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Francisco Lucas da Silva

A Natureza me Disse

Francisco Lucas da Silva

A Natureza me Disse

Organizao Maria da Conceio de Almeida Paula Vanina Cencig

Coleo Metamorfose, vol. 4

Flecha doTempo Natal, 2007

Copyright Francisco Lucas da Silva e as Organizadoras, 2007 GRECOM Grupo de Estudos da Complexidade Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Cincias Sociais Aplicadas Programa de Ps-Graduao em Educao www.ufrn.br/grecom Coordenador da Coleo Metamorfose: Maria da Conceio de Almeida Editor: Iran Abreu Mendes Preparao dos originais: Paula Vanina Cencig e Carlos Aldemir Farias Reviso de texto: Margarida Maria Knobbe Diagramao e Arte Final: Carlos Aldemir Farias e Waldelino Duarte Capa:Waldelino Duarte Fotos: Paula Vanina Cencig Foto da Capa: Arquivo Grecom Impresso e Acabamento: Offset Grfica e Editora Ltda. Editora Flecha do Tempo [email protected] .com.br

Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Diviso de Servios Tcnicos Silva, Francisco Lucas da. A natureza me disse / Francisco Lucas da Silva; Organizao Maria da Conceio de Almeida e Paula Vanina

Cencig. Natal: Flecha do Tempo, 2007. 65 p. il. - (Coleo Metamorfose - v. 4) ISBN 978-85-906080-4-2 1. Cincia. 2. Saberes da tradio. 3. Ecologia. 4. Botnica. 5. Pesca. I. Ttulo. II. Almeida, Maria da Conceio de. IILCencig, Paula Vanina. RN/BS/CCSA 398.2 CDU

Todos os direitos desta edio so reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora e das Organizadoras.

Sumrio

Apresentao - Para pensar bem, 9 Prefcio - Aprendendo com Chico Lucas, 19 Frases-guia, 21 Leitura do lugar, 25 Leitura de si e de seu mundo, 27 Leitura da vegetao, 34 Leitura da fauna , 38 Leitura de fenmenos fsicos, 41 Leitura da farmcia da natureza, 44 Leitura da pesca, 47

Apresentao Para pensar bem Onde est o conhecimento que perdemos na informao? Onde est a sabedoria que perdemos no conhecimento? T. 5. Eliot Informao, conhecimento, sabedoria. Essas trs palavras so usadas apressadamente como se fossem sinnimas, como se significassem a mesma coisa. Mas preciso, por um lado, distingui-las; por outro, compreender que da metamorfose da primeira na segunda e da segunda na terceira depende, em grande parte, saber pensar bem para enfrentar e conviver com os enormes problemas e desafios colocados hoje nos nveis locais e globais. Podemos dispor de informaes e no construir conhecimento algum. Um computador acumula milhes de informaes e dados sobre diversos temas e fenmenos, e nem por isso produz conhecimento. Estocagem de informao no conhecimento, por isso usamos a expresso 'banco de dados'. Melhor seria usar a expresso 'ba de dados' para nos afastarmos um pouco do sentido da sociedade capitalista, bancria, mercantil. Mas como falamos em banco de dados, o problema o que fazemos com as informaes estocadas. s vezes no fazemos muita coisa e nos limitamos a anunci-las em profuso, sem estabelecer nenhuma relao entre elas. Podemos ser proprietrios de um grande banco de dados; ser possuidores de muitas e valiosas informaes e, mesmo assim, no construir conhecimento. Os contedos transmitidos nas escolas e universidades funcionam muitas vezes assim. So repassados muitos contedos, muitas informaes, porm os alunos no so instigados a pensar sobre eles. O sistema educacional se torna, assim, um mercado de informaes e forma alunos-bancos-de-dados. Mesmo com a cabea cheia de informaes eles no sabem como articular tantos e to importantes dados. nesse sentido que Edgar Morin diz: melhor ter uma cabea bem-feita do que cheia de informaes.

Para conhecer preciso selecionar informaes, eleger algumas como mais importantes, articul-las entre si, imputar significados a elas. Conhecimento tratamento de informaes. o resultado de uma ao e de um trabalho ao mesmo tempo rduo e prazeroso do pensamento para estabelecer elos entre os dados, observar aproximaes e afastamentos, procurar encaixes entre indcios e sinais que reconhecemos como informaes sobre um fenmeno, um problema, um tema. Conhecimento manipulao cognitiva, trabalho artesanal do pensamento, como se o pensamento tivesse mos para dar forma ao que vemos, ouvimos, sentimos, tocamos, apreciamos. Essa manipulao das informaes para construir conhecimento se assemelha ao trabalho do oleiro que, com suas mos, d forma ao barro que se torna pote, panela ou telha. A analogia entre o pensamento e o oleiro permite dizer tambm que informaes e barro so

matrias brutas a serem lapidadas pelos dois artesos - o arteso do pensamento e o arteso do tijolo e da telha. Da porque podemos ampliar, com justa medida, a compreenso do que seja um intelectual. Intelectual no sinnimo de cientista ou acadmico. Intelectual , mais propriamente, aquele que faz da tarefa de transformar informaes em conhecimento uma prtica sistemtica, permanente, cotidiana. aquele que se esmera em manter viva a curiosidade sobre o mundo sua volta; aquele que observa as vrias faces do mesmo fenmeno, as informaes novas, contraditrias e complementares; aquele que apura o olhar; aquele que no se contenta com uma s interpretao, nem se limita a repetir o que j disseram. O intelectual aquele que manipula, constantemente a mesma interpretao, inserindo-a num campo maior, observando suas transformaes, dialogando com ela, pensando sobre ela em outros contextos prximos e distantes. O intelectual um artista do pensamento, porque d forma a um conjunto de dados, aparentemente sem sentido e desconexo. Onde quer que se opere essa complexa arte do pensamento a est em ao um intelectual. Por isso, podemos falar em intelectuais da tradio. Eles so os artistas do pensamento que, distantes dos bancos escolares e universidades, desenvolvem a arte de ouvir e ler a natureza sua volta. E a sabedoria? Todos os que transformam informao em conhecimento constroem sabedoria? No! Sabedoria no o mesmo que conhecimento. O sculo 21 tem sido chamado de sculo da informao e fala-se muito hoje em sociedade do conhecimento. Vivemos, verdade, em meio a um bombardeio de informaes, consolidamos muito conhecimento, mas temos nossa disposio um banco de sabedoria? Pode at ser que sabedoria seja um tipo, uma forma especial ou um determinado modo de ser do conhecimento, mas nem todo conhecimento se expressa ou se expande numa sabedoria. Ela parece ser mais um jeito de viver e sentir do pensamento; uma maneira de falar do mundo que associa simplicidade e sentimento de parentesco, coragem e afeto, vontade de verdade e conscincia da incompletude e do erro. Sendo maior, mais plena, mais essencial e duradoura, a sabedoria no se reduz a um conjunto de conhecimentos. A sabedoria como o lodo que mantm viva uma lagoa; o que sobrevive em meio superpopulao das idias, dos conceitos, das informaes. Quando dizemos que 'somos um dos fios da teia da vida', quando assumimos para ns prprios a idia de' que vida uma teia, estamos anunciando e vivendo uma sabedoria, porque as teorias podem mudar, informaes novas podem aparecer, mas apesar dessas mudanas podemos continuar dizendo 'a vida uma teia de muitos fios e ns somos um desses fios'. O conhecimento se transforma, porm a sabedoria fica porque fala do essencial e permanente que se desdobra nos fenmenos, no particular, no fugaz, no instantneo. Um dos grandes desafios do nosso sculo saber ler bem um mundo imerso na incerteza. saber escolher e tratar informaes; transformar informaes em 'conhecimento pertinente' (aquele que est inserido num contexto, como ensina Edgar Morin); exercitar, aprender e ensinar

uma 'ecologia das idias e da ao'; compreender sabedorias antigas, que nem por isso esto mortas, porque ainda falam do essencial que permanece; facilitar a emergncia de novas sabedorias. Saber ler bem o mundo de hoje fazer uso de nossa inteligncia geral to adormecida pelos conhecimentos especializados e pela fragmentao do conhecimento; remodelar o nosso 'pensamento quadrado' para fazer renascer um pensar redondo ainda to vivo em algumas culturas, como fala o educador indgena Daniel Mundurucu. Saber pensar bem no sculo 21 fazer do pensamento uma teia tecida de muitos conhecimentos, compreenderem o que eles tm de complementar entre si, de essencial. Para pensar bem necessrio saber ler bem o mundo nossa volta. Mas existe, no final das contas, uma leitura nota dez? Haver uma medida, um critrio, um mtodo, uma condio de ler perfeitamente os fenmenos do mundo? No! O conhecimento sempre parcial e provisrio, como mostram as cincias da complexidade e o prprio Chico Lucas na terceira frase-guia do texto que abre o seu livro. Entretanto, se no h uma leitura perfeita, absolutamente irretocvel e para sempre verdadeira, h, pelo menos, leituras mais prximas e leituras mais distantes do modo de ser das coisas, de sua dinmica e transformao. Sem nenhuma pretenso de desmerecer a cincia, e mesmo reconhecendo seus avanos e progressos, oportuno proceder a uma autocrtica desse modo de conhecer. Uma autocrtica sensata e corajosa da cincia mecanicista inclui pensar uma nova postura em relao a pelo menos duas questes: a excessiva generalizao e o distanciamento das linguagens primeiras. Sobre a excessiva generalizao, temos caminhado por um caminho promissor. Cada dia mais pesquisas, em vrias reas do conhecimento, demonstram a variabilidade e a diversidade de fenmenos e dinmicas do mundo vivo e no - vivo. Quanto ao distanciamento das linguagens primeiras, parece que o caminho no alimenta muita esperana. E isso porque, regra geral, estamos to firmados no solo das pesquisas e experincias dos outros; to e to fortemente apegados a conceitos e categorias explicativas j consagradas que, de bom grado, substitumos as coisas pelos conceitos, as nossas prprias experincias pelas experincias dos outros. Em relao s cincias da natureza e da Terra, tal distanciamento no se resolve unicamente com aulas de campo to importantes e constantes em cursos como os de Geografia, Ecologia e Geologia. Isso porque, com a excessiva urbanizao - que inclui a urbanizao do conhecimento fomos o aos poucos sendo arrancados da Terra e do ecossistema seja de forma real ou metafrica. Tornamos-nos mopes e surdos diante das linguagens primeiras codificadas pelos animais, plantas, guas, ventos e pedras. Alm de no 'ouvir' essas linguagens, e por causa disso mesmo, no percebemos, nas aulas de campo' aquilo que Gregory Bateson chamou de "padro que interliga" as coisas, os fenmenos e os ecossistemas. No livro "As Linguagens Secretas da Natureza: a comunicao nos animais e nas plantas", Jean-Marie Pelt demonstra, com detalhes, outras

linguagens que precedem a comunicao das palavras e ajuda a reduzir nossa surdez em relao ao que excede ao propriamente humano. Bem vistas as coisas, e a partir de uma concepo mais ampliada de conhecimento - que inclui a decodificao de informaes pelo domnio do vivo em geral -, podemos falar de trs nveis de conhecimento. O primeiro operado por sistemas vivos e seres mais difusamente imersos na natureza: as plantas, os microorganismos, os insetos etc. Eles recebem e decodificam, sua maneira, informaes sobre situaes adversas e situaes favorveis. A partir da engendram comportamentos em grande parte padronizados, mas tambm, mesmo que em menor escala, comportamentos novos. Como acontece a um cientista, esses seres tambm se equivocam, lem erradas as informaes: esse o caso, por exemplo, do sapo que l uma chuva isolada como se fosse o incio do inverno, como mostra Chico Lucas. Esse primeiro nvel de conhecimento, ou seja, primeiro nvel de leitura do mundo, absolutamente mais prximo da natureza do que a releitura ou sobre leitura que possamos fazer a partir dele. claro que essa primeira leitura exponencialmente menos complexa do que a leitura feita por um humano, esse ser da imaginao e da palavra, que cria e multiplica sentidos, duplica a realidade, conta sua histria, percebe e corrige os seus erros, projeta futuros. O nico ser vivo que diz Era uma vez... Mesmo assim, temos que considerar a existncia de um primeiro nvel ou escala de leitura do mundo anterior do homem, mais organicamente ligada aos ambientes e expressa pelas linguagens de decodificao de informaes nos domnios vegetais e animais. O segundo e o terceiro nveis de conhecimentos dizem respeito aos saberes propriamente humanos. Um deles, o segundo, opera por meio de uma escala de proximidade maior com o meio ambiente natural: aqui esto as construes de conhecimentos das populaes tradicionais, dos intelectuais da tradio, das sabedorias edificadas longe dos bancos escolares e da educao formal. Por conviver com intimidade com outros sistemas leitores do mundo, por desenvolver uma escuta e uma viso apuradas dos fenmenos fsicos, do comportamento dos animais e plantas e das dinmicas climticas, os intelectuais da tradio parecem perceber com mais facilidade e nitidez a dialgica entre a diversidade da natureza e a unidade do padro que interliga'. O aprimoramento sofisticado do raciocnio analgico permite uma compreenso mais complexa do que seja o prprio processo de produo de conhecimento na cultura humana, uma vez que reconhece um padro de anterioridade presente na natureza. Parece ser disso que fala Chico Lucas na segunda frase-guia deste livro. O terceiro nvel de conhecimento se realiza por meio de uma escala de afastamento maior em relao aos 'objetos' que pretende conhecer, dos quais fala aos quais imputa sentido e edifica interpretaes: aqui est o conhecimento cientfico, a cincia. As pesquisas de laboratrio com ratos, a simulao de ambientes naturais' para observar o comportamento social e sexual dos sagis,

tanto quanto dezenas de outras experincias programadas e controladas nas reas da Zoologia, Botnica e Etologia demonstram, talvez, o esforo da cincia para minimizar seu dficit em relao a uma leitura mais prxima do laboratrio natural da vida e do mundo. Orientada pelo afastamento dos fenmenos in vivo - pela prpria contingncia de sua estratgia operativa urbana de produo, consolidao e transmisso de conhecimento -, a cincia se aprisiona, parcialmente, em uma rede de informaes cristalizadas e distorcidas, por fora de categorias e mtodos dissonantes com a dinmica das transformaes da natureza e dos fenmenos. Esses dois ltimos nveis de conhecimento do mundo-exemplificados aqui pelo conhecimento cientfico e pelos saberes da tradio - no correspondem a nveis superiores e inferiores de conhecer. Eles expressam, de fato, graus e escalas de afastamento da leitura do mundo. Nas palavras de Lvi-Strauss, esses dois modos de conhecer operam por estratgias distintas: um prximo da lgica do sensvel, outro afastado dessa lgica. Os dois, no entanto, demonstram igualmente a universalidade do pensamento humano que, diante das coisas, articula sempre as mesmas operaes construdas ao longo da histria da nossa espcie: identificar, distinguir, relacionar, hierarquizar, opor, construir conjuntos significantes. Fazer dialogar essas duas estratgias de pensar a natureza (que inclui o prprio homem, bom lembrar) reduz a escala de distanciamento da cincia em relao aos fenmenos; permite exercitar uma escuta mais apurada de outras linguagens que no se reduzem linguagem das palavras; ajuda a reorganizar em patamares mais complexos os conhecimentos que dispomos para pensar melhor o novo sculo e seus desafios. O encontro entre cincia e saberes da tradio , portanto, urgente e inadivel. Mesmo que pensemos por estratgias distintas, mesmo que compreendamos um mesmo fenmeno deforma diferente e, por isso mesmo, precisamos dialogar e procurar os campos de vizinhana entre esses modos de conhecer. Nas palavras de Chico Lucas, falar de nossas interpretaes divergentes importante porque "tudo ganho em conhecimento". O quarto volume da Coleo Metamorfose caminha nessa direo. Tem em vista este horizonte. Quer ser mais uma pea no jogo de quebra-cabea para construir um conhecimento que dialoga, de perto, com as coisas do mundo, com a natureza. A natureza me disse apresenta um conjunto de conhecimentos sistematizados por Francisco Lucas da Silva ao longo de uma vida de trabalho rduo, mas que lhe d muito prazer e alegria. Ele confessa que gosta do que faz, gosta de onde vive. "A Lagoa do Piat o melhor lugar do mundo" tem repetido ele, muitas vezes, ao longo dos vinte anos de 'conversas sem fim', uma expresso que bem pode se tornar sinnimo da pesquisa que mantm os laos entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Lagoa do Piat, em Assu-RN. Portador de uma inteligncia e curiosidade de fazer inveja a qualquer cientista, Chico Lucas

j fez de quase tudo como se pode ler na sua autobiografia. Capaz de tocar sete instrumentos, se tivesse freqentado um conservatrio de msica, ele parece mais uma orquestra inteira. Com a mesma destreza que usa de uma fora enorme para descolar das margens da lagoa seu barco cheio de gente, ele constri, tambm, argumentos e interpretaes que expressam a beleza de um pensamento cuidadoso, desafiador, atento e muito vivo. Para Chico, tudo o que ele sabe se deve aos ensinamentos de seu pai, sua curiosidade e, sobretudo, escuta atenta da natureza - da o ttulo do seu livro. Os vrios temas dos quais trata este livro foram escolhidos e organizados por Paula Vanina e eu, e dizem respeito s inmeras entrevistas e conversas com o autor. So narrativas gravadas por mim desde 1989, quando o conheci; so saberes que ele exps ao socilogo Srgio Moraes e ao bilogo Wyllys Farkatt como contribuio substantiva para suas teses de doutorado, desenvolvidas no espao vivo do Grecom e na Ps-Graduao em Educao da UFRN; so anotaes e transcries de gravaes em mp3 e DVD feitas recentemente por Silmara Marton, Paula Vanina e Samir Cristino de Souza. As fotos que aparecem ao final do livro so de Paula Vanina, com exceo de duas feitas por Wyllys Farkatt, uma por Ednalda Soares e duas cedidas pelo prprio autor (uma foto com sua esposa e outra do artista quando jovem). Para que este livro chegasse a uma boa resoluo contamos, ao final, com trs importantes presenas - a do sempre amigo e cmplice Carlos Aldemir Farias, pesquisador do Grecom, que comigo e Iran Abreu Mendes tornou realidade o sonho da Coleo Metamorfose; a da igualmente greconiana Margarida Knobbe, sem os olhos de quem nada se torna pblico no Grecom: ela meu pantipo afetivo; e tambm Waldelino Duarte que editou, com mos de artista, estas pginas. Por fim, mas igualmente importante agradecemos o toque essencial, em forma de financiamento, do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRN por meio do convnio com a UESB. Para garantir a originalidade e a autoria mexemos muito pouco nos fragmentos que, juntos, compem uma unidade aberta, sem costura fina, sem a preocupao de encaixe total e perfeito. Os fragmentos de saberes aqui transcritos no correspondem totalidade dos conhecimentos de Chico Lucas. Muita coisa ficou ausente, como suas pesquisas arqueolgicas e geolgicas que lhe permitem construir hipteses importantes sobre o passado longnquo da regio do Piat e do municpio de Assu. Entretanto, o conjunto de informaes, conhecimentos e sabedorias que fez nascer o livro A natureza me disse demonstra as estratgias de um pensamento implicado no mundo, prximo da natureza, to singelo e fortemente expresso aqui pelo autor. Fao agora uma confisso. Entre os alimentos intelectuais- afetivos que mantm vivo, em mim, o sonho de educar para um mundo onde todos sejam um pouco mais felizes, esto as idias de Edgar Morin, Edgard de Assis Carvalho, Teresa Vergani, Willington Germano e Chico Lucas. Para expressar isso, fao minhas as palavras de Teresa Vergani em um dos seus livros, se referindo ao

Sol, e que aqui dirijo ao Chico Lucas:"Acredito que suas centelhas, to incandescentes quanto perturbadoras, podero vivificar hoje o terreno humano onde se geram as referncias do nosso pensar e os rumos do nosso querer, a renovao do nosso sentir ou dos nossos cotidianos modos de fazer". Este livro est se tornando pblico, ganhando vida e vendo a luz do Sol num momento importante de uma pesquisa que completa vinte e um anos, data de sua maioridade. Ele nasce junto com a inaugurao da Casa da Memria do Piat Chico Lucas, sonho acalentado pacientemente por mim e tornado possvel graas a inmeros amigos que contriburam para a sua edificao. Dois nascimentos, portanto: o da casa e o do livro. Para que esses irmos gmeos vivam em um clima ameno vamos esperar pela sombra de algumas rvores: uma mangueira plantada por Z Wilson, e trs coqueiros, um deles doado por Joo Bosco. Tomara que este LIVRO chegue s escolas e universidades. Tomara que eclogos, gelogos, antroplogos, socilogos, filsofos e educadores tenham a abertura e a sensibilidade para ler, refletir e discutir com seus alunos esses saberes construdos e lapidados por Chico Lucas. Tomara que outros intelectuais da tradio se sintam encorajados a sistematizar e expor seus conhecimentos para as futuras geraes. Se assim for, estaremos reativando, pelo menos em parte, o dialogo da cincia com a natureza, do qual falou llya Prigogine. Tomara que a CASA, aquela casa, se torne um lugar de acolhimento, de amizade, de conversa sem fim; um lugar para os professores da Lagoa se alimentarem de uma 'ecologia das idias', como sonham Wani Pereira, Iran Mendes e Samir Cristino. Tomara que a Casa da Memria Chico Lucas se torne um lugar para onde afluam as pessoas que gostam e respeitam a Lagoa do Piat e sua gente. Tomara que este livro e seu autor tenham vida longa! Ceia Almeida Natal/ Lagoa do Piat Agosto de 2007

Prefcio Aprendendo com Chico Lucas Todo conhecimento tem a sua importncia, nasce e se mantm em determinadas condies e contextos. Convivendo lado a lado com a cincia, outras sabedorias como a filosofia, a arte e os saberes da tradio do sentido ao mundo e vida. H vrias formas, portanto, de compreender porque as coisas so como so. Grande parte da populao do planeta orienta suas prticas de vida por explicaes que tm por base o contato ntimo com a natureza. Compreender a importncia dos conhecimentos tradicionais no mundo contemporneo celebrar o respeito diversidade de saberes. se posicionar contra a pilhagem de sabedorias centenrias. Nossa aprendizagem dos conhecimentos da tradio teve destaque em nossas teses de doutoramento junto ao Programa de Ps- graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em nossos trabalhos cientficos, tivemos como grande intelectual, motivador e inspirador o pescador-agricultor Francisco Lucas da Silva, ou simplesmente Chico Lucas como costuma ser chamado, morador da comunidade de Areia Branca s margens da Lagoa do Piat (Assu-RN). As orientaes acadmicas do doutorado, sob a responsabilidade da Profa. Dra. Maria da Conceio de Almeida, ganharam outras propores a partir do convvio com Chico Lucas durante nossas estadias na Lagoa do Piat. O conhecimento de domnios como ecologia, pesca e leituras dos fenmenos fsicos fizeram de Chico Lucas tambm nosso orientador, consolidando a parceria entre conhecimento cientfico e saberes da tradio, to cara a algumas pesquisas do Grupo de Estudos da Complexidade -GRECOM. Por meio dos ensinamentos de Chico aprendemos que, ao mergulhar na lagoa e ouvir o ronco dos peixes, possvel saber qual espcie habita o ambiente. Aprendemos que a jurema (planta tpica da caatinga) tanto serve para fazer remdio como para fazer cercas. Aprendemos a diferena entre uma carnaba macho e uma carnaba fmea. Tivemos o privilgio de escutar Chico Lucas falar longamente sobre as previses de inverno a partir dos sinais emitidos pela curimat, pelas formigas ou pelo juazeiro. Aprendemos que 'conversar' com as pedras e ouvir o vento ajuda, muitas vezes, a amenizar as dores da alma. Esses saberes que aprendemos no s a respeitar, mas tambm a admirar, se valem de diferentes elementos do meio. Transitam por diferentes domnios - fsicos, biolgicos e culturais para construir um conhecimento ecossistmico. Fazem uso de analogias preciosas que permitem aproximar experincias em campos to distintos. Nas longas caminhadas na mata, nos passeios de barco e nas cansativas, mas prazerosas, pescarias aprendemos, ao vivo, um dos princpios mais

caros ao pensamento complexo: a religao da natureza com a cultura. A partir de uma 'ecologia das idias e da ao', Chico Lucas nos ensinou muitas coisas. Por tudo isso, julgamos imprescindvel construirmos interpretaes do mundo que faam dialogar modelos explicativos distintos, mas complementares entre si. Ouvir Chico Lucas faz parte, para ns, dessa nova construo. Srgio Cardoso de Moraes Wyllys Abel Farkatt Tabosa Belm-Natal, agosto de 2007.

Frases-guia

O nico sujeito que dialoga consigo mesmo somos ns, por conta da conscincia e do encontro dela com a natureza.

Tudo que o homem faz, que ele inventa, ele pensa que fez algo diferente. Mas eu no vejo por esse lado. significante a algo que j existe. O homem fez o computador que armazena tudo. como voc: nasceu e armazenou tudo o que aprendeu. As coisas imitam o que j existe no planeta.

Os prprios cientistas, com todas as mquinas, s vezes prevem uma coisa e d errado. A natureza est sempre evoluindo. Ento, pode haver algum problema e muda todo o esquema. A natureza um corpo vivo.

A natureza tambm manda e-mail sempre. Mas s compreende quem sabe ler a natureza. Porque observando a transformao da natureza que voc l a natureza.

Tudo quanto a cincia descobre, a natureza j ensinou h muito tempo.

Algum diz: "Aquele um louco, a natureza no conversa com ningum". Mas voc observando, ela tem algo a lhe oferecer e a lhe dizer.

A gente s serve de adubo para as plantas. Elas so milenares, ns s temos algumas centenas de anos. Pisamos na medicina da natureza e nem percebemos. A natureza nos oferece sinais para a gente prestar ateno. A prpria natureza agredida pelo homem d seu troco.

Cada regio cada regio, cada ser humano cada ser humano, cada cabea um mundo, e estamos conversados.

A linha do Equador do Planeta tem uma amostragem com a nossa vivncia. No domnio familiar, tambm existe uma linha do Equador. O ecossistema familiar a mesma coisa, no tem nada diferente.

Eu no tive oportunidade de estudar, mas sempre procurei ver a natureza. Presto ateno a tudo desde quando eu era criana.

As pessoas que no prestam ateno, acham que a natureza no nada e no tem nada a oferecer.

Olho muito a natureza e gosto de aparentar as coisas da natureza com a vida do prprio homem e dos animais.

Desde menino que eu sou curioso com as coisas, tenho vontade de aprender e estudar. Aprender alguma coisa para escrever o que eu fizesse o lado bom e o lado ruim, para deixar para os meus filhos.

Eu acredito muito na natureza e nas plantas.

A gente s conhece o campo, andando ele todo. No com um dia s que a gente arruma a bagagem do tempo inteiro.

No se encontra o positivo sem o negativo.

Cada um na sua rea tem a sua formao.

O que a filosofia? Eu vejo a filosofia em todos os setores do conhecimento, da sabedoria. Cada um em seu lugar tem sua filosofia.

Leitura do lugar

A histria da Lagoa do Piat uma histria mestia (negros e ndios no incio). E porque tem tambm tanta gente muito branca aqui na Lagoa? Eu, por exemplo, quando era criana era chamado de "americano". Justamente por causa da invaso dos holandeses expulsando os ndios da nossa regio. No nosso vale tinha uma grande populao de ndios quando os holandeses chegaram aqui. Eles se dividiram: foi esse senhor chamado Zumbinha l pra Lagoa do Piat, veio outro Fulano de Tal tambm, mas ele se situou aqui no Assu. Ainda hoje tem a comunidade de Casa Forte. Esse senhor de engenho, acho que foi o que veio primeiro para o Pernambuco. Tinha influncia (competio) entre eles, inclusive na poca houve um fogo cerrado dos ndios com os holandeses, escravos e tudo. Quem eram os escravos? Justamente eram os que pegavam no bacamarte dos holandeses para brigar com os ndios. Quer dizer, os prprios negros eram os soldados dos senhores para brigar com os ndios, para expulsar os ndios com os holandeses. Foi assim aqui no Assu. Senhores para brigar com os ndios, para expulsar os ndios. Eles fugiram todos daqui: os ndios caiaps, pataxs e tapuio eram daqui da nossa regio. E para comprovar tudo isso, tm as comunidades com nomes indgenas. Tem propriedade que se chama Tapuia, por qu? Tinha tribo tapuia aqui. Outra se chama Patax. Em Patax, aquela comunidade do outro lado do rio Assu, ali era uma comunidade de ndio patax e caiap. O nome Piat indgena, se refere a tudo isso. E da comeou. Quer dizer, como veio muita gente branca, esses holandeses, esses puros-sangue justamente fizeram a mestiagem com o negro e com o ndio. Aquelas caboclas bonitas que eles pegavam e queriam ficar com elas, ficaram para produzir com os ndios. Eles pegavam tambm as caboclas. Os senhores de engenho mandavam pegar as caboclas e ficavam com elas. E da partiu a mestiagem. Por isso que existe muito negro por aqui, pela regio, na vrzea, ali na comunidade de Martins - que municpio de Assu, bem prximo daqui. Dali da ponta do sangrador da lagoa pra l uma lgua. L s negro. Tem mais negro ali do que na Bela Vista Piat. A comunidade de Bela Vista Piat tambm foi um quilombo, justamente quando houve a libertao dos escravos. Dizem que quem primeiro libertou os escravos foi Mossor, mas foi no, foi Assu. Foi a baronesa. A baronesa deu a carta de alforria logo (primeiro) aos escravos da fazenda dela, e Mossor deu depois. Tem ainda hoje um casaro aqui no Assu que era da baronesa. Ela deu um jantar a todos os escravos no dia da alforria. Ali naquela Casa da Cultura que tem aqui no Assu foi onde ela assinou a carta de alforria dos escravos, e primeiro do que Mossor.

Leitura de si e de seu mundo

Sou Francisco Lucas da Silva, conhecido como Chico Lucas. Meus pais, Manoel Lucas da Silva e Maria Cesria da Silva, conhecida como Maria Lucas da Silva. Nasci no dia 17 de julho de 1942, em Areia Branca - Piat, no municpio de Assu, Rio Grande do Norte, e permaneo aqui at hoje. Na dcada de 1950, que foi uma dcada de seca, meu pai achou por bem procurar por dias melhores e, aos onze anos de idade, em 1953 a gente foi para o Cear e moramos trs anos no Distrito de Feiticeiro. Quando chegamos l papai arrumou logo uma vazante no aude e plantou muito arroz, rama de batata e arrumou uma pescaria pra Z, meu irmo, e fomos tocando a vida. A gente morava vizinho a um sapateiro, era um sapateiro mesmo, que fazia sapato de sola. A arrumei logo um trabalho com ele. O cara fazia aqueles sapatos de vaqueta de couro e tinha que engraxar, e eu comecei a dar polimento nos sapatos. Por conta disso, ele deu as contas ao polidor que engraxava antes e eu fiquei trabalhando como engraxate. Alm desse trabalho na sapataria, trabalhei tambm numa padaria. Tinha uma padaria que o dono pagava para botar gua na padaria, pegando do aude com um galo de gua. Na poca no tinha gua encanada em canto nenhum, nem nas capitais. A gua era carregada em carroa, em carro de boi, a eu arrumei com o dono da padaria para toda tarde ir l botar gua. Trabalhava na sapataria de manh, e de tarde na padaria, botando tambm aquelas massas nas assadeiras para assar no forno. Em 1956 a gente veio de volta para o mesmo canto, para a mesma comunidade, morar na mesma casa. Em 1964, aos 22 anos, me casei com D. Maria - Maria Auxiliadora Paiva da Silva que conheci em 1960 quando Jos Constantino, que era um comerciante da cidade de Assu, encontrou a propriedade dos herdeiros do Vermelho e procurou um vaqueiro. Esse vaqueiro veio morar em Alto Rodrigues e terminou sendo meu sogro. Foi assim que eu conheci Dona Maria. Desde que me casei morei em trs casas. Morei primeiro numa casinha de taipa que foi desocupada na fazenda onde meu sogro era vaqueiro. Minha famlia foi crescendo e tive que construir outra casa. Fiz uma casinha de taipa maior. E a famlia continuou crescendo. Eu tive que fazer essa casa que moro hoje, uma casa com 21 metros de comprimento para poder caber eu, Maria e os treze filhos: Joo Batista da Silva; Manoel Neto; Jos Wilson; Antnia Auxiliadora; Antnio Nazareno; Francisco de Assis; Vicente Paulo; Lus Carlos; Maria da Conceio; Maria de Ftima; Marcos Antnio; Maria Lcia (Mara) e Maria Mrcia. Quando eu era criana, fiquei muito frustrado porque tinha uma curiosidade grande para aprender, mas a gente precisou trabalhar para sobreviver e freqentei a escola pouco tempo. No

inverno, a gente trabalhava no roado e, no vero, a gente ia ganhar dinheiro para sobreviver. Meu pai, vendo que eu tinha muita vontade de aprender, comprou uma cartilha de ABC e ensinou o alfabeto. Com ele que me viro at hoje. Foi escola que eu tive. As contas tambm aprendi com meu pai. Ele tinha um pequeno comrcio e fazia contas. Eu aprendi as contas que ele fazia. Ele era bom de matemtica. Tudo o que ele sabia me ensinou como a conta de cubao. Os trabalhadores chegavam com as empleitas e entregavam aquelas tarefas para meu pai cubar. Eu, ligeiramente, quando meu pai fazia aquela cubao, j ia pegar aquelas medidas e fazia as contas que meu pai fazia. Entregava a ele e dizia: ", papai, veja se t certo!". A minha primeira atividade foi cunhar uma enxada aos sete anos de idade, porque eu trabalhava mais meu pai na agricultura. Meu pai no era pescador, era s agricultor, era um homem totalmente do campo. Depois de 1960 a lagoa todos os anos passou a tomar gua e ter muito peixe, e a foi que eu me agreguei pescaria. Depois, veio o lado da carpintaria e da construo de canoas, e foi assim. Foi uma coisa que foi o tempo que me ensinou. Com as necessidades que eu tinha aconteceu o seguinte: 1960 foi um bom inverno, a lagoa ficou com muito peixe e eu com vontade de pescar. A pensei: "Vou fazer uma canoa". Fui para Assu, comprei o material de construir a canoa, trouxe um carpinteiro da cidade a ele construiu uma canoa. S que essa canoa que ele construiu, por ironia do destino, uma tbua entortou e a outra ficou reta, no era a embarcao que eu queria. A eu desmanchei essa canoa, fui para a cidade, comprei mais duas tbuas e fiz uma canoa. E foi a melhor canoa que eu j fabriquei em minha vida, com a ansiedade que eu tinha de fazer aquela canoa sem ter com que fazer, mas ficou uma beleza. Essa canoa eu s tive o prazer de possuir uma semana. Um senhor daqui da comunidade, que era leiteiro e precisava de uma canoa para atravessar com o leite para a cidade, me comprou a canoa e com essa canoa eu comecei a ser fabricante de canoa, eu fabriquei uma para mim e a pronto: Chico Lucas, o fabricador de canoa da regio. Depois eu precisei de um barco motorizado e no encontrei na regio quem fizesse e eu fiz. Eu constru o meu barco e ningum me ensinou. Mo tinha quem me orientasse a fazer acoplamento de motor e eu fiz dentro da necessidade e da viso que eu tinha. Quer dizer, eu aprendi com as minhas necessidades, com a minha viso. At hoje, dentro dos meus trabalhos, no devo homenagem a ningum. O Meu Eu foi o meu professor. Para construir barco, eu acho que fui me preparando desde criana. Quando eu era menino, o barco eu fazia de tbua, de compensado, de caixo de charuto, de tudo no mundo eu inventava um barco. Eu no sei da soma, mas j completei mais de mil canoas. E barco motorizado, at agora eu j constru onze. Tambm fiz outras coisas com a madeira. Como carpinteiro, em 1956, com 14 anos, fiz uma

prensa de queijo. Eu me lembro como se fosse hoje. Chico Leite foi trabalhar no fuso da prensa e fez o cilindro para cortar a rosca. Eu, muito curioso, gostava muito de ver carpinteiro trabalhar, parecia que era aquilo que eu queria. Chico Leite comeou a cortar e eu disse para Jos Mago: "Jos Mago, o fuso que Chico Leite est fazendo ele vai botar a perder". Chico Leite riu e continuou trabalhando. Jos Mago foi olhar o servio e disse: "Chico Leite, no continue mais o servio. O menino tem razo". Da, Jos Mago foi buscar um pau-d'arco l no Curralinho. Meu tio veio com uma carroa, com uma junta de boi, para buscar esse pau-d'arco l no Curralinho. Foi uma luta! Um bocado de homens trouxe o pau na leva at o ponto da carroa. Trouxeram o pau e Jos Mago disse: "Quem vai fazer o fuso voc". Eu respondi: "Jos, eu no posso fazer esse fuso. Eu no tenho ferramenta". Ele disse: "Eu tenho. Eu trago a ferramenta".Trouxe a ferramenta. Eu disse: "O senhor faa o cilindro, e eu garanto ao senhor que eu risco e o senhor corta". E assim ns fizemos. Foi da que comeou minha experincia de prensa. No sinto dificuldade para fazer o furo de prensa por conta disso, porque aprendi sem fazer, vendo pelo erro do mestre que estava fazendo. Da j fiz muitas prensas. Prensa queijeira eu j fiz umas nove. E duas de cera de carnaba. Uma vez fiz, tambm de madeira, um ex-voto. E j botei coronha em espingarda. Tenho um lado construtor de casa. Eu trabalho na parte hidrulica, na parte de energia. Conforme o que eu preciso fazer, eu no boto ningum para fazer, eu mesmo que fao. Sou o arquiteto, o engenheiro, o pedreiro, o eletricista e o encanador. J fui at costureiro. Isso aconteceu quando Dona Maria passava o dia trabalhando, ensinando, e noite precisava trabalhar na papelada da escola, dos alunos. Eu tinha comprado um tecido, chamado mescla, para fazer roupas grosseiras para trabalhar, umas camisas com manga comprida. Dona Maria ganhou um nen. As pessoas que podiam me ajudar eram as meninas, irms de D. Maria, mas eram meninas do campo e passavam o dia na colheita de milho, do feijo, do algodo. Uma determinada noite, eu me decidi, porque eu estava precisando de uma camisa para trabalhar. A noite, eu cortei a camisa por outra camisa. Fiz o molde por outra camisa. Costurei e fiz a camisa. Eu acho que foi a mais perfeita que eu usei porque ela no ficou me pegando e no ficou retorcida em canto nenhum. Ficou sob medida! Fiz a cala tambm. Sobre ecologia, eu sempre fui ligado s previses de chuva e de seca. Isso eu aprendi com o meu pai. Ele era um agricultor e sempre prestava ateno na natureza. A minha vivncia foi no trabalho com ele, e eu toda vida tive a curiosidade de perguntar as coisas a ele. Quando tinha o formigueiro, e a gente estava trabalhando numa vazante, na pegada do inverno, e o formigueiro se retirava, ele dizia: "Vai chover. Eu vou parar o trabalho da vazante porque o inverno vai pegar". Porque a formiga que morava na beira d'gua saa para o tabuleiro. Quer dizer, so essas coisas que eu prestei ateno e elas so, durante o tempo que eu venho observando, corretssimas. Ningum pode dizer que no verdade, porque verdade. tanto que, quando eu estou trabalhando numa

vazante, e vejo a formiga se retirar para o tabuleiro, eu j paro a vazante porque tenho certeza que o inverno vai pegar, e aquele trabalho que a gente vai fazer na vazante intil. So essas coisas que eu presto ateno, que pouca gente observa isso, e que passa de pai para filho. Com a idade que eu tenho, levei um tempo para observar as coisas, estudar o que eu via, mas isso foi o que eu estudei. O meu pai, nas bocas de noite, nessas noites de escuro na poca de dezembro, que dava muito bem pra gente ver o carreiro, ele olhava e dizia: ", meu filho, em janeiro no vai chover porque o carreiro no est imitando". So essas coisas que a gente grava e presta ateno. Ento, quando vai aparecer chuva, que o tempo vai mudar, o carreiro me diz que faz parte da natureza. So essas coisas que a gente observa e que no esto na metodologia. Os cientistas no olham para isso, eles estudam por outra maneira. Eu estudo diferente, estudo observando a natureza. Mas preciso saber ler a natureza. Veja como fica essa coisa da natureza com tantas transformaes. Ela vai dar informao errada e isso que eu acho a maldade do sistema. Por exemplo, nas primeiras chuvas, o sapo pensa que inverno. Ele no sabe o que maro, abril. Ele no sabe que a carnaba foi tirada, que no vai ter precipitao, portanto no vai ter regularidade. Ele no sabe do tempo cronolgico da gente, do ms, do calendrio gregoriano, ele no sabe nada disso. A informao que o sapo consegue receber : "Choveu, pa! Chuva, ento, j poca de procriao!". S que foi uma informao equivocada, pois quando mexeram com um elemento ou dois, ou trs do ecossistema a coisa no ficou duradoura. Ento, se a informao vem simulada, isso pode inclusive comprometer a espcie: porque eles no podem mais se reproduzir. Porque o saber dele, o eu dele do conhecimento o clima. Eu diria que ele est codificando e no est tratando. Medicina. Com relao aos remdios da natureza, meu aprendizado foi dos remdios que a minha me passava para a gente. Todos os anos ela tinha por obrigao mandar papai arranjar batata-de-purga e a gente todos os anos tinha que tomar aquele purgante, porque na poca do inverno vinha aquela virose de febre, de gripe, dor de barriga, e l em casa no existia isso, porque a gente tinha que tomar aquele purgante de batata-de-purga pra ficar curado. E eu descobri na batatade-purga um remdio que serve pra tudo. J fui at parteiro de animais. Eu acompanhava os vaqueiros que faziam parto de vaca. E a preciso a gente saber o que a gente vai fazer. Eu nunca encontrei dificuldade. Quando tem uma vaca para parir, que aquele bezerro no nasce, porque ele vem com a parte traseira que a parte mais difcil de passar, ou ele vem com as mos pra frente, a bota s uma e a outra pra trs, ou ele do contrrio dobra o pescoo. Ento preciso a gente localizar e tirar o bezerro. Uma vez eu estava doente de uma das mos e o compadre Mariano, que tambm faz parto de vaca, encontrou uma vaca no mato que j tinha passado do ponto de parir. A vaca era de Jaime, da outra fazenda, ento eu disse que ele trouxesse um veterinrio pra fazer o parto da vaca porque o bezerro j tinha morrido e

ele no tinha conseguido tirar. O veterinrio veio, muito novinho, sem experincia, e lutou, lutou pra tirar esse bezerro com uma corda pra ver se pegava, pra amarrar dentro o bezerro. A eu vim em casa e levei uma corda de seda que eu tinha, bem fininha, e mandei ele amarrar no queixo do bezerro e dei a laada, pra quando ele colocasse e puxasse, a laada amarrar. A ele conseguiu tirar o bezerro. Cosmologia. Quando eu era pequeno, papai mostrava o cu pra gente nas bocas de noite e dizia: "Olhe, aquele planeta tal, aquele planeta tal, aquele planeta tal..." A estrela Dalva passa nove meses, ela tem um ciclo de nove meses no nascente e no poente. Eu conheo pessoas que dizem que ela passa nove meses no nascente e seis no poente. No nada disso, o percurso dela nove meses em um e nove no outro. Quando ela est no nascente e atrasa, que passa do Sol, a ela passa trs meses para aparecer no poente, entende? Porque ela fica andando no movimento do Sol, por isso que demora pra gente ver. Mas a estao dela a mesma. E a questo do Sol? Dele passar seis meses no plo sul e seis meses no plo norte? Justamente era o que meu pai dizia: "Oha, no dia 20 de maro o Sol est caindo na linha do Equador". Ele tinha um livro que falava que o Sol passava seis meses no plo norte e seis meses no plo sul, e no dia 20 de maro ele cai no centro do Equador e no dia 20 de setembro, novamente. Porque ele passa trs meses subindo e trs meses para cair na linha do Equador. So essas coisas que o meu pai passava pra mim, que depois eu comecei a refletir. O que eu sei hoje devo ao meu pai, porque ele era uma pessoa altamente inteligente, que naquela poca no teve estudo. Avaliando a vida. Eu me sinto realizado com o meu trabalho. Eu moro aqui e tenho tudo isso para ouvir: o cantar do galo, o berro da ovelha, o mugir da vaca, o relinchar do jumento, o latido do cachorro.... Eu adoro isso aqui. Por isso eu digo a vocs: pra mim, aqui o lugar, um pedacinho do cu, o lugar melhor do mundo, pra mim, pra minha vivncia do que j vivi at hoje. Estou com 65 anos e tenho aquele pique do trabalho do dia-a-dia. Amanheo o dia, muitas das vezes, enfadado pela mudana de atividade. Voc sabe que com uma mudana de trabalho o corpo da gente enfada, mesmo quando a gente jovem. O trabalho do dia-a-dia, no. um trabalho corriqueiro e que voc j tem aquela pista. Mas, quando voc muda, o seu corpo vai pegar outro pique de fsica, a aquele trabalho enfada. Mas eu, com 65 anos, o trabalho do dia-a-dia no me enfada. Eu sinto vontade de trabalhar depois da meia-noite. Depois do cantar do galo, eu j comeo a pensar no trabalho daquele dia-a-dia. Quer dizer, isso pra mime maravilhoso. O meu ritmo esse e ser at morrer. Eu acho que se Deus me der 80, 90 anos, eu vou viver com aquele pique de pilotar barco e virar o motor!

Leitura da vegetao

Catingueira - Quando a catingueira est esperando um bom inverno, ela chora uma resina do caule dela mesmo. Palmatria - Quando o ano mau de inverno, voc chega num partido (rea delimitada de plantio) de palmatria e dificilmente v uma fruta. Baob - A folha do baob tem cinco pontas que representam as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Segundo os historiadores, a rvore de sofrimento, at porque a regio nativa dela o deserto do Saara. Ela captura gua para as pessoas que andam no deserto morrendo de sede. Eles furam um buraco no tronco dela e aquele buraco forma uma bacia, e aquela bacia enche d'gua como se fosse gua mineral. Por isso que a chamam de rvore sagrada. Categorias de plantas - As categorias de plantas so agrupadas conforme o tipo de ambiente em que vivem. Na caatinga tem mais a jurema, a catingueira, o pereiro. Na chapada, voc encontra mais o marmeleiro, o mufumbo, a catingueira, a catanduva, a aroeira. Juazeiro, Pereiro, Cumaru - So plantas que se revestem na caatinga sem receber gua, porque a natureza oferece um ciclo de oxignio para elas se revestirem, para quando chegar a chuva elas estarem prontas para vaguear, para produzir a sua semente. O problema que o homem faz a devastao e a terra fica totalmente raleada, queimada. Isso faz com que a outra planta que iria se reproduzir, como o juazeiro, o pereiro, o cumaru, essas plantas que se revestem antes do inverno pegar, morram. Esto morrendo porque o solo est desprotegido e elas esto recebendo muita quentura no caule e no d para reagir. Acredito que essas plantas que se revestem fornecem um tipo de gs que contribui para as nuvens e para a atmosfera da Terra. Carnaba - Os ps de carnaba macho e fmea so diferentes entre si, dada uma certa caracterstica: o tronco da fmea tem suas frestas viradas para a esquerda, enquanto no macho elas so viradas para a direita. Elas se reproduzem principalmente por estarem muito prximas. O vento, os pssaros e as abelhas tambm ajudam, fazem a fecundao. Quando ela nasce, forma o caule para cima. s vezes, por causa da eroso e da enchente da lagoa, a raiz apodrece dentro d'gua, ela arreia, mas no morre. Ela procura se defender, ela quer viver! Ela est torta daquele jeito, mas procura sempre a linha do Sol! Cana-de-acar - Ns temos aqui na nossa regio a nossa cana-de-acar. Como nosso solo

do agreste muito frtil, no usamos muito adubo, nem tampouco agrotxico. As pragas no gostam da folha da cana. Ela uma planta altamente rica em acar, mas a folha dela sugada, no tem nutriente at para o prprio inseto. riqussima! Da cana-de-acar voc faz o mel, o acar e a rapadura. Feijo Macaca - Macaca um nome indgena. O ndio encontrou a semente dele na mata e deu o nome de macaca. Contam que foi porque ele foi caar e no matou nenhuma caa. Encontrou aquele p-de-feijo bem vargeado, apanhou aquelas vagens de feijo, chegou em casa, debulhou e botou no fogo. Quando foi na hora do almoo, s tinha aquele feijo. A a mulher disse: "Fulano, venha comer! A m caa j est pronta!". Porque ele no encontrou uma caa de verdade. Vive-morre - uma planta que e no txica. Ela no txica para o gado que est acostumado com ela e sim para o animal que no est acostumado. O animal da regio come ela e no tem nada. Mas na vrzea no tem esse mato, ento os animas de l que chegam onde tem a planta, um cavalo, por exemplo, ele passa a noite pastando dentro do cercado. Se a gente botar a sela e for viajar, campear sujeito a ele ter um ataque cardaco e morrer na hora. Ele no est acostumado. A planta txica, a ataca o corao dele e ele morre na hora. Agora, os animais da regio, no. J esto acostumados. Florao e chuva - Tm vrias plantas, umas floram para chover e outras floram aps o inverno. preciso voc prestar ateno a essas mudanas. O pereiro florou, eu j estou sabendo que um bom inverno. A jurema florou aps o inverno, j estou sabendo que o inverno acabou. Quer dizer, a jurema me disse que ela florou hoje e que agora avante vero, no vai chover. Jaramataia - Quando a jaramataia nasce no mangue de gua doce, isso me diz que para a croa no se decompor, pois ela entrelaa toda essa croa de raiz. Esse intrelao das razes acontece na vertical do baixio. Parece que ela j nasce com o intuito de ajudar, de conservar a prpria natureza. A semente dela s nasce em baixio de enchente. Ela no nasce no molhado do tabuleiro, ou seja, s nasce no molhado em que outra semente apodrece. Quer dizer, ela precisa do baixio bem molhado para ela fermentar e nascer. Espinheiro-de-bode - Espinheiro-de-bode por qu? Porque ele tem uma vagem que quando abre solta uma semente, e o bode vem e come. A casca dele serve para tinturao, porque d uma gosma muito forte que antigamente era usada na tinturao da linha de algodo, usada pra fazer rede, para no apodrecer. Espinheiro-de-bode, Juazeiro, Trapi e Feijo-bravo - So vegetaes que enramam sem chover. Quando o inverno chegar, como a vagem dura, a natureza se encarrega de

molhar a vagem para ela abrir e soltara semente. Feijo-bravo - Quando o feijo-bravo macheia a carga, o ano mau. Quando o feijo-bravo segura a carga dele 100% um ano bom de inverno. Macambira - Ela tem duas utilidades: na comida, serve de rao para o gado e para o ser humano. Tira-se o miolo da cabea da macambira, bota para secar, faz a farinha e a goma do beiju. A outra utilidade a corda da macambira, que uma imbira mais fraca que a do agave. Os ndios usavam para vrias coisas, para fazer esteiras, cobertores e para cobrir a casa. Juazeiro - No final do ano, se ao meio-dia garoar, claro e evidente que o inverno est prximo. Quando ele est bem enramado, por volta de dezembro e a gente chega na sombra dele de doze horas do dia, a gente sente que ele est garoando. sinal de bom inverno. Agora, o juazeiro no est mais enramando em dezembro, por qu? Por conta da mudana climtica que houve. O lenol fretico no est contribuindo para que a raiz dele capture aquela gua. Piqui - uma madeira naval. Ela no uma madeira de construo de casa, porque pela temperatura ela quer gua. Sem a gua ela empena, e dentro d'gua ela no apodrece, ela tem durabilidade. Pereiro - muito sensvel aos anos secos. Ele s toma carga num ano bom de inverno, quando solta muita semente. A semente do pereiro tem um algodozinho, uma pluma que o vento leva a distncia. por isso que aqui no nosso terreno a mata nativa tem muito pereiro. uma rvore que demora muito a fornecer madeira para construo. A estaca demora 50 anos para chegar espessura de 1 litro, num dimetro de 10 cm. Jurema - uma rvore que suporta a seca e, com um ano bom de inverno, ela reage. Com cinco ou seis anos voc corta um partido de jurema, e com mais cinco ou seis anos aquele cip que ficou d madeira novamente. a madeira mais procurada aqui na nossa regio por ser a mais rpida no crescimento.

Leitura da fauna

Curimat - A experincia do pescador, para saber se vai chover, a curimat ovar. No ano que mau, ela s ova, aqui acol, uma. E s de um lado. No ano que ela est esperando uma enchente grande, ento ela ova os dois lados. As duas laterais dela ficam bem ovadinhas. A mesma coisa acontece com o peixe coro. Gado - Na poca do inverno, quando comeam as chuvas, mas pra de chover dois ou trs dias, observamos o gado. Pela manh, vamos buscar o gado no cercado. O gado est malhado, com a frente para o poente -quer dizer, dando os quartos para a chuva. Quando ele se levanta, ele tem um modo de dar com os quartos, ficar patinando. A a gente diz: "Hoje vai chover!", e certo. Pode esperar que duas, trs horas da tarde, a chuva est caindo. Trs coco -Trs coco uma espcie de codomazinha. Quando pegam um bom inverno, eles ficam s no baixio. Quando de manhzinha, ele empurra o grito: "trs coco, trs coco". A a gente fica logo animado, quando ele comea a cantar. Isso sinal de que j est bem pertinho de chover. Gata - Se no ms de janeiro a gata der cria e comer os gatos, seus filhos, uma seca de fazer medo. Borboleta - Quando termina a reproduo dela, que ela botou o ovo, o ovo se transforma em lagarta que se encanta formando um casulo que apita as doze horas do dia como se fosse uma cigarra. Quando poca de procriao, elas comeam a assobiar para ter o contato entre o macho e a fmea. Elas comeam a assobiar, um assobio fino. Elas fazem isso para a procriao. Elas vo tendo aquele contato, vo tendo aquele contato para se reencontrar. A, quando a pegada do inverno, o casulo rompe, se desencanta e vira borboleta. A lagarta que tem ali dentro estoura, ela mesma fura aquele buraquinho, cria asas e voa. Elas saem, se encontram, fazem o acasalamento.

Tatu - Essa observao feita no ms de dezembro: se a gente for caar para pegar tatu e a fmea tiver apenas com dois ou trs tatus, o inverno vai ser um invernozinho fraco. Se a gente pega ela com quatro tatus, a um inverno forte. Aru-da-serra - Quando ele est prevendo um bom inverno, ele se trepa naqueles matos, naquele velame, para desovar. Ele trepa tanto que arreia os galhos do velame. Quando o ano no bom, ele no faz isso: voc chega num p de velame, voc v um aru por acaso.

Sapo - Quando o sapo cocoreja, esturra, parece que o macho avisa para a fmea que a fecundao est prxima. Eles s esturram quando est prximo de chover. Fura-barreira - um pssaro agoureiro, s sai depois que chove. Ele pe no cho e s se reproduz quando a terra est molhada. Como s faz o buraco em barreira, ele fica na expectativa esperando que chova. Quando ele est esperando para pr e o inverno no d trgua, o que que ele faz? Ele no cava o ninho no p da barreira, e sim no pico da barreira, e a quando a gente v ele cavar o buraco alto porque no vai ter vero, vai chover todo dia. Tetu - Durante o dia, eles fazem a imigrao, caando alimentos. noitinha, regressam para um campo seco, onde tem um campo limpo. Quando passa uma pessoa, uma raposa ou outro bicho, eles fazem aquela gritaria para se defender, que no para dormir, mas para ningum se aproximar deles. Formiga (1) - Ela faz uma barragem quando est esperando chuva. para a gua da chuva no correr para dentro da casa dela. No vero, ela faz a morada dela, mas no faz essa barragem em volta. Na barragem tem at um desnvel para a gua da chuva no entupir a morada dela. mais inteligente que aquele pessoal da periferia que mora na beira do rio, l em Natal. Eles constroem aquelas casas, mas se fosse a formiga, no construa, pois sabia que o rio ia e carregava.

Formiga (2) - Quando est esperando enchente, mesmo no perodo chuvoso, comea a sair e fica fora da bacia da lagoa. Formiga (3) - A formiga de roa, prevendo inverno, joga fora todo o bagao e vai buscar folha para fazer o colcho l na morada, porque a oca dela muito grande! Ela faz uma oca de 10 a 20 metros abaixo do cho. Ela tira toda aquela bagaceira para fora e, no inverno, ela bota folha nova para, justamente, ter aquele gs para se aquecer no perodo chuvoso. Em pleno serto nordestino, quando a gente v um fenmeno desse, claro e evidente que sinal de um bom inverno. Pre - Quando est esperando uma seca, ele se castra, o macho se castra. Tejo - Quando est esperando uma seca muito grande, ele come o prprio rabo. Galinha - Quando s trs horas da manh ela desce do poleiro e vai para o terreiro, dificilmente d um ano bom de inverno. Ela fica o dia comendo semente no tabuleiro, caando recurso, e s sobe para o poleiro s 6h30, 7 horas da noite. Quando ela est esperando um bom inverno, s 5h30, ou quando o Sol se pe, ela sobe para o poleiro e s desce quando o Sol aponta no outro dia.

Leitura de fenmenos fsicos

Vento norte (1) - Se o vento norte cai no dia primeiro de setembro e encarri o ms todinho, bom sinal de inverno. Vento norte (2) - Na hora de acender a fogueira para So Joo e So Pedro, no ms de junho, voc presta ateno ao vento. Se o vento for norte ou poente, pode considerar um bom inverno para o outro ano. Se o vento for sul, ser um ano de seca. Vento (3) na lamparina - Meu tio tinha uma experincia - a do tamborete. Ele disse que de quatro horas da manh, ele bota um tamborete l no fim do terreiro. A ele traz um farol - uma lamparina acesa, e bota l. A ele pastora, fica olhando. Se no tiver ventania, ele espera. S sai de l quando sair qualquer raia de vento pra aoitar a fumaa. Se a fumaa for do nascente, quer dizer que est ventando poente. Nesse caso, se espera inverno. Quer dizer, se a fumaa for norte, esperamos inverno; se for sul, nada de inverno. Ventos (4) - Vento norte, sul, leste e oeste: so os principais sinais que esto indicando um bom inverno. Eles formam como se fosse um redemoinho, que amarra a embarcao. Voc vai remando e fica ruim de remar, pois fica amarrando; voc vai encontrando uma mareta, ento isso um bom sinal de inverno. Ventos (5) - Vocs esto vendo como est o jeito do vento? A gente saiu com o vento no nosso ombro esquerdo. J estamos pegando ele aqui na cara. Os ventos esto brigando. Isso justamente uma mudana atmosfrica pelo vento. Ventos (6) - Nas coisas da natureza h sempre uma modificao. Os ventos orientam tambm. Quando para entrar o clima de inverno, os ventos mudam. Comea a ventar aquele vento do poente. A comeam a aparecer aquelas carregaes e o clima muda para inverno. Calendrio da chuva - Se chove dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, experincia boa. A chove dia 14 de janeiro, 15 de fevereiro, 16 de maro, 17 de abril, 18 de maio, 19 de junho. Isso quer dizer que a gente pode contar com seis meses de inverno. Pedras de sal - A experincia feita na vspera do dia de Santa Luzia. Enroladas uma a uma em pedaos de papel, se bota em cima da casa. Quando de manh, antes do Sol sair, a se tira aquelas pedras. Se as pedras derreterem e emendar uma com a outra quer dizer que est partindo cacimba grande, que chove todos os seis meses. Mas se derrete uma, depois de um ms outra, a quer

dizer que se considera um inverno variado. Temperatura - Se a quentura 32 C, 36 C e noite baixa para 18 C um bom sinal, porque aqui, no nosso clima, s chove quando noite esfria e o clima est muito bom noite. Raios - A Terra tem um setor que sai no clima frio e outro sai no clima quente. Por que? Porque existe uma parte da Terra que tem aquela temperatura mais alta e uma linha magntica. A linha magntica o seguinte: a Terra tem ouro, tem ferro, metais, enxofre.Tudo isso tem l debaixo do solo. Ento, aquela regio onde tem esses metais, ali so correntes magnticas que podem muito bem atrair os raios. Inverno no Nordeste - O Cear o termmetro do nosso inverno aqui no Nordeste e no Rio Grande do Norte. Dos estados nordestinos, o ltimo da estao chuvosa o Rio Grande do Norte. Porque ele faz esse ciclo: Bahia, Maranho, Piau, que o inverno comea em outubro. A, vem o Cear. Depois do Cear, que entra a estao chuvosa aqui no Rio Grande do Norte. Dia 20 de maro - Por que o nordestino espera o inverno at o dia 20 de maro? Porque o Sol no dia 20 de maro cai na linha do Equador e vai governar seis meses o Plo Norte, que uma parte do planeta que tem influncia justamente para o inverno. No dia 20 de setembro, ele est de volta na linha do Equador e vai passar seis meses no Plo Sul que para no dia 20 de maro estar de volta na linha do Equador novamente. Nascente e poente - A cincia devia trabalhar com a sabedoria do caboclo. Por exemplo, o leigo que no vive na natureza, aprende na escola o leste, o oeste, norte e sul. A, se d um monte de nomes: o sudoeste, noroeste, etc. A, se confundem as coisas. Para o campons, o lado norte que ele conhece o norte mesmo, de origem, ao lado esquerdo. O poente que o lado norte. Poente poente, nascente nascente. O professor no explica que tem dois nomes, que aqui nascente e ali poente. Porque nascente? Porque o sol nasce aqui. Porque poente? Porque o sol se pe ali. Acho que o certo deveria ser isso. Para aquele que no tem muita bagagem e aprende na marra, sem conhecer a natureza, fica difcil de entender as duas linguagens, os dois nomes.

Leitura da farmcia da natureza

Antibitico - Meu pai dizia pra gente que as plantas que reagiam logo eram as plantas que continham o antibitico sarante. Se voc estava com uma ferida, lavava com aquela gua e podia tambm tomar um pouco dela, que justamente ajudava. Esses so os antibiticos sarantes que os mais velhos usavam. No tinha farmcia, a farmcia deles eram esses arrelquios de plantas que eram feitos mesmo em casa. Umburana e Jurema - Boas para feridas e para frieira. Faz uma lavagem com a casca da umburana ou da jurema. A gente aprende com os mais velhos, meu pai me ensinou muito. A gente ia andando na mata e ele ensinava a gente a tirar a casca da umburana. Quando a gente tem um corte, ou est com uma frieira e precisa fazer uma lavagem, a casca da umburana boa e a casca da jurema tambm. Faz um corte, tira a casca e a metade do entrecasco, deixando a pele que protege o caule da madeira, que justamente para a planta reagir. Tira-se a casaca da umburana e rala para fazer o p, e bota em cima de ferida. A prpria gua da casca da umburana sarante. Pepaconha, Cumaru e Aroeira - Para gripe e para expectorar. Faz um xarope da raiz da pepaconha.Tambm tem lambedor de cumaru e com a casca de aroeira. Me lembro muito bem que mame fazia esses lambedores e a gente tomava e era 'pei bufo', ficava bom com isso. Cumaru (2) - Usa-se a casca dele para inalao. Se voc est com dor de cabea, com sinusite, faz a inalao dele com a canela-do-mato para justamente destilar o catarro. o remdio que a gente faz. Voc inala, lava o rosto e toma um gole daquela gua serenada. um santo remdio para sinusite. Pepaconha (2) e Batata-de-purga - So utilizadas para matar vermes, girdia, parasitas do intestino. No pode tomar muito se no vira veneno. Catanduba e Catingueira - Da casca se faz remdio para expectorar. Sensitiva - utilizada contra picada de cobra, para todas as cobras. Retira-se a entrecasca de um pedao do caule, de aproximadamente um palmo e uma polegada de dimetro, para se fazer o remdio. Jaramataia - A folha medicinal, as pessoas usam para controlar o colesterol. Pega-se a folha, quebra, coloca em 1 litro d'gua e, quando fermenta, que solta o sumo, bebe a gua.

Quxabeira - A casca medicinal para pancada e quebra de ossos. Inclusive a medicina j reconhece e passa para fraturas dos ossos. Tira a casca dela, machuca e bota de molho para beber o sumo da casca. Marmeleiro - Se voc comeu de noite, e o comer lhe fez mal (a gente aqui chama de indigeste), voc mede um palmo do caule do marmeleiro maduro, tira a casca preta e raspa a entrecasca. Bota um pouquinho na boca e mastiga. Amarga um pouco, porque esse amargo dele que faz com que voc vomite. Mufumbo - diurtico. Se voc est com dor nas urinas, ento voc toma a gua da raiz do mufumbo justamente para desobstruir as pedras renais para urinar bem, quando voc est com privao de urina. Aroeira - cicatrizante. Voc tira a casa da aroeira para fazer a gua para lavar o corte. Botar a entrecasca para secar, para fazer o p para colocar em cima da ferida.

Pinho - O leite do pinho bom para picada de cobra. Uma colher de sopa suficiente para o ser humano. No precisa nem tomar soro. Na luta do tejo com uma cobra venenosa, quando o tejo picado pela cobra, ele corre para o p de pinho, morde o caule, chupa o leite e volta para continuara luta.

Leitura da pesca

Modos de pescar - Cada lugar, cada estado tem um modo do povo pescar. Quando a gente saa daqui para pescar no Cear, l eles achavam estranha a pescaria da gente. Eles vinham pescar aqui e a gente achava estranha a pescaria deles. Porque a gente bate uma buia e vai fazendo um cerco pra combater aquela buia. Os cearenses no. Eles chegam, soltam a linha esticada que parece uma cerca de arame. A eles batem de um lado, voltam, batem do outro lado e apanham o peixe. A gente, no, d duas voltas, uma pra l e outra pra c, pra poder apanhar a linha. Tilpia - um peixe de ninho, um peixe de coita de madeira. Sempre onde h dois ou trs ps de pau, ali que a gente vai colocar a rede. A gente cutuca, bate ali para o peixe sair para a rede. A gente procura sempre o jeito da madeira para colocar as redes. Atilpia se enterra na lama de cabea pra baixo e, como defesa, deixa as espinhas apontadas para cima. Ela ficava de cabea pra baixo como quem diz: "Olha o meu perseguidor, ele vem e se estrepa na espinha". Muita gente se espinha. E a, quando a gente termina de apanhar a rede, a gente s v o peixe subindo e ficando assim com a cabea, balanando e lavando a lama, mangando da gente. Tibungo - uma maneira de bater a buia. Coloca-se um pau, como uma cabea de imburana, de mais ou menos 20centmetrosdecomprimento. Fura um buraco naquele pau e coloca a cabea da vara dentro. A, em vez de bater na gua, eles do estocadas com o tibungo l em baixo, na lama. Aquilo tira os peixes do local onde esto.

Peixes da Lagoa do Piat - O tucunar no fcil de cair na linha. um peixe mais de anzol. Mas quando no tem a piaba para fazer a isca para pegar ele, se torna difcil. Agora, quando comea a chover, ele corre muito atrs dos alevinos da produo do peixe para comer. A ele cai mais na rede. Ento, no inverno a gente faz uma pescaria boa de tucunar. Quando est chovendo, tambm aparece a piranha. Quando comea a chover d muito a trara e a piranha. Quando aparecem as enxurradas dos riachos, a aparece a desova do piau, de alguma piaba que tem. S no aparece curimat. No houve piracema aps a barragem para haver a desova da curimat, a no tem curimat na lagoa. Pescaria de molho - a gente usa toda poca. O perodo que d melhor no inverno. Quando

termina o inverno, a gente no tem outro meio, a gente tem que explorar a pescaria de molho porque antigamente a gente usava a pescaria da buia. Botava duzentos metros de rede e ia bater com a vara para fazer zuada para o peixe correr pra cima da rede. O IBAMA proibiu, pois disse que essa tcnica de pesca acaba com a produo do peixe. Mas quem acabou com a produo do peixe no foi a buia no, foi a linha de nylon que apareceu em 1960. Antigamente a gente pescava s com linha de algodo. Como a linha de algodo no tinha resistncia pra gente botar de molho porque apodrecia rpido, o que se fazia: pescava s de buia. Voc ia l duas horas da manh, batia trs buias e pegava peixe suficiente pra vender e pra sua manuteno, e a gua ficava livre. No tinha linha para atrapalhar o peixe. A inventaram a linha de nylon. Voc pesca de seis meses a um ano com ela dentro d'gua s capturando o peixe. Porque ela tem mais durabilidade dentro da gua do que no seco. E a isso que eu atribuo a falta de peixe, a inveno do homem. Ele mesmo por si destri.

Retrato do intelectual quando jovem.

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tradio

O casal Francisco Lucas e Maria Auxiliadora

O pescador e o professor* Chico Lucas0 pescador Chico Lucas recebeu um convite de um companheiro de pesca para encontr-lo, hoje presente na Universidade Eu disse: Oba! L tem peixe, peguei meus entrepostos de pesca e botei o p na estrada... Mas, quando aqui cheguei, no avistei nenhum lago. Fiquei desanimado, no encontrei o que queria, vim pra fazer uma pescaria aqui na Universidade. E se algum duvidar a histria do pescador, est aqui o comprovante, eueo professor!!! Enfim, assim caminhamos os dois juntos, cincia e sabedoria! Parabns professora Ceia e toda sua equipe que faz a Universidade!

Muitssimo obrigado! *Fala de Chico por ocasio do lanamento do livro Lagoa do Piat: fragmentos de uma histria (EDUFRN.2006) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Coleo Metamorfose*Vol. 1 - Memrias, imagens, histrias..., Wani Fernandes Pereira (esgotado); Vol. 2 - Histrias de ontem para amanh, Lus Justo Filho (Org. Carlos Aldemir Farias e Maria da Conceio de Almeida); Vol. 3 - Flor de Mucambo, Maria leda da Silva Medeiros (Org. Wani Fernandes Pereira); Vol. 4 - A natureza me disse, Francisco Lucas da Silva (Org. Maria da Conceio de Almeida e Paula Vanina Cencig); Nmero Especial - Educao Etnomatemtica: o que ? Teresa Vergani.

*Disponvel no GRECOM - UFRN - Setor V, sala B3 Campus Universitrio de Lagoa Nova, Natal, RN Telefone: 84 3215.3525 E-mail: [email protected]