e sistematizados, constituirão o conhecimento teórico” (ibidem).

Boris Lima, identificando “fundamento” com “fonte”, afirma que “a prática é fundamento dateoria, e por ser sua fonte é prioritária na relação com esta” (1986: 35).

Faleiros diz que “o redimensionamento teórico do trabalho social só se realizará a partir daprática teórica” (1993: 83).

“O conhecimento é um fato social”, diz Kisnerman, “que surge da prática” (Kisnerman, 1980:31), seu “ponto de partida” é “a percepção” (idem: 32).

84. Existe uma produção teórica, resultado de pesquisa, de tese de pós-graduação, enfim,uma extensa bibliografia de Serviço Social pós-1980, fundamentalmente produzida no Brasil,que transcende a mera sistematização da prática profissional, a mera reflexão técnico-instrumen-tal, atingindo análises teóricas dos objetos, dos fenômenos sociais, o que nos obriga a relativizaresta afirmação.

Não obstante, fundamentalmente nos países hispano-americanos, ainda existe certo predo-mínio, na formação profissional, da bibliografia elaborada antes dos anos 1980, onde se postulacom significativa força o “princípio profissional” da “prática como fonte de teoria”.

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ca, bater e rebater a referida concepção positivista de separar ciência etécnica, teoria e prática. Longe estão eles de seu objetivo; e o que nãopercebem é que este postulado, distante de ferir de morte o conceitopositivista, o revitaliza e o recria.

Que fundamento tem, então, a consideração da prática como fontede teoria? Quais as implicações contidas nesta afirmativa?

Surgem aqui duas questões:

• Por um lado, o conceito de “prática” (e, portanto, de “teoria”).

• Por outro lado, o conceito de “fonte” (de teoria).

3.1. Os conceitos de “prática” e de “teoria” contidos na perspectiva do praticismo

Para tratar esta questão — como se entende a “prática” que se pos-tula como “fonte” de “teoria” e de que tipo de teoria se fala —, conside-remos alguns dos textos mais representativos que assim a proclamam.85

• Vejamos primeiramente os documentos sobre a “relação teoria-prática”, elaborados em Belo Horizonte no período 1972 a 1975,a partir dos trabalhos de Leila Lima Santos e colaboradores, co-nhecidos como “Método B. H.”.86 Postula-se aí, numa separaçãoespaço-temporal dos momentos sensível e abstrato do processode conhecimento, que “esta forma rudimentar de apreensãomental da realidade objetiva [a do momento sensível]87 constitui

85. Tomaremos inicialmente análises próprias da Reconceituação. Parece ilógico debater ecriticar trabalhos tão distantes no tempo e já criticados (cf. Netto, 1991a: 276-89) e até autocriticados(cf. Lima Santos, 1993: 107-50, também publicado em Acción Crítica nº 2: 15-41). No entanto, o trata-mento destes textos se faz na medida em que ainda estes escritos exercem, direta ou indiretamente,total ou parcialmente, uma influência importante, que permeia a generalidade da categoria profis-sional (ver nota anterior).

Outrossim, podemos dizer que a Reconceituação continua marcando, direta ou indiretamen-te, o eixo do debate profissional na América Latina.

86. “A relação ‘teoria-prática’ no trabalho social: método B. H.” (Lima Santos, 1993). Textoredigido por Leila Lima em colaboração com Ana Maria Quiroga.

87. “O momento sensível inclui tanto dados sensíveis (sensações, percepções) [que ‘refletemas propriedades particulares dos objetos’, e dos “objetos íntegros”, respectivamente] como elabo-rações mentais (representações) [‘imagens sensoriais dos objetos que não exercem uma ação nomomento atual’]” (idem: 18). Concepções claramente influenciadas pelos escritos de Mao.

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o ponto de partida para a elaboração de conhecimentos...” (LimaSantos, 1993: 19).

Aqui aparece claramente o “ponto de partida” como “fonte” (cf. infra).

Este “momento sensível” representa, para os autores de Belo Hori-zonte, o momento do conhecimento que se vincula a uma experiência,tida ela como a prática. Assim, o conhecimento prático, sensível, apreen-deria os efeitos, não as causas, o quantitativo, o particular e singular, nãoo geral. É, portanto, “conhecimento incipiente” (Lima Santos, 1993: 18-9).Poder-se-ia dizer que este momento corresponde, para usar um conceito deKosik,88 ao “mundo da pseudoconcreticidade”, aquele que se apresenta

como o campo em que se exercita a sua atividade prática sensível, sobrecujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. Notrato prático-utilitário com as coisas [...], o indivíduo “em situação” criasuas próprias representações das coisas e elabora todo um sistemacorrelativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.(Kosik, 1989: 10)

Desta forma, para superar este momento “incipiente” de conheci-mento do “externo”, do “particular”,89 do “aparente”, passa-se ao “mo-mento abstrato”, onde “é necessário elevar-se da contemplação sensiti-va ao conhecimento racional ou abstrato” (Lima Santos, 1993: 19).90

Assim, mediante “conceitos”, “juízos” e raciocínios,91 neste momen-to dá-se “a passagem da experiência sensorial ao pensamento abstrato [...] do

88. Cf. Kosik (1989: Cap. I), ainda que os autores dos textos em questão não tenham nesteautor um referencial teórico.

89. Aqui há claramente um distanciamento (se não contradição) com as concepções marxianas.Para Marx o concreto é a totalidade, a unidade da diversidade. Chega-se ao particular por meio daabstração. Evidentemente, não é o mesmo “particular” que o Método B. H. postula para o “mo-mento sensível”.

90. Numa clara alusão à frase de Marx sobre o “método que consiste em elevar-se do abstratoao concreto” (Marx, 1977: 219), mas incorrendo num equívoco substantivo: em Marx a “elevação”é “do abstrato ao concreto” e não “do sensível ao abstrato”. O processo proposto, portanto, é exata-mente o contrário do que Marx postula.

91. Partindo aqui, claramente, de Mao Tse-tung. No entanto, os autores se referem a “concei-tos”, “juízos” e “deduções”. Ignoramos este último termo e assumimos o próprio empregado por

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conhecimento de objetos e fenômenos isolados para o conhecimento daconexão interna entre eles e das leis que regem seu desenvolvimento emudança” (idem: 20).

Para os autores de Belo Horizonte, “os conceitos”, como que magi-camente, “refletem a essência dos fenômenos”; no entanto, “os juízos”,também idealisticamente, “revelam o conteúdo objetivo dos conceitos”(idem: 21). Assim, esta passagem de um momento para o outro estariaassinalando a passagem da prática à teoria, da aparência à essência. Comose o simples fato de pensar a prática, de refletir sobre os dados sensíveis, gerasse,mecanicamente, teoria, conhecimento da essência, ou como eles postulam,“o conteúdo objetivo dos conceitos”.92

Observe-se que, por definição, não há nada mais “subjetivo” queas “elaborações do pensamento” (conceitos, juízos e raciocínios) de umdado sujeito.93 Portanto, a simples passagem do “momento sensível” ao“abstrato”, a mera abstração, que Marx critica nos economistas políticoscomo limitada,94 é o que, no Método B. H., constitui a “teoria”, é o quedesvendaria a “essência dos fenômenos”, o “conteúdo objetivo” dosconceitos.

Se esta passagem sempre gerasse teoria e se esta teoria sempre che-gasse à explicitação da essência, ao objetivo, sendo esta passagem umprocesso do pensamento (subjetivo), isso nos levaria, necessariamente,a uma questão problemática: cada pessoa que pensa (que abstrai) suaprática, cada sujeito que elabora conceitos, juízos e raciocínios sobre suas

Mao: “raciocínios”; do contrário, deveríamos apontar a tautologia de falar de “deduções deduti-vas” e a contradição das “deduções indutivas” (cf. Lima Santos, 1993: 20-1).

92. Para Netto (1991: 281), “esta estrutura teórico-metodológica é montada a partir de umareflexão francamente epistemológica”; tendo uma “concepção do conhecimento diretamente ins-pirada na teoria leniniana do reflexo”.

93. Para Habermas, não há “juízos de fato” deslocados de “juízos de valor”, não há conheci-mento sem interesse. Não existe, em outras palavras, o “conhecimento desinteressado”, neutro,puro; este, para Habermas, está sempre saturado de interesse; ao contrário de Durkheim (paraquem os juízos de valor devem ser eliminados dos juízos de fato) e de Weber (para quem os valoresdevem ser explicitados para serem distinguidos, separados e controlados).

94. “A primeira via [do concreto sensível ao abstrato] foi a que, historicamente, a economiapolítica adotou [...]. Os economistas do século XVII, por exemplo, começam sempre por uma tota-lidade viva: a população, Nação, Estado [...]; mas acabam sempre por formular, através da análise,algumas relações gerais abstratas determinantes...” (Marx, 1977: 218).

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atividades práticas, sempre chegaria à essência do real, ao conhecimen-to do objeto, às “leis que regem seu desenvolvimento e mudança”. Istoconduz, necessariamente, e mesmo que não seja seu propósito, a umavisão pulverizada (e até pós-moderna) da realidade: existem tantas “es-sências objetivas” e, portanto, tantos fenômenos, quanto pessoas pen-sando os objetos de sua prática. Todas as interpretações sobre a realida-de serão, nesta visão, igualmente válidas, sem importar o grau de fide-lidade ao objeto.

Esta nossa observação, no entanto, é relativizada com a afirmaçãodos autores de Belo Horizonte da existência de uma “verdade objetiva”.Esta é definida como produto da “reflexão adequada da realidade obje-tiva na consciência do homem, em suas representações e conceitos” (LimaSantos, 1993: 24). “A prática, portanto, não apenas é o meio de ligação entreo homem e o mundo objetivo como também é através dela que se dá oprocesso de conhecimento, e a descoberta da verdade objetiva” (ibidem).

Os autores consideram que esta “verdade objetiva” é alcançada napassagem do sensível ao abstrato, sempre a partir de um “método cien-tífico”. No entanto, este método é constituído por “modos e procedi-mentos” (idem: 22). Assim, a “verdade objetiva” seria facilmente (e me-canicamente) atingida por todo aquele que “se eleve” do momento sen-sível ao abstrato, seguindo uma série de passos e procedimentos, o quelhe daria o status de “conhecimento científico”. Nada menos dialético,nada mais funcionalista do que isto.

Desta forma, paradoxalmente, mesmo postulando “a prática comofonte de teoria” e, portanto, a primazia da primeira sobre a segunda,partem das características do método dialético (de conhecimento) — e das “leise categorias” que supostamente regem os processos, os fenômenos, omovimento real — para elaborar o método profissional. Assim, os autores deBelo Horizonte transformam leis inerentes à realidade e, portanto, vinculadasao conhecimento teórico, em leis de ação profissional,95 num método deação. “Com o objetivo de elaborar um método científico, dizem as auto-

95. “Lei da relação recíproca e da conexão universal”, “lei da transformação universal e dodesenvolvimento incessante”, “lei da mudança qualitativa”, “lei da contradição universal” (idem:28-35).

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ras, o método profissional fundamentou-se nas relações, princípios eleis inerentes ao conhecimento e à própria realidade [...] o método pro-fissional está diretamente ligado à teoria científica e à realidade históri-ca” (Lima Santos, 1993: 47).

A partir dessas “leis do método profissional”, num processo de“movimento de aproximações com a realidade e realimentação teórica”(idem: 67), determinam-se os “momentos metodológicos” (idem: 66) daintervenção profissional.

O paradoxo do Método B. H.96 é, portanto, propor a primazia, o privi-légio da prática sobre a teoria; e, no entanto, construir um conjunto deprocedimentos técnico-operativos, que denominam de “método profis-sional”, fundamentalmente interventivo (na prática), a partir da adoçãode um “método (dialético) de conhecimento” teórico-científico, de inter-pretação e conhecimento da realidade.

• Com idêntica preocupação e numa perspectiva semelhante, BorisA. Lima elabora o seu “Método de intervenção na realidade”(Lima, 1986).

Assim, partindo, da mesma forma que no caso anterior, deAlthusser, de Mao Tse-tung e de Lenin, mas incorporando, neste caso,autores como Kosik e Sánchez Vázquez, Boris Lima vai definir o “méto-do do abstrato ao concreto”. O problema é que este método dialético,novamente, e estes pensadores críticos, Kosik e Sánchez Vázquez, sãonovamente “positivizados”97 pelas simplificações de Mao, de Althussere até de Lenin.98

96. E Boris Lima, como veremos a seguir.

97. Uma análise crítica sobre a “invasão positivista no marxismo” encontra-se em Quiroga,1991.

98. Boris Lima utiliza apenas, de Lenin, o texto redigido previamente à leitura da dialéticahegeliana: “Materialismo e empiriocriticismo”, e que Lenin depois supera.

Assim, “com esta filiação, como diz Netto [referindo-se ao Método B. H., que nós fazemosextensivo a Boris Lima], por mais que se insista na ‘inter-relação entre sujeito e objeto de conheci-mento’ [...], torna-se muito difícil agarrar as especificidades do conhecimento sobre o ser social eescapar a impostações (neo) positivistas” (Netto, 1991: 281, nota 362).

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Boris Lima também considera a existência da “verdade objetiva”; masesta contém um caráter “absoluto” e um “relativo”. Segundo ele,

a verdade é relativa — relatividade dialética, que não é relativismo — porquanto reproduz a realidade, mas de forma parcial [...]. Mas esta verda-de, ao mesmo tempo, contém um caráter absoluto, pois o conhecimento oé no espaço e no tempo. A dialética do conhecimento reside nesta unida-de do absoluto e o relativo. (Lima, 1986: 33)

Esta conceituação, pretensamente oposta às concepções que pro-clamam a falsidade do conhecimento, por ser este relativo e incompleto,não faz outra coisa senão reproduzir a mesma lógica. Num sentido con-trário, mas conservando o idêntico parâmetro, Boris Lima, ao afirmarque o conhecimento válido é também “absoluto”, parte da mesma con-cepção: só é válido se for absoluto. O ponto de partida, então, é o mes-mo: o conhecimento relativo não é verdadeiro nem objetivo. A diferençaé a conclusão; para uns não existe conhecimento veraz, derivando por-tanto, no relativismo e, no limite, no irracionalismo; para os outros oconhecimento só é veraz se for absoluto.

Se se considerar que só existe verdade quando ela é absoluta, sem-pre cair-se-á numa das duas concepções:

• no relativismo (ou até no agnosticismo) que entende que não háverdade sobre a essência das coisas;

• no absolutismo, que considera que é possível, e até necessário,atingir a verdade absoluta.

O que se trata aqui de afirmar — considerando que a prática, narealidade, é sempre mais rica, mais saturada de determinações do que ateoria pode apreender — é que a verdade é sempre relativa, porque históri-ca e complexa. Mas ela não deixa, por ser relativa, de se constituir emverdade, pois afirmar o contrário significaria cair no relativismo. Um eoutro, relativismo e absolutismo, partem então do mesmo erro deequalizar:

• conhecimento absoluto à verdade, e

• conhecimento relativo à falsidade.

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Com estes equívocos, a passagem de um para outro, do absolutis-mo ao relativismo, é sumamente fácil e comum. Na verdade, estas for-mas de conceber o conhecimento contêm no seu interior duas contradi-ções dialéticas que não podem ser identificadas:

• por um lado: “absoluto-relativo”;

• por outro ado: “verdadeiro-falso”.

Feita esta distinção, é perfeitamente possível (bem como necessá-rio e inevitável) um conhecimento relativo, processual e veraz, enquanto éimpossível o conhecimento absoluto.

Da mesma forma que a proposta anterior, Boris Lima parte dasnoções de “sensações”, “conceitos”, “juízos” e “raciocínios”, sendo, en-tão, o conhecimento, “uma unidade dialética entre o ‘sensível’ e o ‘racio-nal’” (Lima, 1986: 150).99 Novamente entende-se, pretendendo atribuir aMarx, formulador do “método de elevação do abstrato ao concreto”, aabstração como generalização (idem: 151; cf. infra).

Finalmente, criticando os métodos tradicionais de caso, grupo edesenvolvimento e organização da comunidade, e as “metodologias detransição”,100 Boris Lima também desenvolve, a partir do “método doabstrato ao concreto”, de um método de conhecimento, o seu “método deintervenção na realidade”, a sua metodologia profissional.

Partindo de uma mera “estrutura lógica do método” (idem: 159),101

Boris Lima identifica seis fases (idem: 159-204). Estas, por partirem deuma transformação de categorias, “passos” e procedimentos do métodode conhecimento, são sumamente semelhantes aos momentos do Méto-do B. H. Assim, estas duas “novas” propostas não conseguem rompercom os métodos tradicionais e “transitórios”, mesmo partindo de pers-

99. Os níveis “sensível” e “racional” são exatamente os mesmos momentos “sensível” e “abs-trato” do Método B. H., já tratados.

100. O “método integrado”, norte-americano; o “método polivalente”, de Porto Rico (1969); o“método básico”, de Santiago do Chile (1969); o “método único”, de Concepção — Chile (1971) etc.(cf. Lima, 1986; caps. 3 e 4)

101. Lembremos que Engels concebia-o de “dois modos: o histórico e o lógico” (Marx e Engels,1977).

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pectivas teórico-metodológicas distintas no que refere ao conhecimento(cf. o quadro seguinte).

A inovação destas propostas,103 em termos estritamente metodoló-gicos, está na incorporação de um momento (ou um procedimento) de apro-priação do real, por parte da população: “pesquisa participante”, “discussãoe difusão do diagnóstico” etc. Evidentemente uma inovação substanti-va, mas insuficiente para chegar à procurada ruptura com os métodostradicionais.104

Na verdade, há elementos de ruptura e continuidade.

102. Tomaremos este como representativo de um conjunto de propostas de transição, já assi-naladas. Escuela de Trabajo Social da Universidad Católica de Santiago de Chile (Mimeo.), Santiago,1969.

103. Referimo-nos aos métodos B. H. e Boris Lima.

104. Estas propostas, constituíram-se em alternativas globais ao tradicionalismo. Mesmo as-sim, não deixam de ser caracterizadas, por Netto, como uma “intenção de ruptura”, portanto, nãoefetivada (Netto, 1991: 276-8).

Método básico102 Método B. H. Método Boris Lima

A. Investigação 1º Momento: 1ª Fase:aproximação I sensitiva

— 2º Momento: 2ª Fase:intervenção. significativa de informação

B. Diagnóstico 3º Momento: —interpretação diagnóstica

— 4º Momento: 3ª Fase:aproximação II pesquisa participante

— — 4ª Fase:determinação

C. Planejamento 5º Momento: 5ª Fase:Programação modelo de ação

D. Execução 6º Momento: 6ª Fase:execução do projeto execução e controle

E. Avaliação 7º Momento:revisão/sistematização

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É que estas propostas metodológicas inovadoras, mesmo partindode uma pretendida perspectiva dialética, não conseguem superar a seg-mentação positivista entre ciência e técnica, a naturalização da realidade(sobre isto, ver Quiroga, 1991) e o apriorismo metodológico (cf. umaimportante autocrítica do “metodologismo”, in Lima Santos, 1993: 138-140). Estas contribuições estão aprisionadas, portanto, como afirma Netto,num “anel de ferro” que não lhe permite consolidar a ruptura reprodu-zindo a essência das práticas tradicionais. Assim,

cortando com as práticas das suas protoformas, não se legitima socialmen-te por resultantes muito diversas. A sua prática, orientada por um sistemade saber e inserida institucionalmente no espectro da divisão social (e téc-nica) do trabalho, não vai muito além de práticas sem estes atributos.

O limite [...] não é endógeno ao Serviço Social. [...] Mas ele se apresentacomo se fosse endógeno ao Serviço Social na medida em que este tem asua funcionalidade socioprofissional explicitada no tratamento [...] dasrefrações da “questão social”. (Netto, 1992a: 99-100)

Para este autor, “os moldes formal-abstratos desenvolvidos pelaprofissão — expressos, por exemplo, na tricotomia caso/grupo/comu-nidade, ou na seqüência estudo/diagnóstico/terapia/avaliação (contí-nua) — mostram-se inevitavelmente unilaterais e unilateralizantes”(1992a: 91)

Assim, estas propostas metodológicas, que partem da idéia de que“a prática é a fonte da teoria”, participam de equívocos substanciais,referentes ao conceito de prática, de teoria e do método de conhecimen-to e intervenção que as relaciona.

3.1.1. Em primeiro lugar, confunde-se “prática profissional” (ime-diata) com “prática social” (histórica). A prática profissional, sendo par-te da última, no entanto, não a esgota.

A prática profissional significa o exercício remunerado da profis-são, em que há um empregador, uma demanda de trabalho e uma retri-buição salarial pelos serviços prestados, pelo exercício da profissão. Aprática profissional é, portanto, uma prática institucionalizada. Trata-se de

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uma prática com certa particularidade: é uma prática de trabalho quetem uma base de conhecimento científico e uma sustentação técnico-operativa e teórico-metodológica.

Esta particularidade não só faz da prática profissional apenas umaspecto da prática social, como um aspecto diferenciado do resto. Aqui,na “prática profissional”, a unidade teoria-prática, conhecimento-ação, é umaquestão essencial.

A prática social, a vida cotidiana, as relações socioeconômicas, a par-ticipação social (no sentido mais amplo) estão impregnadas de senso co-mum, de alienação, de cultura dominante.105 Portanto, a confusão, a identi-ficação de uma com outra, sempre leva a reduzir os aspectos teóricos,cognitivos da prática profissional, a subordinar (como ocorre na práticasocial) a teoria à prática. Assim, diz Sánchez Vázquez,

o prático — entendido [...] num sentido estritamente utilitário — contra-põe-se abstratamente à teoria [...]. Em vez de formulações teóricas, te-mos assim o ponto de vista do “senso comum” [...], temos toda uma redede preconceitos, verdades estereotipadas e, em alguns casos, supersti-ções de uma concepção irracional (mágica ou religiosa) do mundo.(Sánchez Vázquez, 1990: 210)

Aqui, nesta absurda confusão, o “senso comum” da prática coti-diana substitui, sem ninguém perceber esta passagem, o “bom senso”necessário (mesmo que não suficiente) à prática profissional. E, comodiz Sánchez Vázquez (ibidem), “o ‘senso comum’ é o sentido da práti-ca”. “Por isso”, acrescenta o autor, “o ponto de vista do senso comum é o dopraticismo: prática sem teoria” (idem: 211).106

105. Obviamente não é só isso, mas sim está saturada disso.

106. É neste sentido que Nobuco Kameyama (1989: 104) afirma que “essa questão [a confusãoentre prática social e prática profissional] se acopla à confusão que se faz (quando se lê Gramsci)entre a prática e o senso comum. Ela perpassa hoje toda a educação popular na medida em quehoje o critério de verdade é a prática.

Assim, o povo sabe. E os assistentes sociais nada têm a fazer. Cai-se no basismo. Isso perpassatambém toda a pesquisa-ação [...] [que] não é nada mais que uma sistematização da prática. Ela sópode vir a ser uma pesquisa se definir um objeto de pesquisa dentro de um conjunto de ações. Odesenvolvimento e a análise da prática precisa da teoria para explicá-la”.

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O “senso comum”, o “saber popular”, é o mesmo tipo de saber queo de um empirista longevo: ele conhece, pela experiência acumulada, osfenômenos que se apresentam diretamente, na prática. Não consegue,portanto, sair do aparente, do superficial, da “pseudoconcreticidade”.Este é o trágico destino do “praticista” que postula a prática (profissio-nal) como fonte de teoria.

3.1.2. Em segundo lugar, confunde-se “teoria” com “abstração”, com“generalização” e/ou com “sistematização”.

Como já vimos, o Método B. H. postula que “o conteúdo da teoriaé constituído pela generalização e abstração dos dados e fatos obtidos peloprocesso prático” (Lima Santos, 1993: 26).

Nota-se aqui, uma clara concepção da teoria como “abstração” e“generalização”.

• No primeiro caso: “teoria = abstração”, verifica-se um erro emrelação ao método dialético.

Para Marx, o concreto é “a síntese de múltiplas determinações, logo,unidade da diversidade” (Marx, 1977: 218). O concreto é, portanto, o“todo”, o complexo, é o ponto de partida, mas também o resultado do processode conhecimento (idem: 218-219). E é precisamente esta colocação que,mal-entendida, é tomada como “fundamento marxiano” do postuladoda “prática como fonte de teoria” e do processo “prática-teoria-prática”:P-T-P’ (cf. Lima, 1986: 30).

É que identificam o “concreto” marxiano com a “prática”. Feitaesta identidade: “prática = concreto”, decorrente da anterior (teoria =abstrato), parece fácil ver em Marx — na sua proposta metodológica:do “concreto sensível” (prática para os praticistas) ao “abstrato” (teoriapara os praticistas), voltando novamente ao “concreto” mas desta vez“inteligido” (prática realimentada teoricamente para os praticistas) — ofundamento do postulado em questão. Assim, a questão parece “legiti-mada” por Marx.

Parece, mas não é.

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Em Marx, nem o concreto é necessariamente a prática, nem o abs-trato é a teoria. Muito pelo contrário. Marx critica os economistas políti-cos (clássicos) por não conseguir superar o nível abstrato. Os que postu-lam a prática como fonte de teoria falam da elevação do sensível (prático)ao abstrato (teórico).107 Este seria apenas o primeiro caminho (o seguidopelos economistas políticos), o qual “reduziu a plenitude da representa-ção a uma determinação abstrata” (Marx, 1977: 219). Mas Marx define o“método cientificamente correto” (idem: 218) como aquele que se elevado abstrato ao concreto (idem: 219). A teoria, para Marx, não é, portanto, oabstrato, mas o “concreto pensado”, como “síntese de muitas determi-nações”, e como reprodução ideal do movimento do real. Para Kosik,

o método da ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamen-to; em outras palavras, é um movimento que atua nos conceitos, no ele-mento da abstração. A ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagemde um plano (sensível) para outro plano (racional): é um movimento no pensa-mento e do pensamento. (Kosik, 1989: 30)

Na verdade, todos estes equívocos devem-se ao uso da terminolo-gia e das categorias marxianas, empregadas com os conteúdos, com osconceitos dados pelo “senso comum”108 — que reflete a racionalidadeburguesa e que está carregada de ideologia dominante. Para o “sensocomum”, o concreto é o simples, é o singular, é a prática. Entretanto, oabstrato é, nesta ótica, o geral, o complexo, o teórico. Eis aqui o funda-mento destes equívocos: teoria como abstração e prática como concreto.

• No segundo caso, “teoria = generalização”, a base é também o“senso comum” e o empirismo.

107. “É necessário elevar-se da contemplação sensitiva ao conhecimento racional ou abstra-to” (Lima Santos, 1993: 19).

108. Devemos, neste caso, enfatizar nossa crítica ao fato de que uma profissão, especialmentese se tratar de uma disciplina social com uma forte característica interventiva e um forte vínculocom a realidade social e, por isso, com o nível de complexidade do Serviço Social, possa apelar ao“senso comum” como um saber válido para suas análises teóricas, misturando termos provenien-tes das teorias sociais (marxiana, weberiana, durkheimiana, foucaultiana etc.) numa espécie de“ecletismo de botequim”.

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Este último entende a generalização como a elaboração de leis apli-cáveis a todos os fenômenos de igual natureza. Portanto opõe-se ao sin-gular, que é, como já vimos, no “senso comum”, o específico, o concreto.

Partindo destas idéias, próprias do empirismo e do “senso co-mum”: geral = lei, e singular e particular = concreto, específico, chega-se também, num processo pretensamente marxista, ao método de:“indução/dedução”.

Assim, pareceria fácil também identificar a “análise” de Marx com aindução: do particular (concreto em Marx) ao geral, à lei (abstrato); e a“síntese” marxiana com a dedução: da lei geral (abstrato marxiano) ao par-ticular (concreto, específico).109

Na verdade, identificar o processo marxiano de análise/síntese, aosmétodos de indução/dedução, só pode ser entendido se partirmos dosequívocos já apontados, confundindo categorias marxianas com concei-tos empiristas e do “senso comum”.

Para Netto, as correntes que poderíamos catalogar como empiristas,inspiradas na tradição neokantiana,110 concebem o conhecimento do sersocial “como operação lógico-formal que confere aos fenômenos umalegalidade que a razão — a base da análise deles — lhes atribui” (Netto,1989: 144). Aqui, esta legalidade é entendida como uma “formulaçãológico-abstrata (universal) de um modelo ou paradigma compreensivodos processos que eles sinalizam, das suas tendências e regularidades”(idem: 143).

A lei é aqui entendida como uma abstração, como o “universal”que ilumina todos os casos concretos. A teoria é concebida como umaconstrução ideal,111 um “constructo” da razão, um “recorte” subjetivodo objeto real.

109. Seguindo Lenin, para quem a dialética marxiana implica “uma análise em dois níveis,dedutiva e indutiva, lógica e histórica” (in Mandel, 1982: 8), Kameyama (1989: 103) afirma que “ométodo de conhecimento, além de ser um método analítico sintético, se utiliza da indução e da dedução[...]. É nesse processo indução/dedução que se pode abordar o particular, na medida em que se vaido geral com a teoria ou as leis gerais, analisar uma especificidade”.

110. O empirismo lógico, o método compreensivo weberiano, entre outros.

111. Um “tipo ideal”, para usar o conceito weberiano.

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Nesta concepção lógico-empirista, a teoria constitui-se num pro-cesso de indução.112 Seria mediante a comprovação empírica, fatual, decertas hipóteses, em diversos casos, que se elaboraria teoria, extrapolan-do estas comprovações singulares e “construindo” uma lei, um modelo,um tipo ideal.113 O caminho inverso, a dedução, implica tirar conclusõessobre fenômenos singulares a partir da lei geral, da teoria. Assim, nalinguagem empiricista, teoria é uma abstração, pois é uma generalização ideal,não concreta.

Contrariamente, na vertente crítico dialética, o processo de conheci-mento

também arranca da expressão empírica para ganhar a processualidadeque a dissolve e resolve, na busca de suas tendências e regularidades;entretanto, nesta perspetiva, a sistematização do material empírico nãofornece o quadro a partir do qual se constrói um modelo — antes, consti-tui um elenco de determinações simples que permite o movimento ima-nente do processo objetivo. (Netto, 1989.: 143)

Nada tem a ver, portanto, a análise de Marx com a indução do empirismo.

Nesta última perspectiva, ao contrário, concebe-se a elaboração teó-rica “como movimento através do qual a razão extrai dos processos obje-tivos a sua legalidade intrínseca” (idem: 144).114

Assim, não é a mesma coisa a elaboração de leis para Marx que a formu-lação destas no empirismo.

112. Em matemática, a indução é o processo mediante o qual uma relação demonstrada paravários casos singulares é estabelecida como lei geral. Há outras formas de indução: aristotélica,baconeana, completa. Na lógica, ela é “uma forma de raciocínio que vai do particular ao geral, ouseja, que procede a generalizações a partir da repetição e da observação de uma regularidade decertos números de casos” (Japiassu e Marcondes, 1991: 132-3).

113. “A resultante da elaboração teórica, diz Netto, o produto teórico por excelência, é ummodelo que a razão elabora e cria a partir do objeto empiricamente dado” (Netto, 1989: 143) Aqui“a natureza das categorias é puramente lógica [...] e a relação entre sistematização e elaboraçãoteórica aparece como um continum” (idem: 145).

114. E cita Netto: “do ponto de vista ontológico, diz Lukács, legalidade significa que, no interior deum complexo ou na relação recíproca de dois ou mais complexos, a presença fatual de determina-das condições implica necessariamente, ainda que apenas como tendência, determinadas conse-qüências” (Lukács, apud Netto, 1989: 144). O complexo é, aqui, o concreto, não o geral.

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Nada tem a ver, portanto, a dedução empirista (do geral, da lei, aosingular e particular) com a síntese marxiana (do abstrato, do particular, àtotalidade, ao concreto pensado).

Aqui, pelo contrário, não se “constrói” um objeto; a teoria, na pers-pectiva marxiana, na verdade, “reconstrói o processo do objeto historica-mente dado. A resultante da elaboração teórica, o produto teórico por ex-celência, é [nesta perspectiva] uma reprodução ideal de um processo real”(Netto, 1989: 143).

O que a teoria, tal como concebida por Marx, permite-nos desen-tranhar dos nossos objetos singulares, o que nos ilumina para refletir,entender e explicá-los, não é, como para o empirismo — que os entendecomo especificidades do geral e, portanto, compreende o singular, o “es-pecífico”, através da aplicação da lei, do geral.115 É, ao contrário, atravésda compreensão de certas particularidades (abstratas), já tratadas pelateoria social, como tendência, que, no marxismo, se atinge a explicaçãodas relações entre esses elementos simples e, portanto, se reconstrói oconcreto, o real, no pensamento. Nesta perspectiva, portanto, “a nature-za das categorias é basicamente ontológica [e não apenas reflexiva ou lógi-ca] e a relação entre sistematização e elaboração teórica aparece como arelação entre um momento pré-teórico e o momento teórico [e não comoum continuum]” (Netto, 1989: 145).

Estas duas perspectivas, talvez dois pólos de um espectro maisamplo, são teórica, lógica e metodologicamente diferentes, até antagô-nicas. Para Netto, “a primeira posição [tem] impostações nitidamenteepistemologistas e metodologistas”, entretanto o segundo comporta-se “comotendência expressamente orientada à ontologia do ser social” (idem: 144).116

Desta forma, misturar uma perspectiva empiricista, seus métodos induti-vo/dedutivo e seu leque conceitual: particular (como concreto, como singular),abstrato (como geral, como lei, como teoria), com categorias marxianas — tota-lidade, particularidade e singularidade, abstrato, concreto e seu processo de abs-

115. E quando não se enquadrar o específico no geral é considerado “uma exceção que confir-ma a regra”.

116. Tendo a ontologia como a teoria do ser; enquanto a epistemologia é a teoria do conhecimen-to (independentemente do ser concreto).

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tração (análise) e síntese, ontologia do ser social, teoria do conhecimento, práxis— é, no mínimo, um enorme ecletismo.

Pareceria que os equívocos dos praticistas derivam basicamente dautilização do instrumental marxista, mas re-definidos à luz do sensocomum e do empirismo.117 Estas impregnações do “senso comum” de-vem-se à conceituação da razão apenas como “razão instrumental”, comoocorre, por exemplo, no positivismo.118

• Isto nos leva a considerar outra falsa identificação: “teoria = sis-tematização”; tendo a teoria o caráter de teoria “específica”, pró-pria, da profissão.

Assim, o Método B. H., referindo-se à teoria (como “generalização”e “abstração”) proclama que, “tal sistematização, por sua vez, orienta deum modo ou de outro as investigações e experiências práticas posterio-res. Neste sentido, a teoria é o momento inicial com relação à experiênciaseguinte” (Lima Santos, 1993: 26; grifos nossos). Desta forma, trata a sis-tematização como teoria.

Para Faleiros, sempre falando de sistematização no lugar de teoria,“a sistematização significa o movimento de conhecimento que se vinculaà construção de categorias” (1993: 77); assim, continua dizendo, “o pro-cesso de sistematização visa traduzir, no plano analítico, a complexida-de, a riqueza, a multideterminação da realidade. Esse processo não élinear, depende de uma evolução da apreensão sensível do real até suarevelação em conceitos e juízos” (idem: 79).

Neste caso, se entendermos a teoria como a “sistematização da práti-ca”, parece argumentada, por si mesmo, a afirmação da prática comofonte de teoria. Para poder observar como esta identidade é problemáti-

117. Para Netto, “é perfeitamente factível inserir numa moldura epistemologista todo umconjunto temático pertinente à inspiração ontológica original de Marx — obviamente abastardan-do-o” (1989: 144).

O mesmo ocorre com a inserção, numa moldura “indutivista/dedutivista”, das categoriasmarxianas de abstração (análise) e síntese.

118. Sobre as “invasões positivistas no marxismo” do Serviço Social reconceituado, cf. Quiroga,1991. Sobre os limites da “razão instrumental”, cf. o debate travado na Escola de Frankfurt e porLukács (1975). Para um debate desde o Serviço Social, cf. Guerra, 1995.

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ca, devemos ver o que é “sistematização”. Ela resulta do processo de sele-ção, ordenamento, priorização e categorização dos dados extraídos deuma prática localizada e singular.

A sistematização coincide, assim, com o diagnóstico (social ouinterventivo);119 sendo este último o ponto de partida, o início do pro-cesso metodológico de intervenção profissional, e o seu ponto final (fala-se de “investigação-diagnóstica” e de “avaliação-diagnóstica”). Efetiva-mente, poucos assistentes sociais pensam em desenvolver um processoem determinada realidade sem tê-la diagnosticado. Este diagnóstico é aprimeira sistematização, já que ele é elaborado, fundamentalmente, apartir da prática. Diríamos aqui, que, na verdade, “a prática é a fonte dodiagnóstico”.

Se este último é uma sistematização e, como tal, nesta terceira iden-tidade, ela é concebida como teoria, “ergo”, ficaria autofundamentado opostulado em questão: “a prática (que é a fonte do diagnóstico) é a fonteda teoria”.

Vejamos então, o que é “diagnóstico”. Segundo Scarón de Quintero,“o diagnóstico é um juízo comparativo de uma situação dada com outrasituação dada [...]. Portanto o diagnóstico é, em essência, uma compara-ção entre duas situações: a presente, que temos chegado a conhecer me-diante a investigação, e outra, já definida e supostamente conhecida quenos serve de pauta ou de modelo” (1985: 26).

Em função das caraterísticas e do tipo de “modelos”, podem-sedistinguir “três tipos ou sistemas de comparação:

a) com uma situação semelhante, análoga, já conhecida previamen-te em nossa experiência profissional [diagnóstico por analogia];

b) com uma situação real ou imaginária, vivida por nós, que pode-mos evocar ou supor em suas motivações ou em suas conse-qüências [diagnóstico por compreensão];

119. Entendendo-o como a sistematização dos conhecimentos iniciais da realidade sob a qualvai se intervir, como o controle da intervenção profissional, e como a avaliação final do processoprofissional e a situação final atingida.

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c) com um “modelo” de situação, implicitamente formulada deacordo a normas e valores pessoais, ou explicitamente formula-da pela teoria da profissão, [diagnóstico por modelos].120 (Scarón,1985: 28)

Estes “modelos”, sejam eles objetivos ou subjetivos, reais ou ideais,futuros, presentes ou remotos, imanentes ou externos, sempre compor-tam-se, para os efeitos do diagnóstico, como “réguas”, parâmetros demedição, de comparação e de contrastação: “modelo”/“situação”.121

Na verdade, o diagnóstico não produz teoria: ele apenas procura direcionarações segundo uma racionalidade que emana do sujeito que se pretende interven-tor.122 O diagnóstico implica uma investigação, mas esta visa apenas le-vantar dados sobre a realidade para manipulá-la, não para criar teoria.

Esta idéia de contrastação do real com o ideal, da medição, ouvaloração do real com a “régua” ideal, tem mais a ver com a concepçãoweberiana de teoria, de “tipos ideais”, que com a concepção marxianade teoria, como reprodução ideal do movimento do real. Para Weber,

o método científico que consiste na construção de tipos, investiga e expõetodas as conexões de sentido irracionais, afetivamente condicionadas, de

120. O primeiro tipo é aquele que se funda na experiência profissional do assistente social; istoleva a uma compreensão que parte da experiência pessoal, do “senso comum”, mais que a umraciocínio (Scarón, 1985: 29-34).

O segundo tipo, também chamado “Verstehen”, exime o “marco referencial teórico” já que par-te do princípio da “individualidade” do cliente, da sua singularidade e irrepetitividade, o queescapa a todo procedimento de análise científico. Segundo Abel, este tipo não tem valor como meiode descoberta, mas só na confirmação do já conhecido (idem: 34-40)

O terceiro tipo compara a situação presente com uma situação ideal, quer dizer, com um modelode situação, o “dever ser”, construído teórica e cientificamente, que serve de parâmetro (idem: 41-8).

121. No Método B. H., o momento da interpretação diagnóstica “constitui-se no primeiro movi-mento de fusão e síntese das etapas anteriores. Nele realiza-se a primeira realimentação teórica, atravésdo confronto dos dados da realidade obtidos anteriormente com as referências teóricas iniciais. Aqui, osdados provenientes da experiência prática são coordenados, interpretados e generalizados” (LimaSantos, 1993: 55-6).

122. Parece claro se falarmos de um exemplo particular: o médico, para tratar seu paciente,parte sempre de um diagnóstico; este é elaborado a partir da comparação de sintomas e signos comseu conhecimento teórico. Uma vez compreendida qual a doença (às vezes sem sequer saber ascausa) define o tratamento. Todo este processo se faz sem que em momento algum o médico crieconhecimento novo, muito menos teoria.

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comportamento que influem na ação, como “desvios” de um desenvolvi-mento da mesma, “construído” como puramente racional segundo finsdeterminados [...]. A construção de uma ação rigorosamente racional se-gundo fins determinados serve nestes casos à sociologia — em razão desua evidente inteligibilidade e (enquanto racional) de sua univocidade— como um tipo (tipo ideal), mediante o qual se pode compreender aação real, influenciado por irracionalidades de toda espécie (emoções,erros), como um desvio do desenvolvimento esperado de ação irracio-nal.123 (Weber, 1974: 107)

Esta concepção de “tipos ideais” é perfeitamente compatível com aoutra fórmula “típica”, com freqüência usada por aqueles que postulama prática como fonte de teoria: “Teoria 1-Prática-Teoria 2”.124

Desta forma, por um lado, se teoria é, para os praticistas, identifi-cada com a sistematização (da prática profissional) e se esta só chega aonível do diagnóstico, então a pesquisa que o assistente social desenvol-ve não pode nunca, para ser considerada dentro do processo profissio-nal do Serviço Social, superar o mero diagnóstico, a mera sistematizaçãoda sua prática. Esta é, para os praticistas, a especificidade da pesquisa “pró-pria” do Serviço Social; entendendo, então, a “teoria do Serviço Social”como: a) o conhecimento de uma realidade específica, singular, imedia-ta (com a qual se vincula o profissional): diagnóstico ou sistematização pri-meira; b) do processo de intervenção que levou da situação inicial à final:controle da prática e do método profissional e c) da realidade transformadadepois da ação profissional: avaliação diagnóstica ou sistematização final.Esta concepção, portanto, condena o Serviço Social à subordinação emface das outras disciplinas sociais, condena-o a produzir apenas um sa-ber profissional instrumental: o diagnóstico e a sistematização da “sua”própria prática.

Assim, o processo que se inicia no diagnóstico e leva, mediante aprogramação, a uma intervenção profissional em campo, é sempre umprocedimento interventivo. Estar-se-ia aqui excluindo toda pesquisa queum assistente social possa realizar sem orientar diretamente a ação ou

123. Talvez aqui resida o fato do diagnóstico ser apenas “compreensivo”.

124. Cf. Lima Santos, 1993: 11 e Maguiña, A.; Palma, D.; Quiroz, T. e Urrutia, C.: 1987: 30.

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sem partir dela. Sempre se ressalta, entre os assistentes sociais, o ato de“conhecer para atuar”,125 como se o “simples” fato de “pesquisar paraconhecer” não permitisse, a curto, médio ou longo prazo, uma ação maisfundamentada, mais racional, mais eficiente. É um erro supor que só a“pesquisa-ação” (tida como “específica” do antropólogo, do assistentesocial etc.) tem o objetivo da transformação social, enquanto a “pesqui-sa pura” (considerada como própria de sociólogos, de economistas etc.)só procura conhecer por conhecer, como um fim em si mesmo. Talvez,no limite, enquanto uma tem na ação direta ou imediata seu fundamen-to, a outra fornece elementos para uma ação mais mediata ou indireta, amédio ou longo prazo.126

Há algo “menos ativo” — no sentido da ação direta, imediata — doque as investigações desenvolvidas por Marx? Elas não procuram geraração imediata, direta, “apenas” conhecer o seu objeto: a ordem do capi-tal. Mas, por outro lado, o que há de “mais ativa” que as pesquisas doautor de O capital?, na medida em que os produtos destas permitiram (eainda permitem) um melhor conhecimento da realidade capitalista e, apartir daí, orientar ações (revoltas proletárias, organizações operárias,revoluções) com mais fundamentos e maior eficácia.

Assim, nesta lógica praticista, a ciranda se completa:

• por um lado, a teoria deve partir da prática;

• por outro lado, a teoria deve voltar e reorientar a prática.

Na verdade, a fórmula: “P-T-P” é, em essência, a mesma fórmula:“T1-P-T2”.

O fundamento é a prática como fonte de teoria e, portanto, a teoriacomo racionalização da prática. A prática, então, não só aparece como afonte da teoria, na concepção praticista, como também seria o critério deverdade. Vejamos isto mais detalhadamente.

125. Kisnerman separa a pesquisa em “básica ou pura”, “cujo fim é gerar conhecimento”, e a“operativa ou aplicada” “cuja finalidade é resolver problemas concretos da realidade” (Kisnerman,1980: 82). Esta última sendo a própria do Serviço Social (sic).

126. “Uma determinada experiência”, diz Sánchez Vázquez, “as realizadas em agronomia,por exemplo — pode ter conseqüências práticas, mas não diretamente, e sim através da teoria queprocura provar” (1990: 199).

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3.2. A relação teoria/prática para os praticistas

3.2.1. Que entendem, os “praticistas”, por “fonte” (de teoria)?

No Método B. H., postula-se, claramente, que a prática, “constitui oponto de partida para a elaboração de conhecimentos [teóricos]” (LimaSantos, 1993: 19). Assim, “o conhecimento racional depende do sensoriale provém do mesmo [...]. O pensamento teórico se torna possível unica-mente baseado nos dados sensíveis” (idem: 23; grifos nossos).

Faleiros, por outro lado, diz que, “a sistematização sugere um atode conhecimento que faz com que uma problemática parta do universodo comportamento vivido ao universo dos temas estruturados por umpensamento dialético, para de novo reorientar a ação, isto é, retomar aprática teoricamente orientada. A vivência, as problemáticas, as situa-ções, tornam-se matéria-prima para a reflexão e uma elaboração sistemá-tica” (1993: 78; grifos nossos).

Como se observa, o critério que se tem de “fonte” é a prática ser o“ponto de partida”, a “base”, a “matéria-prima” da teoria. Com isto, sópoderia se produzir teoria enquanto se parta da prática.

Na verdade, a prática pareceria ser, na perspectiva praticista, o pontoinicial do processo de conhecimento, sendo, portanto, parte integrantedo próprio processo de conhecimento teórico. A prática forneceria osdados que constituem a matéria-prima da teoria.127 Estes dados só serãoobtidos, para os praticistas, na prática profissional direta imediata.

Quais as implicações desta perspectiva?

1) Esta concepção praticista exclui a possibilidade de um conhecimentoteórico e científico que não surja do sensível, do vivido, da prática.

Se for esta a única fonte de dados sobre o real, só seria possível (sequiser se evitar cair no idealismo) partir da prática direta para gerar umconhecimento teórico. Desta forma, um estudo sobre o desenvolvimen-

127. Para Sánchez Vázquez (1990: 203) o “objeto ou matéria prima [da teoria] são as sensaçõesou percepções — ou seja, objetos psíquicos que só têm uma existência subjetiva — [mas também][...] os conceitos, teorias, representações ou hipóteses que têm uma existência ideal”.

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to industrial no Brasil, realizado por Mandel, ou sobre os movimentossociais latino-americanos, desenvolvido por Touraine, por exemplo, nãopoderiam ser considerados como conhecimentos teóricos, por não par-tirem da experiência prática pessoal, e sim, fundamentalmente, de in-formações secundárias. Da mesma forma, a descoberta de um planeta,depois chamado de Plutão, feita mediante cálculos matemáticos, e nãopor um contato prático direto, não significaria uma descoberta teórico-científica.128 Por outro lado, Marx, a partir da tese de que o trabalho morto(capital constante) tende a predominar sobre o trabalho vivo (capital va-riável), chega a antecipar teoricamente a “automatização do trabalho”.Isto, claro, sem partir da atividade prática; “pura especulação teórica”que os praticistas não reconheceriam como válida. O próprio Marx, aoestudar o capitalismo na Inglaterra, disse aos seus conterrâneos alemães:“De te fabula narratur”129 (1980: 5; prefácio da 1ª edição de O capital)

2) Pareceria, por outro lado, que para ser fiel ao objeto, ao real, deveriase partir do contato direto, sensível, com o objeto.

Entende-se muito mecanicamente a relação sujeito/objeto. No en-tanto, em Marx, a fidelidade com o objeto não está diretamente na ativi-dade prática. Ela é, por um lado, uma forma possível (não única) de seapreender o objeto (ou até constitui-se numa dimensão dele) e, por ou-tro lado, a prática (social e histórica, não a profissional e direta) se cons-titui na fonte de verificação, no critério de verdade.

Neste sentido, a prática (social) não é nem o “ponto de partida” doconhecimento teórico-científico, mas também não é o objetivo da teoria.A prática não é o fundamento da teoria por partir dela nem é seu objeti-vo por voltar a ela.130

3) Por outro lado, quem defende este postulado entende que qual-quer racionalização da prática, qualquer sistematização, qualquer diagnóstico,

128. “O objeto concreto”, diz Marx, “permanece em pé antes e depois, em sua independênciae fora do cérebro ao mesmo tempo, isto é, o cérebro não se comporta senão especulativamente,teoricamente” (1977: 131, in Marx e Engels, 1965).

129. “É também de vocês de quem falo” quando estudo o capitalismo na Inglaterra.

130. Já vimos que quem postula a prática como fonte da teoria sempre chega a defender a tese,por tratar-se da mesma lógica, que rejeita a investigação “pura” que não “volta” à prática.

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é suficiente para constituir um conhecimento teórico.131 E isto leva à desprofis-sionalização do Serviço Social.

A mera reflexão sobre o vivido criaria, naquela concepção, conheci-mento teórico. Assim, o “saber popular” o “senso comum”, pelo sim-ples fato de ser uma racionalização da vida cotidiana, da prática cotidia-na, seria (no estilo pós-moderno) um saber teórico, tão válido quanto ocientífico.132 Esta redução da teoria, do conhecimento teórico, a níveismínimos de rigor e criticidade, ao nível da mera racionalização, ao nívelda sistematização da prática, tragicamente leva à “desprofissionaliza-ção” do assistente social.133 Da mesma forma que a ilusão reconceituadorade “trabalhar para se tornar um desempregado”, aqui o Serviço Socialtenderia a desaparecer, como profissão, com a progressiva apropriaçãodeste “saber” por parte da população.

Claro, se entendermos a “teoria” (e o “saber científico”) como umasimples sistematização, mecanicamente atingida pela mera racionali-zação, então esse “saber teórico” seria facilmente apreendido pela po-pulação.134 Daí que se a população não tiver impedimentos (tempo-rais, intelectuais, informativos, técnicos, metodológicos, subjetivos ede implicância etc.) para se apropriar e até produzir conhecimento teó-rico, o assistente social dará o impulso inicial (ou contribuirá a dar)para que a população inicie este caminho. Assim, sendo esta concepçãode teoria tão simples, tão facilmente alcançável, o Serviço Social já nãoterá, uma vez iniciado este processo pela população, mais nada a fa-

131. “Interpreta-se falsamente essa unidade entre a teoria e a prática”, diz Sánchez Vázquez,“quando se nega a autonomia relativa da primeira. Assim acontece quando se pensa que a prática setorna por si mesma teórica, partindo do pressuposto de que a prática deixa transparecer por si só[como no empirismo] sua racionalidade ou sua verdade” (1990: 234).

132. No extremo desta linha de pensamento há quem chegou a interpretar, como Fals Borda, osaber científico como próprio da classe dominante e o saber popular, alternativo, próprio das clas-ses populares.

133. “Essa sistematização objetiva, pois, desprofissionalizar e estabelecer uma aliança entre osaber técnico e o saber popular” (Faleiros, 1993: 83).

134. O que leva à pretensão do Celats e de Diego Palma, de considerar um Serviço Social quepasse “de transmissor de conteúdos a [mero] transmissor de uma metodologia que permita aossetores populares produzirem [seus próprios] conteúdos” (Celats, 1991: 71 e, também, Palma, 1986:104; nota 17).

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zer. Eis por que tende a “desprofissionalizar-se”, a desaparecer comoprofissão.

Na verdade, esta concepção da “teoria própria” do Serviço Social,não está pensando em “saber teórico” (categorias que explicam o real),mas em “saber instrumental” (conhecimentos operativos), e/ou “saberprofissional” (métodos e técnicas, também operativas e instrumentais,de uma dada profissão).135

4) Finalmente, aquela concepção praticista não permitiria, não aceita-ria, a acumulação de conhecimento.136

Se os dados necessários para a pesquisa só surgirem da prática,nunca se poderá partir do conhecimento acumulado. Cada teórico deve,aplicando não já a “dúvida metódica”, mas a “negação metódica”, es-quecer, ignorar ou descartar o conhecimento teórico acumulado. Ele devepartir da sua prática específica, singular. Deve partir sempre de “zero”.

Na verdade, a acumulação do conhecimento teórico é sumamentenecessária para as ciências sociais. Se cada matemático, antes de elabo-rar suas teorias, tivesse que partir da demonstração dos axiomas maisbásicos, esta ciência não teria avançado, não teria ido além dessas mes-mas constatações básicas. Se uma pessoa precisasse comprovar, parasaber que um carro a 80 km/h pode, se bater contra ele, matá-lo, com

135. A “teoria do vínculo”, por exemplo, constitui um “saber teórico”. No entanto, a profis-são, operativamente, se funda nele para desenvolver a “técnica de entrevista”, um “saber instru-mental” e “profissional”.

Um “operador PC” tem incorporado um série de “saberes instrumentais” para se desempe-nhar profissionalmente. No entanto, ele pode não ter a menor idéia de por que a seqüência deteclas que oprime produzem certo resultado. Não conhece a lógica interna do computador, nãopossui o “saber teórico” do “programador”.

“Interpreta-se falsamente essa unidade entre a teoria e a prática”, diz Sánchez Vázquez, “quan-do se nega a autonomia relativa da primeira. Assim acontece quando se pensa que a prática setorna por si mesma teórica, partindo do pressuposto de que a prática deixa transparecer por si só[como no empirismo] sua racionalidade ou sua verdade” (1990: 234).

136. Mesmo postulando, no Método B. H., que “evidentemente [...] esta passagem [do mo-mento sensível ao abstrato] somente pode efetuar-se com base na acumulação de dados quantitativossobre os objetos e suas propriedades” (Lima Santos, 1993: 20), esta perspectiva conduz à negaçãoda acumulação teórica; até porque postula a “acumulação de dados [apenas] quantitativos” (esta-tísticos só?).

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certeza ele não iria transmitir sua “experiência prática” a outros. Se paraentender os conflitos operários numa fábrica não pudéssemos nos valerdo conhecimento prévio, acumulado, sobre economia política, sindica-lismo, relações de poder, outras experiências semelhantes etc., semprese voltaria, “cientificamente”, ao início de um ciclo fechado. Não have-ria, na verdade, avanço científico.

No entanto, até o “saber popular” é cumulativo. Quando se afirma:“vento do leste, chuva como peste”, há várias gerações de observaçãosistematizada e acumulada. Claro, pode-se me dizer: “mas este conheci-mento provém, em última instância, da prática acumulada”.

Não. Não é.

É prática “transmitida”. É, na verdade, o conhecimento gerado numaprática original e logo transmitido de uma geração para outra. É, portan-to, o conhecimento dessa prática, e não a prática, o que se transmite.Quem hoje diz “vento do leste, chuva como peste” não criou o seu co-nhecimento a partir da sua prática, mas ele provém do conhecimentoque os mais velhos lhe transmitiram. Talvez, na sua prática, ele teve, nomáximo, a oportunidade de comprovar o ditado. É que, na verdade,prática e teoria não são dimensões isoladas. Conhecimento não é algoindependente da ação.137

A atividade teórica em seu conjunto como ideologia e ciência — considera-da também ao longo do seu desenvolvimento histórico, só existe por e emrelação com a prática, já que nela encontra seu fundamento, suas finalidadese seu critério de verdade. (Sánchez Vázquez, 1990: 202)

Nossa crítica aos “praticistas”, porém, não é incongruente comnossa concordância com o pensamento de Sánchez Vázquez e as tesesmarxianas sobre Feuerbach. Como criticar, então, a “prática como fonte(ponto de partida) de teoria” e “como objetivo (direto) da teoria”, e ao

137. “O defeito fundamental de todo materialismo anterior — inclusive o de Feuerbach —está em que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma de objeto ou da percepção,mas não como atividade sensorial humana, como prática [...]” (Tese I)

“... É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade...” (Tese II) (Marx, 1975: 118).

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mesmo tempo defender as idéias da prática ser o “fundamento” e “fina-lidade” da teoria? É que, na verdade:

• a prática não é a “fonte”, mas o “fundamento” da teoria.

• a prática, por outro lado, não é o “objetivo” (direto), mas a “fina-lidade” (mediata) da teoria.138

Assim, por um lado, “a prática em seu mais amplo sentido e, parti-cularmente, a produção, evidencia seu caráter de fundamento da teoriana medida em que esta se encontra vinculada às necessidades práticas dohomem social” (Sánchez Vázquez, 1990: 222). A prática não é, necessa-riamente, a “fonte”, o ponto de partida da teoria, mas a teoria se desenvol-ve “em função” das necessidades e possibilidades práticas (sócio-históricas eprodutivas).139

Por outro lado, “a prática é fundamento da teoria, já que determinao horizonte de desenvolvimento e progresso do conhecimento” (idem: 215).

Devemos, portanto, diferenciar “fundamento” de “fonte”.

Quem proclama a prática como fonte da teoria está pensando,com já vimos, que teoria se faz sempre que, e só quando, se partir daprática, dos dados sensíveis do próprio “praticante/teorizador”. A prá-tica do outro não é, para os efeitos da pesquisa, atividade prática (direta), masinformação secundária. A prática é, para os praticistas, “fonte” de teoria,desde que seja prática desenvolvida pelo próprio pesquisador, não poroutrem. Isto, talvez, tenha sua base no entendimento da “especificida-de” do Serviço Social ser, para eles, a atividade prática. Assim, obrigamtodos os assistentes sociais a “partir” e “voltar” sempre à prática decampo. Do contrário, sua pesquisa seria “pura”, e isso é “específico”

138. Para Sánchez Vázquez, “a finalidade imediata [o objetivo imediato] da atividade teórica éelaborar ou transformar idealmente, e não realmente [na prática] essa matéria-prima [sensações, per-cepções e conceitos, teorias, hipóteses]” (Sánchez Vázquez, 1990: 203). Muitas vezes a teoria visa(ou pode) transformar a realidade material apenas como finalidade mediata.

139. “A um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas”, hipotetiza SánchezVázquez, “serão menores as exigências que se apresentam à ciência e, por conseguinte, esta sedesenvolverá mais débil e lentamente” (1990: 216). Acrescentando que “as ciências que produzemmais rapidamente são aquelas cujo desenvolvimento constitui uma condição necessária do pro-gresso técnico imposto pela produção” (idem: 217-8).

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das “ciências”. Voltamos ao velho princípio demarcador de fronteiras:“Live and let live”.

Para nós, a prática é o “fundamento” da teoria. Esta última se desen-volve historicamente a partir da prática social, da “prática histórica” repre-sentada no conhecimento teórico acumulado e sistematizado. Nossa perspecti-va, não “praticista” nem “teoricista”, não pode ser nem idealista, nemcontemplativa; é materialista-dialética. Também não pode negar o co-nhecimento teórico que se funde (e até que parta), total ou parcialmen-te, na análise de conhecimentos teóricos já elaborados.140

“A ciência, em geral, não se reduz a um reflexo passivo ou decal-que da natureza, mas se constitui construindo conceitos novos seguin-do diversos caminhos, entre eles, como afirma I. Toth, a negação concre-ta dos conceitos existentes [ou sua utilização crítica]” (Toth, In SánchezVázquez, 1990: 219). Quer dizer, nem sempre a teoria surge das necessi-dades da prática. A teoria pode gozar de certa autonomia em relação àsnecessidades práticas, mesmo que uma autonomia relativa (idem: 238).A teoria pode ser relativamente autônoma em relação às necessidadespráticas, mas não às possibilidades e limitações (teóricas, tecnológicas epráticas) históricas.141

A teoria não é uma mera instância intermédia entre duas práticas:P-T-P’. Esta idéia é a que faz com que os praticistas transformem ummétodo dialético de conhecimento (concreto-abstrato-concreto) em ummétodo de intervenção profissional.142 A teoria tem sua importância nãopor partir da prática direta, nem por “iluminar” a prática imediata; ela é

140. Como lembra Sánchez Vázquez (1990: 219), a geometria não-euclidiana surgiu da nega-ção da geometria euclidiana.

Por outro lado, Marx e Engels constróem sua teoria da revolução não só a partir das suasatividades prático-políticas, como também baseados nas teorias prévias (deles e de outros) e na análise(teórica) da conjuntura (no estudo da atividade prático-revolucionária dos operários alemães, ingle-ses e franceses), obtendo os dados não só pela observação, como principalmente pela informaçãosecundária.

141. “O conhecimento científico-natural progride no processo de transformação do mundonatural em virtude de que a relação prática que o homem estabelece com ele, mediante a produçãomaterial, coloca-lhe exigências que contribuem para ampliar tanto o horizonte dos problemas como o dassoluções” (Sánchez Vázquez, 1990: 215).

142. Ver o primeiro caso do item 3.1.2 “teoria = abstrato” e “prática = concreto”.

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importante, independentemente da prática imediata, por permitir co-nhecer o real. Aí reside a relevância da teoria. Agora, a teoria é e não éum fim em si mesmo; ela o é enquanto é importante conhecer melhor oreal, independentemente da prática concreta; ela não é um fim em simesma porquanto o conhecimento do real sempre, a curto, médio oulongo prazo, permite-nos atuar sobre a realidade. Assim, “o conheci-mento do real é útil na medida em que é verdadeiro, e não, inversamen-te, verdadeiro porque útil, como afirma o pragmatismo” (SánchezVázquez, 1990: 213).

3.2.2. Que entendem, os “praticistas”, por “critério de verdade”?

Os autores do Método B. H. consideram que “é através da ativi-dade prática que o homem consegue separar o conhecimento verda-deiro do falso, na medida em que por ela o homem poderá verificar seseus conhecimentos concordam ou não com o objeto com o qual estáem contato ou para o qual está dirigida a atividade” (Lima Santos,1993: 24-5).

Assim, esta concepção da prática como “critério de verdade”, ba-seado na segunda tese marxiana sobre Feuerbach,143 incorre num equí-voco conceitual a partir do erro de interpretação já apontado. Se, para ospraticistas, prática é a prática profissional, localizada, específica e singular, ese a teoria deve ter “nesta” prática o critério de verdade, então estaría-mos pensando, necessariamente, numa teoria como “saber instrumen-tal” (não como tendência) que deve ser “aplicado” a esta prática. Se as-sim não for, a teoria é falseada, quando não for útil a “esta” prática.

Na verdade, e aí está o erro de interpretação, Marx pensa a práticahistórico-social como um todo, não como uma “atividade” singular — comointerpretam os praticistas. É por este motivo que Sánchez Vázquez per-gunta: “Como é que posso afirmar que a prática prova uma verdade,enquanto outra demonstra a falsidade de uma teoria?” (1990: 156). As-sim, este autor entende que

143. “É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade”. Teses sobre Feuerbach N° II.(Marx, 1975: 118).

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é necessário evitar interpretar essa relação entre verdade e aplicação fe-liz, ou entre falsidade e fracasso, num sentido pragmático, como se averdade ou a falsidade fossem determinadas pelo êxito ou fracasso. Seuma teoria pôde ser aplicada com êxito é porque era verdadeira, e nãoinversamente (verdadeira porque foi aplicada eficazmente). (Ibidem)

É que a verdade não depende da aplicabilidade que, numa práticasingular, possa ter determinada teoria. Uma teoria poderá contribuirpara o sucesso de uma prática específica, dependendo das particulari-dades dessa realidade, das condições contextuais e das caraterísticasinterventivas dessa prática, quer dizer, dos sujeitos que intervêm na rea-lidade. Assim, a teoria que enuncia que “quanto menor o nível de ins-trução, maior a tendência de se contrair doenças epidêmicas”, permiteencontrar casos específicos onde isto não se verifica.

Deveríamos, então, falsear a teoria? Deveríamos entender estes ca-sos como as “exceções que confirmam a regra”?

Não, apenas devemos entender a teoria no sentido de apontar “ten-dências”, ou até como possibilidades e probabilidades.

O conhecimento do social não é mono-causal, pois o social depen-de de “múltiplas determinações”. A verdade teórica implica a fiel re-produ-ção ideal do movimento do real,144 não a aplicação da teoria no real. Assim,o critério de verdade, na nossa perspectiva, que parte de Marx e se ex-pressa em Sánchez Vázquez, não coincide nem com o critério de verda-de do idealismo, nem do empirismo e nem, portanto, do praticismo.

3.3. Conclusão: a prática histórico-social como “fundamento” e “finalidade”da teoria

Assim, como afirma Sánchez Vázquez, quando se fala da práticacomo “fundamento” e “finalidade” da teoria, deve-se entender:

a) que não se trata de uma relação direta e imediata, já que uma teoria podesurgir — e isso é bastante freqüente na história da ciência — para satisfa-

144. “O critério de verdade”, diz Sánchez Vázquez, “está na prática, mas só se o descobrenuma relação propriamente teórica com a prática mesma” (Sánchez Vázquez, 1990: 157).

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zer direta e imediatamente exigências teóricas, isto é, para resolver difi-culdades ou contradições de outra teoria;

b) que, portanto, só em última instância e como parte de um processo histórico-social — não através de segmentos isolados e rigidamente paralelos aoutros segmentos da prática —, a teoria corresponde a necessidades prá-ticas e tem sua fonte na prática. (Sánchez Vázquez, 1990: 233-4)

Na verdade, o “procedimento prévio e necessário à reflexão teóri-ca” (Netto, 1989: 141), o que se constitui ponto de partida do conhecimentoé, não a sistematização da prática, mas a “sistematização de dados” (quan-titativos e qualitativos), e estes podem ser empíricos e provir da práticadireta, ou podem ser teóricos, estatísticos etc. e provir do conhecimentoacumulado.

Pensar a prática (específica, singular e imediata) como fonte de teoria im-pede se “deslocar” do factual, inibe sua superação. Desta forma, a concepçãopraticista legitima análises que não superam o nível da aparência, feno-mênico, por exemplo, a teoria da “cultura da pobreza”, que entende queum conjunto de comportamentos (“disfuncionais”) são próprios dascamadas “pobres” da população.

Na verdade, ela confunde causa com resultados. Estes “comporta-mentos desajustados” de certas pessoas não são a causa de sua “pobre-za”, mas a conseqüências dela. Enfim, os praticistas, postulando o prin-cípio em questão, não fazem mais que reproduzir esta lógica no trata-mento teórico. Assim,

• não conseguem sair do fatual, e

• confundem causas com conseqüências.

Aqui se reduz e subordina a teoria à prática, se “pragmatiza” ateoria. Verifica-se uma concepção pragmática. Na verdade, esta concepçãoentende o “conhecimento teórico” apenas como um saber instrumental e/ouum mero diagnóstico de situação. Assim, pensar a teoria como derivação diretada prática localizada implica cair num pragmatismo, num utilitarismo: só éverdadeiro o que é aplicável e útil a esta prática singular. Pensar tambéma prática (específica, singular e imediata) necessariamente como objetivo diretoda teoria, supõe eliminar qualquer teoria e toda pesquisa que não tenha, na

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prática iminente, imediata, sua intencionalidade direta (com resultados ime-diatos). Pensar a prática (específica, singular e imediata) como critério de ver-dade, implicaria a inexistência de toda teoria que não fosse apenas um“conhecimento instrumental” aplicável empiricamente.

Efetivamente, se para verificar uma teoria ela tivesse que ser “com-provada” em cada prática concreta, singular, específica, então não fica-ria teoria alguma em pé. Não há teoria que se “comprove” em todos oscasos. Assim,

• não haveria teoria social

Só se as “práticas” fossem concebidas como “manipulações” doreal, de forma tal a “aplicar” a teoria sobre a realidade. Aqui há umaredução da prática à teoria perdendo-se a riqueza do real (sempre maisvasto que a teoria). Partindo de uma razão instrumental se “positiviza” aprática. Na verdade, isto expressa uma concepção de teoria e lei, nãocomo tendência,145 mas como regra de comportamento “aplicável” a todas asrealidades de uma mesma natureza. Do contrário, caso não se aplique auma, a teoria será popperianamente “falseada”.

Pensa-se, portanto, a prática como uma instância experimental, comoum laboratório e/ou como um espaço singular, específico; enquanto Marxpensa a prática social como um todo. Pensa-se a verdade residindo naprática, não na teoria. Aqui o útil é verdadeiro.146 A “verdade” estaria“dada” pela utilidade e eficácia na prática específica, e não pela fidelida-de do sujeito ao objeto no sentido de captar seu movimento real. Aqui,na concepção praticista, a função da teoria seria sistematizar os procedi-mentos verificados nas práticas como úteis e eficazes.

Enfim, esta forma de pensar a prática, a teoria e sua mútua relação,concebe:

• a prática (social) somente como prática profissional localizada, espe-cífica e singular;

• a teoria como mera classificação, tipologização e sistematização de da-dos obtidos nesta prática;

145. Tal como é entendida por Marx.

146. E não inversamente, o verdadeiro é útil por ser verdadeiro.

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• a generalização teórica e a lei como a previsão, o controle destaprática;

• o critério de verdade como o útil e eficaz para tal controle e manipu-lação do real.

Quanto a nós, afirmamos que a prática é o fundamento, a finalidade e ocritério de verdade da teoria. Não aquela “prática” (profissional e direta) eaquela “teoria” (“específica”, instrumental) tal como são entendidas pelos“praticistas”,147 mas sim a prática social-histórica, entendida como um todo ea teoria (social) como uma modalidade de conhecimento que reproduz, ideal-mente, o movimento do real.

4. O assistente social, os campos tradicionais e as novasdemandas sociais

O último aspecto a considerar nesta obra, como reprodutor de cer-tos elementos da lógica que caracteriza a gênese do Serviço Social, estávinculado ao fato de esta profissão não desvendar as problemáticasemergentes na atualidade, de não estudar nem intervir sistematicamen-te nas novas demandas sociais, conservando, pelo contrário, pratica-mente inalterado o campo de intervenção relacionado às áreas com asquais se deparava no momento da sua constituição profissional.

Este elemento, portanto, vincula-se com a (auto)reprodução dos aspec-tos que fundamentam a primeira tese sobre a caracterização das políticassociais e o papel que o Serviço Social desempenha em relação a elas.

Efetivamente, enquanto predominar a forma de entender as políti-cas sociais como meros instrumentos de redistribuição da renda (pri-meira tese) que visam atingir o reequílibrio social afetado e alterado peladinâmica do mercado, na medida em que sejam consideradas apenas

147. Numa espécie de fusão (eclética) entre empirismo, senso comum, positivismo e pragma-tismo (e utilitarismo).

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como a procura, por parte do Estado, do bem-estar social das pessoascarentes, e enquanto os serviços e a assistência social (nos quais partici-pa este profissional) estejam centrados nas áreas vinculadas à reprodu-ção da força de trabalho (saúde, educação, transporte, habitação, rela-ções de trabalho);148 intervindo também nos aspectos que põem a socie-dade, o sistema, em “xeque” (drogas, alcoolismo, delinqüência, aban-dono); partindo, portanto, desta concepção de políticas sociais e da suareal imbricação genética com o Serviço Social, estas áreas de intervençãopassam a ser consideradas direta e invariadamente como os próprioscampos (“específicos”) de ação da profissão. Poderíamos dizer quase queexclusivamente. E dentro delas, as funções tradicionais de competênciado assistente social são congeladas e reproduzidas quase que ritualmente.São poucos os estudos sobre preservação do meio ambiente e ecologia,microempresas, catástrofes naturais e suas repercussões sociais; ServiçoSocial de empresa frente à terceirização, programas de demissão voluntá-ria ou qualidade total, Estado e políticas sociais no neoliberalismo, a atualmundialização ou globalização das relações político-econômicas; o Servi-ço Social e a economia informal; e tantas outras temáticas, mais gerais ouespecíficas, mais desenvolvidas ou emergentes.

Desta forma, as áreas tradicionais de intervenção são “naturaliza-das” e permanecem, ao longo da história do Serviço Social, quase queinvariáveis: nem se modificam estes “campos tradicionais”, nem se in-corporam novas demandas sociais, novos objetos de intervenção profis-sional.

Como afirma Netto, o assistente social se confronta com o “tecidoheteróclito em que se move a sua profissionalidade” pois “a teia em quese vê enredada se entretece de fios econômicos, sociais, políticos, cultu-rais, biográficos etc., que, nas demandas a que deve atender, só são pas-síveis de desvinculação mediante procedimentos burocrático-adminis-trativos”, procedimento este que, segundo o autor, “reproduzem

148. Netto, demarcando a fronteira entre o Serviço Social profissionalizado e suas“protoformas”, afirma que ela se processa “da primeira codificação dos procedimentos diagnósti-cos à especialização na formação profissional e à circunscrição de campos profissionais” (1992a:95); evidenciando que esses campos referem aos temas “família, menor, escolar, psiquiátrico, mé-dico-social, correcional, grupo e comunidade” (ibidem).

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reiterativamente a demanda da intervenção do profissional” (Netto, 1992a:90), congelando e tornando rotina, portanto, os campos de intervençãodo assistente social.149

Do contrário, como apontamos em outra oportunidade (cf. Montañoe Lema, 1993), em lugar da perpetuação da lógica e dos campos de inter-venção tradicionais da profissão,

1) o Serviço Social precisa se abrir a novos espaços profissionais. 2) Paraisto deve detectar novas demandas, ou demandas potenciais, não tradi-cionais, e conhecer (pesquisando) sua gênese e seu processo. Apenas as-sim poderá ele formular propostas profissionais racionais e operativasde intervenção. 3) Em muitos casos somente poderá investigar estas no-vas realidades; o que não deve ser desprezado por se considerar tais pes-quisas como “sem aplicabilidade”, “puras”, ou até “inespecíficas” ao Ser-viço Social. Na verdade, é falso pensar que possa existir conhecimentosem aplicabilidade; sempre, nem que seja a médio prazo, o conhecimen-to pode ser útil. (Idem: 99)

partindo da consideração de que é útil porque é verdadeiro e não vice-versa, verdadeiro por ser útil (como supõem os pragmatistas).

Toda profissão se constitui e legitima através das respostas que con-segue dar a diversas necessidades que determinam um conjunto de de-mandas sociais. Portanto, se uma profissão se conforma a partir de res-postas qualificadas e institucionalizadas a demandas sociais, e se de aíprovém sua legitimidade, então a alteração dessas demandas ou o surgi-mento de novas demandas deve promover o espaço para a necessária alte-ração e adequação das respostas profissionais ou para a incorporação de

149. O autor continua, afirmando que, “no entanto, mesmo no bojo da (formal) ‘homogeneiza-ção’ que os procedimentos burocrático-administrativos realizam institucionalmente (com a deli-mitação dos ‘problemas’, do ‘público-alvo’ e dos ‘recursos’ a serem alocados), persiste a ineliminá-vel heterogeneidade das situações”. Esta seria, segundo Netto, a explicação pela qual o assistentesocial, “aprisionado na lógica hierárquica e na mecânica estabelecida no jogo institucional” termi-na remetendo para “outras instâncias” a problemática das refrações da “questão social” que “nãoestão contempladas nas suas ‘atribuições’, prescritas nos limites dos ‘serviços’ institucionais”; oque se constitui na “razão objetiva de boa parte das funções de ‘triagem’ e ‘encaminhamento’ atri-buídas institucionalmente aos assistentes sociais” (cf. Netto, 1992a: 90).

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novas propostas interventivas. O Serviço Social deve transcender a práticarotineira desenvolvida em torno de velhos campos, deve incorporar parao espaço profissional o estudo e as (novas) respostas tanto às demandasjá existentes quanto, fundamentalmente, às demandas emergentes.

O que o Serviço Social pode (e deve) fazer para contribuir a alte-rar/atualizar a sua legitimidade, a sua “base de sustentação funcional-ocupacional” (Montaño, 1997), é: 1º) captar novas demandas ou deman-das emergentes (assim como as novas determinações daquelas já tradi-cionais à prática profissional) e 2º) se qualificar para dar respostas.

Isto é possível porque as profissões não são meramente “determina-das externamente” — o Serviço Social pode e deve intervir para, a partirdas condições históricas, participar mais ativamente na alteração da sua“base de sustentação funcional-ocupacional” —; no entanto, a profissãonão se constrói apenas internamente, pela “exclusiva vontade dos seusmembros” (como para os autores da primeira tese), o que nos mostra ojusto limite para a autonomia profissional que o contexto histórico-so-cial lhe coloca. Mas isso é necessário porque só podem sobreviver, aolongo da história, aquelas profissões que conseguem captar demandasemergentes, compreender sua essência e desenvolver novas respostaspertinentes e efetivas. Portanto, a profissão que não investir na pesqui-sa da realidade, dos novos fenômenos (ou até, das novas determinaçõesde fenômenos já existentes), estabelecendo tendências sobre o devir so-cial, desenvolvendo, a partir daí, novas propostas interventivas e novasrespostas, não conseguirá se reproduzir enquanto tal, quando o contex-to social e as demandas mudarem. A pesquisa social da realidade so-cioeconômica e política, e de seus fenômenos concretos, não serve ape-nas para fundamentar a prática imediata, mas para visualizar as ten-dências da sociedade e as demandas emergentes, podendo assim esta-belecer novas propostas interventivas, novas respostas (e, portanto, no-vas práticas e campos profissionais) e, talvez, uma nova racionalidade,funcionalidade e legitimação.

A aposta para romper com o imobilismo operatório, com a realida-de subalterna e subalternizante do Serviço Social, com a sua lógica e asua razão de ser presentes desde a gênese da profissão, está na incorpo-ração das novas demandas surgidas de problemáticas emergentes, de

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forma tal que os novos desafios convoquem novas alternativas de inter-venção e estudos rigorosos e críticos, desencadeando uma preocupaçãopara que a profissão apreenda estes fenômenos, pesquisando, dialogan-do e debatendo com quem produz conhecimento original a partir dasdiversas disciplinas sociais. Nestas novas realidades, cujas práticas pro-fissionais estão ainda desprovidas de vícios tradicionais, recai a possibi-lidade de alterar a “base de sustentação funcional-ocupacional” do Ser-viço Social. Tal como afirma Iamamoto,

é preciso apreender as demandas potenciais gestadas historicamente, con-tribuindo assim para recriar o perfil profissional do assistente social, in-dicando e antecipando perspectivas, no nível da elaboração teórica, dapesquisa ou da intervenção profissional, perspectivas capazes de respon-der às exigências de um projeto profissional coletivamente construído ehistoricamente situado. (1992: 104)

Para ela, “à medida que as novas situações históricas se apresen-tam, a prática profissional, como componente das mesmas, também éobrigada a se redefinir” (Iamamoto, 1997: XXIX).

Neste sentido, a autora refere-se a um projeto profissional que, con-dicionado pela realidade histórica, seja capaz de dar resposta às novasdemandas tanto a partir da lógica do mercado de trabalho dentro deorganizações de caráter patronal, quanto “de reconhecer e conquistarnovas e criativas alternativas de atuação, expressão das exigências his-tóricas apresentadas aos profissionais pelo desenvolvimento das socie-dades nacionais” (ibidem).

Com semelhante preocupação, Guerra propõe

distinguir as intervenções profissionais voltadas às situações imediatas,daquelas que se encontram abertas aos fenômenos emergentes. No primei-ro caso, ao se atuar ao nível do imediato, a ação profissional pode limitar-se à manipulação de variáveis do contexto empírico, já que os resultadosesperados não extrapolam a perspectiva de recuperar o índice de “nor-malidade” necessário ao (re)estabelecimento da ‘ordem’ social vigente.Neste nível (da empiria), a análise não ultrapassa a aparência dos fenô-menos [...]. No segundo, para atender aos fenômenos emergentes, a in-

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tuição, a sensibilidade, a repetição de experiências, a utilização de mode-los não bastam. O significado semântico da palavra aponta-nos que “emer-gente” contempla a necessidade de (re)conhecer os processos que se insi-nuam, que se encontram latentes aos fenômenos, [...], para o que o assis-tente social tem que deter um conjunto de saberes que extrapola a reali-dade imediata e lhe proporcione apreender a dinâmica conjuntural e acorrelação de forças manifesta ou oculta. Aqui, as ações profissionais ten-dem não apenas a realizar o atendimento da necessidade imediata, comoainda a se vincular aos projetos sociais das classes que mediatiza. (Guer-ra, 1995: 200)

Neste sentido, o primeiro passo para quebrar o conservadorismono campo da intervenção profissional, assumindo a responsabilidade eo desafio de enfrentar as demandas novas e emergentes, é se saturar deconhecimento crítico sobre a dinâmica da realidade sobre a qual e com aqual se interage, realidade esta que deve ser o verdadeiro motor e senti-do da profissão. Neste conhecimento do real, o diálogo com as teoriassociais em geral deve ser fluido e constante. E para manter um relacio-namento horizontal com as demais disciplinas sociais, o Serviço Socialcomo um todo150 deve produzir também conhecimento teórico-científi-co, deve aportar elementos para o debate e não apenas os receber dosoutros (como tem sido feito nas áreas tradicionais de intervenção doServiço Social, desde a sua gênese), deve produzir conhecimento críticosobre a dinâmica da realidade social.

No entanto, a prática do assistente social, por ser sincrética,151 porsegmentar a realidade em “questões sociais”, toma para si, como sendoum campo de intervenção próprio, algumas dessas (micro)problemáticasestilhadas, deixando para outras profissões a realidade “macro”. Nova-mente, na lógica de “não invadir para não ser invadido”, se (re)produznão só uma ruptura entre áreas de conhecimento — como se a realidadeconcreta fosse possível de pulverizar em “microrrealidades” parciais —

150. E não deve se confundir “o Serviço Social como um todo” com “todo o Serviço Social”.

151. Netto entende que “a problemática que demanda a intervenção operativa do assistentesocial se apresenta, em si mesma, como um conjunto sincrético; a sua fenomenalidade é o sincretismo —deixando na sombra a estrutura profunda daquela que é a categoria ontológica central da própriarealidade social, a totalidade” (1992a: 91).

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, como também uma segmentação entre profissões científicas e técnicas,e ainda, verifica-se uma compartimentação nas áreas de intervenção,como que repartindo entre as profissões “interventivas” campos de atua-ção “específicos” a cada uma.

O desafio não é simples mas já tem sido assumido por diversosprofissionais, especial após a segunda metade dos anos 1980. Nestaempresa vai-se o futuro da profissão. No entanto não recai na pesquisa oúnico fator determinante do desenvolvimento profissional. Ela deve re-bater na formação profissional mais qualificada — ou seja, professores ealunos de Serviço Social devem incorporar o produto daquela na ativi-dade docente — e na reciclagem e atualização dos profissionais de campo.De muito pouco serve a pesquisa original e rigorosa de fenômenos emer-gentes se ela não passa a formar parte de acervo real (não exclusivo) daprofissão, atualizando os conhecimentos dos assistentes sociais e acres-centando elementos na formação dos estudantes.

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Conclusões gerais

1) No contexto profissional atual — onde, mesmo com substanti-vas diferenças no que se refere às características e condições da sua gê-nese, há claros e fortes aspectos (auto)reprodutores da lógica da sua cons-tituição — tem se desenvolvido várias tentativas de ruptura, ou, no míni-mo, de distanciamento com os aspectos que marcaram sua origem. Es-tas procuras têm se dado em torno de diversas perspectivas. Dentre elasduas posturas extremas merecem consideração: por um lado, a tentati-va de uma determinação total e a priori das opções do desempenho dacategoria profissional e, por outro, a busca de liberdade absoluta de cadamembro do coletivo na escolha dos seus horizontes profissionais. Pode-mos, assim, nesta questão, registrar duas propostas extremas:

a) Aquela que entende que a profissão deve estar, como um todo, orienta-da a priori nos seus objetivos, direcionada apenas a um tipo de sujeitopopular e predeterminada nos seus métodos, levando a profissão a umaespécie de militantismo.

Esta postura vincula-se claramente a uma perspectiva progressista,onde as organizações profissionais assumem maior controle da forma-ção e da prática dos assistentes sociais. Também ela parte (explícita ouimplicitamente) da existência de elementos “específicos” ao Serviço So-cial — pelo menos no que diz respeito ao seu caráter inclusivo — quedevem ser definidos a priori para todos os profissionais. Neste caso, sehá especificidades para todos os membros da profissão, resultaria me-

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lhor, nesta proposta, que esta seja pré-construída e predeterminada peloe desde o Serviço Social, de forma a aliar-se às classes populares, do queser definida e atribuída pelas classes dominantes.

Por tanto, os objetivos (preestabelecidos) visariam a melhora nascondições de vida da classe trabalhadora, seu sujeito (predeterminado),assim como o acondicionamento da sua situação política, mediante aorganização do movimento operário (como eixo “do” movimento popu-lar organizado), a “conscientização” do povo e do planejamento em fun-ção dos objetivos profissionais. As formas ou métodos de intervenção tam-bém seriam definidos a priori.

Essas posturas, que se vinculam à idéia de que na órbita do Estado— por ser este um instrumento de dominação e controle exercidos pelaclasse hegemônica — nada pode ser feito a não ser reforçar o caráteralienador e dominador do sistema, e que teve uma incidência importan-te no movimento reconceituador da profissão — especialmente entreaqueles que conceituavam o assistente social como “agente de mudan-ça”152 —, repercutem, com certa força, nas décadas de 1980 e 1990. É ocaso da proposta do “Trabalho Social Alternativo” (elaborado no Celatsem 1988) e seu “Projeto Pedagógico” (cf. Maguiña, 1988).

Este projeto, criticado por Iamamoto e Netto (In Iamamoto, 1992a:131-58), estabelece que “o Serviço Social Alternativo parte do reconheci-mento de que a ‘alternativa’ é a posta pelo projeto popular em face do proje-to social que é dominante hoje” (cf. idem: 134, notas 6 e 154-155; grifosnossos). Assim, continuam os autores do Celats, “o Serviço Social sópode propor-se como ‘alternativo’ na medida em que se constitui comoparte de uma alternativa popular para a ordem social” (ibidem).

Desta maneira, nesta proposta brevemente apresentada há, por umlado, uma clara visão de unidade e homogeneidade sobre a categoria “popu-lar”, considerada como organizada e mobilizada: o movimento operá-

152. “A hipótese”, diz Netto, “de um Serviço Social correndo por fora do marco institucional— que, em meados da década de 1970 ganhou corpo entre segmentos renovadores da profissão,contando então inclusive com a nossa parcial adesão —, independentemente da sua inspiração teóricae ideológica, converte-o, no limite, numa modalidade de intervenção que só pode embaçar-se nummilitantismo fundado em suportes extraprofissionais” (1992a: 72, nota 136).

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rio, o projeto popular. Por outro lado, aparece uma forte intenção devincular o Serviço Social, como membro orgânico, a “projeto popular” eao “movimento operário”. Finalmente, tal projeto mostra, como diriaIamamoto (cf. 1992: 113-118), uma visão “fatalista” do Serviço Social, quederiva, na sua proposta política, para uma perspectiva “messiânica” sobrea profissão.153

153. Isto mostra certa semelhança entre o presente projeto e a proposta desenvolvida porMartinelli para romper com a alienação originada da sua “identidade atribuída”.

Para a autora, “o terceiro capítulo [do seu livro Serviço Social. Identidade e alienação] [...] situa omovimento de negação da identidade atribuída [...] para a construção coletiva de uma dinâmicaidentidade profissional, produzida por uma categoria politicamente assumida, participante da‘classe para si’” (1991: 19). Assim, Martinelli pareceria conceber o “dever ser” do Serviço Social, nasua proposta profissional, — alternativa à identidade atribuída pelas classes dominantes —, comouma profissão, em certa medida, homogeneizada e determinada internamente: aqui, o assistentesocial, “portador de um projeto profissional comum”, deveria “ingressar no universo da ‘classe emsi’ e da ‘classe para si’ do movimento operário”, construindo sua própria identidade, não mais“atribuída” pela burguesia mas, agora, a partir da sua opção pela inserção na luta de classes, par-ticipando como um certo intelectual orgânico vinculado à prática política da classe operária (cf.Martinelli, 1991: 19, 147 e 157). Tudo indica, portanto, que para a autora o caminho para que oServiço Social rompa com sua “identidade atribuída” está em que a profissão, como um todo, par-ticipe “da prática política da classe operária” (idem: 19), definindo, assim, internamente sua pró-pria identidade profissional.

Assim, o sólido caráter ontológico que permeia a análise de Martinelli nos dois primeiroscapítulos (quando vai estudar a gênese do capitalismo e do Serviço Social) parece ser substituídapor um certo idealismo quando, no último ponto do capítulo III, vai propor a ruptura com a iden-tidade atribuída, com a alienação. Tal vez por isto a autora, para se manter fiel à dialética, teve querecorrer, neste último caso, a Hegel mais do que à dialética materialista marxiana. É que Martinelli,partindo de categorias marxistas, incorpora o “método dialético” mas (fundamentalmente no finaldo capítulo III) numa perspetiva hegeliana (a que, segundo expressa Marx no Posfácio à 2ª edição deO capital, partia da idéia para conceber o real); perspectiva que a leva a entender que “os homensproduziam a existência de acordo com sua consciência” (Martinelli, 1991: 146) (postura oposta aMarx, quem expressa que “o seu ser social é que determina a sua consciência”; Marx, 1977: 301).

É neste sentido que seu apresentador, Antônio Joaquim Severino, vai se referir a esta passa-gem do livro de Martinelli, da seguinte forma: “Nos termos em que a autora se propõe a especificara identidade profissional do assistente social, ou seja, enquanto categoria sócio-histórica, superan-do assim as perspectivas de uma concepção idealista da mesma, o problema que se coloca é que elanão mais poderá ser constituída sem que seja contraposta à luz do processo social como um todo.Aí talvez se encontre a grande dificuldade da argumentação filosófica e da demonstração da auto-ra, pois que a nova identidade, desalienada, não fica claramente viabilizada, se levarmos em con-sideração a resistência da sociedade do capital que permanece, intangida, impondo sua própria eferrenha causação. Será que o resgate de uma identidade profissional, enquanto reconstrução his-tórica, da reconciliação com a vida e com o movimento, fonte da própria vida, não pressuporia,simultaneamente, uma transformação mais profunda da sociedade? O que nos garantirá, enquan-

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Assim sendo, podemos, subsidiados com a análise que Iamamoto eNetto fazem do Serviço Social alternativo (cf. Iamamoto, 1992a: 131-58 e125-30), apontar algumas críticas à posição desenvolvida neste projeto:

• em primeiro lugar, diz Iamamoto, há uma “dificuldade de qua-lificação do povo e do popular: nessa formulação, tendem a serhomogeneizados numa identidade ideal em torno de um projeto socialalternativo de cunho socialista revolucionário, deixando em se-gundo plano a heterogeneidade do campo popular. Ora, o cam-po popular [...] contém tensões internas que não podem ser fa-cilmente reduzidas a seus componentes anticapitalistas e, maisainda, eles não podem ser identificados com uma proposta so-cialista revolucionária. O povo,154 em si, como uma totalidade,não é revolucionário” (Iamamoto, 1992a: 127). “Está longe deser pacífico que deste denominador comum (subalternidade efuncionalidade [ao capitalismo]) emerja um mesmo projeto an-ticapitalista” (idem: 135);

• em segundo lugar, “a idéia de um projeto social popular, que seopõe a um projeto dominante no âmbito latino-americano [...][gera] o perigo de fazer tabula rasa das particularidades nacio-nais” (idem: 127);

• existe também uma “perda de fronteira entre profissão e partidopolítico, entre exercício profissional e militância”, identificando,assim, o assistente social com um “intelectual orgânico de prole-tariado” (ibidem);

• em quarto lugar, é necessário entender que “o processo de de-senvolvimento capitalista e as formas que ele assume são tambémum processo cultural, com derivações na constituição do modo devida das diferentes classes e seus segmentos” (idem: 128);

to atuarmos nas tramas das relações sociais do capitalismo, que não continuaremos vítimas dailusão de servir, servindo justamente àqueles que dominam? Maria Lúcia não volta, sem dúvida,ao ‘céu dos idealistas’, mas também não deixa clara e concretamente indicados os caminhos quedevem trilhar, na terra do realismo histórico, os novos profissionais do Serviço Social” (In Martinelli,1991: 12-3).

154. Uma análise inicial sobre o conceito de “povo” e a heterogeneidade do “popular”, encon-tra-se em Montaño, 1994.

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• finalmente, faz-se abstração “da inserção sócio-ocupacional doassistente social na estrutura da divisão social e técnica do traba-lho” (idem: 158), quer dizer, o profissional se descolaria do mercadoreal de trabalho, se dirigindo agora às organizações populares ouda classe trabalhadora.

A idéia de que os intelectuais — no caso, os assistentes sociais —podem ser vistos — dentro deste projeto rapidamente apresentado —como “sendo autônomos e independentes do grupo social dominante[...], revestidos de características próprias” (Gramsci, in Simionato, 1995:53), leva Simionato a afirmar que, “ainda que se proclamem autônomosporque se sentem fortemente organizados, estes intelectuais possuem‘espírito de corpo’. Formam uma casta. O grande perigo é quando estaautonomia tende a afirmar-se ideológica e politicamente através de umprojeto idealista” (ibidem) sem sustento real; o que fragiliza o projeto de“ruptura”. Tal o que aconteceu com a proposta do “Trabalho Social Al-ternativo”.

b) A segunda postura, que pretende originalidade em relação à tradiçãodo Serviço Social, entende que a intervenção profissional deve ser dirigi-da exclusiva e livremente segundo o critério de cada assistente social, conver-tendo o Serviço Social numa profissão liberal.

Nesta alternativa, liberal e com desdobramentos conservadores, cada as-sistente social seria dono e livre de realizar suas opções metodológicas,técnicas, definir objetivos, fins, público-alvo, comportamento ético etc.

Aqui é tão válida a prática profissional que procura, por exemplo,combater o desemprego de um grupo de pessoas com o fim de melhorarsua qualidade de vida, ou que age na organização de grupos de interes-se, que aquela onde o profissional, por trás do seu escritório particular ecom sua “pasta de clientes”, se desempenha visando a manutenção daordem e a conservação do sistema, ou inseridos em Programas de De-missão Voluntária (PDV), procurando adaptar e integrar os sujeitos comos quais trabalha aos padrões socialmente estabelecidos e às necessida-des do capital.

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Desta forma, se a primeira alternativa deriva num Serviço Socialcomo militância política (com vínculos partidários ou sindicais), nesta se-gunda perspectiva identifica-se o assistente social com um profissional abso-lutamente liberal. Esta tendência se vê reforçada a partir de um processode terceirização que se verifica em aumento para nossa profissão.

No entanto, como afirma Iamamoto, “o Serviço Social no Brasil,embora regulamentado como uma profissão liberal,155 não tem uma tradi-ção de prática peculiar às profissões liberais na acepção corrente do ter-mo. O Assistente Social não tem sido um profissional autônomo” (1991:80; grifos nossos). No caso contrário, a profissão perderia, ou tornariaambíguo, seu perfil, sua identidade, seu controle sobre o desempenhoético do exercício profissional, e até sua função social e seu lugar nadivisão sociotécnica do trabalho. Claro, “romperia” com a herança dasua gênese, mas o faria de uma forma “parcializada”, individual, man-tendo a profissão, como um todo, a sua funcionalidade sistêmica. As-sim, para Iamamoto, “a análise sociológica da profissão e de seus agen-tes não pode limitar-se a considerar o Serviço Social e o Assistente Socialdesvinculados dos organismos institucionais...” (1992a: 43).

Até no processo vivido pela categoria profissional, marcado porcerta tendência à “terceirização” dos cargos de Serviço Social, mantém-se geralmente o vínculo com as mesmas instituições que empregavamestes profissionais. Basicamente o que muda é o tipo de contrato (não jácomo assalariado, mas como empresa prestadora de serviços) continuan-do em geral o mesmo profissional vinculado (de forma diferente) à mes-ma instituição: muda a pessoa jurídica, mas mantêm-se a pessoa física.

Esta proposta, além de descaracterizar a profissão, aceita a terceiri-zação como o caminho válido para a liberalização profissional, descon-siderando também a real base de sustentação funcional-ocupacional doServiço Social. Maciçamente o assistente social não vende os serviçosque presta, mas vende sua força de trabalho para pôr em movimento osserviços oferecidos pelo Estado e outros organismos (e conquistados pelasclasses trabalhadoras). A liberalização da profissão contribui assim para

155. “A Portaria nº 35, de 19/4/1949, do Ministério de Trabalho, Indústria e Comércio enqua-dra o Serviço Social no 14º grupo de profissões liberais” (Iamamoto, 1991: 80, nota 12).

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a “re-filantropização” dos serviços sociais (ver Yazbek, 1995; Netto, 1996e Montaño, 1997), reforçando a tendência privatista e focalista das polí-ticas sociais. Se os serviços sociais e assistenciais prestados pelas políti-cas sociais são realmente produto de uma relação de pressão-concessão,contendo conquistas de demandas populares (sobre isto, ver Pastorini,1997), então a “compra” desses serviços por um profissional liberal sig-nifica uma verdadeira involução nesse processo de lutas e conquistasdas classes trabalhadoras.

Na verdade, o Serviço Social, como categoria, não se constitui comouma profissão liberal, indeterminada, onde cada indivíduo decide per seseu comportamento profissional, com total liberdade e independência,e sem ter que prestar contas ao coletivo profissional e à sociedade. AMedicina, a Direito e tantas outras profissões, mesmo nas suas práticasliberais, não poderiam ser pensadas sem códigos de ética, sem regula-mentações profissionais. O Serviço Social não é a exceção; ele perderiaidentidade (mesmo na diferença), coerência (mesmo na heterogenei-dade), unidade (mesmo na diversidade) e sentido de ser, se, querendoromper com sua herança tradicional, não tivesse estas cartas magnas daprofissão.156

Por outro lado, não pode se pensar o Serviço Social como uma pro-fissão “robotizada”, “hiper-regulamentada”, totalmente determinada apriori, pois o complexo e contraditório sistema capitalista gera um inter-minável número (e sempre cria novas formas) de situações e fenômenosproblemáticos que afetam, mesmo que de forma diferenciada, a diver-sos grupos e categorias socioeconômicas.

Como analisa Iamamoto, se a liberalização do Serviço Social

não vem sendo, historicamente, uma característica básica da profissão,ela não exclui, integralmente, certos traços que marcam uma prática “li-beral” entre as quais se poderia arrolar: a reivindicação de umadeontologia (Código de Ética), o caráter não rotineiro da intervenção,viabilizando aos agentes especializados uma certa margem de manobra

156. “O código de ética profissional do Assistente Social” de 1993 e a “Lei nº 8.662/93” queregulamenta a profissão, têm antecedentes já no código de 1965.

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e de liberdade no exercício de suas funções institucionais. [...] [Também,]a existência de uma relação singular no contato direto com os usuários[...] reforça um certo espaço para a atuação técnica, abrindo a possibili-dade de se reorientar a forma de intervenção, conforme a maneira de seinterpretar o papel profissional. (1991: 80)

Desta forma, o Serviço Social não pode e não deve, enquanto cate-goria, definir a priori e rigidamente o sujeito ao qual vai ser dirigida suaintervenção, seu público-alvo, nem estabelecer um projeto político-pro-fissional totalmente predeterminado. A criatividade, a diferença, a hete-rogeneidade de cada profissional são essenciais ao desenvolvimento daprofissão. Para Netto, “no mundo contemporâneo, é ingenuidade suporprofissões como blocos homogêneos e/ou identitários — praticamentetodas estão vincadas por enormes diversidades, tensões e confrontosinternos” (Netto, 1996: 89). Segundo este autor,

a ineliminável dimensão ídeo-política da profissão reside precisamentena articulação do seu significado social objetivo com os projetos sociais(postos pela vontade política dos sujeitos) que nele incidem. Assim, a cul-tura profissional — princípios, valores, objetivos, concepções teóricas,instrumentos operativos — joga um papel importante na delimitação dacompatibilidade entre exercício profissional e uma dada hegemonia polí-tica. Por isso mesmo, num ordenamento social com regras democráticas,uma profissão é sempre um campo de lutas, em que os diferentes segmentosda categoria, expressando a diferenciação ídeo-política existente na so-ciedade, procuram elaborar uma direção social estratégica para a sua pro-fissão. (Netto, 1996: 115-6)

Direção que deve se constituir em hegemonia, não em dominação-eliminação. A questão, portanto, de se o Serviço Social, como categoria,comporta um “intelectual orgânico” da burguesia ou do proletariado é, naverdade, um falso dilema. Não pode se pensar, e Gramsci não pensaassim, em intelectual orgânico de uma ou outra classe a partir de umacategoria profissional como um todo.157 Isto significaria pensar numa

157. Não pode se pensar que a Medicina seja uma categoria de intelectuais orgânicos daburguesia, enquanto a Psicologia é orgânica do proletariado, ou que a Advocacia possa ser alia-

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profissão homogênea e com sujeitos política e ideologicamente idênti-cos. Para Gramsci, o intelectual pode ser tanto orgânico do proletariadoquanto da burguesia.158 Neste sentido, afirma Simionato, “o intelectualorgânico não é aquele que se justapõe a uma classe, a um grupo ou auma empresa; a empresa, o grupo, a classe é que criam os seus intelec-tuais” (1995: 57).159

Desta forma podemos afirmar que a condição de organicidade comas classes dominadas ou dominantes tem a ver mais com opçõesideopolíticas pessoais e com origem de classe do que com a profissão àqual se pertence.160 Devemos lembrar que, segundo Netto, em Marx aopção do cientista (ou profissional) “comporta, simultaneamente, umavinculação de classe e um elemento de autonomia relativa” (1992a: 131). ParaGramsci,

alguém pode tornar-se intelectual orgânico do proletariado seja por “as-similação” e “conquista ideológica” — quando um intelectual burguêsadere ao programa do proletariado e à sua doutrina, baseia-se nela, par-ticipa de sua essência e tona-se parte integrante dele —, seja surgindo

da à classe dominante enquanto o Serviço Social se conforma por intelectuais orgânicos das clas-ses populares.

Coutinho critica a “tendência em conceber o intelectual orgânico como igual a intelectualproletário revolucionário e o intelectual tradicional como igual a intelectual conservador” (InSimionato, 1995: 52, nota 14).

158. “Essa ligação orgânica”, afirma Macciocchi, “pode estabelecer-se não somente com aclasse reacionária, mas — e esse é o objetivo de Gramsci — com o proletariado” (1976: 193).

159. “Os intelectuais enquanto tal não formam uma classe independente, e sim cada gruposocial tem sua própria camada de intelectuais ou busca criar uma” (Gramsci, in Macciocchi,1976: 192).

160. No máximo, poderíamos encontrar certa tendência do Serviço Social para as classes su-balternas, dada a proximidade na relação profissional, que garante a “legitimidade social” do as-sistente social; no entanto, como já observamos, a sua “legitimidade hegemônica”, contraditoria-mente, lhe é conferida por meio do contrato de trabalho (dado pelo Estado ou diretamente pelaclasse burguesa).

Assim, como expressa Mandel: “os trabalhadores intelectualmente qualificados envolvidoscom o processo direto de produção ou reprodução, ou aqueles cuja função social não entra necessa-riamente em conflito com os interesses de classe dos assalariados — por exemplo, os médicos defirmas de seguros contra doenças ou os assistentes sociais empregados por uma autoridade local —tendem muito menos a se identificar subjetivamente como os interesses de classes do capital, emuito mais a se alinhar com os interesses de classe do proletariado” (1982: 186-7).

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“diretamente da massa” — à qual ele está organicamente ligado.(Macciocchi, 1976: 194)

Deve-se pensar, portanto, quando falamos de “intelectual orgâni-co” em um determinado indivíduo, num sujeito específico e não numaprofissão, numa disciplina como um todo (mesmo que a natureza daprofissão seja funcional ao sistema).161 Não é a condição de intelectual (oude membro de tal ou qual profissão) o que define a condição de orgânico acerta classe social, não é a área de conhecimento ou a formação universi-tária particular o que outorga o caráter de “orgânico”. O que elas naverdade dão é o caráter de “intelectual” (e daí deriva a confusão). É,pelo contrário, a opção política que o intelectual particular faz por umaorganização, por uma classe social e por um projeto político que o con-verte em intelectual militante desta ou daquela classe. É a síntese entre“especialista e político” (cf. Gramsci, In Simionato, 1995: 61) o que odefine como orgânico a uma classe social.

2) Uma segunda observação que queríamos trazer à reflexão nosremonta à discussão da pretendida “especificidade” do Serviço Social.Efetivamente, esta dita especificidade, que contém a atitude comodistade não invadir para que seu espaço ocupacional não seja invadido por outrosprofissionais, leva o assistente social a entender que certas funções (e,portanto, certos campos de trabalho) só podem e devem ser feitas poreste profissional.

Neste sentido, temos presenciado inúmeras vezes a indignação doassistente social ao ver que um sociólogo, por exemplo, desempenhatarefas e ocupa espaços que tradicionalmente pertencia (como específi-co) ao Serviço Social.

Este sentimento, em primeiro lugar, condiz com a compartimentaçãopositivista de profissões particulares especializadas, cada uma dona de

161. Por este motivo, onde não medeia uma opção explícita do assistente social pelas classespopulares, e na ausência de qualificação teórico-prática e/ou de poder político-institucional (statusprofissional e hierárquico, respectivamente) a ação profissional do assistente social, pela significa-ção social e funcionalidade da sua profissão, acaba por desenvolver uma prática que reproduz asrelações repercutindo favoravelmente nos interesses das classes hegemônicas.

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um “recorte” específico da realidade e com respostas parciais. Em se-gundo lugar, pensa-se que a legitimidade de uma prática profissional,que cria a demanda de trabalho, pode (ou deve) ser derivada de umaatitude corporativa (interna a cada profissão) de compartimentar rigida-mente a divisão sociotécnica do trabalho (numa perspectiva endogenista),em vez de perceber que uma profissão se legitima na medida em quecongregue, dentre seu quadro, profissionais competentes que dêem res-postas viáveis e positivas às diversas necessidades e demandas da reali-dade; e, em muitos casos, isto pode ser feito por membros de diversasprofissões. Em terceiro lugar, na perspectiva endogenista, a preocupa-ção pela qualidade e o resultado da resposta não é central; parece im-portar mais preservar o campo de trabalho como específico do ServiçoSocial do que alguém (mesmo de outra profissão) consiga dar respostapositiva às demandas.

Na verdade, nossa preocupação e compromisso político e ético-pro-fissional deve estar antes com a transformação da realidade, com a mu-dança da sociedade, com a qualidade de vida dos sujeitos e, concreta-mente, com a resposta às demandas. É por isso que é antes um compromis-so político do que uma opção corporativa.

Do contrário, de subordinar a ação profissional, e sua incidência noreal, a uma orientação corporativa, derivaríamos na mera defesa de es-paços ocupacionais dos assistentes sociais sem nos importarmos comsua qualificação e sua capacidade de dar respostas substantivas a umadada realidade. O mais importante, nesta perspectiva, parece ser man-ter os espaços profissionais, impedindo essa “perigosa” invasão dosagentes das outras profissões; aqui, a qualidade da resposta, desde que sepreservem estes espaços laborais corporativamente, resulta secundário.

Se um psicólogo, por exemplo, estiver mais bem preparado paraintervir numa realidade do que um assistente social, pois então que aoprimeiro lhe seja confiada a tarefa. A defessa dos postos de trabalhopara assistentes sociais, sem partir de uma postura corporativa maspolítica e comprometida com a realidade, só deve se fundamentar naigual ou melhor qualificação do profissional. Claro, isto obriga à melhorqualificação dos assistentes sociais (o que não condiz com a já denuncia-

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da postura comodista, mas com um esforço, individual e coletivo, demelhor preparo, na formação, atualização e especialização — cf. os itens1.3 e 4 do capítulo II).

Na verdade, esta postura não corporativa, comprometida com arealidade social, deve nos levar à “desendogeneização” do Serviço So-cial, à necessidade política de elevar os níveis de qualificação profissio-nal. Assim, se o compromisso é antes com a realidade, então que ospostos de trabalho sejam ocupados pelos profissionais mais competiti-vos e preparados, e isso deve valer não apenas no interior da profissão,mas na concorrência entre profissionais de diferentes áreas. Que os pos-tos de trabalho sejam preenchidos pelos mais capacitados (e não, se-guindo uma perspectiva corporativa, apenas dentre os assistentes so-ciais), que a concorrência por postos de trabalho seja feita baseada nascapacidades (e não ao seu título profissional) são imperativos inadiáveis.Isso requer um duplo esforço: melhorar permanentemente a interven-ção nos campos tradicionais e, fundamentalmente, incorporar, a partirda pesquisa de novos fenômenos da realidade, respostas efetivas a de-mandas emergentes.162

No entanto, do mesmo modo que não deve se beneficiar um assis-tente social menos qualificado que outro de área diversa, também a ca-tegoria profissional não deve poupar esforços na defesa do assistentesocial e no enfrentamento à discriminação da qual possa ser objeto um

162. Netto propõe “que os conflitos de atribuições aí localizáveis (pense-se nas ‘fronteirasprofissionais’ contemporâneas e práticas entre Serviço Social e, por exemplo, Psicologia Social,Sociologias Aplicadas, Administração de Recursos Humanos e Educação) não podem serequalizados à base de regulações formais ou reivindicações corporativas. Absolutamente com-preensível na dinâmica da divisão sociotécnica do trabalho, eles só podem ser enfrentados positi-vamente com o desenvolvimento de novas competências, sociopolíticas e teórico-instrumentais. Énessa dupla dimensão que se podem promover (re)legitimações profissionais, com o alargamentodo campo de intervenção (‘espaço profissional’) das profissões” (1996: 109).

Para o autor, as “novas competências remetem, direta mas não exclusivamente, à pesquisa, àprodução de conhecimentos e às alternativas de sua instrumentalização — e, no caso do Serviço Social,isso quer dizer conhecimento sobre a realidade social” (ibidem); sendo que, para Netto, “o que écentral na articulação das novas competências aludidas reside nos seus parâmetros teóricos e ídeo-políticos (que, igualmente, rebatem no plano da formação) [...] As novas competências passam,incontornavelmente, pela formação profissional” (ibidem).

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colega prejudicado quando, igual ou mais preparado do que profissio-nais de outras áreas (que possam estar sendo beneficiados por seus co-legas, com uma visão corporativa, ou pela organização contratante), tentaconcorrer para ocupar um posto de trabalho (ou se desempenhar nele),mesmo que estes cargos não sejam tradicionais do Serviço Social.

3) Isso nos leva a uma terceira questão: a relação qualificação-espe-cialização na formação profissional.

Efetivamente, em diversas oportunidades se debate sobre a alter-nativa entre uma e outra; se a especialização, tida como necessária pelograu de desenvolvimento do conhecimento humano, deveria substituira qualificação como conhecimento do todo concreto; se o conhecimentoda totalidade poderá sobreviver ao especializado...

Não negamos, como não negam Iamamoto e Netto,163 a existência eaté a necessidade da especialização no interior da profissão (porém, nãocomo demarcadores profissionais rígidos), para o conjunto da divisãosociotécnica do trabalho; no entanto, esta não pode ocupar, ao estilo taylo-rista (ou até, positivista), o lugar da qualificação. O saber parcial nãodeve substituir o conhecimento do todo, apenas deve reforçá-lo. O quesim deve existir, no interior da profissão, é a formação especializada queproduza assistentes sociais com conhecimentos altamente sofisticadossobre certos aspectos da realidade; mas esta deve ser, necessariamente,posterior à qualificação generalista deste profissional.

A qualificação como formação básica de graduação; a especializaçãocomo complemento final da formação profissional ou até como especia-lização de pós-graduação lato sensu. Sobre isto Netto nos ilumina comsua reflexão:

163. Para Iamamoto, “é inegável que a divisão do trabalho engendra especialidades e especialis-tas, além de fragmentar o próprio homem no ato mesmo de produzir, tornando-o um trabalhadorparcial, uma peça do trabalho coletivo.” (1991: 89).

Em Netto aparece a idéia de que na década de 80 “desenvolveu-se, no interior da categoria,uma ‘divisão de trabalho’ (uma especialização) que é própria das profissões amadurecidas: a criaçãode um segmento diretamente vinculado à pesquisa e à produção de conhecimento” (Netto, 1996:112). Para ele, “visualizar o conhecimento teórico do social comporta claramente teorias setoriais”,na medida em que “esses cortes, essas teorias [...] setoriais” estejam subordinadas à matriz teóricamaior” (1993: 52).

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Tais exigências recolocam, em primeiro plano, o problema da formação: seráinsustentável, já a curto prazo, a atual graduação, com seu perfil genera-lista, para atender ao mercado de trabalho. Esquematicamente, dois en-caminhamentos [...] são possíveis: 1) afunilar a graduação, dirigindo a for-mação, desde o início, para especializações (as várias áreas da saúde, ahabitação, as relações de trabalho e a gestão de recursos humanos nasempresas, “poder local”, assessoria a movimentos sociais, infância e ado-lescência, terceira idade etc.); 2) manter o perfil generalista da gradua-ção, institucionalizando a especialização como requisito para o exercício profis-sional (cf. o exemplo da residência médica).

Esses dois encaminhamentos não são apenas opções “técnicas” ou “téc-nico-pedagógicas” — neles se embute o substrato ídeo-político anterior-mente referido. O primeiro, além de abrir o flanco para a redução daformação profissional a um nível puramente técnico-operativo, acabarápor alijar da formação os avanços teóricos e analíticos que garantem acompreensão do significado social do Serviço Social na rede das concre-tas relações sociais; afastará a preocupação com toda investigação quenão seja “aplicada”; converterá a profissão num elenco de tecnicalidadesvocacionadas para a intervenção microlocalizada. O segundo delineia aúnica solução que me parece assegurar o desenvolvimento da culturaprofissional num sentido congruente com a direção social estratégica quese construiu na entrada dos anos noventa: pode assegurar a qualificaçãopara a intervenção localizada (ação focal) à base de uma compreensãoestrutural da problemática focalizada. E é nesta segunda alternativa, diga-se de passagem, que se pode fundar conseqüentemente a noção de umaformação profissional contínua. (Netto, 1996: 124-5)

Segundo o autor, aqui defrontam-se dois “paradigmas” de profissio-nal: por um lado o de “técnico”, treinado para intervir “nas demandasdo mercado de trabalho tal como elas se apresentam” (idem: 126) “coma máxima eficácia operativa” (idem: 125) e onde a especialização é con-siderada “como objetivo da formação” (idem: 126); por outro lado, o de“intelectual”, que, “com qualificação operativa, vai intervir sobre na-quelas demandas a partir da sua compreensão teórico-crítica, identifican-do a significação, os limites e as alternativas da [sua] ação focalizada”(ibidem) e onde a especialização é tida “como decorrência de critérios de

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intervenção em áreas tomadas como prioritárias ou relevantes a partirde uma referência totalizadora às concretas relações sociais” (ibidem).

4) Por último, fica ainda pela frente o desafio de consolidar a procu-rada ruptura com a herança da gênese profissional, com a lógica, afuncionalidade e a razão de ser que emoldurou a emersão do ServiçoSocial; desafio este que convoca a todos aqueles membros da categoriaque, desde suas diversas posturas políticas e opções ideológica, te-nham como meta profissional a promoção das camadas populares esubalternos.

Isto significa a possibilidade de protagonizar uma (re)definição,dentro das possibilidades e limites que oferecem as lutas internas à cate-goria e o conjunto de lutas sociais, da “base de sustentação funcional-ocupacional do Serviço Social” (cf. Montaño, 1997).

Isto é possível porque, como expressa Netto, “em lapsos diacrônicosvariáveis, todos os papéis profissionais vêem-se em xeque — pelo nívelde desenvolvimento das forças produtivas, pelo grau de agudeza e deexplicação das lutas de classes, pela emergência (ou rearanjo ponderável)de novos padrões jurídico-políticos etc. Decorrentemente, a original le-gitimação de um estatuto profissional encontra-se periodicamente ques-tionada — e não lhe é suficiente o apelo à sua fundamentação anterior,senão que se lhe põe como premente uma reatualização que a compatibilizecom as demandas que se lhe apresentam” (Netto, 1992: 85).

Este desafio implica, nos parece, a análise e o tratamento destesquatro elementos (auto)reprodutores: a necessidade de romper com arelação de subalternidade; a alteração da perspectiva “endogenista”, queprocura quase que obsessivamente sua “especificidade”, e da visão“praticista” da profissão; e a eliminação do congelamento nos “campos tradi-cionais” de intervenção, assumindo o compromisso de incorporar as (eincorporar-se às) novas demandas sociais, ou aos fenômenos emergentes.O tratamento e alteração destes quatro aspectos (auto)reprodutores apa-recem como significativamente importantes, mesmo que sejam absolu-tamente suficientes para romper com a lógica e a funcionalidade herda-dos desde a constituição do Serviço Social. Para isto, para alterar a “basede sustentação funcional-ocupacional” da profissão, resulta imprescin-

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dível (de acordo com a segunda tese) a análise dos fenômenos conjuntu-rais e estruturais atuais que permeiam as lutas de classes: globalização,reforma (neoliberal) do Estado, reestruturação produtiva, racionalidadepós-moderna, fenômenos estes que se processam com independênciada mera vontade interna dos profissionais de Serviço Social (sobre isto,ver Netto, 1996; Montaño, 1997; Iamamoto, 1999).

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