A Negritude Poetica de Tenreiro

Murilo da Costa Ferreira. De Corao em frica: a negritude potica de Francisco Jos Tenreiro [pgina 1/19]

Nau Literria: crtica e teoria de literaturas seer.ufrgs.br/NauLiteraria

ISSN 1981-4526 PPG-LET-UFRGS Porto Alegre Vol. 07 N. 01 jan/jun 2011

Dossi: literaturas africanas de LP

De Corao em frica: a negritude potica de Francisco Jos Tenreiro

Murilo da Costa Ferreira*

Resumo: O presente artigo concentra-se nos poemas de Francisco Jos Tenreiro, vendo-os como fato esttico, cultural e ideolgico e neles destacando a rubrica da negritude no conjunto de sua obra. Na economia dos meios literrios, a potica de Tenreiro revela sua qualidade atual, problematizando os conceitos de negritude que atuam na prpria noo de literatura e de histria do negro em frica e na dispora, ao estabelecer uma nova visualidade literria para ele.

Palavras-chave: negritude; poesia; dispora; transtextualidade

Abstract: The present article concentrate on the poems of Francisco Jos Tenreiro, seeing them like an aesthetic, cultural and ideological fact and emphasizing the negritude rubric of his work set. In the economy of the literature media, the poetry of Tenreiro reveal its actual quality, debating the negritude concepts that actuate in the proper notion of literature and of the negro's history in Africa and in the diaspora, establishing for him a new literary visuality.

Keywords: blackness; poetry; diaspora; transtextuality

Eu sou um homem invisvel (...). Eu sou invisvel, compreende, simplesmente porque o povo recusa em me ver.

Ralph Ellison

1 Introduo Em cena os textos poticos de Francisco Jos Tenreiro (1921-1963), editados no livro

ps-morte intitulado Corao em frica (1982). Potica-pesquisa da singularidade de um fazer artstico engajado e comprometido com o iderio dos movimentos polticos e culturais de sua poca. Acreditamos na existncia de fatores de transtextualidade que pem os versos de Tenreiro como textos em relao, porque queremos apontar para uma manifestao ocorrida em diversos lugares, quase que simultaneamente, para a qual atribumos a expresso negritude potica. Os movimentos da negritude e do panafricanismo propuseram um iderio poltico-cultural que ensejou uma imensa produo literria nas Amricas, Europa e frica e estabeleceu uma rede imbricada de relaes entre as obras. Poder-se- encarar a integrao da obra de Francisco Jos Tenreiro numa determinada srie literria, caracterizada pelo "sentido

* Mestre em Letras pela UFF e doutor em Letras (Letras Vernculas) pela UFRJ. Atualmente professor adjunto

da Universidade do Estado da Bahia, professor efetivo do Programa de Ps-graduao em Crtica Cultural, em nvel de mestrado, e professor de ps-graduao em Letras da Universidade Cndido Mendes.

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Nau Literria ISSN 1981-4526 VOL. 07, N. 01 JAN/JUN 2011 seer.ufrgs.br/NauLiteraria


dialtico da construo do imaginrio poltico dos escritores engajados contemporneos" (ABDALA JR, 1989, p. 12).

A perspectiva do materialismo dialtico pode chegar a escritores que, em sua origem social, estavam distanciados da matria que lhes serve de referncia. A srie ideolgica, como outras sries culturais, tambm tem sua autonomia relativa. Tal pressuposto tenta estabelecer um processo de leitura e anlise pensado como renovao e que revitaliza o sentido dos textos poticos de Corao em frica, desvendando-lhe nuances, explicitando-lhe tendncias, realando-lhe virtualidades. Em suma, uma abordagem do processo de "intensificao textual", empreendido no interior do percurso literrio da sua obra, comprometida com o iderio da negritude e do panafricanismo. O denominador comum desta relao intensiva o desejo do negro diasprico e africano de proceder sua prpria leitura e interpretao.

2 Negritude, Literatura e Poltica Investigar a produo potica de Francisco Jos Tenreiro implica um duplo desafio.

Significa, por um lado, enfrentar a palavra crtica do passado recente que a cristaliza como pouco "ligada"1 aos movimentos da negritude e do panafricanismo. Por outro, desafia um presente que se afirma encerrado, depois de o ocidente ter conquistado o domnio mundial e decretado o "fim da histria", segundo a concepo de Francis Fukuyama (1992), marcando a derrubada do comunismo nos pases do leste europeu e o triunfo do capitalismo. Para isto, o ocidente toma como pressupostos "a integridade e inviolabilidade de suas obras-primas culturais, de seu saber e seus mundos discursivos; o resto do mundo fica suplicando ateno no peitoril de nossa janela" (SAID, 1995, p. 322). A conquista da frica, da sia e das Amricas, que para os conquistadores abre na histria da Europa uma nova poca, significa para os povos submetidos e exterminados, o fim da histria. A atual etapa de conquista pretende ser, na perspectiva dos seus protagonistas, "a 'soluo final' do problema da histria, cujo sentido consiste no triunfo dos poderosos e no enterro das suas vtimas." (GIRARDI, 1996, p. 18).

Entretanto, no se l a obra de Francisco Jos Tenreiro impunemente. Toda a malha que compe o frgil tecido da nossa leitura histrica do homem negro, sob o domnio do ocidente, torna-se visvel e permanece desafiadora no conjunto de seus textos. Est ali, por

1 Russell Hamilton sugere que melhor seria designar, por exemplo, o autor de Ilha de Nome Santo de

"poeta da mulatitude" (In Voices from an Empire, p. 16). Ou, ainda, alm do binmio negritude-mulatitude, Salvato Trigo que introduz um terceiro conceito - o de "crioulismo"(Obra Potica, TENREIRO, 1991, p. 7). Ver, tambm, o estudo da obra de Francisco Jos Tenreiro em De Letra em Riste, de Jos Pires Laranjeira. Este crtico discorda de Salvato Trigo que "considera no haver negritude nem na poesia de Tenreiro nem na restante (literatura) africana de lngua portuguesa." (1992, p. 61).

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exemplo, presente no poema Corao em frica, a sociedade submersa dos negros americanos na trama do apartheid: "Mac Gee cidado da Amrica e do Mundo Negro/Mac Gee fulminado pelo corao endurecido feito cadeira eltrica" (TENREIRO, 1982, p. 125). A histria factual que se escreve sobre um negro americano condenado por ter olhado para uma mulher branca, e por isso ser acusado de viol-la2, a mesma do "historiador do poema", daquele que pretende lanar sobre o "fim" da histria do ocidente, o comeo da do "ocidente" africano. para l que o corao de Mac Gee poeticamente transportado para que permanea "sempre vivo" e dele possam desabrochar "flores vermelhas/e tambm azuis e tambm verdes e tambm amarelas/na gama policroma da verdade do Negro" (TENREIRO, 1982, p. 125). Assim, no africano cho desterritorializado poder florescer uma nova histria. Os poemas de Tenreiro fertilizam, desse modo, a terra, para cantar/contar vrias histrias, cada uma delas com suas verdades e fazer-se uma voz a mais na "sinfonia humana"3.

Pela desconstruo do "mito do bondoso Pai Toms", o poeta mergulha dentro de si e de seu passado e encontra feridas humilhantes que o estimulam a prticas diferentes ou a rever o passado, buscando um novo futuro. Tal se justifica por que a formao de uma conscincia nacional em Angola, Moambique, So Tom, Prncipe, Cabo Verde e Guin-Bissau, para s ficar na frica dominada pelo colonialismo portugus, passa necessariamente pela literatura, ou melhor, por uma: "batalha literria (que) adquire uma justificao real na maior escala possvel"4. O negro, outrora calado, fala, expressa e age pela voz do sujeito potico. A disputa pela palavra justa faz da poesia, neste instante, um punhal afiado. Sartre, em seu prefcio a Os Condenados da Terra, de Franz Fanon, afirma que, se os colonizadores europeus detinham a 'palavra', "os outros tinham o uso dela [...] Nas colnias a verdade andava nua, mas os cidados da metrpole preferiam-na vestida" (FANON,1979, p. 3). Na nudez castigada dos negros em frica, na dispora e em todos os homens "que so tantos e todos escravos entre si"(TENREIRO, 1982, p. 127), Francisco Jos Tenreiro tem necessidade de encontrar a base

2 A morte de Wille McGee na cadeira eltrica em Laurel no Mississipi, em 9 de maio de 1951, teve

verdadeira repercusso internacional. McGee, um negro de 37 anos que trabalhava num posto de gasolina, foi acusado de violao de uma mulher branca e, de acordo com um artigo publicado em The Nation (vol. 172, n18, 5 de maio de 1951), quatro dias antes da execuo, foi condenado, por ser negro e por ser defendido pelos comunistas e, no, com base em quaisquer provas convincentes. 3 Esta expresso est inserida, sem mencionar a autoria, por causa de censura, no artigo do autor so-

tomense publicado na revista Mensagem intitulado "Processo Poesia". Nele, Francisco Jos Tenreiro utiliza esta expresso para falar "de uma frica que abruptamente nasce para cantar na "sinfonia humana" (grifo nosso) (Coimbra, Ano XV, abril de 1963, n 1, p. 7-8. Apud TENREIRO, 1982, p. 33-34). Este sintagma pertence nota introdutria de Mario Pinto de Andrade para o livro Poesia Negra de Expresso Portuguesa: "os timbres particulares (que os negros exercitavam) para cantar na grande sinfonia humana" (grifo nosso) (idem, p. 34) Neste ano de 1963, o escritor angolano j se encontrava na clandestinidade e seu nome era impossvel de ser mencionado. 4 Cf. Kafka: Carta a Broad, junho de 1921, Correspondance, p. 394. Apud DELEUZE e GUATTARI,

1977, p. 25.



ideolgica, de caminhar em regies utpicas, de dar tom pico enunciao lrica de seus poemas e de tecer, nos fios alinhavados dos versos, a unio do Negro de Todo Mundo, caminhando ao encontro de uma "unidade mais ampla do que qualquer outra que jamais existiu." (DAVIDSON, 1981, p. 266). Esta unidade mais ampla, a que se refere Basil Davidson, a busca incondicional da africanidade, empreendida pelo autor so-tomense, fazendo eco com muitas outras vozes africanas expressas em portugus, em francs e em ingls. Mrio Pinto de Andrade classifica F. J. Tenreiro de representante da primeira fase da "moderna poesia africana de escrita portuguesa" (ANDRADE, 1975, p. 7) marcada pela negritude5.

Abrir o livro Corao em frica, reclamando-lhe outro estatuto , sobretudo, arriscar. Sabemos que o autor so-tomense escreve a partir de uma situao de "exlio" em Portugal, cujas constantes presses causam-lhe tenses interiores e a mensagem de resistncia e contestao o resultado histrico da subjugao ao colonialismo portugus. Entretanto, os aborrecimentos e as preocupaes podem ser revertidos em um objetivo mais alto. Os "Caminhos trilhados na Europa/de corao em frica" (TENREIRO, 1982, p. 124), percorrido pelo sujeito potico, transformam este sujeito em um "emissrio" que, com a sua voz, busca construir a liberdade poltica, at aquele momento, irrealizada, bloqueada e adiada.

A literatura, a poltica e a histria juntam-se, na poesia de Tenreiro, para no se impor a limitao indesejvel de isolar a arte do conjunto assim formado. O nosso desafio ser combater o costume, muito antigo, de deixar as coisas como esto, pois, afinal, os argumentos de autoridade so como slidas portas de madeira de lei, trancadas a sete chaves6. Consideramos que o termo poltico se conjuga com o potico, porque no estamos tratando a produo de F. J. Tenreiro como "Grande Literatura", mas a vemos nos termos colocados por Gilles Deleuze e Flix Guattari, com respeito obra de Kafka, como literatura menor. Dela dizem: "Uma literatura menor no a de uma lngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior." (1977, p. 25)

5 Entendo que os termos negritude e moderno devem ser conceituados de maneira diferentes, sem contudo,

se oporem. Francisco Jos Tenreiro tem a primazia da representatividade da negritude em lngua portuguesa. No entanto, a modernidade literria africana de lngua portuguesa diz respeito no apenas negritude em sua obra, mas se define, tambm, com o sentido de construo imaginada da nacionalidade africana. (Para maiores esclarecimentos ver: "O Salto para a Outra Margem". In Laura Cavalcante Padilha: Entre Voz e Letra. O lugar da ancestralidade na fico angolana do sculo XX. Niteri: EDUFF, 1995, p. 133-198). 6 Os argumentos que validam hoje uma crtica no dizem respeito, segundo Vera Queiroz em Crtica

Literria e Estratgia de Gneros (1997), utilizao - correta ou no - de um mtodo, mas fora do discurso que os sustenta, que os organiza. Indaga a autora: "Nesse sentido, sua legitimidade advm sobretudo da natureza da interveno, mais ou menos eficaz (ou seja, cujo teor de argumentao ser mais ou menos validado pelos pares a que se destina), feita nos discursos que compem as falas 'autorizadas' no campo da teoria e da crtica da arte e da cultura?" (p. 12)



O signo potico tenreiriano, pleno de significao do negro, se define na imbricao com a Histria. Desta forma, a anlise crtica dos textos poticos de Corao em frica no se constitui numa proposta de dissoluo da Literatura no espao da Histria, mas, pelo contrrio, interessa-nos a apreenso da "historicidade" como "tenso intrnseca", como ncleo prismtico, e de vrias arestas.

Para Tenreiro, os movimentos da negritude e do panafricanismo representam dois objetos de conhecimento pelos quais o prprio sujeito se pensa como ser no mundo. Eles, os movimentos, so definidos como a tentativa de equacionar "as tenses sociais que esto na gnese da problemtica atual do mundo ultramarino.", significando tambm o distanciamento com a literatura extica, sempre uma forma de impronunciar o negro: "quiseram [...] trazer para a Poesia uma temtica rudemente arrancada existncia perturbada e dura de uma frica."7 (TENREIRO, 1953, p. 2).

O processo pelo qual passa a poesia de Francisco Jos Tenreiro arranca do involuntrio desterro, em exlio portugus, "o sentimento da negritude (que) a razo-base da poesia negra" (TENREIRO, 1953, p. 35), promovendo a aproximao do Mundo Negro com o Mundo Africano. A "razo-base" se constitui nos aparatos intelectuais adquiridos em sua formao para o doutoramento em Geografia Humana e Econmica da London School of Economics and Political Sciences, como professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Deputado pelo Crculo de So Tom e conferencista em pases da Europa, Estados Unidos e Brasil; na elaborao de diversos artigos na revista Seara Nova e na produo de ensaios literrios relacionados temtica do "homem negro", principalmente, vinculados literatura negra norte-americana8. O "sentimento", ele o deixa desde menino em sua terra de So Tom e com sua me a quem oferece o "livro" sintetizador de distncias de "milhas" e de "raa", entre Portugal e a Ilha, impressos nos versos que abrem Corao em frica.

Me! Entre ns: milhas! Entre ns: uma raa! Contudo este livro para ti... (TENREIRO, 1982, p. 51)

7 Poderamos tambm acrescentar acerca da literatura colonial, a afirmao de Claude Wauthier de que "

preciso, sem dvida, limpar o quadro de toda uma literatura extica e colonial, onde se exprimia, muitas vezes a coberto do pitoresco, um racismo impertinente." (GM) (1977, p. 223). 8 Vide "A Literatura Negra Norte-Americana". In Seara Nova, n 891, 9/9/1944, reproduzido um ano

depois em Panormica da Literatura Norte-Americana. Lisboa: Emp. Contempornea de Edies, 1945; "Langston Hughes, Poeta da Amrica". In Seara Nova, n 931, 16/6/1945, e "Sobre o Valor Econmico e Social do Negro". In Seara Nova, n 944, 15/3/1946.



A geografia imaginativa do especialista em Geografia Humana se revela na enunciao do eu-lrico que tambm se faz narrador pico do relato histrico do negro africano e da dispora. Isto sobremaneira importante porque, no enunciado, o que transparece no a viso cientfica do gegrafo, visto que, para transpor a distncia concreta em "milhas" e em "raa", s a geografia imaginativa do corao seria capaz de criar uma ponte para faz-lo.

Razo e sentimentos se unem nos versos tenreirianos para reelaborar a saga do povo africano, na frica ou na dispora. O lrico e o pico se misturam para refazer o percurso doloroso da tentativa de reconstruo de uma raa e de um continente fraturados, espalhados em pedaos pelo mundo. , antes de tudo, uma profisso de f do poeta que almeja "esperanar" os que a vivem, elevando-lhes os sentimentos e fazendo com que tais sentimentos tenham no resgate da razo, usurpada pela colonizao europia, a confiana em conseguir o que se deseja: a liberdade. E para que isto ocorra, o sujeito potico-poltico de Corao em frica evoca o retorno histrico dos "gritos de azagaia", cantando a gesta africana, lembrada nas vozes da morna caboverdiana e nos cantores de spirituals e blues, e trazendo cena da escrita a poesia de Neruda e as imagens lancinantes de Picasso, Rivera e Portinari, compondo, desta forma, a sinfonia fraterna da humanidade de todos os povos oprimidos.

Existem claros indicadores, na poesia de Tenreiro, de um projeto poltico-cultural em que a base, o alicerce moldado pelo cimento ideolgico negritudinista e pan-africanista, como tambm socialista, vinculado ao neo-realismo portugus, procura suportar uma grande edificao que vinha sendo, naquele momento histrico, entre os anos 40 e 60, paulatinamente construda. Os balizadores encontrados na poesia de Tenreiro nos mostram, de um lado, o mundo negro composto pela negritude como sentimento que a "razo-base da poesia negra" e, de outro, o mundo africano, universo estruturado pelos referenciais simblicos do mundo negro, visto nos seus limites geogrficos prprios e, especialmente, na sua dispora, segundo os termos circundantes de Salvato Trigo:

O mundo africano, em termos culturais, traduz, pois, uma realizao resultante do encontro do mundo negro com mundos culturais e civilizacionais diferentes que interferiram e alteraram substancialmente a cosmogonia e a ontogonia do homem negro tradicional. Portanto, o mundo africano, como mtria da expresso de sentimentos de todos aqueles que nasceram em frica e lhe adotaram, e adotam, a cosmologia. (s/d, p. 91).

Perfazem, desta maneira, o mundo negro e o mundo africano, um caminho de complementao consubstanciado na definio de africanidade.



O poeta de So Tom, ao adotar a expresso "sentimento que a razo-base da poesia negra", teria querido referir-se, talvez, ao sentimento de pertena tanto ao mundo africano como ao mundo negro. Temos, assim, o negro-africano como o construtor da africanidade: a frica do mundo negro e o mundo negro da frica. Numa performance espetacular, o sujeito da enunciao potica constri um palco onde as luzes focalizam os verdadeiros autores e atores, contadores da histria africana e de sua dispora.

3 Transtextualidades: cruzamento dialgico e discursivo da negritude Transtextualizando, Francisco Jos Tenreiro opera um jogo de apropriao da

literatura "negra", no como uma mera atividade ldica de palavras e de aparncias que, retoricamente, procura harmonizar as contradies culturais, polticas e sociais das negritudes em lnguas inglesa e francesa com a portuguesa. Os objetivos regidos pelo jogo so aqueles que visam construo de um discurso literrio que se quer reapropriador dos territrios culturais negro e africano perdidos para a "civilizao europia". A noo de territrio se vincula a isso que equivale ao processo que Deleuze e Guattari, em Kafka: por uma literatura menor (1977), denominam de "reterritorializao". Reterritorializar significa para a enunciao potica da negritude reparar as sucessivas perdas como a da memria da ancestralidade e a sua ao herica, (re)contando, (re)imaginando a histria da saga negro-africana.

De tal perspectiva, os textos de Francisco Jos Tenreiro, os de Langston Hughes e Countee Cullen, do Renascimento Negro do Harlem, e os de Aim Csaire e Senghor, ligados negritude de lngua francesa, configuram produes literrias pontuais da negritude. Pertencem a um cenrio aparentemente diverso, porm destacam as mesmas temticas desenvolvidas por uma poesia de enunciao lrica, mas que guarda uma tonalidade pica, atravessada pela dramaticidade e por uma coreografia cultural e ideolgica encenada na frica, na Europa e nas Amricas.

A transtextualizao a potica de Tenreiro incorpora denominadores comuns atinentes aos textos panafricanista e negritudinista. O principal denominador, entre eles, o desejo do negro de proceder a sua prpria leitura e interpretao do mundo. Neste sentido, preciso sublinhar que este procedimento de revalorizao do negro, no est amarrado, segundo meu ponto de vista crtico, nem cor da pele do autor nem apenas temtica por ele utilizada, mas emerge da prpria evidncia textual, cuja consistncia dada pelo surgimento de uma enunciao e um enunciado que se mostram negros. Esta condio poeticamente negra constitui-se de marcadores lingusticos de primeira e terceira pessoas por onde se eleva a voz



do sujeito potico individual e coletivamente, ao mesmo tempo. A existncia de topos universais de um "existir negro", pertencentes a uma histria negro-africana comum a Francisco Jos Tenreiro e aos autores da negritude, define o que Jean-Claude Bajeux, em Antilia Retrouve (1983), chama de "uma comunidade de situao que impe sua estrutura a cada voz individual" (p. 22). Portanto, transtextualizao significa, no contexto da negritude, a presena de uma articulao temtica entre textos, que determinam um "discurso coletivo" e certo modo de ver e sentir a frica. Esta pode simbolizar, por exemplo, uma esfinge, disposta a ser a tela de fundo para um cenrio incendirio, como demonstram os trechos poticos de Csaire e Tenreiro, abaixo transcritos:

Histria, eu conto a frica que se desperta dos homens Quando sob a memria heterclita dos chicotes Eles amontoaram o negro fogo atado cuja clera atravessou como um anjo a espessa noite verde do bosque. (Aim Csaire, Apud LARA, p. 1970, p. 69)

No mais a frica da vida livre e dos gritos agudos de azagaia! No mais a frica de rios tumultuosos - veias entumecidas dum corpo em sangue!

Os brancos abriram clareiras a tiros de carabina. Nas clareiras fogos arroxeando a noite tropical.

Fogos! Milhes de fogos num terreno em brasa! (Epopia, TENREIRO, 1982, p. 71)

So coraes que pulsam geograficamente distantes, historicamente prximos e literariamente unidos por uma mesma frica, num mesmo compasso. Com as Amricas, a Europa e a frica, se procede ao encontro ecumnico da africanidade.

O que a frica para mim: Sol de cobre ou rubro mar. Estrela da selva ou trilha da selva, Fortes homens bronzeados ou Esplndidas mulheres negras De cujo ventre nasci Quando cantavam os pssaros do den? (Heritage, Countee Cullen.Apud BUTCHER, 1960, p. 156)

Caminhos trilhados na Europa de corao em frica. Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas (...)



Chora corao meu estala corao meu enternece-te meu corao de uma s vez (oh rgo feminino do homem) de uma s vez para que possa pensar contigo em frica (Corao em frica, Tenreiro, 1982, p. 124)

A construo de uma conscincia de pertena africanidade se constitui na aquisio de uma identidade. E ela revelada, paradoxalmente, atravs de uma escrita que se quer resgatadora da ancestralidade africana, transformando-a, no presente, utilitria e funcionalmente, o que implicar, em certa medida, na valorizao da oralidade. Desse modo, pode-se observar quando a enunciao faz apelo ao sentido de comunho com a natureza, mostrando-a como, por exemplo, uma natureza que se fecunda, no contexto da negritude, pela mulher negra, que sabemos ser um duplo da imagem da terra africana.

No poema Canto de b, o sujeito potico expressa seu modo amplo e direto de ver a natureza. O negro apresentado como um "ser fundido natureza, parte de uma idntica cadeia ecolgica" (Padilha, 1995, p. 121). A ao predatria sobre a natureza aponta metonimicamente para a explorao do homem por outro homem.

O sol golpeia as costas do negro e rios de suor ficam correndo. Ardor! O machim golpeia o pau e rios de seiva escorrendo. Ardor! Os olhos do branco como chicotes ferem o mato que est gritando... (TENREIRO, 1982, p. 86)

A comunho com a natureza aponta, tambm, para a recusa de aparatos tcnicos que se reportam cultura ocidental. O negro maneja com tal destreza os elementos da natureza que faz deles um instrumento eficaz de transmisso cultural.

(...) Mos pretas e sbias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos mas que da terra, da rvore, da gua e da msica das nuvens beberam as palavras dos cors, dos quissanges e das timbilas que o mesmo dizer palavras telegrafadas e recebidas de corao em corao.

(Mos, TENREIRO, 1982, p. 104)

Outras vezes, recusando a submisso ao conhecimento tecnolgico, o negro mostrado com pleno conhecimento da destruio de sua cultura pela colonizao europia e

Ceux qui n'ont invent ni la poudre ni la boussole ceux qui n'ont jamais su dompter la vapeur ni l'lectricit mais ils savent en ses moindres recoins le pays de souffrance. Tam-tams de mains vides tam-tams inanes de plaies sonores. (Cahier d'un Retour au Pays Natal, CSAIRE, 1983, p. 44)



Mas um dos gestos mais profundos de imerso na ancestralidade africana revelado pela relao me/filho. Os retratos poticos das mulheres negras, caracterizados pelo trao forte de maternidade na tradio africana, dizem de sua coragem frente dura realidade de sociedades racistas e colonizadas. No poema de Hughes, De Me para Filho, a me conselheira diz para o filho "Como a vida no tem sido nenhuma escada de cristal":

Mas todo tempo Eu a tenho subido Portanto, meu filho, nunca retorne. (Apud BUTCHER, 1960, p. 123)

O topnimo Harlem, bairro dos negros americanos de Nova York, indica o lugar de tristeza e derrota, "Ring da vida!" (Negro de Todo Mundo, TENREIRO, 1982, p. 76); mas tambm o bairro que se enche da doura melanclica de blues na "voz solitria de um trompette" (Fragmento de Blues, p. 105), "emergindo da alma de um homem negro"(Weary Blues, Hughes, Apud LARA, 1969, p. 67).

O procedimento de desconstruo do mundo negro-africano, nomeado e estereotipado pelo branco, procedimento que faz nascer um outro olhar, uma outra cosmogonia, utilizado de diversas formas pelos escritores da negritude. Uma destas formas se realiza na revitalizao simblica deste mundo, como aparece nos poemas Mos, j mencionado acima, Terra Alarba de Tenreiro e no livro-paradigma da negritude Cahier d'un Retour au Pays Natal de Aim Csaire.

Um outro procedimento advm da comicidade, ou seja, no espao de formalizao do impulso cmico, na recriao crtica do real, que abrange, sinuosamente, uma multiplicidade de aspectos e uma imensa gama de matizes. No cabe aqui falar da histria da comicidade, dos caminhos possveis de sua utilizao como instrumento de contestao ou como instrumento pelo qual se abriga o novo e assume-se o diferente, confundindo classificaes, misturando influncias e exercitando o imprevisvel. Esses traos importantes do cmico ressurgem, exemplarmente, no poema Cano do Mestio, de Tenreiro. O termo-chave do texto o vocbulo gargalhada que permite ao sujeito potico a possibilidade de expressar e liberar seus impulsos "erticos e agressivos" (MORAES, 1974, p. 27) que ocorrem, no dizer de Bakhtin como potncia do phallus (falo) e como potncia de admoestao (1970, p.174). A significao desta ocorrncia configura o aspecto bifronte do riso: se, de um lado, ele se apresenta como infame e negativo - quando o branco diz para o mestio que o lugar dele "ao p do negro" (TENREIRO, 1982, p. 61), de outro, altivo e enaltecedor - o mestio responde do "alto" de sua "gargalhada livre"(GM):



Ah! Mas eu no me danei... e muito calminho arrenpanhei o meu cabelo para trs fiz saltar fumo do meu cigarro cantei do alto a minha gargalhada livre que encheu o branco de calor!...

Mestio! Quando amo a branca sou branco... Quando amo a negra sou negro. Pois ... (TENREIRO, 1982, p. 62)

Este mesmo vocbulo, gargalhada, conforme se observa no poema I Too Sing America de Langston Hughes, com o sentido idntico de reinterpretar o trao "negativo" ou os esteretipos sobre o negro, transformando-os num grito de afirmao identitrio racial e nacional -

Eu tambm canto a Amrica Eu sou o irmo mais escuro Eles me mandam comer na cozinha Quando as visitas chegam, Mas eu dou gargalhadas E como bem, E como forte

Amanh Eu sentarei mesa Quando as visitas chegarem. Ningum ir ousar Dizer-me, "Coma na cozinha" Ento.

Alm do mais Eles vero como eu sou bonito E ficaro envergonhados

Eu, tambm, sou Amrica. (Apud BUTCHER, 1960, p. 123)(GM)

Tal duplicidade na formulao de um sentido novo para o signo negro, nas formaes discursivas da potica da negritude, serve, portanto, de referncia, por exemplo, para a forma dbia de derrota e jbilo9 que se agrupa em seus textos. O primeiro tema atrai o tpico da

9 A duplicidade inerente as mais diversas manifestaes do ethos africano na dispora negra. No teatro,

segundo Henry Louis Gate Jr. em The Signifying Monkey (1987), a tradio afro-americana "double voiced", ou seja, de dupla fala ou voz. Alia-se ao jogo da duplicidade um profundo sentimento de "comicidade irnica". (Apud MARTINS, 1991, p. 47). A presena do jogo duplo na dana (com a ginga),



negao como o colonialismo, a escravatura, a segregao racial nos Estados Unidos, os linchamentos e a misria nos ghettos das grandes cidades. O segundo tema vem inspirado e encorajado pelo recm-adquirido orgulho racial e amor-prprio - aquilo que Manuel Ferreira caracteriza, em anttese "dor de ser negro", como o "orgulho de ser preto"10. Em Epopia, de Tenreiro, a espinha dorsal do poema o vocbulo "frica". Simultaneamente, ela, a frica, simbolizada no verso que diz dos "gritos agudos de azagaia", silenciados pelos brancos, como tambm simboliza o rebento destes "gritos" negros, "espalhados por todo mundo", expresso pela voz da "escurinha (...) nos palcos de Paris", nos sucessos esportistas - do box de Joe Louis ao atletismo de Jess Owens, Harrison Dillard. Na "cadncia de uma vida nova", a "gargalhada" zombeteira estraalha "os ares" norte-americanos e ressoa em frica como brado de vitria do negro diasprico. Entretanto, a boca que "Est larga de riso" a mesma que guardou a "dor durante tanto tempo" (Langston Hughes.Apud BUTCHER, 1960, p. 172).

Nesse sentido, concluindo este segmento, entendo a negritude potica de Francisco Jos Tenreiro em confronto com os escritores negritudinistas, no interior de uma abordagem de formas transtextualizadas, como articulao literria de nuances e tendncias do real, comprometidas com as condies poltica, cultural e social do negro em frica e na dispora. Poder-se- dizer, tambm, que estes textos se situam na fronteira entre o discurso histrico - por um compromisso com a 'verdade histrica' - e o discurso literrio, atravs do aprofundamento crtico das questes tematizadas. Nesta medida, a poesia tenreiriana cria um "pacto de veracidade" entre estes discursos. Tenreiro cria, poeticamente, uma "nova geohistria" do negro e de frica. A indagao que paira no ar se estaria surgindo do discurso literrio, de um autor estudioso e consciente do universo negro-africano, um novo postulado da histria e da geografia destes povos. Valer a pena transcrever abaixo a extensa passagem em que Tenreiro declara a ignorncia do mundo branco, relativamente diversidade e s complexidades culturais da frica negra:

Saltar por cima dos diferentes tipos raciais, por sobre a multiplicidade de lnguas e dialetos, por sobre a extrema variedade de culturas, foi fcil. Ainda hoje, para muita gente, falar-se de um preto do litoral da costa da Guin ou de um Massai das terras abertas a Oriente de frica, o mesmo; raro o 'homem da rua' que se apercebe que entre uns e outros h tantas diferenas

no teatro e na literatura atua nos espaos permitidos, nos vazios considerados inofensivos pelo sistema escravocrata ou mesmo no contexto ps-abolicionista de segregao racial por onde "os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e retomavam a linha de relacionamento comunitrio." (SODR, 1983, p. 124) 10

Vide "Da dor de ser negro ao orgulho de ser preto" In COLQUIO/LETRAS n 39, setembro de 1977, p. 17-29.



como entre um espanhol e um sueco. Em terras de Babel o mito foi rasoira que reduziu culturas, raas, numa palavra os homens, ao "preto das ilustraes"! Pobre preto das ilustraes que foi tambm incensado quando uma Europa cansada de enciclopedismo procurou refgio sentimental na vida deliciosa, paradisaca do bom selvagem! E assim, adeus imprios de Ghana e de Songhai; adeus Benin, adeus hegemonias dos Bambaras e do Mali; adeus estveis estruturas polticas das cidades de Kano, Sokoto e Zaria, adeus Manicongo, Muatinvua e Monomotapa, adeus Gro-Fulo - deles, s notcias tmidas de algum observador desinteressado, a lenda, o mistrio e o p do tempo... (Dilogo entre a Europa e a frica Negra. Apud MARTINHO, 1982, p. 36)

Ao proceder a sua prpria leitura e interpretao do mundo, a potica tenreiriana inclui, apropria-se e, principalmente, recicla diversas matrias. Faz escavaes geolgicas no solo da histria africana, na dispora negra e no da literatura (cano de gesta, os contedos programticos do neo-realismo portugus e da negritude, o griotismo africano, a potica apoiada na musicalidade africana [cf. morna] e nas canes negras norte-americanas - spirituals e blues - por exemplo. Todo este material reciclado pela sua escritura e transforma-se num produto literrio. Dialeticamente, a um s tempo: um mesmo e um outro, histria e literatura11.

Segundo Walter Moser (1996), reciclagem cultural significa, em linhas gerais, a transposio ou a transtextualizao, por exemplo, de um gnero artstico do passado, para a tica do presente e o processamento de uma nova forma. Ou seja, no processo final da reciclagem, surgir um produto ou uma obra, parcial ou inteiramente diferente, da forma original. Nos termos empreendidos pelo presente artigo, a reciclagem da potica da negritude torna-se uma possibilidade de ser tratada, conceitualmente, como negritude potica. Desejo, ento, aqui, - e essa a minha hiptese que a anlise da transtextualidade tentou confirmar neste segmento - apontar que a potica da negritude surge, a, como uma das matrias de fundamental significao na reciclagem literria da produo potica de Francisco Jos Tenreiro

4 Da Potica da Negritude Negritude Potica de Francisco Jos Tenreiro A voz potica de Corao em frica se encontra na fronteira geopoltica entre o

batimento cardaco que pulsa, sistolicamente, na Europa e, em distole, na frica. Esta pulsao uma tentativa que almeja superar as contradies presentes no mundo

do colonizado, na presena da cultura do colonizador branco, letrado, se sobrepondo cultura negro-africana, iletrada. Em Tenreiro e nos poetas da negritude, ressoa forte o sentimento da

11 Aproximo-me, desta forma, com a postulao atual dos conceitos de Histria, do que diz Hans Robert

Jauss: "(...) a diviso clssica entre res fictae, como reino da poesia, e res factae, como objeto da Histria, foi ultrapassada, de modo que a fico potica se alou ao horizonte da realidade e a realidade histrica ao horizonte da poesia." (Apud SILVA, 1989, p. 74)



terra a ser reapropriada pelo povo, prenncio para a construo de uma identidade descolonizada, portanto, um gesto de resistncia ao colonizador. Se o colonizador cimentou, culturalmente, como "selvagem e primitiva" a geografia, assim como o homem da frica e da dispora negra, a geopotica de Tenreiro procura construir, pela imaginao, uma nova identidade geohistrica para eles.

Chamo a ateno, novamente, que, no segmento anterior, procurei demonstrar, lato sensu, como os textos poticos da negritude so transtextualizados na obra de Tenreiro, delineando uma forma adequada para o novo contedo traado em seu imaginrio (Cf. PADILHA, 1995). Pode falar-se, tambm, da negritude como "sentimento e manifestao de ser negro" (SANTOS, 1975, p. 43), conforme desenvolvido e estruturado pelos poetas africanos de lngua portuguesa, principalmente, a partir dos anos 40. Alguns exemplos, dentre outros, se destacam: os moambicanos Nomia de Souza e Jos Craveirinha com o poema Grito Negro quem configura o comparativo do negro como carvo, combustvel que movimenta a acumulao do capital colonial:

Eu sou carvo! E tu arrancas-me brutalmente do cho e fazes-me tua mina, patro. (ANDRADE, vol. 1, 1975, p. 180)

Nomia, no poema Sangue Negro, evoca tanto a dor quanto o orgulho de ser africana e negra.

Me! minha me frica das canes escravas ao luar, No posso, NO POSSO, renegar o Sangue Negro, o sangue brbaro que me legaste... Porque em mim, minha alma, em meus nervos, ele mais forte que tudo!

Eu vivo, eu sofro, eu rio, atravs dele, ME! (SANTOS, 1975, p. 83)

O modo pelo qual apreendida a potica da negritude na materialidade do discurso literrio de Corao em frica passa a se inscrever na hiptese de a poesia de Francisco Jos Tenreiro configurar-se, segundo a nossa proposta, como um exerccio que denominamos de negritude potica. Proponho com esta expresso, cunhar a representao de duas faces de um mesmo rosto: uma esttica e a outra cultural.



Em primeiro plano, constata-se, historicamente, que a presena do branco no mundo negro-africano fez com que este mundo ficasse "cindido em dois" (FANON, 1979, p. 128). Por outro lado, tambm fez com que a frica colonizada e/ou assimilada no s se tornasse

branca e negra - mestio 'tabuleiro de xadrez', redizendo o poeta santomense Francisco Jos Tenreiro - mas comeasse ela prpria a incorporar, assimilando-os, os valores do colonizador, questionando seu saber autctone que passava a perceber como um menos-saber.(PADILHA, 1995, p. 73)

Em segundo plano, podendo ser alegorizada como uma potica de "tabuleiro de xadrez", expresso recortada do poema Cano do Mestio, a obra de Tenreiro apresenta, de um lado, os elementos da cultura branca, em grande parte reinterpretados de maneira consciente. Aproveita-se, tambm, de instrumentos prticos e tericos desta cultura que auxiliam na reelaborao da histria do negro. De outro, incorpora os elementos da cultura africana, atravs de suas tradies, de seu modo de vida, e os versos passam a ter a tarefa de reintegrao identitria do negro como sujeito de sua Histria.

A potica de Tenreiro tenta encontrar um ponto de equilbrio, "mestia-se" na empreitada de superao do dilema entre a "branquitude", assimilada pela educao europia, e a negritude, ardentemente desejada na "negra expresso da voz" ( PADILHA, 1995, p. 74). Mas esta mestiagem no se exprime sem dificuldades e at certo ponto se torna ambgua e contraditria na obra de Tenreiro. Vejamos como o crtico literrio J.B.Martinho analisa este termo mestio no iderio potico do escritor so-tomense:

No fundo permanece um homem dividido entre as razes "sentimentais", do "corao", que o puxam para a exaltao da sua componente africana, e as razes de educao que o vinculam necessidade de um dilogo Europa-frica, em que, em termos existenciais, a Europa acabar por levar vantagem. Seria, no entanto, abusivo ver nessa "vantagem" uma adeso aos princpios do chamado luso-tropicalismo. (1982, p. 21)

A sobreposio de seu nacionalismo africano herana cultural portuguesa d fora a Tenreiro, mas necessariamente lhe causa tenso. Podemos imaginar que a presso dessa forte tenso poltica e secular o leva superar o dilema atravs de um enfoque "essencialmente cultural"12, segundo as suas prprias palavras. Mas de forma alguma Tenreiro descarta que sua ao cultural no esteja ligada a uma poltica anticolonialista. Fao esta retificao com relao afirmao de Martinho de que Tenreiro "no ousava fazer ligao que se impunha da negritude ao anticolonialismo" (1982, p.34). Talvez, seja mais exato definir o poeta e a sua potica nos termos de uma necessidade que busca mapear, inventar ou descobrir um outro cenrio ou, na expresso de Edward Said, uma terceira natureza, distinta de uma segunda

12 Cf. "Acerca da Literatura Negra". In Estrada Larga, 3, Org. de Costa Barreto. Porto: Porto editora, s/d,

p.480.



natureza (1995, p. 285), implantada pelo colonizador. No se trata de um resgate da pr-histria ("No mais a frica/da vida livre/e dos gritos agudos de azagaia"), mas da criao de uma natureza que venha a suprir um vazio do presente e de alguma forma recuperar a sua identidade geograficamente cultural. Exemplos marcantes encontram-se nos poemas de Aim Csaire e de Leopold Sedr Senghor, ou no poema Corpo Moreno, sobre a ilha de So Tom, de Tenreiro:

](...) Como a minha ilha o teu corpo mulato tronco forte que d amorosamente ramos, folhas, flores e frutos e h frutos na geografia de teu corpo. (1982, p. 141)

A negritude, ento, adquire uma nova significao se a considerarmos como a mtua fecundao entre o nacionalismo africano, tal como representado por George Padmore, Nkrumah, C.L.R. James e o surgimento de um novo estilo literrio nas obras de Csaire, Senghor, os poetas da Harlem Renaissance como Claude Mackay e Langston Hughes. Assim definida, a negritude ilumina a face do negro territrio do Corao em frica, orientando para a necessidade de recuperar a memria da ancestralidade negro-africana. Rompe-se a hegemonia cultural europia sobre a frica, retomando a palavra-expresso da negra voz como representao, como signo, que fala da construo de uma nova histria. Os textos tenreirianos expressam, assim, o desejo de proceder valorizao do negro, tentando ouvir, empaticamente, as suas vozes em todos os lugares e com elas unir-se num coro potico:

E se ainda fico triste Langston Hughes e Countee Cullen Vm at mim Cantando o poema do novo dia - ai! os negros no morrem nem nunca morrero!

...logo com eles quero cantar logo com eles quero lutar ai! os negros no morrem nem nunca morrero!... (Fragmentos de Blues, TENREIRO, 1982, p. 106)

Os textos poticos de Tenreiro articulam-se coletivamente, quanto ao nvel actancial, pelas representaes da persona negra, em frica e na dispora negra, adquirindo os actantes o privilgio de ter "um lugar ao sol", ou como nos informa Laura Padilha, a quem mais uma vez recorro, de ter "um lugar de precedncia absoluta na cena discursiva". (1995, p. 133). Os temas elaborados, inseridos nos trs segmentos do livro Corao em frica, "Ilha de Nome



Santo", "Corao em frica" e "Regresso Ilha" representam o cotidiano da ilha; da vida que se vive na povoao colonial; da roa e dos musseques de So Tom. Representam, ainda, a realidade da martirizada submisso do negro na frica e nas disporas das Amricas e europias. O enunciador lrico e o narrador pico tm, ento, em comum, o canto e o relato de sua terra e de seu povo, tanto invocando a ligao csmica com a me-terra, como evocando a ancestralidade africana, configurada na concepo redencionista da vida.

5 Concluso Os poemas de Tenreiro fazem da negritude algo mais do que declarar uma ao

afirmativa do negro e de sua existncia no mundo. Eles cantam o gesto de profunda desumanidade da Europa colonialista com os negros diaspricos e africanos. Contudo, no somente um canto de dor e sofrimento. Os negros no surgem nas cenas poticas apenas como vtimas de um determinado momento histrico; eles, sobretudo, tecem o amanh com gritos agudos de azagaia, tornando-se exemplos de luta contra a opresso; concretizam-se, no plano histrico, com a ecloso das lutas de independncia africanas, nas dcadas de 50, 60 e 70 e no ano de 1994, particularmente, com a vitria anti-apartheid do povo sul-africano, liderada por Nelson Mandela.

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A Negritude Poetica de Tenreiro

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