A navegação desconectada

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Rodrigo Pires é jornalista, pesquisador independente das novas mídias e mestrando em Filosofia

Por rodrigo Pires

Há pouco tempo, entre dez a quinze anos, a internet come-çava a se configurar no que conhecemos hoje, com toda

sua capacidade de tráfego de informa-ção e com o que podemos chamar de “interface gráfica”. No seu início, por volta de 1969, foi criada para auxiliar no intercâmbio de informações milita-res. Anos depois foi incorporada ao am-biente acadêmico. Naquela época, não passava de uma tela negra com códigos criptografados, algo muito técnico para ser acessado pelo público em geral.

No campo da Filosofia e da Literatu-ra, no entanto, muitos escritores pude-ram vislumbrar algo como a internet. E muitos conceitos foram usados para tanto. Em One Way Street, Walter Ben-jamim já falava do “hipertexto”, na for-ma como conhecemos hoje. “O fichário marca a conquista da escrita tridimen-sional e, deste modo, apresenta um ex-traordinário contraponto para a tridi-mensionalidade da escrita na sua forma original como runa e escrita nodular. E o livro hoje, tal como o presente modo de produção acadêmica demonstra, é

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As diversas conexões existentes entre as obras de Deleuze Guattari e Borges,

nos fazem refletir sobre a possibilidade de uma

“navegação desconectada”

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dizer que o fato de não possuir esse nú-cleo, a internet pode ser concebida por uma espécie de rizoma2: “o rizoma não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”.

Deleuze e Guattari usam o termo para designar sistemas que não possuem troncos. No rizoma, as ramificações são interligadas por meio de “nós”.

E é comum encontrarmos estruturas rizomáticas na natureza. O gengibre e a cana de açúcar, por exemplo, não pos-suem caule. Possuem apenas gomos e “nós”. Na internet, contudo, essas liga-ções são chamadas de links ou nexos.

O rizoma entretanto, tem início no pensamento. E com o bombardeio de informações que recebemos hoje, ape-nas os monges budistas conseguem

pensar. A internet veio nos mostrar como nosso pensamento se processa. É por meio de livres associações que vamos construindo nosso pensamento. Na grande rede isso é visivelmente pal-pável. Que usuário de internet nunca se pegou “vagando” nas teias da rede, em um estado letárgico, como se tivesse em mãos um poderoso controle remoto com capacidade para acessar 500 ca-nais? A grande diferença é que, nesta mídia rizomática, nós somos diretores,

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A internet veio nos mostrar como nosso pensamento se processa. É por meio

de livres associações que vamos construindo nosso pensamento

uma ultrapassada forma de mediação entre dois sistemas de arquivos. Pois tudo que importa se encontra no fichá-rio do pesquisador que o escreveu, e o aluno, ao estudar os textos, assimila o que importa em seu próprio fichário”. (BENJAMIM, 1978:78)1.

Um precursor das técnicas de inter-net, Teodhor Nelson, propôs o desenvol-vimento de uma biblioteca eletrônica que disponibilizasse um espaço para troca de informações. O conceito de biblioteca ele-trônica universal ele denominou de Docu-verse, e o projeto chamava-se Xanadu. O princípio era muito parecido com a Biblio-teca de Babel, do escritor argentino Jorge Luis Borges - em que ele descreve uma bi-blioteca como um espaço impossível de se percorrer por inteiro e onde é encontrada toda a informação disponível do passado, presente e futuro da humanidade.

Uma reflexão importante feita por muitos filósofos contemporâneos fala da capacidade descentrali-zadora da internet, ou seja, o fato de não existir um núcleo específi-co ou qualquer forma de totalita-rismo na rede.

Utilizando o conceito de Gilles Deleuze e Félix Guattari, podemos

1 Tradução retirada do livro “O labirinto da hipermídia” (Leão: 2001).2 O conceito de rizoma foi desenvolvido por Deleuze e Guattari (1995) no livro Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia - volume 1 ( Mil platôs é constituído por cinco volumes)

A vida de um monge budista está a salvo da avalanche de informações que recebemos hoje, o que, em tese, nos impede de pensar

“Há conhecimento de dois tipos: sabemos sobre um assunto, ou sabemos onde podemos buscar informação sobre ele” SAMUEL JOHNSON

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roteiristas e telespectadores de uma TV que nós mesmos programamos.

A obra escrita por Deleuze e Guattari se utiliza do conceito de rizoma também em sua forma estrutural. O livro inicia com esta nota explicativa: “Esse livro é a continuação e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia, cujo primeiro tomo é O anti-Édipo. Não é composto de capítu-los, mas de “platôs”. Tentamos explicar mais adiante o porquê (e também por que os textos são datados).

“PrÉ-hiPertexto”Em uma certa medida, esses platôs

podem ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão, que só deveria ser lida no final”. (Deleuze/Guattari, 1995: Nota).

A edição brasileira de Mille Plateaux foi lançada no Brasil em cinco edições,

devidamente autorizada pela editora e pelos autores. A observação colocada no início do livro, sugerindo que a lei-tura fosse conduzida em platôs, além de pertinente, tornou-se necessária. O conceito de platô, inspirado em Bate-son, mostra a potencialidade do meio em virtude da sua multiplicidade para conectar nexos e elos subterraneos que desenvolvem o rizoma.

Um rizoma não tem início nem fim, ele se encontra nos nós, nos elos, sempre li-gando uma coisa a outra, sempre em es-tado de alerta e na eminência de cons-truir uma espécie de constante vigília: “entre as coisas, inter-ser, intermezzo... A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção”. Nesse tre-cho do livro, Deleuze e Guattari tomam como exemplo de organização rizomáti-ca “viva” o sistema das formigas: “É im-

A evolução de um rizomA digitAl chAmAdo internet \A metáfora que o autor do texto utiliza para

exemplificar a estrutura literária criada por Deleu-ze e Guattari, na qual ele assemelha a internet à cana de açúcar, com “nós” interligando os gomos, nos sugere tomar a estrutura da planta como base para apresentar alguns dos fatos que marcaram a evolução da rede mundial de computadores, nos-so rizoma digital. confira:

1969 - com o objetivo de conectar as bases militares e os departamentos de pesquisa do go-verno americano, a agência americana ArPA (Advanced Research and Projects Agency) cria a ArPANet: a primeira rede interligada de compu-tadores. Meses depois, a tecnologia migra para o ambiente acadêmico, conectando quatro universi-dades norte-americanas.

1973 – surge a primeira rede internacional, com a participação de universidades da Inglaterra e da Noruega.

1989 – o físico inglês, tim Berners-Lee, cria um padrão gráfico para a internet, tornando a navegação mais atraente, dinâmica e interativa. Junto com o termo “www”, que significa “World Wide Web”, nasce uma nova era.

1990 – A internet chega ao Brasil, sendo libe-rado o uso apenas a instituições educacionais, de pesquisa e órgãos do governo.

1994 – em novembro, “cadabra” abre suas por-tas virtuais e vende o primeiro livro pela internet.

2004 – Junto com a Web 2.0 surgem os primei-ros projetos colaborativos, como o orkut (site de rela-cionamento), o Wikipedia (enciclopédia digital) e o Youtube (site de compartilhamento de vídeos), que, a cada dia, batem recordes de acessos diários.

2009 – cabe novamente a pergunta: transbordará?

complemento da redação

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pessoas que adquirem diariamente o há-bito de usá-la, torna-se praticamente im-possível pensar na extinção da internet.

Assim como as estruturas rizomáti-cas encontradas na natureza, o rizoma digital é formado por nós e nexos. Pode-ríamos dizer que os nós são os blocos de informações, também chamados de

lexia. Um nó poderia ser, basicamente, uma página ou um site3, constituído por textos, fotos, áudio, vídeo etc. E como eles constituem uma imensa rede? O link pode ser chamado de uma espécie de “nó eletrônico” que, ao conectar um arquivo a outro, contribui na formação da estrutura rizomática do universo di-gital, levando a construção da imensa rede que hoje conhecemos.

A BABel de BorgesÉ impossível ficar incólume à seme-

lhança de justaposições entre o texto de Borges, A Biblioteca de Babel, com a principal teoria de Mille Plateaux, o rizoma de Deleuze e Guattari. No se-gundo parágrafo do primeiro tomo da edição brasileira de “Mille”, os autores usam como exemplo de criação rizo-

A grande diferença é que, nesta mídia

rizomática, nós somos diretores, roteiristas e

telespectadores de uma tV que nós

mesmos programamos

A estrutura rizomática da internet dá ainda mais possibilidades ao usuário do que o controle remoto que permite vagar entre os canais da TV. E o pensamento surge dessas livres associações

“Sempre imaginei que o paraíso será uma espécie de biblioteca” JORGE BORGES

possível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir... Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que re-estratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um signifi-cante”. (Deleuze e Guattari: 1995)

A estrutura da internet possui o mes-mo princípio do rizoma animal citado pelos escritores no livro. A hipermídia, uma evolução do hipertexto, é forma-da pela conjunção de vários tipos de mídias (foto, texto, vídeo e áudio) que, somada a uma lógica de códigos biná-rios, resulta na internet. Essa sinergia enquadrada numa tela de luz possui esse poder de reconstrução.

Existem várias formas de tentar acabar com a grande teia, mas o que torna isso menos possível são os métodos disponí-veis para tal destruição. Pode-se acabar com todos os computadores do mundo, mas sobrando dois, a internet ainda exis-te. Somando-se a isso a quantidade de

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3 Página que possui algum tipo de informação que possui um endereço na internet

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Theodor Holm Nelson (1937). Filósofo e

sociólogo americano, é pioneiro na tecnologia da informação, tendo inventado os termos

hipertexto e hipermídia. Tentou facilitar a escrita

não-seqüencial

enciclopédiAs \ on-line: um rizomA “vivo” nA webPara compreender melhor o concei-

to de rizoma, citado pelos filósofos Gil-les Deleuze e Félix Guattari no livro Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. – basta conectar-se à internet e aces-sar algumas das enciclopédias digitais disponíveis na web. A mais conhecida e acessada delas é a WikiPedia (www.wikipedia.org).

criada em 15 de janeiro de 2001 pelos americanos Jimmy Wales e Larry sanger, a enciclopédia digital, que se baseia no sistema wiki (do havaiano wiki-wiki = “rápido”, “veloz”, “célere”), nasceu com a finalidade reunir e dis-ponibilizar na rede a maior quantidade de artigos multimídia e multilíngüe dos mais diferentes assuntos.

Atualmente, a Wikipedia está dispo-nível em 257 idiomas e reúne aproxi-madamente 7,5 milhões de artigos, sen-do que 2,1 milhões atendem a língua inglesa e 464 mil a língua portuguesa

(dados de 2 de março de 2009). o número total de páginas ronda as 24 milhões e inclui imagens, páginas de usuários, páginas de discussão, catego-rias, predefinições, páginas de gestão dos projectos, entre outras.

todo esse sucesso resume-se a uma palavra: liberdade. Na WikiPedia quem atualiza o site e acrescenta novos artigos são os próprios usuários, que, por meio de uma ferramenta disponível no site, po-dem incluir, editar, modificar e até am-pliar os artigos já existentes no mesmo. Porém, é proibida a modificação de arti-gos originais e edições complementares.

o que isso tem a ver com o rizoma de Deleuze e Guattarri? talvez a gran-de maioria dos usuários do WikiPedia espalhados pelo planeta não tenham percebido, mas, certamente, estão dian-te de uma enciclopédia que não tem começo nem fim e que o “meio” ainda está em pleno desenvolvimento.

mática, a forma de concepção de uma obra literária.

Deleuze e Guattari enfatizam que, para conceber uma obra, é preciso que se preste atenção às influências e exterioridades que circulam duran-te o processo criativo. Em razão des-se caos criativo, apontam a estrutura rizomática. “Um livro é um tal agen-ciamento e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade.”

A Babel de Borges é construída como uma réplica literária do Universo, criando uma homenagem às descober-tas científicas e servindo também como paralelo ao desenvolvimento da teoria

deleuziana do rizoma. Ele des-creve-a como um espaço tão gran-de que é impos-sível percorrê-lo e onde se encontra toda a informação (e consequentemen-te toda desinformação) do passado, presente e futuro da humanidade.

Reforçando a metáfora relacionada à internet, Borges fala na dificuldade de se encontrar algo de valor na biblio-teca, por sua vastidão de informações. A cada passo que damos na biblioteca borgeana, torna-se inevitável fazer um

O projeto Xanadu (1960), idealizado por Theodor Nelson, pretendia criar um software que permitisse ao leitor escolher seu caminho de leitura, não linear, dentro de uma espécie de biblioteca global online (que chamou de Docuverse) que conteria, em formato de hipermídia, toda a literatura da humanidade. Inspirou a criação da Web, criticada por ele como simplificação grosseira do Xanadu

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reFerÊNCiAs

BORGES, Jorge Luís. Biblioteca de Babel. Obras com-pletas I. São Paulo: Globo, 1998.DELEUZE, Gilles e Félix Guatarri. “Introdução: rizoma”, Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, v.1 Rio de Ja-neiro, Ed, 34, 1995. LEÃO, Lucia. O labirinto da hipermídia. São Paulo, Ilu-minuras, 2001

paralelo com a web. Vale lembrar que na rede mundial de computadores es-tão disponíveis bilhões de informações e isso cresce a cada momento.

“... Afirmo que a Biblioteca é intermi-nável. Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço...basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: “A Biblio-teca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível...” ( Borges:1998)

O fio de prata que conecta os dois textos adquire mais força e percepção em algumas situações ambivalentes: a biblioteca borgeana funciona como uma espécie de desdobramento para a produção e desenvolvimento de Mille Plateaux vinte anos depois.

Assim como o escritor argentino fala de uma biblioteca onde caberia a história do passado, presente e futuro do universo, os autores de Mille susten-tam que a obra possui conexões pro-positais e que a produção dos textos não pode ser atribuida somente a eles. Eles propõem uma interpretação em cadeia, com multiplicidades.

O texto de Borges é narrado por uma pessoa que nasceu, cresceu, vive e acredita que morrerá na biblioteca, um personagem desterritorializado que também pode ser percebido em Mille Plateaux: “Escrevemos o Anti-

Edipo a dois. Como se cada um de nós fosse vários, já era muita gente. Utili-zamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Dis-tribuímos hábeis pseudônimos para dissimular”. Qualquer semelhança entre esse personagem e cada um de nós, que estamos imersos na fluidez do universo e em estruturas rizomá-ticas que nos angustiam em vida, é mera coincidência.

o rizoma não é feito de unidades, mas de

dimensões. ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo

qual ele cresce e transborda

A biblioteca de babel, invenção literária de Borges em que estariam livros com

todo o conhecimento do universo , é uma metáfora que alude à torre de babel

bíblica. Em ambas, há confusão pela falta de um elemento ordenador que consiga estabelecer uma

relação inteligível em meio a tantas coisas

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