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Para um enquadramento de leitura(s) da obra de Aquilino Ribeiro

Autor(es): Almeida, Henrique

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁTHESIS 21993173-190.

PARA UM ENQUADRAMENTO DE LEITURA(S) DA OBRA DE AQUILINO RIBEIRO

HENRIQUE ALMEIDA

1. O estudo que a seguir se apresenta procura ir ao encontro de algumas dificuldades básicas dos leitores de Aquilino Ribeiro, sobretudo quando está em causa a análise de várias obras do escritor. As propostas de estruturação dos diferentes níveis de recepção da obra aquiliniana, tal como são aqui apresentados, configuram um «pro­grama de leitura», com intuitos didácticos. Pensamos contribuir deste modo para uma melhor compreensão e valorização da polifacetada obra deste escritor, afinal ainda tão desconhecida.

É nossa intenção transferir as abordagens lineares de natureza temática ou macrotemática para uma esfera de implicações textuais várias, dentro de um enquadramento metodológico e disciplinar de leitura. Trata-se, no fundo, de sugerir novas perspectivas de leitura. Estas perspectivas apoiam-se em diferentes níveis de análise textual, os quais acabam por configurar modelos de leitura também distintos, consoante as regras e códigos de cada área disciplinar. Em qualquer caso, tomamos sempre o texto como objecto de análise, enquanto entidade semiótica.

A tentativa de delimitar determinados percursos de acesso ao texto corresponde, antes de mais, à confitmação das ideias que a teoria lite­ráría viu consagradas nas últimas décadas, como sejam: não é possível conceber uma leitura que esgote totalmente as virtualidades signi­ficàtivas do texto literário; o mesmo texto pode ser analisado de dife­rentes prismas de leitura, em função da «formação disciplinar» e dos «códigos operatórios» com base nos quais o leitor recebe o texto, seja este literário ou não literário. Quer a capacidade semiótica (e por­tanto plurissignificativa) dos textos, quer a «liberdade semiótica do leitor» permitem a articulação de níveis de cooperação textual, de modo a projectarem-se diferentes sentidos a partir dos mesmos textos.

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A metodologia de análise difere, naturalmente, mas ela é ditada pela subsequente concatenação de cada procedimento disciplinar.

Sendo diferentes os prismas de leitura, diversos serão os resultados da análise textual. Isto apesar de se poder falar na comum partici­pação de signos textuais, dado tomar-se sempre como base a natureza linguística, recebida, no acto de leitura, na sua manifestação linear. Trata-se, por conseguinte, não só de modos específicos de receber' o texto, como também de modelos próprios de conhecer experimen­talmente a obra. Neste sentido, poderíamos designar de pontos de vista os modos de ler que vamos propor. Com efeito, subjacentemente ao ponto de vjsta está o «lugar» de leitura, isto é, o campo de saber que regula, condiciona e informa essa leitura.

Na nomenclatura proposta para as novas perspectivas de leitura da obra de Aquilino, houve a preocupação de síntese operatória, como aliás se exigia. Não procuramos arquitectar modelos acabados e exaustivos, antes modelos simplificados e ajustados à obra em causa. Através do seu uso, almejamos uma saída para o impasse de leitura(s) em que esta obra caiu durante muito tempo, do que resultaram redun­dantes visões monolíticas. Estamos perante o que poderíamos chamar «construção de leituras», segundo uma concepção muito próxima daquela formulada por Todorov, nestes termos: «ce qui existe, d'abord, c'est le texte, et rien que lui; ce n'est qu'en le soumettant à un type particulier de lecture que nous construisons, à partir de lui, un univers imaginaire» 1.

Não se defende aqui uma qualquer leitura, mas uma leitura regulada por códigos específicos; mas sempre a partir do texto e não do que o leitor eventualmente sabe da biografia do seu autor.

Mas porque nem todo o texto foi escrito ou recebido como lite­rário, entendemos não dever abarcar apenas as leituras de índole literá­ria. Assim, apelamos ao contributo de outras disciplinas (como a histó­ria, a sociologia, a etnologia, a linguística, etc.) para urna melhor dilucidação dos textos de Aquilino Ribeiro. São os próprios textos que remetem para cooldenadas histórias, sócio-culturais e linguísticas, designadamente, justificando desse modo a abertura paradigmática pro­posta. Pertencendo cada um dos signos a um sistema sígnico, a sua interpretação só pode ser regulada no momento da decodificação, ou seja, da leitura. Donde, o leitor é levado a procurar outros senti­dos possíveis para uma mensagem, a partir dos quais estabelece várias relações contextuais.

1 TODOROV. T. (195).

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Sem haver lugar aqui para uma demorada explanação teórica, gostaríam(}s de lembrar ainda Todorov, quando contestou o conceito de homogeneidade do discurso literário e mostrou que podem ocorrer características «literárias» fora da literatura, razão por que se tomou aceite que não existe nenhum denominadoI comum para todas as pro­duções 'literárias', a não ser o uso da linguagem. Por outro lado, ainda na linha de uma proposta posterior do mesmo linguista búl­garo, nunca são idênticas duas leituras (isto é, dois relatos de leitura) do mesmo texto, porque os relatos descrevem não o universo pressu­posto no texto, mas esse universo transportado para o espírito do leitor.

Outro código relevante a ter também em conta no processo de decodificação é o de género. Este respeita ao nível de leitura que pre­tende analisar o texto literário, funcionando assim como um código de recepção, um mecanismo de entendimento da proposta ficcional do autor. Neste sentido, sendo os géneros estruturas por meio das quais se exprime a imaginação do criador, há que estar atento à selec­ção destes instrumentos de comunicação com o leitor.

Falamos de comunicação - sem a restringir à comunicação lite­rária - porque o modelo operatório apresentado não se consubstancia apenas em coordenadas de leitura literária. Se esta surge como vector primeiro e fundamental, é afinal porque ela alarga o poder penetrativo de leitura a outros níveis. Como vamos ver, para além da dimensão literária da obra de Aquilino, procuramos dimensionar o valor genui­namente cultural e o valor estritamente linguístico.

2. Daí decorre que possamos enquadrar as diversas leituras do modo como segue:

2.1. do ponto de vista literário (referente a uma leitura litelária que toma o texto como objecto estético e avalia tecnicamente o contributo da obra aquiliniana para a literatura portuguesa).

2.2. do ponto de vista cultural (relativa à leitura que projecta várias das dimensões culturais, tais como a histórica, etnográfica, sociológica, geográfica, arqueológica, etc., tomando-se o texto -literário e não literário - como documento e/ou fonte de informação).

2.3. do ponto de vista linguístico (concernente à leitura que favorece uma específica abOldagem linguística, captando e estudando de modo particular as variedades diassistemáticas, em parti­cular as variedades diatópicas).

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Ainda que de modo necessariamente sintético, desenvolvamos os pressupostos de cada uma destas perspectivas de leitura e algumas das suas implicações:

2.1. A LEITURA LITERÁRIA

Como se deduz da própria enunciação, esta perspectiva de leitura olha o texto como objecto. estético, accionando à partida os meca­nismos, regras e convenções que regulam o exercício de um sistema modelizante secundário, a saber, o sistema semiótico literário. Está agora em causa o discurso da narrativa literária e não já o do autor empírico, com os referentes reais que a este se associam. Trata-se de um discurso de ficção e como tal deve ser lido.

Obviamente que não «desprezamos» neste prisma de leitura a componente linguística essencial do texto literário. Sabemos bem como este texto assume todas as virtualidades do texto linguístico, no qual se apoia para poder estabelecer comunicação. Ou seja, sendo «o texto literário necessariamente constituído numa língua natural e histórica, em última instância, os mecanismos de semiose literária pressupõem e potenciam as virtualidades dos mecanismos de semiose linguística». Sem embargo, dada a especificidade do uso que Aquilino faz da sua língua, ao nível da implantação num determinado espaço geográfico, a materialização dialectal dessa língua merece bem um estudo autónomo. Daí enquadrarmos esta abordagem numa perspec­tiva de leitura diferenciada.

Note-se, contudo, que a clareza desta <deitura linguística» (e a emer­gência dos seus códigos) pode tomar-se fundamental para a percepção daquela outra, já que sem o accionamento de uma «competência lexical» não é possível ler um texto verbal, literário ou não literário. Ora, porque tem faltado essa competência lexical para ler Aquilino, ou seja, o efectivo domínio da língua (sobretudo ao nível vocabular), para decodi­ficar a sua língua literária, é ao nível da leitura literária que mais tem faltado - e falhado - a recepção crítica da sua obra. Só por isso? Talvez não. Também há que ter em conta o preenchimento do «hori­zonte de expectativas» do potencial leitor/crítico, que é levado a prete­rir o escritor «regionalista», «prosador», «estilista», «anticlerical», «revolucionário», etc., por discursos menos etiquetados e ... mais acessíveis à sua competência comunicativa.

Por outro lado, a valorização dada até hoje à obra de Aquilino quase se cingiu à dimensão temática e/ou ideológica, mesmo assim,

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como a crítica especializada reconhece, ao nível macroscópico 2.

Com efeito, é prática comum encontrarmos na escassa bibliografia passiva aquilinianaa preocupação pela enunciação da temática ou então dos «vectores fundamentais» de toda a obra. Custa aos críticos - e mea culpa, sendo caso disso - descer ao nível de análise microtextual e potenciar estímulos para a leitura integral da obra. E, como sabe­mos, nada nem ninguém pode substituir o contacto directo, solitário e intransmissível com o texto literário. Mesmo quando os gramáticos manuseiam os textos de Aquilino, principalmente para exemplificações de cariz estilístico, perde-se a dimensão de texto integral, devido à ausência do contexto em que qualquer microtexto se insere ..

No caso da obra de Aquilino, está praticamente por fazer a crítica literária das suas obras. Poucas tentativas sistemáticas foram feitas que supusessem análises técnico-literárias (embora de diferentes orien­tações metodológicas), devidamente arquitectadas ao nível da análise textual ou mesmo do enquadramento estrutural da obra literária.

Se não, vejamos: que análises existem ao nível da caracterização tipológica das várias obras de ficção, atendendo quer ao seu polimor­fismo, quer aos géneros sugeridos pelo autor? Que estudos já procura­ram uma classificação sistemática da produção narrativa ou até dramá~ tica? Quantos trabalhos existem de análise estrutural sobre o estatuto do narrador, a importância do narratário, a caracterização das persona­gens, as categorias do espaço, do tempo e da acção ou a perspectiva narrativa? Que análises de incidência semiótica se conhecem sobre as obras de ficção, designadamente romances, novelas ou contos? Vistas no seu conjunto e atendendo à especificidade de cada obra, que critérios foram adoptados para delimitar obras de ficção com nítidas marcas autobiográficas, de livros de memórias ou de outras formas de discurso autobiográfico? E quanto à expressão ideológica, designadamente a que é manifestada pelo narrador?

Não é gratificante reconhecê-lo, mas quase tudo está por fazer a este nível da crítica literária. Ainda assim, não queremos deixar de mencionar alguns trabalhos que, neste panorama desolador, cons­tituem válidas (ainda que discutíveis) apreciações da obra de ficção de Aquilino Ribeiro. Dos estudos mais sistematizados, refiram-se os de Taborda de Vasconcelos 3, de Frederick Hesse Garcia 4, de Nel1y

2 LoPES, Óscar (1987), p. 397. 3 VASCONCELOS, Taborda de (1965). 4 GARCIA, Frederik C. Hesse (1981).

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Novaes Coelho 5 e de Óscar Lopes 6. Ao nível de crítica literária com objectivos didácticos, são conhecidos os trabalhos de Fernando Hilário Ferreira e de Maria do Carmo Albuquerque, autores de .estu­dos auxiliares de leitura d'O Malhadinhas 7 (que merecem alguns repa­ros), e Michael Metzeltin, que realizou um trabalho orien.tadopelos princípios operatórios da teoria do texto sobre o Romance da Raposa 8.

E aí temos como em meia dúzia de referências cabem os ensaios de maior fôlego de crítica literária publicados até hoje (em Portugal e no Brasil), sem obstar a que reconheçamos a qualidade intrínseca e a inegável acuidade de outros estudos parcelares, dispersos em publi­cações periódicas 9.

Outro aspecto importante a ter em conta é o que concerne à ausência de estudos que explicitem as relações das obras com certos sistemas estéticos e ideológicos, susceptíveis de explicarem as suas propostas narrativas e sua configuração global. É o caso, por exemplo, ,das coordenadas de um determinado universo periodológico, cujas linhas de força temáticas, ideológicas, ou técnico-literárias, se podemencon­trar projectadas nos textos; é ainda o caso da evolução estética da produção literária do autor, o que na obra de Aquilino se prende a um linear processo de propostas estético-literárias.

É interessante, ainda assim, acompanhar as oscilações de opinião por parte do escritor sobre a «literatura' regionalista». Dos textos significativos sobre tal matéria, um deles . é o que pode ler-se mais demoradamente em Abóboras no Telhado, de onde extraímos esta passagem:

«Passou' de moda a literatura regionalista? Honestamente terá de res­ponder-se: Passou, pelo menos no que podemos considérar a sUa técnica. Exame feito, veio a reconhecer-se quanto o proCesso era artificioso elll' seu absoluto, só aparentemente deixando de o ser levado até ao extremo limite da sublimação mercê da arte consumada dum ou doutro cultor ( ... )

Neste artigo, com regionalismo ou sem ele, haveria muito que dizer. Assim, por exemplo, isso que certos criticos encartados denominam rebusca do vocabulário traduz tantas vezes a sua santíssima ignorância. ( ... ) Mas

S CoELHO, Nelly Novaes (1973). 6 LoPES, 'ÓScar (1987), entre outros estudos fundamentais do autor. ' 7 FERREIRA, Fernando Hilário (1990) e ALBUQUERQUE, M. do Carmo (1982). 8 METZELTIN, Michael (1981). 9 Consideramos mesmo que as análises mais argutas e penetrantes sobre a

obra aquiliniana têm surgido em trabalhos ocasionais, em revistas ou outras publicações periódicas. Sirvam de exemplo os casos da Seara Nova,~da Colóquio­-Letras e dos Caderrws Aquilinianos.

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note-se que ela [a escola regionalista] desceu-se não só a beber a linfa verbal na origem imareada como a explorar temas desdenhados da vida rústica e provinciana. Alguns deles, de uma frescura insuspeitada, vieram refrescar a temática literária, até então galicista de todo.» 10

A este propósito, diga'-se quehóuve mesmo quem já procurasse seccionar o todo da obra de Aquilino em dois grandes ciclos, tomando-se assim à letra o que o autor propusera no texto que precede o romance Andam Faunos pelos Bosques 11. Parece-nos demasiado sim­plista tal divisão. E por duas razões básicas: primeiro, porque o autor voltaria a tratar temas regionais em obras posteriores ao que designa «fim do primeiro ciclo». Além disso, mais tarde, no «solilóquio auto­biográfico literário» 12 volta a perfilhar os princípios do regionalismo em literatura, sob contornos já um pouco diferentes em relação às primeiras formulações.

- Em suma, dado o carácter multímodo e polifacetado da toda a produção literária aquiliniana, que se estende desde o livro de contos Jardim das Tormentas (1913) até ao livro de novelas A Casa do Escorpião (1963), só o surgimento de estudos críticos pode manter vivo o seu interesse. E para tanto, são insuficientes os válidos contributos dos críticos que viram naquela primeira obra o embrião de toda a obra posterior do romancista. De entre os trabalhos que apontavam nessa direcção salientem-se os de Óscar Lopes 13, de Fausto Nogueira 14,

de Álvaro Salema 15, de Taborda Vasconcelos 16, ou de Nelly Novaes Coelho 17. Destes, merece particular destaque o trabalho de Nelly Coelho, intitulado Aquilino Ribeiro: Jardim das Tormentas, Génese da Ficção aquiliniana. Neste ensaio -'- que constituiu a tese de doutoramento da autora, apresentada na Universidade de São Paulo e até hoje a única dissertação desse nível académico - conse­gUiu-se com certo êxito caracterizar, por antecipação, o mundo genuíno da ficção aquiliana. Mas apesar do carácter' precursor deste trabalho, sobretudo quanto à metodologia de investigação, praticamente não despertou ainda segUidores no âmbito da crítica literária.

10 RIBEIRO, A. (1955), pp. 80-85. 11 RIBEIRO, A. (1926). Prefácio. 12 MENDES, M. (1977). No «Solilóquio» pode ler-se, dito por Aquilino, «Serei

sempre eSCl"itor regionalista- pro domo mea», p. 85. 13 LoPES, Óscar, (1987) e outros. 14 NOGUEIRA, F. (1954). 15 SALEMA, Álvaro (1963). 16 VASCONCELOS, T. de (1965). 17 CoELHO, N.N. (1973).

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2.2. «A LEITURA CULTURAL»

Se neste primeiro tipo de leitura falámos genericamente do texto, aqui, por comodidade terminológica, poderíamos falar simplesmente do etnotexto. Neste nivel, dá-se agora incidência à leitura dos textos aquilianos de um ponto de vista cultural. Pesquisaremos elemen­tos relativos ao ethnos, tomando-se por conseguinte o texto nas suas relações contextuais de natureza, grosso modo, etnográfica e cultural. Nesta perspectiva, será mesmo primordial avaliar o con­tributo cultural de Aquilino como etnólogo, lato sensu.

A pesquisa poderá ser feita segundo dois sentidos e dois cotpora de análise. Por uma via, tomar-se-ão os textos de natureza ensaística, de diversa índole, relativos ao ethnos,. isto é, não apenas o estudo «dós homens e do povo», mas também o estudo desses homens integrados no • contexto dos seus agrupamentos naturalmente constituídos. Por outra via, poderiam estabelecer-se relações entre os textos literários e o contexto histórico-cultural, o qual nos remete, por sua vez, para códigos e nOlmas vigentes no momento de produção desses textos. Feito este estudo, estaríamos dentro do que pode ser designado, com alguma liberdade, de história da cultura, já que a literatura a ela se associa indissociavelmente.

Por aqui se vê que o texto, enquanto entidade semiótica; propor­dona o accionamento de outros códigos de interpretação que não operam no âmbito restrito da literariedade. De facto, tratando-se de uma análise semiótica do texto literário, a abordagem dos códigos téciJ.ico-literários não é por si suficiente para explicar todas as virtua­lidades significativas da mensagem literária, visto esta integrar em si elementos que não se podem considerar como exclusivamente vinculados à dimensão literária. Neste contexto, apelaríamos então ao contri­buto de outros códigos. Chamar-Ihes-emos códigos paraliterários, seguindo a proposta de definição que os caracteriza pelo facto de «inte­grarem repertórios de signos que não esgotam a sua eficácia semiótica apenas no domínio da linguagem literária, já que se estendem também a zonas de influência mais amplas a que poderíamos genedcamente conferir uma dimensão cultural» 18.

Esta dimensão cultural abarca a manifestação de outras dim.ensões que se projectam a partir do texto literário. O leitor capta os códigos

18 REIs, Carlos (1978) p. 399.

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temáticos e os códigos ideológicos, os quais implicam, como é óbvio, a configuração de outros sistemas éUlturais para além do sistema lite­rário. Eles constituem, aliás, sistemas de signos imprecisos, uma vez que não se limitam a um campo cultural específico. Alguns vectores poderiam nortear trabalhos participantes desta natureza meto­dológica, segundo um tradicional tratamento de dicotomias, tais como: a aldeia-campo / cidade; primitivismo / civilização; ins­tinto / razão; a aldeia como entidade real/entidade idealizada; reli­giosidade / crença; relação homem / natureza; relação homem / mulher; ou aÜlda o simples desenvolvimento de temas como: a relação familiar do ponto de vista psicológico, ético e económico; coordenadas sócio­-espaciais da comunidade rural; o adagiário popular; a religiosidade popular, etc.

Entendemos que a sugestão de pistas de leitura contribui para o alargamento do horizonte de análises da narrativa dos textos literários. De facto, se atentarmos no discurso utilizado por Aqu.i­lino, sobretudo o descritivo, vemos como o narrador dá provas de um conhecimento profundo da realidade social e rural portuguesa, podendo alguns dos seus livros ser lidos como se de um manual de sociologia etnográfica da primeira metade do século xx se tratasse. E com base nestes elementos fornecidos pelo texto literário, é igual­mente possível engendrar outros tipos de investigação, sejam de natu­reza geográfica, histórica, psicológica, religiosa, ecológica, antro­pológica, etc. É neste sentido lato que enquadramos a tal componente de leituraetno16gica,como lhe chamámos, porque parte de uma visão etnológica do texto, ou· seja, do etnotexto.

Estamos a lembrar-nos, a título ilustrativo, de um conhecido trabalho de Joel Serrão, «Rotina e inovação nas aldeias de Aquilino», que se enquadra bem neste contexto de leitura e que justamente o autor inseriu em estudos atÜlentes à cultura portuguesa 19.

Ainda do mesmo autor e de cariz parcialmente idêntico, veja-se o estudo histórico sobre o romance dos finais do século XIX e prin­cípios do século xx (desde O Crime do Padre Amaro, de 1875, a Terras do Demo, de 1919). Procura-se fazer «uma sondagem histórica atra­vés do romance» e o propósito do historiador da cultura fica claro quando a determinada altura se questiona:

«Com efeito, essa realidade rural portuguesa [dos primeiros romances de Aquilino], de novo reimplantada na trama da nossa problemática cultural,

19 SERRÃO, Joel (1965), pp. 87-100.

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como é que ela se nos depara através da experiência do romance realista-natu­ralista português? Ou, por outra~ palavras: como é que o conflito e o con­traste entre as experiências campestre e citadina se reflectiram e se refractaram, directa ou indirectamente, no romance que estudamos?» 20.

Podemos afirmar que, tomando como base de análise a obra de Aquilino, não estamos perante uma realidade indefinida, mas fica­mos a conhecer uma certa realidade da sociedade rural portuguesa, predominantemente regional, à qual se aliam repercussões económicas, sociais e culturais, entre outras. Daí pretenderem alguns críticos uma reconstituição linear do ambiente rural da Beira serrana dos princípios do século, através dessa obra.

Mas, para uma procura de referentes reais, pode o estudioso socorrer-se da obra ensaística de Aquilino, designadamente a de índole etnográfica. Aí assume-se explicitamente o autor empírico, que nos revela não só a sua idiossincrasia, como tambêm as marcas culturais (e sobretudo a interpretação pessoalizada dessas marcas) em relação à época e à sociedade do momento de produção textual. Neste contexto, algumas obras se apresentam como paradigmáticas, como sejam Arcas Encoiradas, de 1953; Geografia Sentimental, de 1951; Aldeia, de 1946; O Homem da Nave, de 1954; entre outras, algumas das quais foram designadas por «livros de rústicos». Aí se incluía, naturalmente, a faceta de «cronista», o cronista da Beira, etiqueta de que certa tendência regionalista se tem servido como baluarte.

No conspecto desta dimensão de leitura, importa considerar que o campo presente na obra de Aquilino provém de um conhecimento obtido de dentro. Só um conhecimento por dentro lhe permite pro­jectar essa imagem rústica, capaz de ultrapassar a escrita da própria terra. Com propriedade se exprimiu Maria A. Seixo, quando, a pro­pósito da presença da terrà nos romances de Aquilino, disse que ao escrever-se a terra ela deixa de ser apenas objecto, utensílio ou ponto de referência, e passa a ser uma espécie de objecto primeiro ou mesmo de sujeito irradiador 21.

Por outro lado, em relação à presença regionalista" também o autor procurou ultrapassar o mero propósito de descrever a região e os costumes da Beira-Alta. O regionalismo beirão entrou na lite~ ratura portuguesa porque ele nos remete para concepções mais pro­fundas do que uma simples descrição ambiental. Digamos que ele

20 SERRÃO, Joel (1978). 21 SEIXO, M. Alzira (1986) pp. 69-81.

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como é que ela se nos depara atravésda experiência do romance realista-natu­ralista português? Ou, por outra~ palavras: como é que o conflito e o con­traste entre as experiências campestre e citadina se reflectiram e se refractaram, directa ou indirectamente, no romance que estudamos?» 20.

Podemos afirmar que, tomando como base de anãlise a obra de Aquilino, não estamos perante uma realidade indefinida, mas fica­mos a conhecer uma certa realidade da sociedade rural portuguesa, predominantemente regional, à qual se aliam repercussões económicas, sociais e culturais, entre outras. Daí pretenderem alguns críticos uma reconstituição linear do ambiente rural da Beira serrana dos princípios do século, através dessa obra.

Mas, para uma procura de referentes reais, pode o estudioso socorrer-se da obra ensaística de Aquilino, designadamente a de índole etnogrãfica. Aí assume-se explicitamente o autor empírico, que nos revela não só. a sua idiossincrasia, como também as. marcas culturais (e sobretudo a interpretação pessoalizada dessas marcas) em relação à época e à sociedade do momento de produção textual. Nest~

contexto, algumas obras se apresentam como paradigmãticas, como sejam Arcas Encoiradas, de 1953; Geografia Sentimental, de 1951; Aldeia, de 1946; O Homem da Nave, de 1954; entre outras, algumas das quais foram designadas por «livros de rústicos». Aí se incluia, naturalmente, a faceta de «cronista», o cronista da Beira, etiqueta de que certa tendência regionalista se tem servido como baluarte.

No conspecto desta dimensão de leitura, importa considerar que o campo presente na obra de Aquilino provém de um conhecimento obtido de dentro. Só um conhecimento por dentro lhe permite pro­jectar essa imagem rústica, capaz de ultrapassar a escrita da própria terra. Com propriedade s~ exprimiu Maria A. Seixo, quando, a pro­pósito da presença da terra nos romances de Aquilino, disse que ao escrever-se a terra ela deixa de ser apenas objecto, utensílio ou ponto de referência, e passa a ser uma espécie de objecto primeiro ou mesmo de sujeito irradiador 21.

Por outro lado, em relação à presença regionalista,. também o autor procurou ultrapassar o mero propósito de descrever a região e os costumes da Beira-Alta. O regionalismo beirão entrou na lite~ ratura portuguesa porque ele nos remete para concepções mais pro­fundas do que uma simples descrição ambiental. Digamos que ele

20 SERRÃO, Joel (1978). 21 SEIXO, M. Alzira (1986) pp. 69-81.

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serve duas concepções básicas, sinteticamente ditas do seguinte modo: a primeira leva-nos a considerar a aldeia como a unidade mínima de organização social, assim se explicando melhor a importância concedida às relações entre a «unidade familiar» e a «uni­dade aldeã», aspectos relevantes em qualquer narrativa aquiliniana; a segunda permite explicar que a aldeia é como que um «labora­tório de experiências humanas», ou um centro vital da cosmovisão do mundo por parte do autor 22. Ela é a madre, lá estão as origens, lá se encontra o homem com a sua primitividade ancestral. Lá ainda está puro o idioma, donde, «por aqui se salva, se não por outros pre­dicados, a: arte regionalista» 23. É ainda no sentido do mundo da aldeia, do mundo rural, do mundo do artefacto, que converge a maior parte das referências textuais, das imagens, dos termos de comparação e da linguagem metafórica, tão poderosamente talhada por mestre Aquilino.

Com efeito, a imagem que Aquilino elaborou do mundo rural é a que provém da força da terra e do conhecimento profundo que tinha do modo de vida da comunidade serrana e beiroa. Ele próprio se incorporou nas andanças dos camponeses, o que lhe dava um gozo espiritual, assim confessado:

« ... ia às festas, às feiras e romarias com eles, bailava nos terreiros e, frequentando os serões estabulares, tomava parte em zaragatas, bodeganas, bandeado em suas maltas. Levei tão . longe o meu aldeanismo que nos des­piques de povo para povo, últimos vestígios ou últimos reflexos das antigas guerras tribais, vislumbráveis nestas rixas, eu alinhava na falange do lugar,

. armado em varapau e revólveo> 24.

Lido este relato, não se estranha que ocorram à nossa memória as façanhas do destemido António Malhadas. Torna-se inesquecível aquela figura do almocleve que, provecto dos anos, se senta num -dos poiais de pedra e, nas tardes de feira, desfia a sua crónica perante escrivães da vila e manatas... O nosso almocreve é bem uma figura ímpar da literatura e da cultura portuguesas. Como sabemos, há até quem considere O Malhadinhas o modelo mais perfeito da novela picaresca· em língua portuguesa 25, embora para nós não seja pacífico

22 MARGARIDO, Alfredo (1985). Veja-se a defesa deste ponto de vista num trabalho que aborda aspectos essenciais em relação à cosmovisão do autor.

23 RIBEIRO, Aquilino (1919), Prefácio, p. 11. 24 RIBEIRO, A. (1972), p. 133. 25 FERREIRA, João Palma (1981). Aí afirma o ensaísta, conclusivamente,

que o Malhadinhas e o mais célebre dos pícaros rústicos portugueses, embora não

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aceitar tal generalização. Já aceitamos ,mais facilmente que possa ser visto como um marco, representando na nossa literatura o fecho do ciclo de visões românticas do universo rural.

2.3. «A LEITURA LINGuíSTICA»

Antes de mais, impõe-se aqui uma explicação prévia: não são as leituras precedentes, antes de tudo, «leituras linguísticas»? Certamente que sim. Como sabemos, ao tomarmos como base de análise, em qualquer tipo de leitura, o próprio texto, deduz-se que a competência textual do leitor pressupõe necessariamente uma competência linguística. No entanto, ao generalizarmos esta designação pretendemos pôr o leitor no lugar do estudioso da língua, do linguista ou filólogo,ditando­-lhe a sua formação um prisma de leitura específico.

Diríamos, portanto, que perante o texto aquiliniano se desen­volve aqui não já uma «comunicação literária», também não uma «comunicação cultural», mas sim uma específica «comunicação lin­guística». Neste caso, o estudioso não olha para a língua como um meio, mas como um fim em si mesmo, denotando na língua literária aquiliniana uma série de particularidades de nível dialectal e sociolectal.

Com efeito, devid~ ,à extensão, à importância e aos modos de emprego da linguagew.'. regional e da linguagem popular na produção textual de Aquilino, bem se justifica uma abordagem estritamente linguística, designadamente de natureza lexemática e estilística. Tal como fizemos anteriormente na procura de condensação terminoló­gica, e já que o texto é aqui tomado enquanto modelo de variações diatópicas e/ou diastráticas, seríamos levados a falar do dialectotexto e/ou do sociolectotexto. Como.é sabido, quer as diferenças de lin-

sejam desenvolvidas as várias implicações inerentes a esta afirmação. Nesta obra é ainda o estudo introdutório que mais chama a nossa atenção. Aí pode ler-se: «a radicalização do plcaro como personagem exclusivamente dedicada a malfeitorias, leva, por oposição e desgaste, à tendência moralizadora, transformando-se o picaro em criatura que, sofrendo embora as calamidades da existência, deseja emendar-se e envereda pela vida religiosa», p. 16. Também Óscar Lopes, em Cinco Personali­dades Literárias, atribui particular ênfase ao elemento pícaro na obra aquiliana: «o segundo dominante [da obra aquiliniana] reside na luta da ladinice pícara do indiví­duo vivaz, forma superior e humana das forças da vida .. . », sendo esta ideia igualmente defendida noutros trabalhos do autor.

Pela nossa parte, não tomaríamos tanto à letra esta afirmação, quer devido a alguns traços relativos à caracterização do protagoni$ta, quer porque ão falar-se do.-pícaro se deve ter em primordial linha de conta a cépa castelhana da novela pica­resca e a sua- contextualização histórico-literária (séc. XVI).

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guagem no espaço geográfico (que se materializam nos chamados dialectos), quer as diferenças de linguagem entre as camadas sociais (que se consubstanciam nos chamados sociolectos) constituem varia­ções sistemáticas que se incorporam na teoria e na descrição da lín­gua. Daí o estudo de uma língua histórica ter de atender ao conjunto dos subsistemas linguísticos que nela se incorporam, os quais corres­pondem à adequação ou às necessidades de comunicação dos seus usuários. Dada a complexidade deste estudo, ele deve ser da responsa-­bilidade do linguista e/ou do filólogo, os quais não podem prescindir de uma delimitação precisa de factos linguísticos.

Na verdade e em rigor, só pela verificação e análise da presença dos elementos peculiares de cada região (e em especial das linguagens regionais nos próprios textos) se podem formular opiniões fundamenta­das sobre o carácter regionalista de uma obra. Nestes termos, prefe­rimos falar de regionalismo ou elementos regionalistas na literatura - tratando-se de textos literários - do que, imprecisamente, de <<lite­ratura regionalista». O que o escritor pode fazer é levar os regionalis­mos linguísticos para a literatura, particularmente ao nível vocabular, aquele em que é mais sentido pelo leitor o regionalismo de um escritor. Uma literatura deliberadamente regional ou regionalista nega em si mesmo a condição «universal» da literatura, ao circunscrever a sua dimensão textual ao nível da crónica. Na obra literária não é a língua em que foi escrita nem as particularidades linguísticas (mais ou menos castiças) que lhe conferem universalidade, mas sim a densi­dade humana e artística do teor dessa obra.

No caso do regionalismo de Aquilino, ele confere uma dimen­são. rude e· telúrica à sua obra, porque está em consonância com a realidade ambiental que intenta levar para a literatura; por isso, plasma na literatura um manancial vocabular de acordo com esse ambiente e com as personagens que o povoam. Mas a importância maior que concedemos ao regionalismo linguístico de Aquilino advém do . facto de o escritor ter feito dele, pelo menos em grande parte da sua obra, a matéria-prima do seu talento literário. Nessa medida, pensamos que o seu regionalismo é sobretudo linguístico. Sendo Aquilino um artífice de recursos verbais, ele encontrou na sua região a possibilidade de expansão de uma realidade verbal, uma expansão criativa, que lhe serviu de trampolim para outros regionalismos: os temáticos, os geográficos, os sociológicos, os ideológicos, entre outros.

Nesta medida, o contributo do linguista é fundamental para apro­ximar o leitor da «enciclopédia)) de Aquilino, especialmente quanto maior é o seu afastamento em relação à realidade regional e ao par-

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ticular modo de comunicação. O mesmo diremos em relação às variações de índole popular ou. popularizante. E mais: se é certo que as variações de índole diatópica e diastrática ocorrem nos textos em diversos níveis (fonológico, morfológico, sintáctico e semântico), como de resto já tivemos oportunidade de analisar alhures 26, é sobre­tudo ao nível vocabular que mais se manifesta o exercício do sin­gular domínio que o escritor possuia da língua. Daí o trabalho do linguista poder favorecer a competência lexical do leitor que vai ler Aquilino 27.

Neste entendimento, justifica-se a «necessidade» de glossários para ler Aquilino ... destinados a superar certos bloqueamentos de natu­reza lexical, por vezes invocados como explicação para a falta de lei­tura das suas obras. Como atrás dissemos, só com base na clara per­cepção do texto linguístico se pode partir para a exploração de todas as virtualidades do texto literário.

3. Que dizer, em jeito de conclusão? Passados 30 anos após a morte de Aquilino Ribeiro, vemos que o ensaismo crítico passou ao lado da sua obra, com generalizações pouco aprofundadas. Do mestre da língua ficou quase só como alquétipo na literatura portuguesa O Malhadinhas, muito embora uma experiência pedagógica consen­tânea na selecção dos livros mais interessantes para os adolescentes possa desaconselhar aquela novela para iniciação de leitura de Aqui­lino. Esta é, pelo menos, a opinião de Óscar Lopes, um dos maio­res conhecedores da obra aquiliniana, para quem «é disparatado ten­tar interessá-los [aos adolescentes escolares] por O Malhadinhas antes de Cinco Réis de Gente, Caminhos Errados, Aventura Maravilhosa ou A Casa Grande de Romarigães, mas só a experiência pedagógica poderá indicar qu.al o rumo para leituras aquilinianas, e isto para cada revoada de miúdos, que mudam de predilecções em menos de um lustro» 28.

Ainda para aquele ensaista, a gama excepcionalmente variegada das obras de mestre Aquilino e a sua versatilidade impõe a colocação de um problema didáctico para quem começa a ler, ou, digamos nós, para quem tem a responsabilidade de orientar a leitura. Mas não pensaram assim os compatriotas do escritor, que, pela «inércia de uma etiqueta» - a de regionalista - prejudicaram o seu acesso a uma

26 Já por mais de uma vez salientamos estas dimensões, em trabalhos publi­cados, ou em vias de publicação. Veja-se por exemplo o trabalho de nossa autoria, de 1988, em cujo estudo introdutório analisamos alguns destes aspectos.

27 FONSECA, J. (1985),pp. 242-249. ZS LOPES, Ó. (1990).

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leitura mais atenta por parte das novas gerações, ou até de leitores estrangeiros. Sobre o desconhecimento por parte deste último público, insurgiu-se um dia, meio indignado, Jorge de Sena, ao comentar, em 1960, as imprecisões da crítica brasileira, que não valorizara ainda devidamente a grandeza e a especificidade da obra de Aquilino 29.

E não valorizara, sublinhamos nós, neste sentido da recepção crítica de uma obra; uma receptividade crítica e informada que possua as qualidades de penetração, sensibilidade e argúcia, sem as quais o texto literário permanecerá mudo e incapaz de desvelar as virtuali~

dades estéticas e semânticas de que eventualmente se encontre dotado. Um grau zero de recepção de um determinado texto literário, como escreve Aguiar e Silva, «identifica-se com a ausência de concretização desse mesmo texto ( ... ); um texto que perde a energia de interacção semiótica na escrita e na leitura de outros textos volve-se gradual e inexoravelmente num texto morto ou, pelo menos, num texto letárgico e estéril nO devir do sistema literário» 30.

Ora, não é por falta de obra que deixa de se fazer o estudo crítico da obra de Aquilino. Como há algum tempo humorizava Jorge Reis, «a obra de Aquilino tinha trabalho para um mosteiro inteiro de bene­ditinos» 31. Para quem publicou quase setenta livros, é de estranhar a inexistência de estudos de grande fôlego, condizentes com a grandeza literária do escritor. O próprio Aquilino se surpreendeu. mais de uma vez, por a sua obra não ter encontrado ainda o estudioso e exegeta que merecia.

E contudo ele era nas palavras do «encartado» crítico João Gaspar Simões - com quem manteve acesa polémica, depois sanada­«o maior escritor português vivo». E mais recentemente, não foi Óscar Lopes quem considerou Aquilino, a par de Pessoa, os dois maiores vultos da literatura portuguesa do séc. xx? E não foi também David Mourão-Ferreira quem, em sugestiva apreciação da sua obra, consi­derou Mestre Aquilino fundamentalmente um grande poeta da língua portuguesa? Não se estranhe. O consagrado ensaísta explica que «a ficção narrativa pode ser, como no seu caso exemplarmente foi, uma das mais altas formas de poesia» 32.

29 SENA, Jorge de (1988). Aí se registam diversas reacções do autor às críticas à obra de Aquilino, feitas no Brasil. Numa delas, comenta incisivamente: «Aquilino Ribeiro e tido hoje como um dos maiores escritores da língua portuguesa», p. 41.

30 Aguiar e SILVA, V.M. (1982) p. 313. 31 REIs, Jorge (1988). 32 MOURÃo-FERREIRA, David (1990), p. 54.

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Porquê, então, este esquecimento da obra de Aquilino? Em parte, talvez devido ao facto de o escritor ter levado tão longe o seu regiona­lismo beirão, aliado às temáticas «rudes» e em certo sentido primitivas, quantas vezes aparentemente «incivilizadas». Isso lhe terá afastado alguns leitores, mesmo aqueles que, mais identificados com estas temá­ticas, podem ter preferido o regionalismo de um Vitorino Nemésio e de um João de Melo (em relação ao arquipélago açoreano), ou de um certo Miguel Torga (em relação ao telurismo transmontano), de uma Lídia Jorge da primeira fase (em relação ao ambiente algarvio). Ou ainda, além fronteiras, os significativos casos de um Guimarães Rosa (e o pujante Grande Sertão), ou do irlandês James Joyce (nas suas obras mais vocabularmente regionalistas).

Para finalizar, deixamos à consignação duas questões, cuja dis­cussão já não cabe aqui esmiuçar. A primeira leva-nos a colocar o problema de saber se a procura de genuinidade do regionalismo não terá diminuido a universalidade da obra de Aquilino, devido, em grande parte, às dificuldades de tradução da linguagem castiça, «tradução» dentro das fronteiras nacionais e tradução fora delas. Que razão, então, daríamos a Unamuno, quando no seu livro En Torno aI Casticismo escrevia que o casticismo da linguagem é condição da sua universalidade legítima?

A outra questão leva-nos a colocar o problema da língua em que escreve um escritor e o da sua universalidade. Seria Aquilino mais lido e traduzido se tivesse usado os regionalismos linguísticos de umaóutra língua mais ... universal? Talvez os próximos tempos possam dar alguma resposta, à medida da nova expansão da língua portuguesa. O desejo de Aquilino de que a sua obra fosse conhecida fora do país passa também por aí. E passa depois, certamente, por aquilo que ele confessava no seu «Solilóquio Autobiográfico literário» 33, três anos antes da sua morte: «Desejaria que a minha obra passasse as fronteiras, mas não sou impaciente, nem sôfrego. Isso acontecerá se eu o merecer».

33 MENDES, M. (1977), p. 74.

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