A Paixão Inscrita no Discurso da Exposição de/sobre C/arice...

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A Paixão Inscrita no Discurso da Exposição de/sobre C/arice Lispector' Lucília Maria Sousa Romão Um modo de anunciar sentidos de paixão Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o aposto daquilo que se vai aproximar (Clarice Uspector. 1979). Neste capítulo, proponho um estudo sobre os modos de inscrição do literário no discurso da exposição Clar ice Lispeclor - a hora da estrela, marcando como os sentidos são deslocados e emprestados da obra literária A paixão segundo GH para o evento promovido pelo Museu da Língua Portuguesa. Tomando, como corpus de análise, Parte desse trabalho foi publicado no livro Exposições literárias do Museu da Língua Portuguesa. 2011.

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A Paixão Inscrita noDiscurso da Exposição

de/sobre C/arice Lispector'Lucília Maria Sousa Romão

Um modo de anunciar sentidos de paixão

Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficariacontente se fosse lido apenas por pessoas de alma jáformada. Aquelas que sabem que a aproximação, doque quer que seja, se faz gradualmente e penosamente- atravessando inclusive o aposto daquilo que se vaiaproximar (Clarice Uspector. 1979).

Neste capítulo, proponho um estudo sobre os modos de inscrição

do literário no discurso da exposição Clar ice Lispeclor - a hora da

estrela, marcando como os sentidos são deslocados e emprestados da

obra literária A paixão segundo GH para o evento promovido pelo

Museu da Língua Portuguesa. Tomando, como corpus de análise,

Parte desse trabalho foi publicado no livro Exposições literárias do Museuda Língua Portuguesa. 2011.

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recortes linguísticos da obra literária e da referida exposição e

investigando-os como discurso, reclamo o comparecimento de alguns

conceitos caros à teoria de M ichel Pêcheux (1969), a saber, memória

e arquivo, com a finalidade de revisitá-Ios à luz do recorte de algumas

cenas da obra literária que inscrevem formulações de Clarice na voz

de G.H. e que estão dispostas na referida exposição. Não se tem aqui

a pretensão de esgotar todos os significados postos em movimento no/

pelo evento da Estação da Luz, em São Paulo, mas de promover um

gesto de leitura que tome a linguagem para além da literal idade das

palavras e que, assim, possa escutar alguns significados dera) paixão

inscritos nas formulações do livro de Clarice e deslizados para a

exposição comemorativa dos trinta anos de morte da autora. Aproximar

os estudos do discurso daqueles sustentados pelas áreas da informação

e da documentação também está no meu horizonte.

Por isso, inicialmente, farei uma conceituação de como as noções

de memória e arquivo contribuem para o trabalho do profissional da

informação, especialmente por permitirem gestos de leitura, interpretação

e significação para além da literal idade dos vocábulos. Tomando memória

discursiva como o conceito-chave desse trabalho, recorro a Pêcheux

(1999) considerando que esse autor deslocou o termo do âmbito puramente

histórico, sociológico, psicológico e cognitivo para considerá-lo como

discurso. A propriedade de algo falar antes faz da linguagem o permanente

jogo de retomadas e empréstimos em tomo dos quais o sujeito se articula

(em) palavras já ditas em outros contextos, mas não necessariamente C0111

os mesmos significados. Tomando-as de outros, o sujeito passa a ocupar-se

da ourivesaria de esculpir (se-em) em significantes de acordo com o que lhe

é possível dizer (saber, poder e desejar) em uma dada posição.

A memória - o interdiscurso, como definimos na análise de

discurso - é o saber discursivo que faz com que, ao falarmos,

nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que

possibilita todo dizer (Orlandi, 1999, p. 64).

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Assim, o momento de enunciar está relacionado com enunciados

já postos em discurso, não como unidades fechadas de sentidos

prontos a serem apenas repetidos, mas como superfície sustentadora

da possibilidade de/do dizer que tanto permite o retorno do mesmo,

como a emergência do diferente. Em meio a movimentos basculantes

de sustentação do já-dado e de sua ruptura, a memória é

um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos

e de retomadas, de conflitos de regularização ... Um espaço

de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos

(Pêcheux, 1999, p. 56).

Desse modo, a memória discursiva permite tanto a sustentação

repetitória de U111 sentido já legitimado, quanto o deslocamento dele, pois ela

se inscreve em um jogo de forças que promove rompimentos de fronteiras,

bordas e contornos significados como não prontos nem acabados.

Observo que, muitas vezes, os sentidos sustentados por

instituições C01110 museus, por exemplo, tendem a funcionar como

unívocos, congelados pela fixação de um efeito de literalidade que os

tomaria ilusoriamente como portadores de uma mensagem fechada dentro

de uma organização estabelecida sempre garantida pela mesma leitura.

No caso discutido neste texto, a exposição Clarice Lispect or - a hora

da estrela estabelece relação com vários arquivos já constituídos antes

em outro lugar, ou seja, com o intradiscurso (Pêcheux, 1969) das obras

literárias selecionadas pelos curadores, das imagens disponibilizadas

por acervos pessoais e institucionais, dos documentos pessoais da autora

etc; e não apenas com o intradiscurso, mas com o interdiscurso sobre

o que é ser um escritor, o que imaginariamente se espera dele, quem

seria Clarice, o que são documentos pessoais de um escritor em uma

exposição dentro de um museu sobre a Língua Portuguesa, o quanto é

possível mostrar sobre o "de-dentro" de um autor.

Posto isso, entendo que uma exposição é uma sobreposição de

arquivos patinados por várias vozes que foram recortadas, deslocadas de

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seus lugares de origem, montadas dentro de um cenário aparentemente

uno e atualizadas por sujeitos autorizados (curadores, cenógrafos,

organizadores) a fazê-lo no âmbito institucional (museu). Esse espaço

móvel e movediço de arranjos tem, como uma entrada possível, a inves-

tigação do discurso e a escuta do que estava posto antes em outro lugar

(na obra literária, no nosso caso) e é atualizado na exposição, não como

cópia, pois a repetição é antes de tudo o efeito material que funda comutações

e variações (Pêcheux. 1999. p. 53). Flagrar esse retorno e o modo pelo qual

ele se dá, na ordem da língua, constitui um alargamento dos horizontes

para aqueles que trabalham com a informação e a documentação, pois

significa compreender que os objetos. documentos, fotografias, textos,

vídeos etc., de uma exposição, podem ser tomados como discursividades

heterogêneas já que são recortes de vozes inscritas em outro(s) lugartes):

no caso, são sentidos de/sobre Clarice Lispector já gravados em obras

literárias, textos publicados em jornal e entrevistas. Existiria, então, um

outro modo de ler uma exposição (de um autor de literatura) para além

das questões técnicas relacionadas à montagem, cenografia, usuário.

recepção, documentação? O referencial teórico-metodológico da

Análise do Discurso é uma resposta afirmativa, ao levar em conta que o

movimento de dizer é sempre afetado pela memória, instável, incompleto

e volúvel e. por isso mesmo, sempre fascinante como a paixão de G.H.

A paixão segundo CH: a ordem do literário

Eu não me impunho um papel mas me organizarapara ser compreendida por mim. não suportarianão me encontrar no catálogo. Minha pergunta.se havia. não era: "que sou", mas "entre quais eusou" (Clarice Lispector, 1979).

Partirei do títu 10 da obra, entendendo-o como efeito de um pré-

-construido dado pelo discurso religioso, tendo em vista a existência

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de algo dito antes, em outro lugar, que retoma com marcas explícitas

de heterogeneidade (Authier-Revuz, 1982). Os títulos dos evangelhos

bíblicos remetem sempre à voz de um narrador, imbuído de uma

imaginária autoridade, que relata algo sobre a vida, paixão e morte de

Jesus Cristo. Paixão, assim, não será compreendida como uma palavra

solta e desencravada de uma rede de dizeres já postos em discurso

anteriormente, mas será tomada em sua historicidade, ou seja, na

inscrição da história na língua (Pêcheux, 1999). Observo que o título

tanto repete quanto rompe o efeito de manutenção do sentido de um

narrador mediador, que filtra e conta o relato sobre a vida de alguém.

Isso porque é Clarice, na posição de autora, que dá a saber, ao leitor,

que G.H. sofre de/com uma paixão, sendo assim, é ela que distribui os

sentidos, autorizando o modo pelo qual as palavras serão postas em

discurso a respeito da angústia de sua personagem diante do nada, do

vazio e da sua precariedade de não saber.

Sim. em PSGH. a protagonista também esbarra nos limitesdo pensamento e do nada. instauradores de um não-saberimplacável. Não-saber que. no entanto. ganha uma dimensão de

revelação e ultrapassamento libertador. ou seja. a conjuntura daperda pela qual G.H. passa pode ser tomada como melancolia,

o que no entanto não se consuma, visto que é redimensionada

pela possibilidade de dizer (Silva. 2004. p. 42).

No entanto, à medida que a narrativa se abre, é possível marcar

um deslocamento, pois não é mais um outro alheio à trama que conta

a trajetória, mas a própria narradora que relata sua paixão, tomando-a

na superfície do que lhe é possível alcançar como formação imaginária

e inscrevendo-a em linguagem, ainda que, em muitos momentos,

depreenda o obstáculo, a barreira, o caminho obstruido pelo inenarrável

e pelo inominável em seu fazer. Assim, G.H. passa pela via crucis da

linguagem. pelo gozoso padecimento de. ter que buscar a forma para expressar

o neutro. o cru. o não-humano. a existência. o ser (Nunes, 1987, p. 279).

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Ler o título da obra (e as referências a ela na exposição de

Clarice) reclama a compreensão de que a língua se contorce entre

o estabelecido e o que irrornpe sob o efeito de algo diferente, em

movimentos de tensão que não cabem em uma tentativa de controlar o

vocabulário, fazer conferência de sinônimos nem de traçar hierarquias

de palavras. Isto é. a palavra erra sempre por terras estrangeiras, no

caso, emprestando efeitos do religioso; também em outros momentos,

há retornos de sentidos sustentados pelo cristianismo. marcando alguns

modos de dizer da vida e da morte. do corpo e de algo que lhe escapa:

exemplo disso é a formulação: - bem-aventurados os pobres de espírito

porque deles é o dilacerante reino da vida (Lispector, 1979, p. 148). Se no

Evangelho a oração cristalizada pela força da repetição mantinha que

bem-aventurados eram os pobres de espírito, porque deles era o reino

dos céus, garantindo que o efeito de recompensa, aos humildes, viria

apenas após a morte e distanciando a premiação material do horizonte

deles. o dizer de G.H. subverte esse sentido legitimado pelo interdiscurso

religioso e, novamente, faz falar um deslizamento processado na ordem

da língua. O "dilacerante reino da vida" é dado a conhecer como um

efeito da crudelíssima, torturante e aflitiva condição humana que a

protagonista irá nos convidar a provar junto com ela.

Estou antecipando algo que se mostrará em recortes mais adiante,

mas que se faz necessário marcar aqui para instalar a relação do título da

obra com a memória dada e com os movimentos deslizantes promovidos

por G.H. que. em suspenso e agonicamente, indicia mistérios de/do não

saber, de imaginar o que não se confirma na realidade. de comungar o

"de-dentro", ainda que para isso seja necessária a matéria viva de uma

barata bipartida. Enfim, o movimento de fazer falar o dolorido "reino da

vida" parte de uma série de enigmas: de que paixão G.H sofre? Por qual

calvário caminha a narradora escutando a falta de sons no apartamento

e a ausência no quarto de empregada? Como percorre, no caminho do

interior de um quarto dos fundos. o alucinatório estado de susto e de

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lucidez, fazendo-os combinar e desdobrar-se um em parte do outro?

Quanto de horror se permite suportar a personagem em seu claustro

observatório? Em sua solitária forma de dizer de si (e a si mesma), como

G.H. se apresenta "em fora" de sigla, letra, ato e silêncio? Refletir sobre

tais questões parece ser um caminho interessante para ler, de maneira

menos domesticada, a discursividade da exposição do Museu da Língua

Portuguesa e para compreender as formas pelas quais a memória

discursiva se inscreve, retoma e faz mover outros modos de dizer.

Além do atravessamento do discurso religioso nos recortes

anteriores, são recorrentes os momentos em que há emergência do

nome da narradora em formato de uma sigla.

É suficiente ver no couro de minhas valises as iniciais G.H., e

eis-me. Também dos outros eu não exigia mais do que a primeira

cobertura das iniciais dos nomes (Lispector, 1979, p. 21).

o resto era o modo como pouco a pouco eu havia me

transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo

o meu nome (Lispector, 1979, p. 20).

Como explicar, senão que estava acontecendo o que

não entendo. O que queria essa mulher que sou eu? O que

acontecia a um G.H. no couro da valise? Nada, nada, só que

meus nervos estavam agora acordados - meus nervos que

haviam sido tranqüilos ou apenas arrumados? meu silêncio fora

silêncio ou uma voz alta que é muda? (Lispector, 1979, p. 40).

A repetição das "iniciais" do nome da personagem-narradora

aparece em toda a obra, marcando um movimento de condensação do

nome da escultora e da mulher em uma sigla, ou seja, o nome passa a

ser falado por apenas duas letras. Tal econômica forma de nomear-se

está em oposição ao movimento largo de tentar designar e lidar com

as palavras e, assim, não cessar de refletir sobre o dizer e a linguagem,

coisa que a narradora busca o tempo todo e que será deslccada para a

exposição. Um nome, o "meu nome". é o que dá identidade à narradora,

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embora ele seja, para o leitor, nada mais que uma abreviação nas valises,

isto é, uma maneira de dizer de si que cria, já de início, uma ordem

indecifrável. em cuja textura não são postas soluções ou respostas, pois

não se trata de dedfrar o enigma. mas de configurá-I o (Silva. 2004, p, 36), Seu

próprio nome é mantido em sigilo, guardado ao modo de uma cifra,

uma senha encoberta, enfim, um segredo de revelação nào possível,

Apenas as valises são indiciárias do nome, Essa relação de contraste, no

caso, de dizer um nome todo em apenas uma abreviação (e, no avesso,

duas letras apenas que consistem em um nome todo encoberto), dá-

-se a conhecer em vários outros momentos da narrativa, Tanto mais a

narradora tenta desesperadamente dizer (e sente necessidade agônica

de nomear o que sente e a angústia que a assola), tanto mais ela esbarra

em asperezas e na impossibilidade de fazê-lo. "O que queria essa

mulher que sou eu? O que acontecia a um G.H. no couro da valise?".

As questões, sem resposta, indiciam o atravessamento de efeitos de

dúvidas, desconforto e incerteza que irão acompanhar G.H. ao quarto

dos fundos, à ausência da empregada, à barata e à própria lida com

a linguagem, dentre outros temas. Ou seja, as perguntas Inscrevem

sombras e a opacidade nas palavras e na linguagem.

A narradora formula o seu desejo de arrumar o quarto da

empregada (ou tenta), que ela imagina estar sujo, entulhado, mofado

e sombrio; e é justamente nesse lugar - do desejo de arrumar o que

estaria em desordem - que o sujeito arma seu acampamento imaginário,

tentando nomear as coisas do externo e também a si mesma, encontrando-

-se com o vazio e marcando a tensào entre o "de-fora" e o "de-dentro",

tensão esta que será explorada plasticamente na exposição de Clarice

com uma material idade irnagética cheia de velaturas e reentrâncias,

como será interpretado mais adiante.

Eram quase dez horas da manhã. e há muito tempomeu apartamento não me pertencia tanto. No dia anterior a

empregada se despedira. O fato de ninguém falar ou andar e

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poder provocar acontecimentos alargava em silêncio esta casaonde em semiluxo eu vivo (Lispector. 1979, p. 20).

Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o

quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla funçãode dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos,

papéis de embrulho e barbantes inúteis. Eu o deixaria pronto

para uma nova empregada (Lispector, 1979, p. 30).

E que apesar de já ter entrado no quarto, eu parecia terentrado em nada. Mesmo dentro dele, eu continuava de algum

modo do lado de fora. Como se ele não tivesse bastanteprofundidade para me caber e deixasse pedaços meus nocorredor, na maior repulsão de que eu já fora vítima: eu nãocabia (Lispector, 1979, p. 41).

O ato de entrar no quarto de empregada representa mais que o

gesto empírico de cruzar uma porta, pois encerra o retorno do efeito

de contradição já dado pelo jogo sigla-desejo de nomeação, agora

deslizado para o sentimento de posse intenso da personagem em relação

ao apartamento (e também ao espaço do seu interior), o que é formulado

assim: "há muito tempo meu apartamento não me pertencia tanto. No

dia anterior a empregada se despedira". A oposição é discursivizada

pela tensão de que é preciso alguém sair para que G.H. diga ser mais seu

o seu próprio apartamento, sentindo-se, no silêncio, enfim pertencida

a ele, em uma intimidade que move o ímpeto de arrumar, de mover-

-se e de colocar os pés nos fundos. Como a teoria discursiva postula,

todo dizer está em relação a um não dizer, no caso, a ordenação desse

cômodo da moradia implica inicialmente a desconstrução do que estava

ai i posto pelo imaginário, desarrumando o já construído. "Começaria

talvez por arrumar pelo fim do apartamento": observo aqui uma Outra

retomada do efeito do contraste já posto anteriormente, começar pelo

fim, iniciar a arrumação pelo último lugar na moradia encontra-se na

superfície com o que estava nos fundos, e surpreender-se com o cheio

de vazio que o apartamento passa a abrigar.

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de algo ao qual não se chega, esbarrando na ordem do inorninável

e do impossível de simbolizar. A palavra que se coloca no meio, no

entremeio, no limbo do possível (e sempre do inalcansável) para depois

o sujeito experimentar a "enorme surpresa que sentirei com a pobreza

da coisa dita". De novo, retoma a ordem de algo interditado e não

acessível, passível de (tentativas de) representação na ordem da língua,

mas consistindo em ser penosamente pobre e menor depois de ser dito.

Concluindo:um sentido sobre o campo fértil das paixões

o que me acontecia? Nunca saberei entendermas há de haver quem entenda. E é em mim quetenho de criar esse alguém que entenderá (C/ariceLispector).

Ao longo desse trabalho, refleti sobre o discurso na exposição

"Clarice Lispector - a hora da estrela", rastreando alguns sentidos de

paixão na trilha de recortes do literário em A paixão segundo 0.1-1.,

relacionando a interpenetração dele no modo de apresentar a autora

e sua obra. Interessou-me perceber como o arquivo apresentado na

exposição deriva de recortes já postos em discurso, em outros lugares,

como a memória promove a ressonância desse já-lá sem que a repetição

seja sempre igual, mas deslocada, como o discurso sinaliza uma

contribuição teórico-rnetodológica para os estudos da informação e

da documentação. Contribuição a fim de investigar como o corpo da

linguagem produz sentidos no fluxo de uma exposição museológica;

nesse caso, o corpo da linguagem em enfrentamento com o corpo do

discurso de Clarice, de G.H. e de barata, o corpo do vazio e de todas

as ausências que teimam em não caber em palavras. e, finalmente, o

corpo do sujeito leitor. Este. ao longo da exposição. vê-se implicado

por sentidos estranhos e familiares e é convocado a movimentos que

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levam em conta multiplicidades virtuais e atemporais das quais nos

fala Mostafa (20 10). Passear pelos labirintos cenográficos do Museu da

Língua Portuguesa, escutando os ecos de G.H. e de Clarice, não foi fácil

nem óbvio; foi estar no limite de sentidos que "nunca saberei entender".

na área dolorida de reconhecer, como quer a autora, o quanto é "preciso

coragem para fazer o que vou fazer: dizer".

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