A NATUREZA JURÍDICA DA FLORESTA AMAZÔNICA ......considerada patrimônio mundial na 24ª. Sessão ....
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A NATUREZA JURÍDICA DA FLORESTA AMAZÔNICA FRENTE AOS
DIREITOS HUMANOS
Silvana Nobre de Lima∗
RESUMO
O direito de todas as pessoas a uma vida saudável, em harmonia com a natureza, tem feito a
humanidade refletir sobre o atual momento de crise ecológica.
A reflexão que recai na própria existência do gênero humano e seu comportamento
mediante a natureza, conduzida sob o enfoque universalista dos Direitos Humanos, tem
acarretado o redimensionamento do Direito interno e do Direito Internacional. Na base
normativa destes sistemas jurídicos, vê-se inserida, por definitivo, a dimensão temporal da
proteção ao meio ambiente, de forma a assegurar às gerações presentes e futuras o direito a
usufruí-lo.
É nesse contexto que a Floresta Amazônica, detentora de um potencial ecológico
significativo, consagra-se como patrimônio mundial pela Convenção para proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972.
Sua proteção, no âmbito jurídico, apresenta-se como um dos caminhos para se
assegurar melhores condições de vida ao Homem, além de se constituir em recurso último
da humanidade na luta pela sua sobrevivência. A natureza jurídica conferida a este sistema
ambiental em nível internacional não tem, entretanto, o poder de convertê-lo em patrimônio
de uso coletivo pela simples referência feita à humanidade. O sentido que esta expressão
alcança é o de partilhar a responsabilidade em protegê-lo, por representar interesse comum.
O instituto do patrimônio mundial, no plano normativo, para esse ecossistema, na verdade,
vem emprestar força à Constituição Federal que o consagra como patrimônio nacional,
primando, assim, pela garantia do direito humano fundamental a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Nesse plano, apesar de a proteção da Floresta Amazônica não se encontrar mais sob normas
exclusivamente nacionais, o feixe de competência interna do Estado sobre o qual nenhum
∗ Promotora de Justiça em Manaus, Doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-SP e Professora de Constitucional e Direitos Humanos.
1
outro pode tomar para si, nem substituí-lo nesse mister, ainda prevalece e firma a soberania,
ajustada , agora, aos interesses relevantes da humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: FLORESTA AMAZÔNICA - PATRIMONIO MUNDIAL -
INTERESSE COMUM DA HUMANIDADE - SOBERANIA SOLIDÁRIA
ABSTRACT
It is the right of all human beings to a healthy life in harmony with nature that has made
Humanity reflect upon the current moment of ecological crisis.
The reflection which falls within the self existence of human kind and its behaviour in
relation to nature conducted under the universal focus of Human Rights, has brought about,
new dimensions of internal Rights and International Rights. On the normative basis of
these juridical systems, are seen implanted, definitive, to the dimension of time relative for
the protection of the environment in a form to secure it for present and future generations
the right to use and enjoy it.
This is the context in which the Amazonas RainForest, holder of a significant ecological
potential, becomes sacred by the World Patrimony by the Convention for protection of
World Patrimony, Cultural and Natural of 1972.
Its protection, in the field of law, presents itself as one of the ways to insure better
conditions of life to Man, beyond the claim as the last resource of Humanity in the fight for
its survival. The juridical nature given to this environmental system at an international
level does not have, however, the power to convert it into patrimony for collective use by
the simple reference made to Humanity. The goal of the meaning of this expression is to
share the responsibility in protecting it by representing common interests.
The World Patrimony, in the standard plan, for this ecosystem, in truth, lends strength to
the Federal Constitution that consecrates it as National Patrimony, this way overseeing the
guarantee of fundamental human rights to an environment ecologically balanced.
2
In this plan, beyond the protection of the Amazonas RainForest being no longer found
exclusively under National governance, the field of the State internal competence over
which no other may undertake it as its own, not even replace it in this work, still remains
and sets its domain, adjusted now to the best interests of humanity.
KEYWORDS: AMAZON RAINFOREST - WORLD PATRIMONY - COMMON
INTERESTS OF HUMANITY - SOLIDARY DOMINION
Introdução
O reconhecimento de que questões comuns à humanidade devem receber tratamento
uniforme tem sido determinante para o Direito Internacional focalizar os problemas que o
mundo compartilha, e consagrar a responsabilidade de todos, conjuntamente, na busca de
solução. A projeção de uma ordem comum superior vem consolidando a cooperação entre
Estado e organismos internacionais ante a possibilidade de ocorrência de danos
irreversíveis ao Planeta e ao Homem.
Vê-se, com isso, uma revalorização da Floresta Amazônica, agora, sob a
compreensão de tratar-se de reserva de vida, situação que tem gerado inúmeras incertezas
quanto a sua propriedade.
O escopo desse trabalho é, justamente, enfrentar essa questão, sob o ponto de vista
jurídico. Afinal, o que é ser patrimônio mundial, qual o regime jurídico deste instituto, que
restrição pode implicar ä soberania do Estado e se é possível espoliar esse patrimônio dos
brasileiros?
1.Enfoque universalista da Floresta Amazônica
A sociedade mundial mais consciente da problemática ambiental tem buscado
reverter os processos agressivos implementados contra o meio ambiente, instituindo, para
isso, normas de proteção que valorizam áreas consideradas vitais para o equilíbrio da Terra.
3
A partir de 1970 este enfoque universalista normativo mostra-se mais presente
frente aos problemas, cujo reconhecimento tem como marco no âmbito da ONU com a
Resolução 44/228 de 22.12.89 que considerou “o caráter global dos problemas ambientais
requeria ação em todos os níveis (global, regional e nacional), envolvendo o compromisso e
a participação de todos os países”.1
Expressões como humanidade, patrimônio comum, interesse universal, foram sendo
acopladas ao vocabulário cotidiano para indicar áreas de relevância para a sobrevivência do
homem, colocadas sob incidência de uma determinada normatividade. Essa espécie de
proteção normativa faz parte da nova função que o Direito Internacional passou a
desempenhar e que colimou por acrescentar à ordenação da coexistência pacífica entre os
Estados a de cooperação institucionalizada.
Nesse contexto, quatro instrumentos normativos, especialmente, podem ser
apontados sob essa concepção universalista. São eles: Acordo sobre as atividades dos
Estados na Lua e outros Corpos Celestes de 1979, a Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar de 1982, a Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Mundial
Cultural e Natural de 1972, e a Convenção–Quadro sobre Alterações Climáticas, aprovada
no Rio de Janeiro em 1992.
A Convenção para proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, com
natureza de tratado multilateral, foi aprovada na 17a. Conferência-Geral da Unesco, no ano
de 1972, tendo o Brasil se tornado signatário por meio do Decreto nº. 80.978 de
12.12.1977, com reservas apresentadas ao parágrafo 1º.do art. 16.
Esse instrumento representa, como dispõe seu art. 7º. “ um sistema de cooperação e
de assistência internacional destinado a auxiliar os Estados-parte da Convenção nos
esforços empreendidos para preservar e identificar o referido patrimônio”. Volta-se para
impedir o progressivo empobrecimento irreversível que os povos sofrem, pela extinção de
espécies animais e vegetais por meio da destruição de bens naturais, que por serem únicos e
insubstituíveis, são detentores de um valor universal excepcional2.
1 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio ambiente. Paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sérgio fabris, 1993, p 43 2 ALMEIDA, Fernando. O mundo dos negócios e o meio ambiente no século 21. Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Coord. de André Trigueiro.. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 130. Estima-se que hoje estão em processo de extinção 26.000 plantas, 1.100 mamíferos, 1.200 aves e 700 peixes de água doce. E, conforme estudo feito pela Universidade de Leeds, considera-se que até 2050 a metade de todos os animais
4
A Floresta Amazônica insere-se nessa configuração por significar “um vigésimo da
superfície terrestre; um quinto das disponibilidades de água doce; um terço das florestas
tropicais chuvosas latifoliadas e heterogêneas, calculadas em 300 milhões de hectares; um
décimo da biota universal – 3 bilhões de espécies; um vigésimo e cinco avos de capacidade
de sumidouro do carbono produzido pela queima de combustíveis fósseis(professor
L.C.Molion)3; três quintos do território brasileiro; cinco décimos da América do Sul; quatro
milésimos da população mundial, com 20 milhões de habitantes na Amazônia Legal no ano
2000, com expectativas para dobrar a sua população para 40 milhões em 2020(...); o maior
rio do mundo, com extensão de cerca de 7.200 Km, ”.4
Sua inegável relevância ambiental conduziu o Governo brasileiro, no ano de 2000, a
indicar ao Comitê de Proteção do Patrimônio Mundial, área localizada na Floresta
Amazônica denominada “Parque Nacional do Jaú”, com 2,272 milhões de hectare,
considerada patrimônio mundial na 24ª. Sessão . Por ocasião da 27a. Sessão foi apreciado, o
pedido do Governo, de inclusão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Amanã
com 2.350 milhões de hectares, a Estação Ecológica de Anavilhanas com 350,18 mil
hectares e parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, com 260 mil
hectares, num total de 5.232,018 milhões de hectares. Tais áreas, reconhecidas como
patrimônio mundial formam o que se convencionou chamar de Complexo de Conservação
da Amazônia Central(Central Amazon Conservation Complex) que vem a representar uma
das áreas mais ricas do planeta em biodiversidade, constituindo-se em habitat exclusivo de
determinadas espécies da flora, além de ser uma área endêmica de pássaros e de alguns
animais em extinção.5
Os critérios ii6 e iv7 utilizados para a inserção dessa parte da Floresta Amazônica na
Lista dos bens protegidos pela Convenção basearam-se na importância que esse
e plantas serão extintos da Terra com o aumento da temperatura. Na menor das hipóteses, ter-se-ia a extinção de 9%. Esse alerta foi publicado na revista Nature de janeiro de 2004, e é considerado como o maior estudo já realizado sobre o tema. 3 BENCHIMOL, Samuel. Zênite ecológico e nadir econômico-social-análises e propostas para o desenvolvimento sustentável. Manaus: Valer, 2001, p. 72. Um estudo feito pelo professor L.C. Molion, pelo INPE, nos anos 80, avaliou que a Floresta Amazônica teria a capacidade de absorver 25% do total de gás carbônico lançado na atmosfera terrestre. 4 BENCHIMOL, Samuel. Op. cit. p. 72. 5 Dentre os animais em extinção relacionados pelo IBAMA estão o pirarucu(arapaima gigas), peixe-boi(trichechus inunguis) e as duas espécies de botos( Inia sp, Stotalia sp). 6 “ Criterion (ii): The várzea and igapó forests, lakes, rivers, and islands of the proposed and biological formations and demonstrate ongoing ecological processes in the development of
5
ecossistema representa para a manutenção da biodiversidade, uma vez que nele há uma
predominância de floresta densa, associada ao sistema de rios de águas negras,
imprescindível para o equilíbrio efetivo da grande diversidade biológica lá existente.
Patrimônio mundial- espécie do gênero patrimônio comum da humanidade,
categoria afeta à Floresta Amazônica, dá-se sob um regime jurídico diferenciado pelo qual
não é permitido o livre acesso aos Estados, nem exploração conjugada de seus recursos
naturais, muito mais a gestão da área por qualquer outro ente que não aquele que detém a
propriedade do território.
A Floresta Amazônica, como ecossistema, tem em sua gênese a indivisibilidade, o
que equivale dizer, que não obstante haver fronteiras políticas que separam os Estados, o
meio ambiente, pela interdependência que apresenta constitui uma unidade, daí os efeitos
sentidos numa parte do mundo da poluição provocada em território distante. Essa
interdependência é a causa de ter, conjuntamente, toda a humanidade, de adequar-se a um
padrão de desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, a Floresta Amazônica como bem ambiental, e aqui se comunga com
o posicionamento de José Afonso da Silva, é de interesse difuso, ao lado do bem público e
do bem privado,8 mesmo sob aferição no âmbito internacional. Com isso, coloca-se ao lado
dos bens sobre os quais o Estado brasileiro exerce seu poder de regulação, em razão da
soberania territorial que esse detém, ainda que de interesse comum à humanidade.
O sentido para a noção de patrimônio mundial ou patrimônio comum é o de compor
um bem de interesse comum e não de propriedade comum.
terrestrial and freshwater ecosystems. They include a constantly changing and evolving mosaic of river channels, lakes, and landforms. The floating(and constantly moving and changing) mats of vegetation typical of the várzea watercourses include a significant number of endemic species, including the largest array of electric fishes in the world. Anavilhanas contains the second largest archipelago of river islands in the Brazilian Amazon” http://whc.unesco.org/sites/998bis.htm 7 “ Criterion(iv): The expanded property substantially increases the already impressive protection offered by Jaú National Park to the biological diversity, habitats, and endangered species found in the Central Amazon region. The area is one of Endemic Bird Areas of the World, is considered as one of the World Wildlife Fund’s 200 Priority Ecoregion for Conservation, and it is also a Centre of plant Diversity. The expansion of Jaú National Park to include an important sample of Varzea ecosystems, igapó forests, lakes and channels significantly increases the representation of the aquatic biodiversity of the Central Amazon region. Expasion of the site also enhance the protection of key threatened species including giant arapaima fish, the Amazonian manatee, the black caiman, and two species of river dolphin” http://whc.unesco.org/sites/998bis.htm 8SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional.4a. ed., Malheiros: São Paulo, 2003, p. 84
6
A mudança, inclusive, desse vocábulo já vem sendo adotada pelas Nações Unidas
que buscam com essa substituição afastar, de vez, a idéia de que, ao se referir a patrimônio
comum da humanidade, sempre se está tratando de partilha de propriedade ou a um regime
jurídico que submete o bem a uma jurisdição internacional, similar a dos fundos marinhos.
Esse novo enfoque foi consolidado pelas Resoluções nº.43/53, de 1988, nº.44/207.
de 1989, e nº. 45/212, de 1990, da Assembléia Geral das Nações Unidas, que ao apreciar a
questão da mudança climática, identificou-a como de interesse comum da humanidade.9
Para Cançado Trindade essa variação semântica “está inelutavelmente ligada à nova
idéia de ‘commonness’. A noção recém-proposta se inspira em considerações de ordre
public internacional. Aparece como um derivativo do enfoque anterior do ‘patrimônio
comum’, visando mudar a ênfase da partilha de benefícios resultantes da exploração de
riquezas ambientais a uma partilha justa ou eqüitativa das responsabilidades na proteção
ambiental, e a necessárias ações concertadas neste propósito com uma dimensão social e
temporal”.10
Sob o entendimento de patrimônio mundial representar, na verdade, uma referência
a um interesse de ordem pública, tem-se por afastada qualquer possibilidade de retirar o
imperium11 que cada Estado tem sobre os bens naturais, elementos integrantes do seu
território. A concepção trazida pela Convenção para proteção do Patrimônio Mundial é
nesse sentido.
A Floresta Amazônica por ser um bem ambiental tem a natureza de bem de
interesse difuso, portanto, comum, e sua proteção demanda a participação de toda a
humanidade, em razão de que cada um de nós está no lugar de vítima e autor, ainda que em
potencial, da degradação ambiental. Esse apelo feito á humanidade pela Convenção
representa, na verdade, o último recurso contra as ameaças de degradação12 do meio
ambiente, no afã de, envolvendo a todos, poder se alcançar a solução do problema..
9TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Op. cit. p. 217 10 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Op. cit. p., p. 49 11BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1997, p. 123. O autor assevera que: ”A competência jurídica de um Estado inclui liberdades consideráveis a respeito da organização interna e da alienação do território. Este poder geral de governo, administração e disposição constitui o imperium, uma capacidade reconhecida e delineada pelo Direito Internacional”. 12TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Op. cit. p. 227.
7
A integridade dos territórios onde se encontra este bem é assegurada no art. 6º. Da
Convenção relativa à proteção do Patrimônio Mundial.13
A menção feita aqui à soberania refere-se ao poder originário do Estado, que sob o
significado jurídico, vem a representar a supremacia que este detém em seu território para
exercer suas funções de forma exclusiva e plena, livre de qualquer ingerência.
Não obstante os entes estatais, por meio de consentimento, submeterem-se às
normas internacionais, não se pode falar em negação da soberania. É que, apesar de ser
abrandada pelo Direito Internacional, já que todo consenso importa em uma restrição do
exercício pelo estabelecimento de diretivas, há um núcleo irredutível que lhe é conferido
pela dimensão jurídica.14 Esse núcleo, expresso pela plenitude das competências atribuídas
ao Estado, encontra no poder político da unidade estatal seu respaldo, e não no Direito
internacional. É o Direito interno quem confere ao Estado a aptidão de participar das
relações internacionais como atributo da soberania do Estado.
O que não pode ser olvidado nesse momento histórico é que o Direito
Internacional, âmbito no qual tem a soberania seu conteúdo fixado, propicia o respeito a
essa e nela se fundamenta. A soberania, mesmo sob a escolta do Direito, tem uma dimensão
política da qual as relações externas não podem prescindir já que são determinantes
inclusive, para a segurança.
Outro não é o entendimento de Juan Antonio Carrillo Salcedo: “La soberania del Estado como principio constitucional del Derecho internacional trae consigo uno de los rasgos más característicos de este ordenamiento jurídico su relativismo cuya más importante consecuencia jurídica se expresa en la extraordinaria relevância del consetimiento del Estado soberano tanto en la creación como en la aplicación de las normas jurídicas internacionales. Pero el Estado soberano no vive aislado sino inserto en un médio social, la sociedade internacional, y este médio, colectivo y en proceso de institucionalizacion, impone ciertos limites tanto a la soberania estatal como al relativismo del derecho internacional, esto es, a la tendência de los Estados soberanos a determinar unilateral y discricionalmente las normas que les vinculan y el alcance de su obligaciones jurídicas internacionales.”15
13 “Art. 6º.- Respeitando plenamente a soberania dos Estados, em cujo território se situa o patrimônio cultural e natural a que se referem os artigos 1º. e 2º. deste instrumento, e sem prejuízo dos direitos reais previstos pela legislação nacional sobre esse patrimônio, os Estados-parte da presente Convenção reconhecem que constitui patrimônio universal, com a proteção do qual a comunidade internacional tem o dever de cooperar”. 14 SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania del estado y derecho internacional. Madrid: Tecnos, 1969, p. 67. 15 SALCEDO, Juan Antonio Carrilllo. El derecho internacional en un mundo en cambio.1a. ed. Madrid: Tecnos, 1985,, pp. 191-192.
8
Nesse sentido, qualquer referência a patrimônio mundial feita sobre espaço detentor
de soberania territorial revela, irremediavelmente, o interesse comum da humanidade em
ter a área protegida.
Essa concepção é reforçada pela Convenção relativa à proteção do Patrimônio
Mundial quando em suas Diretrizes prevê, a título de sanção, a exclusão16 do bem mundial
de sua Lista no caso de ele perder as características que ocasionaram sua inserção.
Não é qualquer bem natural que pode ser considerado patrimônio mundial, mas
somente aquele que detém um excepcional valor para a humanidade, aferido pelas
condições de integridade. Perdendo o bem natural essa condição, não se justifica mais a
cooperação internacional. Por esse prisma, se realmente a condição de bem mundial
consistisse numa transferência de propriedade, essa não retornaria à condição anterior,
ainda que o bem perdesse suas características,17 salvo consignação expressa.
Com a exclusão do bem da Lista, excluída também está qualquer assistência
internacional, o que vem a indicar uma relação caracterizada pela cooperação, típica do
Direito Internacional contemporâneo, e não pelo apoderamento do bem, supressão do
direito de propriedade ou qualquer cerceamento dos direitos reais. Essa última situação,
caso ocorresse, refletiria um modo de aquisição derivado de território, proibido pela Carta
das Nações Unidas.
Importante frisar que o interesse comum da humanidade, consagrado pela
Organização Internacional, não pode ser confundido com os interesses individuais que
grandes potências expressam quando se trata da Floresta Amazônica. Essa situação não
pertence ao Direito Internacional, senão aos ideais exclusivos de nações, cuja hegemonia é
16 A exclusão do bem da Lista do Patrimônio Mundial pode dar-se em dois momentos. O primeiro quando já participando da Lista perde suas características de valor universal excepcional já que é essa qualidade que o conforma a ser patrimônio mundial. O segundo é quando ainda em processo de reconhecimento, já inscrito o bem natural, perde esse a feição exigida pela Convenção em decorrência da ação do homem para a qual o Estado não se mostrou eficaz na proteção do bem. 16 Essa previsão consta dos Princípios Gerais instituídos pelo Comitê de Patrimônio Mundial, no número 6, item vi que assim dispõe: “ When a property has deteriorated to the extend that is hás lost those characteristics which determined is inclusion in the World Heritage List. It should be placed on the World Heritage in danger List, subsequently the procedure concerning the possible deletion from the List will be apllied. The procedure is set out in paragraphs 46 to 54 below”. 17 Essa previsão consta dos Princípios Gerais instituídos pelo Comitê de Patrimônio Mundial, no número 6, item vi que assim dispõe: “ When a property has deteriorated to the extend that is hás lost those characteristics which determined is inclusion in the World Heritage List. It should be placed on the World Heritage in danger List, subsequently the procedure concerning the possible deletion from the List will be apllied. The procedure is set out in paragraphs 46 to 54 below”.
9
a intenção de seus agentes políticos, e que para isso, muitas vezes, utilizam-se de
neologismos a legitimar intervenções territoriais.
2. Dimensão jurídica da humanidade
As transformações experimentadas nos últimos tempos pelo Direito Internacional,
cuja relação historicamente compõe uma pluralidade de entes estatais, têm determinado o
aparecimento de outros sujeitos de direitos. Pode-se dizer que o Direito Internacional
humanizou-se e socializou-se, estreitando as distâncias entre os organismos e os povos.
Além do Estado, como sujeito genuíno do Direito Internacional, detentor de plena
capacidade quando soberano, passaram a ser contemplados, nessa condição, o indivíduo e,
em razão da natureza de determinados bens, a humanidade.
A humanidade, no sentido de constituir o gênero humano, foi mencionada pela
primeira vez na Declaração das Nações Unidas sobre a Lua e demais Corpos Celestes
(Resolução 1962). Vê-se, em especial, a partir da Segunda Guerra Mundial, a tendência em
consagrá-la como fundamento de inúmeras normas internacionais, mas em nenhuma
encontra sua significação jurídica.18
Tal ausência tem levado ao entendimento de que as normas que a ela se referem são
expressões mais de uma idéia que de uma realidade do Direito, embora venham exercendo
grande influência para a ultrapassagem da visão dicotômica entre Direito Interno e
Internacional.
A determinação da subjetividade internacional da humanidade, porém, leva
irremediavelmente, à análise de sua personalidade jurídica..
A Teoria Geral do Direito, sob a doutrina de Kelsen, outorga a personalidade
jurídica a um indivíduo quando a sua conduta encontra-se descrita no âmbito material da
norma jurídica, conferindo-lhe direitos e obrigações. Com isso, a vinculação da pessoa à
18 ALTEMIR, Antonio Blanc. El patrimonio común de la humanidad: hacia un régimen jurídico internacional. Barcelona: Bosch, p. 33 O autor assevera que: “Los precedentes a la consideración de la unidad del género humano y de la noción de un derecho de la sociedad humana pueden encontrarse ya en algunos pensadores de la Antigüedad clásica. Sin embargo, el fundamiento histórico del concepto de humanidad y de la concepción universalista del género humano, se encuentra vinculado a los primeros intentos de teorización del derecho internacional que alcanzaría una gran relevancia en la escuela española de Derecho Internacional. Por su parte, GROCIO concibe una sociedad universal regulada por el jus humanae societatis, en su esencia más racional”.
10
norma é condição para ter-se o reconhecimento de um indivíduo como sujeito, cuja noção
deriva exclusivamente da lei. 19
Sob esse enfoque, a humanidade não poderia ter sua condição de sujeito na ordem
internacional reconhecida, em razão da norma dessa esfera não lhe outorgar qualquer
obrigação a poder ser reclamada autonomamente, mas tão somente direitos.
A circunstância de ser beneficiária de uma norma, assim, não teria o poder de lhe
conferir a subjetividade ativa para postular seu cumprimento. Essa doutrina propicia
somente aos Estados, por excelência, a capacidade de figurarem como sujeitos de Direito
Internacional.
Julio A. Barberis, rechaçando em parte a teoria kelseniana, adota a posição de que a
personalidade jurídica, no Direito Internacional, pode ser adquirida com a concessão de
direitos ou obrigações, e não de direitos e obrigações. Menciona, ainda, como o segundo
ponto a ser considerado, a identificação do destinatário da norma, que deve ser aquele que,
embora não esteja mencionado diretamente, faça valer efetivamente o direito ou assuma o
dever imposto.20
Eustathiades, nessa mesma linha, considera que o reconhecimento da pessoa como
sujeito de direito liga-se à teoria da responsabilidade, pela qual deve a pessoa ser “titular de
um direito e poder fazê-lo valer mediante reclamação internacional ou ser titular de um
dever jurídico e ter capacidade de cometer um delito internacional”.21 Por essa teoria, cujo
entendimento tem predominado, o destinatário da norma jurídica deve, na consagração de
direitos sobre um bem, poder reclamá-lo quando de sua violação ou, em se tratando de uma
obrigação, deve ter a capacidade para sofrer diretamente a sanção.
Cançado Trindade sustenta que a noção de humanidade situa-se dentro da discussão
de direitos humanos, que impede de ser ignorada já que: “Assim como o direito, ou a
própria norma jurídica, não opera em um vácuo, a humanidade (mankind, human kind) não
é uma abstração social nem jurídica: compõe-se de coletividades humanas, de todos os
seres humanos de carne e osso, vivendo em sociedades humanas”22
19 KELSEN, Hans.Teoria geral do direito e do estado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 137. “Em considerações jurídicas, estamos interessados no homem apenas na medida em que a sua conduta faça parte do conteúdo da ordem jurídica”. 20 BARBERIS, Julio A.. Los sujetos del derecho internacional actual Madrid:Tecnos, 1984, p. 25 21 Eustathiades apud Júlio A. BARBERIS. Op. cit. p.23. 22 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Op. cit., p. 49.
11
Nas palavras de Antonio Blanc Altemir, “(...) la atribución de características
uniformes a todos los sujetos, se va abriendo paso la idea de que constituye un
planteamiento erróneo el atribuir automáticamente a un ente – que se le reconoce como
sujeto – una serie de derechos y obligaciones por asimilación a un sujeto prototipo, dada la
diversidad de sujetos de derecho existentes en todo sistema jurídico”.23
A relação jurídica posta pelo sistema descentralizado das normas internacionais,
ainda que consignando direitos à humanidade, não lhe consagra a capacidade processual de
reclamá-los, continuando o Estado a ser o protagonista nas relações internacionais pela
justaposição que ocupa. Esse quadro tem sido paulatinamente alterado − de que é exemplo
o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que prevê a
apresentação de petição individual.
A regra, mesmo com o processo de humanização do Direito Internacional que tem
conferido benefícios à humanidade; ainda é pela sua inadmissibilidade na relação jurídica a
qual, para efetivar-se, deve respaldar-se na hipótese da lei prever a defesa direta de seus
direitos.
A própria Convenção de Viena, que prevê, no art. 3, acordos internacionais
celebrados entre Estado e organismos internacionais, não confere qualquer grau de
subjetividade à humanidade, mas tão somente vem a confirmar os valores supremos que lhe
pertence. Sua menção não seria de natureza ténico-jurídica, mas axiológica.
A Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, apesar de
prescrever no item 6 de seu Preâmbulo que “Considerando que determinados bens do
patrimônio cultural e natural são detentores de excepcional interesse, que exige sua
preservação enquanto elemento do patrimônio de toda humanidade”, no item 7 defere à
coletividade internacional, isto é, aos Estados-parte da Convenção a incumbência de
participar do seu processo de proteção.
Por esse dispositivo claramente se vê que a capacidade do exercício do direito não
foi conferida à humanidade, previsão, porém, que não retira dela sua capacidade de gozo.
As normas de Direito Internacional, e, em especial, as normas de Direitos Humanos,
não obstante caminharem para o reconhecimento da humanidade como sujeito de direito,
23 ALTEMIR, Antonio Blanc. Op. cit. p. 39.
12
abandonando o caráter programático do conceito,24 não apresentam conteúdo normativo
que lhe confira subjetividade.
Ao contrário, continuam sendo estabelecidos como sujeito de Direito Internacional
somente os Estados-partes que mediatizam seus próprios interesses.
Entre a humanidade ser ou não sujeito de direito, o certo é que esta sempre
constitui substrato material das normas, quer seja como beneficiária primeira de direitos,
quer seja como força social influente, mesmo que o sujeito de direito continue sendo, por
excelência do Direito Internacional, o Estado.
3.Soberania versus ingerência.
A soberania, como atributo do poder do Estado, mediante a intrínseca relação que a
normatização do meio ambiente internacional vem desenvolvendo, deixa entrever sua
transformação, fato que tem levado a se questionar a sua própria negação.
Há de ser mencionado que a soberania não foi absoluta, inclusive para Bodin, que
reconhece no direito natural e no direito das gentes sua limitação.
Como resultado de um processo sócio-jurídico-político25 em que o Estado passa a
coexistir com outros entes, esta submetida a restrições que diminuem a liberdade de agir e
decidir do ente estatal. A simples inclusão, com efeito, do Estado nas relações
internacionais já demanda restrição ao exercício de seus direitos e liberdades, posto que os
instrumentos do atual Direito Internacional acabam por definir metas a serem adotadas por
todos com o fim de se alcançar um bem comum maior.
A soberania, assim, sob o ponto de vista jurídico do Direito Internacional, não é
sinônimo de supremacia de poder, mas de igualdade. Seria incoerente haver composição de
interesses comuns com a supremacia de todos. O mínimo que não se conseguiria seria a
composição, uma vez que as expectativas individuais impediriam qualquer acordo.
Os Estados contemporâneos, em decorrência dos compromissos assumidos em nível
internacional, passam a ter uma margem menor de discricionariedade para direcionar suas
políticas, além de obrigarem-se a prestações de contas mediante relatório. Destarte, é
24 BLANC, Antonio Altemir. Op. cit. p. 45. 25 REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. 5ª. ed.,São Paulo:Saraiva, 2000, p. 139.
13
somente em razão de serem soberanos que podem livremente submeter-se a essas
limitações.
Resta, ao final a autonomia dos Estados em integrar as relações internacionais,
ainda que esse seja o último caminho. A soberania, assim, firma-se sobre um conceito
dinâmico, acompanhando as transformações sociais.
Com isso, a relativização do seu conceito dá-se para alcançar soluções comuns,
perdendo-se, por um lado, poderes, e, por outro, ganhando-se direitos. Continua a ter,
entretanto, como relevante em sua dimensão jurídica, a igualdade entre os Estados fundada
na regra da não interferência, mas agora para afirmar a responsabilidade de todos. È o que
se chama de soberania solidária.
A Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial é exemplo disso. Depois
de afirmar e reafirmar, em todo o seu texto, o respeito à soberania, inseriu no art. 26 a
exigência do Comitê decidir com o Estado as condições de execução do programa ou
projeto para o fornecimento de assistência internacional, fato que limita a liberdade deste.
Esta situação sugere uma ingerência.26
A questão é saber se qualquer ingerência, como é exemplo a especificada no art.26
da Convenção viola o princípio da não intervenção.
Urge, primeiramente, distinguir a simples influência da intervenção condenável.
Esses dois institutos apresentam um ponto de convergência. Ambos limitam a
liberdade do ente estatal. A distinção aparece, porém, no campo da subjetividade, segundo
Antonio Remiro Brotons.27
Na influência, há a concorrência da vontade autônoma do Estado, que adere à
proposta de Estado ou organismo internacional. A liberdade que deve existir nas relações
internacionais, ainda que em menor escala, prevalece, nessa situação de persuasão,
compatível com o princípio da igualdade soberana e da cooperação dos Estados.
Celso D. de Albuquerque Mello observa que “qualquer relacionamento entre dois
Estados acaba por produzir a interferência do mais forte nos assuntos do mais fraco”.28
26 Silva e Accioly conceituam intervenção como a “ingerência de um Estado nos negócios peculiares, internos ou externos, de outro Estado soberano com o fim de impor a este a sua vontade”. Mas defendem a idéia que, para efeitos da Carta da ONU, somente constituiria intervenção aquela processada na esfera de assuntos internos dos Estados. SILVA, G. E. Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando.Op. cit. p. 130. 27 BROTONS, Antonio Remiro. Op. cit. p. 91. 28 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op. cit., p.494.
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Considera, ainda, ser difícil falar em intervenção em assuntos externos, uma vez que é
ínsito às relações internacionais essa influência.
A intervenção condenável, não admitida pelo Direito, exige, além do uso da força
armada, a busca de um elemento intencional que não se apreende facilmente. Conforme
argumenta Antonio Remiro Brotons, há nesse campo “um propósito determinado, o de
coagir, o de atuar por via de autoridade para forçar um Estado a subordinar o exercício de
seus direitos soberanos aos interesses de outro ou a conceder vantagens de qualquer classe,
é o que transforma a utilização de determinadas medidas políticas ou econômicas,
competência discricionária do Estado, em atos de intervenção”.29
Pelo nível de integração que os países hoje detêm, a força armada é dispensável
como elemento de coação perante a possibilidade de submeter um Estado à exclusiva
atividade do outro.30 Essas situações reduzem a dimensão jurídica do princípio da não-
intervenção e, por corolário, o da soberania.
O dispositivo supracitado da Convenção, não obstante encontrar-se numa esfera de
influência, já que as condições de execução de projetos são decididas em comum acordo
para o qual é imprescindível o assentimento do Estado, dá-se num âmbito de poder que
pode maximizar a capacidade interventora do organismo internacional, condicionando
inclusive a prestação de assistência internacional.
Seu conteúdo normativo, entretanto, está dentro da proposta de um Direito
Internacional de Cooperação, que não se restringe mais a delimitar soberanias estatais,
como teve por fim o Direito Internacional clássico, denominado também de Direito da
Coexistência.
O Direito Internacional contemporâneo, chamado de Direito da Cooperação,
compõe-se de regras que correspondem a uma homogeneidade de valores e que consolidem
os interesses comuns dos Estados, acima de divergências ideológicas, políticas, econômicas
e sociais.31
29 BROTONS, Antonio Remiro. Op. cit. p. 91.(tradução livre da autora). 30 SILVA, G. E. Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando.Op. cit. p. 131. As medidas podem assumir as formas mais diferenciadas, enumeradas pelos autores como “diplomática (oficial ou oficiosa) ou armada; direta (positiva) ou indireta (negativa); individual ou coletiva; clara (aberta) ou oculta (dissimulada; política ou não política (como no caso de medidas econômicas abusivas, tarifas alfandegárias excessivas, interrupção das comunicações etc.)”. 31 SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. cit. p. 191.
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Não pode ser olvidado, nesse momento, que o Estado soberano detém obrigações
para com os outros Estados. A esse dever consagra o Direito Internacional a presunção de o
Estado ter os meios necessários para cumpri-los. Em se tratando do meio ambiente, o dever
abrange a sua utilização de forma sustentável.
Juridicamente, entretanto, é possível que um Estado que se sinta prejudicado no
direito a usufruir de um meio ambiente sadio, nos limites da legalidade que impõe o Direito
Internacional, reaja ao se sentir sua violação. A reação pode revelar-se, no entendimento de
José Manuel Pureza, como “simples actos de retorsão, seja em contra-medidas ou
represálias que, não obstante, em si mesmas, constituírem violações de obrigações
internacionais, vêem essa ilicitude excluída em virtude de serem reacções autorizadas pelo
próprio Direito internacional (...)”.32
A possibilidade de uma intervenção direta e armada de um Estado em território de
outro Estado é, totalmente, descartada pelo Direito Internacional, uma vez que configura
violação à soberania dos Estados e fere a autodeterminação dos povos. Tal prática não é
mais tolerada pelo Direito Internacional e foi banida, juridicamente, pelo Tribunal
Internacional de Justiça, quando, ao analisar a questão do Estreito de Corfú, em 9 de abril
de 1949, sedimentou a concepção de não existir intervenção lícita por parte de Estados,
situação que, no passado, deu azo a uma política de força dos países poderosos e que
historicamente configurou graves abusos, levando a “falsear a administração da Justiça
internacional”,33 uma vez que foi utilizada mais para satisfazer interesses individuais de
Estado que o bem comum da humanidade. A Carta das Nações Unidas proíbe-a no seu art.
2, parágrafo 4º
Não obstante, com esse dispositivo, o monopólio da força deixar de ser competência
dos Estados,34 não tem revelado o poder necessário para impedir que unidades estatais
façam dela uso e promovam seus interesses das mais diversas naturezas, muitas vezes sob
aparência de estarem defendendo direitos da humanidade.
32 PUREZA, José Manuel. O patrimônio comum da humanidade: rumo a um direito internacional da solidariedade/Porto: Afrontamento, 1998, p. 83. 33 SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania del estado y derecho internaiconal.Madrid: Tecnos,1969. pp. 83-84. 34 SALCEDO, Juan Antonio Carrillo.El derecho internacional en un mundo en cambio.1ª. ed., Madrid: Tecnos, p.187
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A intervenção por organismo internacional é possível de ser feita, quando o Estado
envolvido aceite tal medida.35 A licitude da intervenção é, entretanto, afastada na medida
em que atinja assuntos que se encontrem essencialmente sob a jurisdição dos Estados.36 É o
que prescreve o item 7 do art. 2º da Carta das Nações Unidas.
A Declaração relativa aos Princípios de Direito Internacional no mesmo sentido
proclama o “princípio relativo à obrigação de não intervir nos assuntos que são de
jurisdição interna dos Estados, de conformidade com a Carta”.
Os assuntos que integram o domínio reservado dos Estados, portanto, por esses dois
instrumentos são aqueles que essencialmente pertençam a sua jurisdição.
A vagueza que o termo essencialmente apresenta tem sido aclarada pelo Direito
Internacional, posto que é nessa esfera que se tem a delimitação da soberania. Conforme
afirma José Manuel Pureza, tem sido feita menção não no sentido de expressar o
significado de normalmente, mas o sentido de em princípio.
Nesse contexto, “não há assuntos internos por natureza, mas matérias que, por mais
tradicionalmente subtraídas que estejam ao conhecimento e à acção de outros Estados e
organizações internacionais, até pela sua interioridade no Estado, podem , no entanto, a
qualquer momento, ser objeto de um compromisso internacional do Estado, que assim
consente na extinção da intimidade dessas áreas”37
Domínio reservado, com efeito, fica difícil de ser conceituado ante as exigências e
necessidades da humanidade. Há, contudo, a proposta feita pelo Direito Internacional de
dois critérios distintos para identificá-lo.
35 SILVA, G. E. Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando. Op. cit. p.131. “Teoricamente, não existe intervenção quando uma ação coletiva decorre de compromisso assumido formalmente em tratado multilateral, como a Carta das Nações Unidas, que dá ao Conselho de Segurança poderes para adotar medidas destinadas a manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.” 36 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op. cit. pp. 494-495. “É de se assinalar que a intervenção coletiva empreendida sob os auspícios da ONU não possui a ilicitude da intervenção que aqui estamos tratando. Ela é encarada como uma ação de política internacional visando a manutenção da paz e da segurança internacionais. Este tipo de intervenção é feito no interesse da sociedade internacional e não no interesse egoístico de um ou vários Estados. Todavia a própria Carta da ONU assinala que ela não será feita nos assuntos da jurisdição doméstica dos Estados.” 37 PUREZA, José Manuel.Op. cit,, p. 76.
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O primeiro, de natureza objetiva, é aquele que identifica o domínio reservado com
a essência de determinada competência, que, por natureza constitucional, afigura-se da
alçada íntima do Estado, como é exemplo a forma de Estado a ser adotada por um povo.38
O segundo critério, de natureza político-jurídica, é o que se refere à densidade das
obrigações internacionais assumidas pelo Estado, que, a depender da relevância do assunto
para a ordem internacional, tem alterada a caracterização do âmbito do domínio reservado
do Estado. Por excelência, portanto, não haveria o domínio reservado.39
A prevalência do segundo critério nas relações internacionais tem levado inúmeras
questões a serem normatizadas nesse âmbito. Tudo, portanto, irá depender das necessidades
que o momento histórico apresentar.
A evolução normativa que se opera tem impingido a erosão do conceito clássico da
soberania e da não-intervenção, e tem reduzido a esfera do domínio reservado do Estado,
em razão do universo indivisível que o meio ambiente representa.
É essa unidade que tem legitimado a consagração da Floresta Amazônica como
patrimônio mundial. Essa figura jurídica, entretanto, não é sinônimo de transferência de
propriedade, como muitos interpretam.
A declaração de parte da Floresta Amazônica como patrimônio mundial deve,
perante a natureza preservacionista, ser estendida a todo esse ecossistema. Esse seria um
caminho a mais para se exigir a responsabilidade do Governo brasileiro e da sociedade em
geral com a proteção dessa área. Tal fato não impediria o manejo sustentável dos recursos
naturais, mas, de certo, obrigaria a todos antecipadamente, ao planejar sua utilização,
iniciar pelo Direito Ambiental e não pelo Direito Econômico. Em outras palavras, seria
pensar no desenvolvimento a partir do meio ambiente, e não o contrário − como se pratica
hoje.
38 MELLO, Celso D. de Albuquerque (Coord.) A soberania através da história. Anuário: Direito e Globalização 1, A soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999p. 16. Esse critério “foi consagrado pela reserva nº 4 apresentada pelo senador Lodge ao pacto da Liga das Nações, afirmando que os EUA poderiam declarar livremente os assuntos pertencentes à sua jurisdição doméstica”. 39 O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, no Parecer 1923, assim se manifestou: “A questão de saber se uma dada matéria entra ou não no domínio exclusivo de um Estado é uma questão essencialmente relativa: depende do desenvolvimento das relações internacionais (...); numa matéria que, como a da nacionalidade, não é em princípio regulada pelo Direito Internacional, a liberdade de disposição do estado fica, no entanto, limitada por compromissos por ele assumidos para com outros estados. Neste caso, a competência do estado, exclusiva em princípio, é limitada por regras de Direito Internacional”.
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Há de se esclarecer e ressaltar que a proteção internacional, mesmo abrangendo
parte do território brasileiro, não retira do País a competência de protegê-la. Nesse plano,
apesar da proteção da Floresta Amazônica não se encontrar mais sob normas
exclusivamente nacionais, o feixe de competência interna do Estado sobre o qual nenhum
outro pode tomar para si nem substituí-lo nesse mister, ainda prevalece e firma a soberania.
Pode ser dito, assim, que a tipicidade que a soberania hoje alcança está na autonomia que o
Estado tem, ante os compromissos internacionais assumidos, em decidir a forma de exercer
suas funções, tendo em vista a meta a ser atingida. O Brasil, tem o compromisso de, no
mínimo, reduzir, a devastação da Floresta Amazônica. Essa é a meta, e o caminho para
alcançá-la é decisão do País.
Em caso de não-cumprimento dessa obrigação pelo País cabe-lhe ser
responsabilizado em nível internacional. Essa é a única forma de se apurar o excesso ou a
falta de ação de um Estado na realização da competência que internamente detém, jamais,
porém, tomar conta do seu território ante a sua ineficiência.
Isso se dá, porque as obrigações que o Direito Internacional concebe aos Estados,
segundo Carrillo Salcedo, estão no nível de obrigações de vigilância e de comportamento e
não de resultado. O Direito Internacional não tem o poder de impor ao Estado soberano
mais que a obrigação de prevenir e sancionar os atos ilícitos praticados em seu território, e
a extensão dessa obrigação é medida por aquilo que razoavelmente cabe esperar como
conduta de um Estado normalmente organizado.40
A consagração histórica do Direito internacional como instrumento para se alcançar
a paz, o desenvolvimento, a preservação ecológica do planeta, a felicidade dos homens,
enfim, não comporta, na sua essência, a dominação de nações inteiras, mas envolve o
cumprimento efetivo dos compromissos assumidos.
A utilização dos recursos naturais constitui ainda assunto privado dos Estados,
sacramentado pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 1º, item 2), pelo
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art.1º, item 2), pela
Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente (item 21), pela Declaração do Rio de
Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (princípio 2), como medida protetiva
adotada pela ONU aos países menos desenvolvidos. 40SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania del estado y derecho internacional.Madrid: Tecnos,1969, p. 70.
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Por isso, a previsão de as Nações Unidas intervirem diretamente para manter a paz e
a segurança internacionais não compreende ainda essa causa. Cabe a todos, mediante essa
possibilidade, reforçar a consciência de que o mundo é um só, que o meio ambiente é uma
unidade, que os compromissos nacionais e internacionais têm de ser cumpridos ainda que à
custa de menos enriquecimento.
Considerações finais
Ao final da exposição desenvolvida, as seguintes conclusões são apontadas:
1. Em que pese a possibilidade de um futuro promissor protagonizado pela Floresta
Amazônica, seus recursos são esgotáveis, seu ecossistema é frágil, e os efeitos causados por
uma descontrolada utilização são projetados em todo o planeta, em razão da unidade que o
meio ambiente apresenta.
2. A consideração da Floresta Amazônica como um patrimônio mundial pela Convenção
para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural não converte os bens
pertencentes ao território brasileiro em patrimônio coletivo, devido à referência feita à
humanidade, expressão que deve ser entendida como o interesse comum da humanidade em
proteger para usufruir um meio ambiente sadio.
3. O instituto do patrimônio mundial, no plano normativo vem, na verdade, emprestar força
à Constituição Federal, para garantir o direito humano fundamental a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. No plano hermenêutico, apresenta-se como um sistema
especial de proteção ao meio ambiente, cuja obrigação de natureza objetiva repele o
princípio da reciprocidade entre os Estados, devendo, pois, o País cumprir com as
obrigações assumidas, ainda que outros Estados não o façam.
4. O compartilhamento dessas responsabilidades exige uma releitura do conceito clássico
de soberania, o qual terá de ser ajustado aos interesses relevantes da humanidade. Esse
ajustamento, entretanto, não comporta juridicamente intervenção direta de Estado ou de
organismo internacional em território onde se localize o bem ambiental.
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