A Palo Seco n.5 v2 (1)

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Ano 5, n. 5, 2013 ISSN 2176.3356 Vol. 2 A Palo Seco Escritos de Filosofia e Literatura Textos do III Encontro Filosofia e Literatura/GeFeLit

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Interessante obra que se desenvolve nos limites entre filosofia e literatura.

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  • Ano 5, n. 5, 2013ISSN 2176.3356

    Vol. 2

    A Palo SecoEscritos de Filosofia e Literatura

    Textos do III EncontroFilosofia e Literatura/GeFeLit

  • A PALO SECO ESCRITOS DE FILOSOFIA E LITERATURA

    Ano 5, Nmero 5, vol. 2, 2013

    CONSELHO EDITORIAL

    Carlos Eduardo Japiass de QueirozCelso Donizete Cruz

    Cicero Cunha BezerraDominique M. P. G. Boxus

    Fabian Jorge PieyroJacqueline Ramos

    Jos Amarante Santos Sobrinho

    Luciene Lages SilvaMaria Aparecida Antunes de MacedoMaria Rosineide Santana dos Santos

    Oliver TolleRomero Junior Venancio Silva

    Tarik de Athayde PrataUlisses Neves Rafael

    EDITORIA

    Fabian Jorge PieyroJacqueline Ramos

    Luciene Lages SilvaMaria A. A. de Macedo

    IMAGENS DA CAPAcaricaturas de Leonardo da Vinci

    CAPAJos Amarante Santos Sobrinho

    PREPARAO DOS ORIGINAISJacqueline Ramos

    PAGINAO e REVISO TCNICAJulio Gomes de Siqueira

    FICHA CATALOGRFICA

    A Palo Seco: Escritos de Filosofia e Literatura / Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura,

    Universidade Federal de Sergipe. Vol. 2, n. 5 (2013) Aracaju: UFS, CECH, 2009-

    Anual

    ISSN 2176-3356

    1. Filosofia Peridicos. 2. Literatura Peridicos. I. Grupo de Estudos em Filosofia e

    Literatura.

    CDU 1:82.09

  • Sumrio

    4 ApresentaoFabian Pieyro

    7 O filsofo que ri e o humanista, segundo KantMrcio Suzuki

    19 A energia potica das florestas crticas de HerderMarco Aurlio Werle

    34 Humor e crtica em Jacques, o fatalista, e seu amo, de Denis DiderotNilson Adauto Guimares da Silva

    50 La prface, le livre, lauteur: de Foucault BorgsPhilippe Sabot

    64 O prefcio, o livro, o autor: de Foucault BorgesTraduo de Maria A. A. de Macedo

    78 Linguagem e imaginao: a filosofia da literaturanos primeiros escritos de Sartre

    Trik de Athayde Prata

    90 Abordagens da literatura: discusses da relao literatura e filosofiae sua introduo no texto paraliterrio de Eugne Ionesco

    Maria A. A. de Macedo

    99 Folias na fazenda: um relato memorialCarlos Eduardo Japiass de Queiroz

  • 4Apresentao

    Ao longo destes cinco nmeros de A Palo Seco, podemos afirmar que o GeFeLit, grupo que se ocupa da fronteira entre o literrio e o filosfico, enxerga essa rea como um espao franquevel, sedu-tor, rico em possibilidades expressivas, mas, ao mesmo tempo, irredutvel como problema intelectual. Mesmo assim, e talvez porque nesta poca de especialistas j no mais esperamos achar solues para grandes questes, o grupo continua jogando nesse teatro de operaes onde se bicam a fico e a cincia das verdades ltimas.

    Em nossa primeira publicao, cinco anos atrs, escolhemos pensar a literatura e a filosofia em torno da questo do espelho. Sugestivo limite entre a realidade cotidiana e a cpia invertida dessa realidade que seduziu figuras como Machado e Guimares; fronteira entre o verdadeiro e o enganoso aproveitada, como em Swift e em Borges, como metfora para lanar sombras de dvida sobre isso que chamamos real, o espelho foi o primeiro pretexto escolhido pelo GeFeLit, como dizia no prlogo da primeira publicao, no para converter, mas para conversar.

    Em 2011 tivemos a honra de homenagear Benedito Nunes, fonte de inspirao para o grupo. Atravs desse intelectual, pudemos reafirmar, e por que no legitimar, a ideia de que o linde entre filoso-fia e literatura franquevel, ainda que inapreensvel.

    Desta vez, como se a inteno fosse acentuar a ideia de fronteira, o nmero V de A Palo Seco vem em dose dupla, devido a grande quantidade de valiosssimos trabalhos com que professores de diversas universidades do Brasil e da Europa nos honraram, por ocasio do nosso terceiro colquio de maro de 2013.

    Nesta metade, abrimos com trs trabalhos que abordam a problemtica liminar entre filosofia no contexto do Sculo das Luzes; os trs trabalhos seguintes abordando com o mesmo esprito questes prprias dos nossos dias. No final, oferecemos um minucioso exerccio de memria.

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    O trabalho que inicia a revista, de Mrcio Suzuki, traz textos inditos de Kant para apresentar a figura do filsofo que sabe rir, aquele que, principalmente, sabe rir das coisas s quais se confere im-portncia indevida. A sua leitura oferece uma viagem atravs das ideias sobre o riso e a felicidade de filsofos como Epicuro, Demcrito, More e Hume. De um modo geral, a capacidade de rir ou ser feliz est na capacidade de evitar que as inconvenincias externas afetem o esprito. O homem que se deixa abater por uma circunstncia menor, diz Kant, como o rico que perde a paz porque um servial quebra uma taa. Ambos, ao no colocarem o simples fato diante da importncia de uma experincia completa, acabam dando valor desmedido a questes menores.

    A seguir, Marco Aurlio Werle, apresenta o filsofo alemo Herder, a partir da crtica dos pen-sadores neoclssicos realizada em seus textos Primeira Floresta Crtica e Plstica, como a figura mais relevante da cozinha do romantismo alemo, ao antecipar ideias caras ao movimento como, dentre outras, a relao entre arte e fora interior e a distino entre poesia natural, relacionada s manifesta-es populares, e poesia artificial, mais elaborada.

    Nilson Guimares, por sua vez, traz um Diderot que afirma a absoluta compatibilidade entre a co-micidade e a seriedade. Atravs da leitura de uma obra fronteiria, como Jacques, o fatalista, e seu amo, Nilson desvenda a maneira como o pensador francs aborda srias questes proto-existencialistas a partir do sexo, da bebida, do riso e do cmico. Atravs das andanas de Jacques e seu amo, a obra refle-te a questo do livre arbtrio e o fatalismo, numa poca em que culpar por tudo ao destino era negar a existncia de Deus. Para Diderot, ainda, as leis morais seriam necessariamente subjugadas pelas leis da fsica. Como mais tarde aconteceria com Marx, Freud e Sartre, Diderot acentua nessa obra a contingncia da experincia humana.

    Se no nosso prlogo, falamos numa fronteira de ampla comunicao entre as disciplinas, Philippe Sabot oferece, como ponto de partida, uma descrio dessa fronteira. De um lado, a rigidez da atividade especulativa; do outro, o apelo ao sonho e a imaginao. Mas tambm, de um lado, a existncia de fic-es de invejvel agudeza na sua argumentao e, do outro, propostas metafsicas que pedem ajuda fantasia. A partir dessa perspectiva, Sabot capta as ressonncias entre os textos de um filsofo, Foucault, e um escritor, Borges. O ponto em comum, neste caso, a literatura; mais especificamente, a proble-mtica do esvaecimento do autor: por um lado, a negao de uma subjetividade autoral; pelo outro, a evidncia de que o leitor recria o livro. Num terreno to escorregadio, diz Sabot, difcil deslindar a Li-teratura e a Filosofia. Existe sim o literrio, e seus diversos modos de recepo, e o filosfico, como corpus em eterno estado de reinterpretao. Optamos pela publicao bilngue para se manter o sabor do texto de Sabot, escrito em francs, e, para ampliar seu acesso ao publico em geral, pudemos contar com a traduo de Maria A. A. de Macedo.

    Tarik Athayde l os primeiros escritos de Sartre e afirma que a possibilidade de entender a lite-ratura por meio da filosofia, preocupou-o desde cedo. A partir da sua investigao fenomenolgica da conscincia, o francs se interessou pela maneira como o signo lingustico solicita que a conscincia dirija sua ateno para o objeto significado. O escritor, ento, maneira do pintor com suas representaes, penetraria na imaginao do leitor dirigindo sua mente, sua intencionalidade, atravs de uma trama de significaes.

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    Maria Macedo percorre uma estrada de mo dupla e constri a ponte entre o Iluminismo e nossa poca. Na ida ou na volta, parte do conceito romntico de literatura, sustentado pela autonoma do texto, para chegar a posio atual de estudiosos como Compagnon e Todorov que advogam a completa retirada da crtica literria do gueto formalista. J na mo de volta ou de ida, a autora aborda os estu-dos literrios de filsofos franceses contemporneos inclinados tambm a uma abertura para a fico. O percurso terico de Maria conflui em Ionesco que, na sua obra, utiliza um recurso literrio, a pardia, para analisar a modernidade.

    Carlos Japiassu embarca o leitor num exerccio de memria. A partida desde a capital; a estrada, com suas cidadezinhas de nomes que ecoam a herana catlico-ibrica; a caatinga, que aguardava no final do caminho como uma feliz anfitri; as alcunhas dos personagens da regio criadas num universo to estranho para as crianas que sua sonoridade despertava um encantamento sonoro e, por fim, a casa, sua rotina, seus arredores, suas comidas, tudo harmonizado num relato preciso e riqussimo em detalhes.

    Fabian Pieyro

  • 7O filsofo que ri e o humorista, segundo Kant

    Mrcio SuzukiDepartamento de Filosofia/USP

    Ler os textos no publicados de Kant como visitar as pginas de uma grande enciclopdia. Muito do que foi produzido pelo pensamento do sculo XVIII, esse sculo enciclopdico por excelncia, reto-mado e refletido por ele de uma maneira que nos faz entender melhor os assuntos discutidos pelos seus contemporneos.

    Uma figura um tanto inusitada que se pode encontrar nas reflexes e cursos de Kant a figura do filsofo que ri, figura que aparece no mbito de uma questo fundamental, a de saber que importncia se deve dar vida.

    Existe, verdade, uma proximidade dessa figura do filsofo que sabe rir com o sbio estoico, mas a diferena entre eles bastante clara: a importncia que o sbio d vida depende exclusivamente do quanto ela dedicada ao exerccio da virtude; j o filsofo que ri tambm sabe dar alguma importncia vida, uma vez que a capacidade de rir se define para ele como a capacidade de rir principalmente das coisas a que equivocadamente se confere grande importncia.

    Saber tirar o peso de algo que pode levar ao sofrimento e tristeza foi um dos ensinamentos de Epicuro, cuja maior qualidade era, para Kant, a de manter sempre seu corao alegre e satisfeito (das frhliche und zufriedene Herz). Epicuro sabia se manter sempre alegre, porque conseguia impedir que aquilo que afetava o seu corpo, a sua sensibilidade, chegasse ao seu ntimo, ao seu nimo ou mente (Gemt). Ou seja, mesmo que sentisse dor, ele no deixava que essa dor se transformasse em abatimen-to ou tristeza. A grande artimanha (das groe Kunststck) para alcanar esse corao sereno tirar a importncia das coisas no mundo; feliz aquela espcie de nimo em que se subtrai a importncia das coisas que sucedem pessoa, pessoa que no insensvel (fhllos), pois sente a dor, porm no deixa que ela abale o seu estado de esprito.1 O corao alegre pode ser considerado a capacidade (Verm-

    1.Kant, Antropologia Collins, p. 169.

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    gen) de ver as coisas do mundo de um ponto de vista em que elas aparecem importantes ou risveis (wichtig oder lcherlich).2

    Essa retomada da figura de Epicuro por Kant faz parte de uma reavaliao que se comeou a fazer do epicurismo na Europa, mais precisamente com Gassendi, reavaliao na qual o fundador do fa-moso Jardim em Atenas deixa se ser um filsofo meramente hedonista para se tornar um filsofo moral dos mais rigorosos, como dir a Crtica da Razo Prtica (A 208). Na Alemanha, a polmica a respeito do epicurismo se d principalmente entre Johann David Michaelis e Moses Mendelssohn e versa sobre o sentido do conceito epicurista de voluptas. Tomando o partido do fillogo Michaelis, para quem a palavra no tem em latim a conotao lasciva de volpia (Wollust), Kant aceitar a explicao de que o prazer epicurista , fundamentalmente, um estado livre de dor, o estado confortvel da mente [der behagliche Gemtszustand], em que todos os desejos esto acalmados. a, nessa ausncia total de dor e desejo, que reside, segundo Kant, o to denegrido princpio da volpia epicurista, que deveria signifi-car propriamente o corao alegre do sbio.3

    indispensvel assinalar que a assimilao da doutrina de Epicuro no vem sozinha, mas se com-bina com outras questes que esto na ordem do dia. O nimo intocado do sbio epicurista ser asso-ciado por Kant a algumas noes modernas, como a de bom humor e tambm de uma certa inquie-tao da alma, o que impede que ela seja identificada s noes de tranquilidade da alma, de apatia e ataraxia, to importantes nas escolas filosficas da antiguidade. Noutras palavras: a assimilao da mente imperturbada de Epicuro no implica contradio com uma certa agitao necessria e benfi-ca da mente, o que pode ser explicado, segundo Kant, pela distino entre indiferena e equanimidade. A indiferena (Gleichgltigkeit) pode provir de falta de sensibilidade (Fhllosigkeit) ou insensibilidade (Unempfindlichkeit), que uma espcie de estupidez; j a equanimidade (Gleichmtigkeit) uma fora e no uma fraqueza, que consiste em estar de posse do seu bem-estar sem distino do objeto externo. Ela no uma mera indiferena ou insensibilidade quanto ao objeto externo, mas uma fora constante, um nimo sempre igual (literalmente equnime), qualquer que seja o objeto. Quem possui essa fora do nimo, sente a soma toda de prazer e contentamento. a conscincia da grandeza desse bem-es-tar, que supera todas as circunstncias exteriores.4 O que seria essa soma total de prazer, esse estado inabalvel de bem-estar?

    O homem equnime no pode deixar que a dor que lhe afeta os sentidos penetre o seu nimo. Se capaz de deter as dores na sensibilidade, ele pode ser feliz (glcklich); se no consegue deter a entrada da dor na mente, ele infeliz (unglcklich). Essa a grande diferena entre animais e homens: naqueles, dor e prazer se situam to-somente no mbito da sensibilidade; nestes, as impresses podem adentrar o ntimo do indivduo. por isso que s os seres humanos, no os animais, so capazes de sentir tristeza e alegria. E a felicidade, no seu sentido mais prprio, consiste em no de deixar abalar por nenhuma im-presso dolorosa.5

    2.Idem, p.172.3.Antropologia de um Ponto de Vista Pragmtico, 62, p. 132.

    4.Antropologia Friedlnder, p. 561-562.

    5.Idem, p. 567-568.

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    Felicidade ou pleno domnio do bem-estar so, portanto, sinnimos desse estado de nimo no qual a soma de prazeres e contentamentos no pode ser aumentada por nenhum prazer novo, nem dimi-nuda por nenhum novo sofrimento. Isso se explica, porque na mente equnime no h prevalecimento de um ou outro aspecto anmico, ou seja, a mente sentida na sua integralidade, analogamente ao que acontece com a sade, que o estado do corpo em que no se sente nenhuma parte dele em especial a dor fsica sendo geralmente uma dor localizada e desestabilizadora do seu equilbrio.

    Com o epicurismo depurado, o pensamento kantiano consegue ver a figura do sbio de uma maneira nova, uma vez que a equanimidade aparece como atributo reservado aos filsofos6. O estado de nimo (Gemthszustand) no pode ser afetado pelas circunstncias do acaso e do destino: h uma in-dependncia em relao s injunes da sorte que caracteriza o tipo de ndole filosfica (philosophische Gemthsart).7 E a histria revela que a igualdade de nimo uma caracterstica atribuda a trs filso-fos: Epicuro, Demcrito e Thomas More. Conforme j se disse, o primeiro no o filsofo hedonista que se imaginava. Em Demcrito e More se percebe melhor, por sua vez, outra qualidade que ser associada equanimidade: a capacidade de rir. A caracterizao do filsofo ou do homem equnime implica para Kant (que s est seguindo certa tradio) a figura do filsofo que ri.

    Kant gostava de lembrar a seus alunos a seguinte anedota sobre a decapitao do chanceler da Inglaterra:

    O homem contente e tranquilo encontra em todas as adversidades algo de que possa fazer

    graa e se tranquilizar: assim que Thomas More, gro-chanceler da Inglaterra, homem probo

    e que sempre conseguia brincar, disse a seu algoz, quando j havia posto a cabea na guilho-

    tina: a barba ele [o algoz] no podia cortar, pois isso no estava escrito na condenao. Esta

    uma disposio de nimo feliz [glcliche GemthsVerfassung].8

    Seria interessante poder conhecer um pouco melhor o talento de Kant para contar anedotas como esta, e qual efeito tinham sobre seus alunos dos cursos de Antropologia. Curiosidade parte, mui-to da fama em torno do bom humor de More se deve, como sabido, ao Elogio da Loucura de Erasmo de Roterd, obra dedicada ao filsofo e poltico ingls seu amigo. Seja lembrado o que Erasmo escreve a More na Introduo obra: Supus depois que este divertimento mereceria a tua aprovao, visto que no receias um gnero de jocosidade douto e agradvel e que, na vida quotidiana, segues tal como De-mcrito.9

    O humor de More alinhado ao de Demcrito, filsofo que, segundo uma longa tradio, teria sido um filsofo que ria de tudo, diferentemente de Herclito, filsofo choro. Incluindo autoridade

    6.Die Gleichmtigkeit kommt den Philosophen zu. Friedlnder, p. 561.

    7.Rx 1489, p. 730.

    8.Antropologia Parow, p. 372-373.9.ERASMO, Elogio da Loucura. Traduo de lvaro Ribeiro. Lisboa: Guimares, 1989, p. 7-8.

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    medicinal de Hipcrates para afirmar os efeitos benficos do riso, essa tradio inteiramente forjada10 retomada no ensaio que Montaigne escreve sobre Demcrito, no qual ele diz preferir o humor do filsofo de Abdera ao humor tristonho de Herclito. Retomando versos da Stira X de Juvenal, escreve Montaigne:

    Demcrito e Herclito foram dois filsofos, dos quais o primeiro, achando a condio humana

    v e ridcula, no saia em pblico sem uma cara zombeteira e risonha; Herclito, tendo pieda-

    de e compaixo dessa mesma nossa condio, trazia a cara continuamente entristecida, e os

    olhos carregados de lgrimas...11

    A atitude tristonha comporta uma empatia ou comiserao com aquilo que objeto do lamento, que deste modo considerado com alguma estima. J as coisas de que zombamos, ns no as esti-mamos.12 H uma diferena de apreciao do valor das coisas que determina duas linhas de conduta bastante distintas: segundo o humeur de Montaigne, mesmo o cnico que despreza os homens por con-sider-los como moscas e bexigas cheias de vento um juiz mais cido e picante e, portanto, mais justo que Timon, cujo apelido aquele que odeia os homens. Tomar uma coisa a peito (on le prend au coeur) estar perto de odi-la. Se so os homens que assim so tomados a srio, o indivduo se tornar um misantropo: foi o que sucedeu, segundo Kant, a Jean-Jacques Rousseau.

    A equanimidade kantiana assimila, como se est vendo, toda uma tpica ligada ao riso e ao humor. Ela no deixa de fora nem mesmo o locus clssico de que o mundo uma stultifera navis. A me-lhor maneira de no se deixar levar pela misantropia e detestar os defeitos dos homens vesti-los com o barrete do bufo (Narrenkappe), assim como Erasmo vestiu a prpria cabea de Cristo com um capuz de guizos.13 melhor ser Demcrito que Herclito e considerar o mundo como uma casa de loucos (Narrenhaus):

    Riamos das tolices [Thorheiten] dos homens, sem excluir as nossas prprias; ento perma-neceremos amigos de todos os homens, riremos de suas tolices e, ao mesmo tempo, ns os

    amaremos, enquanto o indivduo de humor rabugento se tornar misantropo e inimigo dos

    homens. Pois as tolices do mundo merecem que nos irritemos com elas? No merecem antes

    o escrnio? Com esse procedimento obtemos o tesouro mais nobre do homem, a serenidade

    da alma [die Heiterkeit der Seele].14

    10.A fama de Demcrito como filsofo dado ao riso remonta ao Romance de Hipcrates, obra annima do incio do sculo I. Sobre essa tradio, cf. Georges Minois, Histria do Riso e do Escrnio, traduo de M. E. O. O. Assumpo, So Paulo: Editora da Unesp, 2003, p. 60. Sobre a retomada dessa tradio em Sneca, Montaigne, em La Fontaine, em Padre Vieira, etc., cf. o artigo O Riso de Demcrito, de Francisco Jos da Silva publicado em A Palo Seco, ano 4, nmero 4, 2012, pp. 35-9.11.MONTAIGNE, De Dmocrite , in Essais, ed. cit., vol. I, p. 421.12.Idem, ibidem.13.Sobre a nau dos insensatos e o barrete do bufo, cf. Minois, op. cit., p. 262.

    14.Antropologia Parow, p. 260.

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    Rir das tolices humanas o meio de obteno da serenidade, tesouro mais precioso que o indiv-duo pode obter. Riso e serenidade esto ligados ao valor, importncia que se d vida, ligao que se explicita tambm noutra passagem:

    Jamais devemos considerar a vida como importante [das Leben nie fr wichtig halten], de-vendo ver as alegrias e sofrimentos dela como um jogo de crianas, e por isso Demcrito a

    tornava melhor do que Herclito. O melhor c na terra , portanto, um corao sempre alegre

    [ein stets frhliches Herz], com o qual sou amigo de todos os homens. Infeliz, ao contrrio, o misantropo, e devemos ter receio dele.15

    Demcrito e More gozavam de uma condio de nimo tal, que conseguiam fazer graa das coisas mais adversas; como a muitos homens, a natureza lhes deu uma disposio pela qual eram capazes de tirar a importncia das coisas (den Dingen die Wichtigkeit nehmen).16 Saber brincar, zombar, jogar estes no parecem ser atributos que uma larga tradio platnico-aristotlico-acadmica confere ao homem honesto e ao sbio. Conforme adverte, por exemplo, Ccero:

    [...] no somos gerados por natureza para parecermos ter sido feitos para jogo e troa, mas

    antes para a severidade e para determinadas aes mais graves e mais altas. Jogo e troa so

    lcitos, mas como o sono e outros tipos de repouso, quando tivermos feito o bastante de coisas

    graves e srias.17

    A figura do filsofo que as reflexes e os cursos de Antropologia delineiam e divulgam desde os anos 1770, bem mais sorridente que a dessa face mais sisuda do filsofo tradicional, e bem diferente tambm daquela que prevalecer nos textos publicados de Kant. Mas ser que ela menos interessante do que o filsofo no ideal que aparece na Crtica da Razo Pura, do filsofo irrealizvel, cuja aproxima-o menos imperfeita o filsofo moralista da antiguidade? o que caberia perguntar, mas sugerindo tambm que os principais traos caractersticos dessa figura sero conservados em outro lugar do siste-ma crtico. Poder-se-ia dizer que em Kant convivem duas figuras: a do filsofo por excelncia e no sen-tido rigoroso da palavra e aquela do indivduo dotado de disposio ou ndole filosfica. O primeiro se aproxima mais do sbio estoico, com seu autodomnio completo sobre o esprito, enquanto a segunda compreende uma srie de elementos cuja reconstituio est se tentando fazer aqui. Sem ter necessaria-mente um referente histrico concreto, o que se percebe nas passagens de Kant sobre a boa disposio de nimo , na verdade, a tentativa de refletir sobre um tipo j mais ou menos cristalizado nos textos retricos, literrios e filosficos Se for isso mesmo, a pergunta que se impe a seguir a de saber o que daria consistncia a essa liga de elementos heterclitos. Os emprstimos feitos ao epicurismo depurado (equanimidade, temperana, felicidade do sbio) so certamente o ponto de partida, mas o resultado obtido parecer ter mais solidez caso se consiga desencavar onde est o seu ponto de sustentao.

    15.Antropologia Mongrovius, p. 1344-5.16.Antropologia Collins, p. 172-3.17.Ccero, M. T. De officiis, I, 103. Edio bilngue e traduo de Karl Bchner. Munique/Zurique: Artemis, 1987, p.89. Para ser justo preciso advertir que Ccero no recusa toda zombaria e todo jogo, mas aceita aqueles que convm ao homem honesto, isto , feitos no momento certo e respeitando a convenincia, o decoro. (idem, I, 104, p. 89-91).

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    O que torna possvel um corao sempre alegre, o nimo sempre igual? certo que a equanimi-dade parece ter algo de uma ddiva, de um dom da natureza. Mas talvez seja possvel iluminar o princ-pio que a explica, sem apelar unicamente a esse recurso. Por que se pode dizer que a mente se mantm igual? H uma explicao lgica para isso: uma paixo ou afeco pode ser dita uma representao parcial, porque direciona a mente exclusivamente para um determinado foco, apagando ou obscure-cendo os demais, como diante de uma fotografia em que um detalhe inoportuno atrapalhasse a plena percepo do objeto ou ao reproduzidos. Por ser parcial, toda paixo distinta de um sentimento mais amplo, que no visa esta ou aquela representao em particular, mas o conjunto intitulado mente ou alma. Toda afeco distinta do sentimento da alma inteira, porque a direciona para um ponto e no para o conjunto, podendo com isso obviamente perturbar o equilbrio psquico. Ora, esse conjunto no seno o prprio nimo, que tambm atende por outro nome, o de sentimento vital, ou ainda, sentimento da vida. nele que sentimos em ns mesmos a fonte da vida.18

    A relao entre as afeces parciais e o conjunto chamado nimo pensada em termos de uma boa proporo: a equanimidade est em no ser muito afetado nem pelos apelos sensveis, nem pelas emoes particulares, isto , preciso ter fora de nimo bastante para resistir a todos eles. A grande-za do sentimento vital consistir precisamente em conseguir relativizar tudo aquilo que s pode afet-lo momentaneamente ou particularmente, pois as emoes e afeces representam um desequilbrio das foras presentes no nimo, com a consequente perda do sentimento da prpria vida.

    Essas consideraes sobre o nimo equnime devem bastante leitura que Kant fez da filosofia britnica, sem a qual dificilmente ele teria conseguido compor inteiramente a figura do filsofo que ri. que esse filsofo est muito prximo do filsofo de bom humor, que tem seu ponto alto certamente na pessoa de David Hume.

    De fato, Hume colocou de uma maneira muito peculiar a pergunta: que importncia o homem deve dar vida? E a linha que vai de Hume a Kant fica bem mais ntida quando se percebe que na an-tropologia deste ltimo a medida de valor da vida s pode ser respondida por um sentimento. S esse sentimento pode calcular se a mente se encontra numa disposio ou proporo adequada. Ou talvez numa afirmao um pouco mais temerria: a proporo adequada ou razo o sentimento mesmo, e esse no outro seno o prprio sentimento vital. Esse sentimento por natureza diferente de qualquer sensao de dor ou de contentamento, ele no se encontra em nenhuma parte do corpo ou dos senti-dos. A medida da vida no est em nenhum dos sentidos, ela irredutvel sensibilidade dos rgos, ela tem um padro prprio. Ela no est num sentido orgnico, mas no sentimento vital: A fora vital tem uma medida [ein Maa] em que no h nem contentamento nem dor, o bem-estar [Wohlbefinden].19 O bem-estar est alm ou aqum do contentamento e do sofrimento.

    Por sua definio mesma, o nimo sempre igual nem se abala, nem se comove por nada daqui-lo que dado sensivelmente, por contentamento ou dor. Num sentido preciso, ele no passvel de acrscimo, nem de diminuio e, portanto, qualquer desvio da proporo j no se chama propriamente

    18.Antropologia Friedlnder, p. 561.

    19.KANT, I. Menschenkunde, p. 1069.

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    equanimidade. Medida ideal da fora da vida, ele tambm o padro de medida de tudo o que afeta o indivduo na vida. Pode-se pensar por isso num clculo em que todos os objetos e ocorrncias do mundo so medidos por esse a priori vital; por outro lado, o clculo sofisticado o bastante para sugerir que a regulagem dada (ou perdida) sempre individualmente, pois depende em grande parte do temperamen-to de cada um. Uma das maneiras de explicar esse clculo mediante a seguinte comparao:

    Na apreciao do resultado da influncia que a dor e o contentamento tm sobre o conjunto

    do bem-estar, entra no apenas o sentido, mas a razo. Assim, no fica bem num homem

    ponderado se contentar ou entristecer com ninharias que no tm influncia alguma sobre o

    conjunto de sua felicidade ou infelicidade. Por fim podemos nos afastar da razo e estimar o

    valor das coisas no segundo a proporo com todo o bem-estar [Wohlbefinden] ou comodi-

    dade [Wohlhaben], mas em e por si mesmas. assim que um homem rico, tal como qualquer

    outro, pondera se vai comprar algo para o prazer e agrado que custa, por exemplo, acima de

    dez tleres reais; embora dez tleres reais representem uma pequena ninharia em proporo

    aos bens do rico, ele, todavia, no estima esse gasto em proporo com toda a sua riqueza,

    mas em e por si mesmo, segundo as necessidades, a saber, que ele poderia obter algo mais

    necessrio com esse dinheiro. Portanto, a apreciao correta de uma coisa em comparao

    com o conjunto do bem-estar bastante rara.20

    O trecho parece contradizer a ideia de que dor e contentamento no podem diminuir nem au-mentar o sentimento vital. Mas no bem assim, pois, como diz a ltima frase, se a comparao entre prazer e dor fosse feita de maneira correta, isto , em relao ao conjunto do bem-estar e no como as coisas so em si mesmas, o indivduo veria que sua felicidade no seria minimamente atingida. O critrio objetivo em relao quilo que as coisas so no entra em linha de conta, j que o que vale aqui a pro-poro [Proportion] de algo com o todo anmico. Ora, a alterao do bem-estar s existe onde, por assim dizer, j no h efetivamente bem-estar, onde a boa proporo j est perdida. E nesse clculo paradoxal talvez no seja possvel falar sequer de restabelecimento do bem-estar.

    De fato, o erro do rico traar uma comparao objetiva entre o objeto de prazer e o objeto til que poderiam ser comprados com o mesmo dinheiro, e no fazer uma comparao com a soma to-tal de sua riqueza, diante da qual a quantia e, no limite, qualquer quantia irrisria. O objetivo do exemplo claro: a representao parcial raramente confrontada com toda a riqueza contida no nimo, infinitamente superior a perdas e ganhos pontuais. A imagem monetria (tler real era moeda corrente na Alemanha) no nem um pouco fortuita, servindo, ao contrrio, como pista para a compreenso do que o sentimento de vida.

    E verdade que, com seu faro inigualvel, Kant est dando a entender que uma das formas de explicar a apreciao do valor da vida comparando-a a um fundo de capital. Esse fundo de capital , naturalmente, a ndole, o nimo, a disposio humoral e humorstica de cada um. A natureza concede um capital inicial abundante, mediano ou parco a cada indivduo, e toda a vida dele ser entendida como uma espcie de livro-caixa em que se registra a manuteno, aumento ou diminuio desse montante

    20.Idem, Friedlnder, p. 571-572.

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    inicial de bom humor ou de disposio serena e alegre. Na reflexo 1511 sobre antropologia, Kant atribui essa caracterstica ou a noo a Hume. A linha que interessa diz: Hauptstuhl der Zufriendenheit. Hume., que pode ser traduzida assim: Fundos da satisfao. Hume., onde a presena do nome do filsofo es-cocs fundamental, pois no ocorre em outros textos paralelos e indica a procedncia da comparao. Na pgina seguinte se l: Fonds der Zufriedenheit = fundo da satisfao ou contentamento.21

    A importncia que se confere vida depende desse fundo inicial, que varia de indivduo a indiv-duo, ou seja, indiscutvel que existe uma desigualdade inicial entre eles no que se refere tanto con-dio natural, como condio civil. Mais ainda: a constituio do carter depende em grande medida desse capital inicial, sem o qual o indivduo dificilmente chega a ser algum na vida: difcil obter um carter, se a disposio natural no ajuda. A disposio natural o fundo, a propriedade. O capital [Die Naturanlage ist der Fonds, das Grundstk. Capital.].22

    Sucede que, mesmo para algum com pouco capital, com pouca disposio inicial para o bom humor e serenidade da alma, uma quantidade mnima dessas qualidades j uma promissria avaliza-da pela natureza de que elas podem ser ampliadas no futuro. E a mesma coisa vale para os instintos restantes que formam inicialmente o fundo de capital de cada pessoa. Este pode ser aumentado ou diminudo na sociedade civil, se a arte de viver empregada nele souber dar rumo adequado s incli-naes iniciais. Assim Kant poder dizer sobre o estado de nimo sempre igual: dificilmente algum ter por natureza a suficincia ou contentamento, o corao sempre alegre ou a chamada volpia de um Epicuro, mas podemos trabalhar bastante nisso.23

    De tudo o que foi tratado aqui, o que poderia ajudar a entender o papel do riso e do cmico? V-rios aspectos poderiam ser sugeridos para dar uma resposta a essa questo: com essas explicaes, que so fundamentalmente tiradas da filosofia de Hutcheson (que desenvolve ideias de Shaftesbury), o riso j no mais uma paixo, como ocorre na filosofia clssica, segundo aquilo que Quentin Skinner chamou de teoria clssica do riso. Ele j no precisa ser entendido como um movimento da alma, cuja origem a superioridade daquele que ri sobre o objeto risvel. O riso tem uma ligao com a vida, com a forma mais plena dela, e com esse fundo original, com esse capital de satisfao que no se abala com nada, e que, bem aplicado, s aumenta com os anos.

    Foi Francis Hutcheson, filosofo irlands iniciador das Luzes na Gr-Bretanha, quem ensinou Hume e Kant e o sculo XVIII em geral a pensar que a vida um clculo baseado no sentimento, e que o capital inicial de cada um pode se tornar, ou um fundo de perptua ansiedade (fund of perpetual an-xiety) ou uma diversificao dos fundos de prazeres e aes (other funds of happiness).24 A complexidade grande: riqueza e poder, por exemplo, so bens fundamentais para o indivduo, porque garantem in-dependncia em relao aos outros, proporcionando os meios de obter benefcios para si, para os prxi-mos e para a coletividade. Mas quando o desejo de riqueza e poder se confunde imaginariamente com a dignidade, virtude e felicidade, ento aquilo que poderia se tornar um dos fundos para bons ofcios

    21.Idem, p. 832.22.Rx 1518, p. 868.

    23.KANT, Menschenkunde, p. 1128.24.Idem, p. 107 e 116.

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    (fund of good offices), se converte num tormento para a mente.25 O fundamental saber separar as falsas imaginaes e opinies, das imagens e opinies corretas, o que depende de um senso adequado para perceber qualidades morais. E esse senso pode vir a se tornar um fundo seguro de deleite interno [sure fund of inward enjoyment] para aqueles que obedecem s suas sugestes. Ao refletir sobre eles, nosso prprio temperamento e aes podem ser fontes constantes de alegria.26

    No se deixar levar por associaes indevidas, causadoras de ansiedade e sofrimento, que in-vadem a mente de fora, buscar sempre alegrias que dependem somente do poder de cada um e que esto ao abrigo das contingncias da fortuna, eis o que caracteriza a sade, a fora, a solidez da mente soudness of mind que o leitor de Hutcheson reencontrar como sinnimo de bom senso, de senso forte (strong sense) e juzo mais saudvel (soundest judgment) na delicadeza de gosto e sentimento em Hume e na mente equnime, no nimo inabalvel de Kant.

    Retomando a questo, a dificuldade de entender essa noo reside no fato de que ela rene dois elementos aparentemente inconciliveis, que teriam de ser colocados numa equao onde uma varivel permanecesse constante e a outra constantemente se modificasse: a felicidade depende desse equilbrio, desse oximoro, que um estado de humor invarivel, de uma Gleichmtigkeit, que no pode ser nem diminuda nem acrescida por dor ou prazer; por outro lado, esse fundo natural, esse estado equilibrado pode receber um acrscimo, um incremento, de uma multiplicao de prazeres saudveis, seguros e inocentes, que representariam um ganho de capital seguro ao longo da vida e que garantiriam a constncia e tranquilidade do estado da mente. Os dois termos dessa equao seriam o sentimento vital e o sumo bem. Para Hutcheson e para Hume, no sentimento vital, constante ao longo da vida, mas sensvel s variaes, que se mede o sumo bem, o finis bonorum, o mximo de felicidade alcanvel na vida de um homem. A soluo para essa equao complexa parece estar num sensor indicando um ponto fixo do prazer anmico geral, que permanece o mesmo gleich uma Gleichmtigkeit ao longo de toda a vida. No entanto, tal igualdade s pode ser mantida caso se acumule uma reserva que impea que a re-petio de um mesmo prazer seja confundida com a satisfao sentida com o estado geral da mente, pois o paradoxo est em que a reiterao, o hbito do mesmo, o que impede que o nvel geral de satisfao continue sendo o mesmo. fundamental, portanto, no confundir acmulo de riqueza com aumento da fora para garantir o sentimento ntimo, o que fica evidente quando Hume (secundado por Kant) diz que talvez no haja vcio mais incorrigvel que a avareza, vcio encontrado sobretudo na velhice, quando outras paixes menores j no so capazes de contrabalanar, de alguma maneira, essa inclinao pre-dominante.27 A iluso natural de que cometido o avaro, alis, ajuda a explicar melhor, por contraste, o poder de quem tem o nimo em suas mos: o avaro cr usufruir de um poder (Macht) suficiente para suprir quaisquer outras fruies, mas justamente por renunciar a todas elas, ele no usufrui de nenhu-ma.28

    Ainda que a moral kantiana venha a se distanciar conscientemente dos autores britnicos e, com isso, tambm de toda a tica antiga (como a felicidade uma ideia vaga, indeterminada, mero ideal da

    25.Idem, p. 112.26.Idem, p. 111.27.Da Avareza, p. 257.

    28.Antropologia de um Ponto de Vista Pragmtico, trad. cit., p. 171.

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    imaginao, o sumo bem tem ser deslocado para a virtude, para a razo), a originalidade de sua leitura ajuda a reconstituir melhor as elaboraes dos pensadores britnicos. Ao mostrar qual o princpio geral que comanda a dinmica das afeces, o equilbrio afetivo, ele parece sugerir algo que estava por assim dizer pedindo para ser dito numa frmula mais simples: fundamento dos clculos, o sentimento de vida s pode ser um sentimento puro, um a priori. A confirmao dessa hiptese pode ser dada constatando a relao intrnseca desse a priori da vida com o sentimento de gosto, o que ajudaria, por sua vez, a explicar melhor porque o juzo esttico e o juzo teleolgico esto juntos na Terceira Crtica.

    Que a vida seja definida em relao ao sentimento de prazer e desprazer, parece indiscutvel des-de os anos 1770: Vida a conscincia de um jogo livre e regular de todas as foras e faculdades dos ho-mens.29 Definio que poderia certamente figurar na Crtica do Juzo, e que resume bem todo o percurso de apropriao e transformao por que passaram as ideias hutchesonianas. A vivificao (Belebung) das faculdades do nimo que ocorre na fruio esttica o padro ideal de medida do sentimento de vida, porque nela nenhuma faculdade sobressai em relao s outras, e todas se encontram num jogo recipro-camente fecundo. E que o gosto e o sentimento vital sejam noes inseparveis, o que se pode ler logo no primeiro pargrafo da Crtica do Juzo, quando, ao traar a diferena entre o juzo de conhecimento e juzo esttico, se afirma que neste

    a representao inteiramente referida ao sujeito e, alis, a seu sentimento vital (Lebensge-fhl, ou sentimento da vida), sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer, o que funda uma faculdade inteiramente particular de distino e de julgamento, que no contribui em

    nada para o conhecimento, mas somente mantm a representao dada, no sujeito, em con-

    fronto com a inteira faculdade das representaes, de que a mente [Gemt] toma conscincia no sentimento de seu estado.30

    A passagem traz uma condensao do caminho nem sempre em linha reta percorrido pela re-flexo kantiana: sentimento vital, sentimento de prazer e desprazer, juzo, referncia ao sujeito, repre-sentao referida ao conjunto das faculdades com a simultnea conscincia desse estado na mente. Caso se leia com ateno, essa ltima descrio no faz outra coisa seno transpor para o juzo esttico a comparao presente na busca de proporo entre os prazeres parciais e o sumo bem. Com efeito, enquanto no sumo bem a soma de todos os bens, o conjunto de todos os prazeres preciso sempre levar em conta a articulao e a compatibilidade de um bem com todos os outros bens num clculo em que um bem menor pode ser mais importante, porque justamente contribui mais para o todo do que um bem maior que o arruna , no juzo reflexionante o que est em jogo a relao de uma representao esttica particular (a bela flor, o belo poema) com o conjunto do nimo, como o sentimento da vida. Ou seja, ainda que o contedo seja diferente, a forma da regra permanece: o sentimento de prazer e despra-zer ainda a comparao de uma representao esttica particular com a esfera inteira do nimo, com o conjunto de todas as representaes das faculdades da mente. Que vida em seu sentido mais amplo e vivificao esttica, que o clculo do sumo bem e o juzo de gosto tenham uma forma semelhante, e mais, que o juzo de reflexo esttica tenha nascido do clculo sentimental, fica claro por um pargrafo

    29.Idem, Antropologia Friedlnder, p. 539.30.Idem, Crtica do Juzo, A 4-5, trad. cit., p. 303.

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    da Antropologia. Ali se explica exatamente a atitude oposta, a do indivduo que, como o rico do exemplo anterior, no sabe relacionar uma dor ou afeco ao conjunto de seu nimo:

    Em geral o que constitui o estado de afeco [isto , oposto ao de equanimidade] no a

    intensidade de um certo sentimento, mas a falta de reflexo [Mangel der berlegung] para

    comparar esse sentimento com a soma de todos os sentimentos (de prazer e desprazer) em

    seu estado. O rico a quem um criado quebra por inpcia uma bela e rara taa de cristal ao

    carreg-la durante uma festa, no deveria dar nenhuma importncia a isso, se no momento

    mesmo comparasse essa perda de um prazer com a quantidade de todos os prazeres que sua

    feliz situao lhe confere na condio de homem rico. Mas caso se entregue nica e exclusi-

    vamente a um sentimento de dor (sem fazer rapidamente em pensamento aquele clculo),

    no de surpreender que seu estado de esprito ser tal como se houvesse perdido toda a

    sua felicidade.31

    Ao contrrio do que se poderia imaginar, o rico infeliz no por falta de sentimento, mas por falta de reflexo (Mangel der berlegung), reflexo que o levaria a compensar o sentimento de perda momentneo pela soma de todos os sentimentos (de prazer e desprazer) em seu estado. Ao contrrio da fixao num afeto, numa dor, o sentimento de prazer esttico o que permite apreciar a vida, o sentimento de apreciao do valor e da importncia do conjunto que se chama vida. a conscincia de algo que no pode ser visto, nem ouvido, nem tocado, mas apenas sentido. Como se sugeriu antes, essa disposio filosfica de nimo no desaparece nos textos crticos: mantendo-se intacta nos cursos de Antropologia, ela ressurge redefinida no sentimento esttico da Crtica do Juzo.

    Gostaria de concluir com uma ltima observao: que o homem possa aumentar seu capital de humor e comicidade, isso vai ser explorado pela literatura e filosofia inglesa do sculo XVIII. Mesmo o homem que no nasce com uma disposio humorstica, lembra Lord Kames, pode aumentar seu capital humorstico e se tornar um escritor de humor. La Fontaine e Swift tem humor em sua natureza, em seu carter, eles so escritores ldicros, que fazem pilhria espontaneamente, naturalmente, quase sem es-foro, enquanto Addison e Arbuthnot, que no tm humor em suas veias, desenvolveram o humorismo em sua escrita e so escritores de humor. Kant retoma essa distino, dividindo os escritores em humo-rosos e humoristas. E o que ele diz, retoma muito do que se apresentou sobre o filsofo que sabe rir:

    Humor, no bom sentido, significa, com efeito, o talento de poder, arbitrariamente, colocar-se em uma disposio mental em que todas as coisas so julgadas de modo inteiramente outro

    do que habitualmente (e at mesmo inversamente), e no entanto em conformidade com cer-

    tos princpios racionais em uma tal disposio mental. Quem involuntariamente sujeito a

    tais alteraes chama-se humoroso; mas quem capaz de assumi-las arbitrariamente e com finalidade (em vista de uma exposio viva mediante um contraste que suscita o riso), este

    chama-se humorista, e sua obra, humorstica.32

    31.Antropologia de um Ponto de Vista Pragmtico, p. 152.

    32.Crtica do Juzo, trad. cit., p. 363.

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    Como disposio da mente, a capacidade humorstica no apenas ddiva, mas tambm uma ca-pacidade de se colocar arbitrariamente num ponto de vista diferente do comum, para apreciar as coisas de modo distinto. uma capacidade que se aprimora sempre e que tem de perdurar enquanto houver necessidade de desinflar a suposta importncia de coisas desimportantes para descobrir a verdadeira importncia da vida. Ou como diria Novalis: Humor uma maneira de ser arbitrariamente assumida e a humanidade um papel humorstico.

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    A energia potica das florestas crticas de Herder

    Marco Aurlio WerleDepartamento de Filosofia/USP

    No devemos supor que um filsofo que procura desenvolver a diferena entre a poesia e uma

    arte bela queira com isso explicar completamente toda a essncia da arte potica. O Sr. Lessing

    mostra aquilo que a arte potica no diante da pintura; no entanto, para ver o que ela pode

    ser completamente em si mesma, segundo a sua essncia inteira, a arte potica teria que ser

    comparada com todas as artes e cincias irms, por exemplo, com a msica, com a arte da dana

    e com a eloquncia para, assim, ser distinguida filosoficamente.1

    Introduo

    Abordarei o pensamento esttico do jovem Herder (1744-1803), que se afirma num dilogo com Winckelmann e Lessing e antecipa alguns temas do romantismo. Para tanto, sero analisados os textos: Primeira Floresta Crtica e Plstica, ambos de 1769. Herder defende nesses textos que a poesia deve ser pensada essencialmente como fora potica, manifestada no todo do poema por meio da linguagem, atingindo dessa forma a alma humana.

    Contrapondo-se distino feita por Lessing, de que a pintura se ocupa de corpos e a poesia de aes, Herder sustenta que a constituio de uma obra acabada pode certamente valer para as artes plsticas, mas no para a poesia, pois essa privilegia todo o processo e percurso de expresso da pura energia e fora potica, as quais no se fixam num nico dado objetivo final, que pudesse residir pronto diante de ns. Na poesia no se pode isolar um momento oportuno de expresso, como Lessing pen-sou junto ao tema do sofrimento de Filoctetes, na pea de Sfocles, e sim necessrio verificar como o poeta opera com o todo da obra.

    1.HERDER, J. G. Kritische Wlder. Oder Betrachtungen, die Wissenschaft und Kunst des Schnen betreffend, nach Massgaben neuerer Schriften. Erstes Wldchen. Herrn Lessings Laokoon gewidmet In: Schriften zur sthetik und Literatur (1767-1781), hrsg. von Gunther Grimm, Frankfurt am Main, Deutscher Klassiker Verlag, 1993, p. 191.

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    Esse argumento se repete na abordagem da escultura, sob o mote da lenda de Pigmalio, a saber, da esttua animada. Nas cinco sees da Plstica so percorridos alguns tpicos da escultura, tais como o panejamento, a expresso da figura humana e a manifestao de contedos mitolgicos, em que se visa sempre apontar para a essncia da escultura residindo na expresso da vida, desde o interior para o exte-rior ou, dito de outra forma, de dentro para fora. Desse modo, pode-se dizer que Herder antecipa alguns temas romnticos, tais como a busca da origem das artes plsticas na poesia, a percepo da importncia da linguagem na poesia e o enfoque das artes segundo a perspectiva da formao e do organismo.

    Situando as florestas crticas

    Nesta palestra eu gostaria de abordar uma das chamadas Florestas crticas [Kritische Wlder], que um tipo de texto de crtica literria e artstica concebido por Herder no perodo de 1767-1769, quando ele contava com 23-25 anos. Esse termo Wlder uma retomada de um gnero da Antiguidade, chama-do Silvae.2 Segundo o prprio Herder, o termo Wald por ele empregado tem a conotao de uma matria terica reunida sem um plano e ordem (HERDER, 1993, p. 245). Alis, essa noo de desordem exprime muito bem o sentido do termo floresta, em oposio ao urbano e citadino, como sendo o lugar onde no impera a simetria, e sim a confuso e o desordenado, o selvagem. Independentemente de como se queira tomar esse termo, o fato que esses textos de Herder so de difcil leitura e interpretao, pois muitas vezes Herder parece mudar de enfoque, ou seja, no seguir uma linha argumentativa claramente delimitada.

    Em termos mais amplos, o objetivo de Herder nesses ensaios inserir-se no debate esttico de seu tempo, num dilogo com Winckelmann, na Floresta crtica mais antiga, com Lessing, na Primeira floresta crtica e, indiretamente, com Baumgarten, na quarta Floresta crtica. O subttulo das Florestas cr-ticas indica esse intento: Florestas crticas. Ou consideraes que concernem cincia e arte do belo, segundo o padro de medida estabelecido por escritos recentes (Kritische Wlder. Oder Betrachtungen, die Wissenschaft und Kunst des Schnen betreffend, nach Massgaben neuerer Schriften). Essas situaes de dilogo e de interlocuo com esses autores da poca tambm tornam mais difcil o exame do texto de Herder, pois o leitor constantemente remetido para as fontes primrias que esto sendo comenta-das.

    Em particular irei enfocar aqui a Primeira Floresta Crtica [Erstes Wldchen. Herrn Lessings Laokoon gewidmet] e tambm a obra intitulada Plstica, tendo em vista ressaltar a mudana que Herder opera em relao a um certo tipo de crtica de arte e de poesia, dominante em meados do sculo XVIII, e que abrir espao para a compreenso romntica de crtica. Com sua concepo de poesia como energia e em sua insistncia na noo de uma escultura animada, Herder no apenas defende uma nova noo de poesia e de escultura, mas abre uma perspectiva para um novo conceito de crtica que, grosso modo,

    2.Cf. o comentrio do editor Gnther Grimm, da Klassiker Verlag (HERDER, 1993, p. 785). Na poca antiga, o termo Silvae significava um gnero cmico. Talvez a relao com o texto de Herder esteja na noo de desrodem, que se aproxima de certo modo do cmico. Ou seja, o intento de Herder proceder a uma crtica desordenada, isto , uma crtica que ainda no estaria totalmente fixada, mas que procura ainda encontrar um campo especfico.

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    implica a passagem de uma viso por assim dizer mecnica ou mecanicista para uma viso mais dinmica e orgnica da poesia e da arte.

    Entre Winckelmann e Lessing

    No centro da Primeira Floresta Crtica est a famosa polmica do grito de Laocoonte, em compa-rao com o grito de Filoctetes, personagem central da pea de Sfocles com o mesmo ttulo. Em que consiste essa polmica? O assunto foi colocado no ano de 1755, pelo ensaio de J. J. Winckelmann, inti-tulado Pensamentos sobre a imitao dos gregos na pintura e na escultura. Aps ressaltar a nobre sim-plicidade e a grandeza serena como marcas distintivas da arte grega e ter considerado que o sofrimento de Laocoonte na esttua no o mesmo retratado por Virglio na Eneida, Winckelmann, afirmou que Laocoonte sofre como o Filoctetes de Sfocles.3 Essa afirmao, juntamente com a referncia anterior a Virglio motivou Lessing, como se sabe, a escrever um clssico da esttica alem, a saber, O Laocoonte ou os limites da pintura e da poesia. Nessa obra ele retoma o velho tpico de Horcio, o Ut pictura poiesis e distingue o modo de operar das artes plsticas e o modo de operar da poesia. Ou seja, Lessing introduz uma nova dimenso de discusso que no estava presente em Winckelmann: transpe um problema que em Winckelmann dizia respeito ao modo de ser dos gregos para o plano terico da diferena entre as artes.

    Ora, Herder, por sua vez, vai tentar dar um passo alm de Lessing: se esse considerou que Win-ckelmann no se preocupou de modo mais profundo com a diferena de expresso entre as artes pls-ticas e a poesia, Herder ir considerar que Lessing, tendo como objetivo principal distinguir o modo de proceder das artes, no se aprofundou como poderia e deveria no campo especfico da poesia. O proble-ma, para Herder, menos o de saber em que medida Laocoonte sofre ou grita e como Filoctetes sofre ou grita, e sim em que medida o grito de Filoctetes de fato decisivo na obra potica de Sfocles. Ou seja, o problema de Herder saber como se processa a representao potica. A partir da essncia da poesia ser possvel ento recolocar o problema inicial de Lessing, da diferena da poesia diante das artes pls-ticas.

    O sofrimento de Filoctetes

    Tendo esse propsito, a Primeira Floresta Crtica de incio se refere tanto a Winckelmann quanto a Lessing. Segundo Herder, Winckelmann v apenas a arte, mas no a poesia dos antigos e seu estilo como o de uma obra de arte dos antigos, ao passo que o estilo de Lessing o de um poeta (HERDER, 1993, p. 67). Se, de um lado, o estilo de Winckelmann mais acabado, pronto, o de Lessing, por outro lado, mais processual, em devir (HERDER, 1993, p. 67-8). Winckelmann estaria mais interessado em nos dar uma metafsica do belo do que em nos fornecer uma histria da arte (HERDER, 1993, p. 66).4

    3.Reflexes sobre a arte antiga, trad. bras, p. 53/Gedanken ber die Nachahmung... (ed. al. da Reclam), p. 21.

    4.Segundo o organizador alemo, Gunter E. Grimm, Herder compara Winckelmann e Lessing numa carta a George Scheffner, de 23/09-04/10 de 1766 (cf. HERDER, 1993, p. 855-6).

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    A partir disso, o texto se volta exclusivamente a Lessing, sendo que Herder julga que as observa-es de Lessing sobre Filoctetes se concentram demasiadamente no mbito das regras e dos preceitos dramticos. Essa afirmao de Herder tem em mente o fato de que Lessing foi um grande analista de peas teatrais, o que se reflete em sua Dramaturgia de Hamburgo. No entanto, esse enfoque da teoria do teatro no alcanaria ainda o teor verdadeiramente potico da pea de Sfocles. O senhor Lessing dedicou toda uma seo para defender Sfocles, uma vez que esse havia levado ao palco dores corporais e deixou que um heri gritasse nessa dor. Toda a defesa feita pelo aspecto do dramaturgo ... pena que essa defesa esteja baseada em pressupostos incorretos: no Filoctetes de Sfocles a lamentao seria o tom principal da expresso de sua dor e, portanto, o principal meio para provocar a compaixo. Mas isso no assim! (HERDER, 1993, p. 95).

    A essa leitura de Lessing, que aqui no poderei examinar em detalhes, pois implicaria entrar na obra Laocoonte ou os limites da poesia e da pintura, Herder contrape a necessidade de se captar as impresses da representao teatral grega e de se colocar na posio de um expectador grego. Dito de outra fora, e aqui nos encontramos no campo prprio de Herder, determinado por um ponto de vista antropolgico e humanista, a questo do modo de sentir e de sofrer de Filoctetes deveria ser vista se-gundo uma perspectiva histrica mais ampla e no apenas pela lupa dos critrios e preceitos dramticos da pea de Sfocles. O que se coloca o modo de ser dos gregos, em comparao com o modo de ser de outros povos. Alis, esse ponto tambm o de discordncia de Herder em relao a Winckelmann, na Floresta mais antiga, no sentido de que ele questiona a especificidade e exclusividade que os gregos alcanam na obra de Winckelmann, como se a autonomia e a excelncia da arte grega tivessem surgido por si mesmas apenas em solo grego, sem uma contribuio central e especfica de outros povos.

    A tese bsica que Herder contrape a Lessing de que o tema do sofrimento no o assunto principal da pea de Sfocles, pois se assim fosse, se Sfocles quisesse nos apresentar os meandros do sofrimento humano, as reaes em torno de uma ferida que no cicatriza nunca e do sofrimento que ela gera, ele seria um mau dramaturgo, ficaria aqum de um mdico tratando de uma ferida (HERDER, 1993, p. 100-1).

    E aqui cabe uma rpida lembrana do enredo dessa pea de Sfocles: Ulisses e Neoptlemo se dirigem para a ilha na qual se encontra desterrado Filoctetes, para se apoderarem do arco e das flechas que esto na posse deste. Sem essas armas, que foram de Hracles, os gregos no conseguiro vencer Tria. Filoctetes, por seu lado, foi abandonado nessa ilha pelos gregos porque foi picado por uma cobra, o que lhe deixou uma ferida com um cheiro ftido insuportvel. Para conseguir as armas, porm, Ulisses planeja enganar Filoctetes, que nutre um ressentimento pelos gregos, mobilizando o jovem Neoptlemo, filho de Aquiles. Assim, toda a trama gira em torno da situao de sofrimento de Filoctetes, do orgulho e do senso de honestidade de Neoptlemo e da astcia de Ulisses. Ao final, Hracles intervm como deus ex machina e consegue convencer Filoctetes e Neoptlemo a partirem para Tria.

    Herder expe como compreende essa pea no fim do captulo 5 (HERDER, 1993, p. 105-7): o pri-meiro conceito presente na pea seria o de que Filoctetes um heri desterrado, um doente e miservel abandonado pelos homens. A nossa compaixo diante desse ser humano abandonado preparada pelo fato de que vislumbramos desde o incio que ele ir mais uma vez ser enganado pelos homens. O coro

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    canta a misria desse heri e ento sentimos mais compaixo ainda. Segundo Herder, antes de Filoctetes entrar em cena e se lamentar (Prodo, 135-218), o poeta Sfocles nos prepara longamente para a sua apario (HERDER, 1993, p. 105) e para as lamentaes, no sendo, portanto, o sofrimento de Filoctetes o tema central da pea. Dessa forma, o grito nunca a obra principal de Filoctetes para provocar a sim-patia, assim como a dor corporal nunca a idia principal de um drama (HERDER, 1993, p. 107).

    Depois de muitas observaes sobre a pea e a leitura de Lessing, Herder ento estabelece uma distino central entre o modo de proceder das artes plsticas e da poesia, dizendo: Cada obra da arte plstica, caso aceitemos a diviso feita por Aristteles, uma obra e no uma energia. Ela est presente de uma s vez, em todas as suas partes: sua essncia no consiste na mudana, na seqncia de uma parte outra, mas na coexistncia recproca (HERDER, 1993, p. 135).5 Se as artes somente fornecem obras, as belas artes, por outro lado, que fazem efeito pelo tempo e pela alternncia de instantes, que tm a energia como a sua essncia, no necessitam fornecer para um momento isolado algo de elevado, nem querer envolver a nossa alma nesse supremo instante (HERDER, 1993, p. 136).

    O tpico do instante supremo na poesia e nas artes

    Nessa citao e na base da manifestao da dor de Filoctetes e do problema de saber se ela o assunto central ou no da pea de Sfocles, coloca-se em discusso um outro tpico caro a Lessing, a saber, o tema do instante (Augenblick) oportuno ou apropriado na poesia. Segundo Lessing, o instante ou o ponto culminante da expresso na escultura no o mesmo da poesia. No entanto, para Herder, Lessing se mantm preso temtica geral do instante supremo nas diferentes artes, quando seria preciso questionar se de fato na poesia faz sentido falar em instante expressivo.

    O captulo 9 da Primeira Floresta Crtica comea justamente tratando desse tema do instante (HERDER, 1993, p. 131). Na poesia necessrio levar em conta a srie total de eventos, na qual cada instante , portanto, apenas um elo da cadeia e no serve a nada mais. Se um desses instantes, estados ou aes se torna uma ilha, algo supremo, mas separado, ento perde-se a essncia da arte energtica (HERDER, 1993, p. 137). interessante notar que essa nfase que Herder d a uma cadeia de eventos, de que a fora potica se exprime no todo e no de modo isolado em um instante, lembra o modo como ele pensa a linguagem e a histria, respectivamente no Tratado sobre a origem da linguagem (Abhandlung ber den Ursprung der Sprache) (1772) e no Tambm uma filosofia da histria da humanidade (Auch eine Philosophie der Geschichte der Menschheit) (1774).6 Nessa ltima obra, bem como na Floresta mais anti-ga, Herder recrimina precisamente em Winckelmann o fato de este ter visto na Grcia um momento ou

    5.Segundo a edio crtica da Deutscher Klassiker Verlag, HERDER, 1993, p. 911, a distino em Aristteles aparece na tica a Nicmaco I, 1, 1094 a. Mas a aplicao dela para a arte teria sido feita pelo ingls J. Harris (Conversa sobre a arte; sobre a msica, a pintura e a poesia: sobre a felicidade), citado pelo prprio Herder, mais adiante no captulo 19 dessa Primeira Floresta Crtica (HERDER, 1993, p. 216). Voltarei a esse ponto mais adiante.

    6.Explorei brevemente alguns motivos da filosofia da linguagem de Herder no artigo O mar e a alma: metforas marinhas em territrio alemo In: TRANS/FORM/AO, Vol. 30, No 1 (2007), p. 229-30. Pode-se dizer que Herder pensa a obra potica sob o mesmo registro de como situa a linguagem: ambas se sobrepem ao homem como um todo, sendo impossvel distinguir partes isoladas. Um exemplo desse tipo de crtica, por assim dizer orgnica, o ensaio de Herder sobre Shakespeare, que abordei em outro artigo: Winckelmann, Lessing e Herder: estticas do efeito? In: TRANS/FORM/AO, Vol. 23, No 1 (2000).

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    um instante privilegiado da histria. A essa leitura Herder contrape a noo de que a Grcia deveria ser pensada no todo da histria, como um elo de uma cadeia mais ampla de outros povos. Pensadas tambm em sentido amplo como histria, a msica e a dana, assim como a poesia, no fazem efeito para um instante, mas apenas para uma sequncia de instantes (HERDER, 1993, p. 138).

    O modo de expresso de Homero

    Avanando em sua discusso das anlises de Lessing e mantendo sua divergncia de fundo, em-bora ao mesmo tempo partindo do terreno aberto por Lessing, Herder passa, a seguir, para o modo de proceder de Homero. Com efeito, Lessing cita vrias vezes Homero em seu Laocoonte como modelo de procedimento potico. No captulo 13 em diante da Primeira Floresta Crtica, o terreno de discusso deixa de ser Filoctetes e passa a ser Homero, ou seja, muda o enfoque, que antes se referia ao tema do instante, para o tema do modo de expresso de Homero, em particular para a relao dele com a ale-goria. Segundo Herder, Homero no emprega nenhum conceito abstrato (HERDER, 1993, p. 160). Outro aspecto se refere ao modo de como os artistas imitaram Homero (HERDER, 1993, p. 161), sendo que o enfoque recai sobre o modo como Homero se serviria de expedientes e recursos poticos.

    Na verdade, seria preciso atentar para o fato de que Homero no um poeta prosaico (HERDER, 1993, p. 163). A propsito da cena do vigsimo canto da Ilada, 445, na qual Aquiles investe contra Heitor envolto em uma nuvem, Herder considera que essa nuvem ou neblina, na qual esto encobertos os he-ris e os deuses, no um mero expediente literrio ou apenas um modo de falar, e sim real (HERDER, 1993, p. 164). Segundo Herder, Homero demasiadamente sensvel para usar recursos de uma fina alegoria (HERDER, 1993, p. 171).

    O tema da alegoria remete, por sua vez, ao tema das metforas, por exemplo, do expediente do engrandecimento ou do sublime em Homero. Por isso, no captulo 14, se trata da discusso do modo como Homero teria expressado a grandiosidade de suas figuras e personagens. Novamente aqui Herder ressalta que Homero no nos mostra nenhum de seus deuses como tendo sido elaborado em termos de uma fico, enfim, que tenha sido pintado. Antes, Homero nos mostra a natureza dos heris em sua ao, em movimento (HERDER, 1993, p. 177). A grandeza, a fora, a rapidez no so para Homero predicados que permitem distinguir seus deuses, pois o carcter individual se coloca acima da grandeza (HERDER, 1993, p. 181-82).

    Esse efeito Homero alcanaria por meio de uma linguagem prpria. O captulo 15, que trata da linguagem de Homero e de sua traduo para uma lngua moderna, objetiva ressaltar o tipo de procedi-mento lingustico sui generis de Homero, que de modo algum procura operar descries, mas procede de modo especial com a capacidade expressiva da linguagem. Herder considera a tarefa de traduzir Homero muito difcil e que talvez se pudesse apreender a maneira de Homero de um modo mais apropriado pela msica. O captulo se encerra dizendo: A partir da arte musical poderia ser explicado de melhor modo essa energia de sua maneira (HERDER, 1993, p. 190). Nota-se por essas observaes que Herder v a lei-tura de Lessing privilegiar demasiadamente o paradigma da pintura, quando seria preciso antes se voltar mais para a direo da msica, arte mais intimamente associada poesia.

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    E assim como havia feito anteriormente com o caso do sofrimento de Filoctetes, depois de exa-minar uma srie de exemplos de Homero, Lessing chega ento a um momento novamente conclusivo de seu texto, a saber, nos captulos 16 e 17. O captulo 16 comea afirmando aquilo que indiquei como epgrafe desta palestra: No devemos supor que um filsofo que procura desenvolver a diferena entre a poesia e uma arte bela queira com isso explicar completamente toda a essncia da arte potica. O Sr. Lessing mostra aquilo que a arte potica no diante da pintura; no entanto, para ver o que ela pode ser completamente em si mesma, segundo a sua essncia inteira, a arte potica teria que ser comparada com todas as artes e cincias irms, por exemplo, com a msica, com a arte da dana e com a eloquncia para, assim, ser distinguida filosoficamente (HERDER, 1993, p. 191).

    Os signos da poesia e da pintura

    Nesse captulo 16, Herder retoma a distino anterior do captulo 9, a saber, entre obra e energia, e questiona os objetos ou temas que Lessing atribui como sendo exclusivos da pintura e da poesia: os corpos e os aes (HERDER, 1993, p. 192). Seria antes necessria uma considerao mais precisa dessas duas artes, em particular da poesia. Desse modo, Herder nos oferece uma nova classificao ou uma nova leitura dessas duas artes, leitura na qual desponta o termo signo (Zeichen). Alguns comentadores, partindo de uma perspectiva mais atual e contempornea, chamam isso de teoria do signo em Herder.7 Mas, na verdade, esse termo signo aponta no para uma semitica, e sim para o vis lingustico de an-lise, a saber, o vis de uma filosofia da linguagem.

    Os signos da pintura (no seus objetos, j que essa designao seria imprecisa) so naturais, uma vez que a pintura est presa tanto a um material delimitado (cor, luz e sombra, claro/escuro), bem como a imagens mais ou menos visualmente circunscritas. J os signos da poesia so arbitrrios (HERDER, 1993, p. 193), dependem exclusivamente da vontade humana. Uma vez feita essa distino entre o natu-ral e o artificial, torna-se invivel, para Herder, uma comparao direta entre pintura e poesia.

    Coloca-se ento a pergunta: como operam os signos da poesia, dado o seu carcter no natural e sim arbitrrio? O ponto de referncia para Herder a noo de alma, na qual habitam os sons articu-lados (HERDER, 1993, p. 194). E o meio pelo qual as palavras operam ou fazem efeito sobre a alma a fora (Kraft). Ou seja, Herder parte de uma concepo de linguagem como fora, podendo ser recolocada a questo inicial de Lessing num outro plano: se as artes fornecem obras, operam no espao, a poesia, por sua vez, faz efeito por meio de uma fora (HERDER, 1993, p. 194), a qual habita nas palavras (p. 194) e se dirige justamente nossa alma.

    Finalizando esse captulo 16, Herder considera a ordem espacial e temporal na poesia. A poesia no se concentra apenas numa ordem (tal como queria Lessing, a saber, a ordem temporal), e sim ambas

    7.Segundo o organizador alemo Grimm, Herder debate com Lessing no mbito de sua teoria dos signos (Zeichentheorie), substituindo a dicotomia entre corpos (objetos das artes plsticas) e ao (na poesia) pela dicotomia entre obra e energia (ergon e energeia) (HERDER, 1993, p. 865). As artes enrgicas so a poesia, a msica e a dana. Herder assumiria aqui o conceito de energia de Leibniz (HERDER, 1993, p. 866).

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    devem atuar conjuntamente. O que interessa so menos essas duas instncias do que a fora potica que nelas se manifesta (HERDER, 1993, p. 195-96). Opondo-se categoria de ao, tida por Lessing como especialmente apropriada para a poesia, Herder rejeita a idia de que a sucesso no tempo seja um meio principal da poesia, pois a sucesso caracterstica de todo e qualquer discurso, ao passo que na poesia o mais importante a fora que se expressa por meio dessa sucesso temporal (HERDER, 1993, p. 199). Sob certo aspecto, pode-se dizer que Herder antecipa a concepo de uma poesia do infinito que poste-riormente ser defendida no romantismo.

    Nos captulos 17 e 18 so discutidos casos da poesia de Homero, tendo em vista a leitura feita por Lessing e o tema da sucesso temporal. Vale ressaltar as concluses de Herder nos dois captulos. Em relao s sucesses de eventos em Homero, Herder considera no fim do captulo 17 que em cada trao de seu devir deve residir energia, a finalidade de Homero: todas as outras hipteses acerca de expedientes artsticos e de revestimentos, a fim de evitar a coexistncia da descrio, saem fora do tom de Homero (HERDER, 1993, p. 208; novamente notamos aqui o recurso ao vocabulrio musical, quando Herder se refere ao tom de Homero). E no fim do captulo 18, lemos: caso eu aprenda algo de Homero, isso ento o fato de que a poesia opera energicamente... eu aprendo de Homero que o efeito da poesia nunca efeito sobre o ouvido, por meio de sons, e sobre a memria, segundo o tempo em que consigo conservar um trao de uma sucesso, e sim a poesia faz efeito sobre minha fantasia... eu me queixo do Sr. Lessing por no ter ressaltado esse ponto central da essncia da poesia, de ela no ser efeito sobre a nossa alma, energia (HERDER, 1993, p. 214).

    Herder afirma concordar com Lessing quanto questo de fundo, a saber, da necessidade de distinguir o modo de proceder das artes plsticas do modo de proceder da poesia, mas que discorda das premissas e das concluses (cf. HERDER, 1993, p. 206). V-se que a Herder interessa a especificidade do discurso potico e sua perspectiva mais orgnica do que a de Lessing, no qual parece subsistir ainda um modo de pensar mecanicista. Nesse ponto, Herder antecipa a mesma crtica que o romntico August Wilhelm Schlegel dirige, na Doutrina da arte, a Burke e a seu modo de pensar o belo e o sublime.

    Por fim, no captulo 19, Herder indica de onde extraiu a concepo de poesia como energia: tra-ta-se do ingls Harris, que escreveu um texto sobre o conceito de obra na pintura e sua diferena em relao poesia. Herder considera, a partir disso, que na pintura o artista trabalha exclusivamente para o acabamento da expresso. Apenas depois de concluda, a obra se revela. J na poesia a energia se ex-prime no processo. A fantasia deve ser ativa o tempo todo (HERDER, 1993, p. 216).

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    Plstica

    (concebida em 1769, publicada em 1778)

    Uma esttua deve viver: sua carne deve animar-se:

    seu rosto e expresses devem falar

    (Aus den Vorarbeiten zur Plastik/Entwurf 1769, HERDER, 1995, p. 95)

    Segundo os editores alemes, a concepo do texto Plstica remonta a 1769 e possui uma re-lao estreita com a Quarta Floresta Crtica, sendo a idia de Herder propor uma fundamentao an-tropolgica da plstica, pensada como arte do tato. Herder redigiu o texto em sua estadia em Paris, em conversas com Diderot (HERDER, 1995, p. 140). Um outro interlocutor constante Winckelmann, em-bora no sejam sempre feitas referncias diretas a ele. O contraponto do enfoque de Herder o ensaio de Winckelmann intitulado Tratado sobre a capacidade do sentimento do belo na arte e a formao do mesmo (Abhandlung von der Fhigkeit der Empfindung des Schnen in der Kunst und dem Unterrichte in derselben), de 1763.

    preciso fazer uma observao sobre o subttulo da Plstica: Algumas percepes sobre forma e figura a partir do sonho imagtico de Pigmaleo. O tema de Pigmaleo, cuja lenda ficou famosa a partir de Ovdio, Metamorfoses, X, 243-297, foi muito difundido e popular no sculo XVIII (segundo nota dos editores alemes, HERDER, 1995, p. 548). A lenda grega se refere ao escultor Pigmaleo, tambm rei na ilha de Chipre, que, buscando atingir a beleza ideal, fez uma belssima esttua de mrmore e por ela se apaixonou. Afrodite teve pena dele e transformou a esttua em mulher, que se chamou Galatia e com quem ele se casou. No sculo XVIII essa lenda se tornou um modelo para discusses filosficas que visa-vam uma superao do dualismo cartesiano de esprito e alma, a favor de uma compreenso sensualista (La Metrie) e materialista. Condillac se liga fbula de Boureau-Deslandes: Pigmalion on la staute anime (1742), etc. (HERDER, 1995, p. 549).

    No mbito do pensamento de Herder, pode-se dizer que a anedota de Pigmaleo funciona como um motivo central para pensar uma escultura viva e animada. E a pergunta como e o que o homem pode fazer para que isso ocorra. A resposta que ele somente pode faz-lo atravs dos sentidos. O homem no pode se aproximar da obra de arte por uma investigao metafsica sobre o belo. Trata-se, portanto, de examinar o modo de funcionamento da sensibilidade, a saber, dos sentidos apropriados a cada arte, seja ela escultura, pintura ou msica.

    E aqui temos um certo parentesco entre a concepo de fora potica e de energia (da Primeira Floresta Crtica) e essa noo de uma vitalidade ou vivacidade a ser procurada nas artes plsticas (pre-sente na Plstica). Essa temtica remete novamente ao modo como Herder se relaciona com Lessing e Winckelmann: se do primeiro ele toma a noo de uma especificidade das artes, do segundo ele toma a noo de uma proximidade e de uma vitalidade nas artes. sabido que Winckelmann exerceu muita in-

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    fluncia na esttica alem pelo modo como descrevia apaixonadamente as esculturas gregas. Esse trao se sobreps aos chamados erros de avaliao em suas anlises.

    Acompanhando o todo do ensaio, pode-se dizer que Herder parte da preocupao de uma esp-cie de fuso entre o espectador e a obra escultrica, plstica e pictrica. Da o tema dos sentidos apro-priados, o tato, a viso, etc. preciso encontrar o rgo apropriado para que se consiga fazer com que a escultura no seja um objeto meramente morto diante de ns, e sim que exprima algo, que justamente tenha vida (tema do Pigmaleo, da esttua animada). Por outro lado, isto , da produo plstica e no apenas da fruio, importa fazer com que a expresso exterior no mrmore, no bronze, etc. exprima algo de interior, que seja tambm uma produo animada. Nesse sentido, Herder apresenta toda uma teoria do corpo humano, na qual o exterior da fisionomia exprime uma alma. essa alma, esse carcter, que o escultor deve procurar exprimir em sua obra, de dentro para fora, se podemos falar assim. Isso no exclui, pelo contrrio inclui, a expresso de um significado superior (tema da mitologia), sendo que toda obra de arte uma alegoria, exprime um sentido mais profundo.

    Entrando no texto propriamente dito, de incio, na primeira seo, Herder parte de duas anedo-tas: uma apresentada por Diderot, do cego de nascena, e outra de Cheselden, que relata o episdio de algum que depois de 30 anos voltou a enxergar. Essas anedotas visam ressaltar que o cego possui um tipo de percepo distinta daquele que enxerga normalmente, uma percepo que no deixa de ter sua lgica prpria. Alm disso, a cegueira, ao contrrio de impedir a relao com os objetos do mundo, antes agua a nossa relao, se pensarmos no papel do tato, para alm da mera contemplao distante pura-mente visual.

    Essa elucidao sobre a especificidade do sentido da viso ou da ausncia do mesmo e, portanto, de uma experincia do tato, visa introduzir a discusso esttica da fruio adequada. O alvo pensar uma proximidade com a obra de arte, segundo um sentido apropriado. Quanto mais prximo chegarmos de um objeto tanto mais viva se torna a nossa linguagem (HERDER, 1995, p. 23, fim do terceiro captulo da primeira seo).

    Visando ressaltar essa proximidade com a esttua, na segunda seo debatido o tema do pa-nejamento na escultura, um tema j central em Winckelmann. Herder contrrio a vestir esttuas, mas enfoca o assunto segundo uma certa antropologia dos povos, de que o vestir depende de um certo costume (HERDER, 1995, p. 28). A partir daqui, chega aos gregos, os artistas nascidos para a beleza (HERDER, 1995, p. 29). No que se refere pintura, ela sim pode vestir (HERDER, 1995, p. 33). No segun-do captulo dessa segunda seo abordada a inadequao do recurso pictrico na escultura (HERDER, 1995, p. 36-39) e no terceiro captulo se trata do feio na escultura, que no deveria merecer destaque na arte, embora tambm no se deva ser totalmente contrrio a ele, advogando o afastamento desse tipo de formas. De acordo com o quarto captulo, a escultura se atm forma constante e eterna do homem, ao passo que a pintura modifica suas formas de acordo com o tempo e os povos onde surge (HERDER, 1995, p. 44-7). Nota-se nessa passagem, que Herder em vrios momentos se refere arte da pintura como constituindo um mundo de magia e de encanto (Zauberwelt). Ora, justamente esse encanto que deve ser o alvo da arte, pois a animao da esttua uma forma de encantamento.

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    Na terceira seo caracterizada a figura humana em sua relao com a interioridade. A configu-rao exterior de cada um dos membros e das partes do corpo revela o modo de ser do homem, o que ele pensa e o que ele faz.

    A quarta seo comea com o enunciado de que toda forma de beleza e de sublimidade, bem como a feiura, remetem estrutura do ser humano que se encontra sua base. Apenas a perfeio inte-rior beleza (HERDER, 1995, p. 64). Para que o homem possa fruir e perceber a beleza, necessria uma sintonia com a alma interior, preciso ser e sentir: ser homem, sentir cegamente assim como a alma opera em cada carcter, em toda posio e paixo, a fim de poder senti-la (HERDER, 1995, p. 67). Mais adiante, Herder fala que se trata de colocar nossa alma em uma posio simptica (HERDER, 1995, p. 69). Pergunta a seguir se devemos chamar isso de esttica ou dinmica. Pode-se dizer que Herder est aqui em busca de uma concepo orgnica da relao entre corpo alma.

    De acordo com isso, a linha apropriada para a escultura a do crculo, no tanto a linha serpen-teada de Hogarth, nem a linha reta. O crculo a linha da perfeio (HERDER, 1995, p. 73). No caso do homem, a linha mais apropriada a que corresponde ao que expressa movimento, pois apenas desse modo surge o encanto (HERDER, 1995, p.74): linhas do encanto (HERDER, 1995, p. 75).

    A seo termina abordando a postura e a simetria do corpo humano, masculino e feminino.

    Na quinta e ltima seo o tema da esttua viva remetido ao tema da mitologia, como expres-so da suprema vitalidade e da figurao envolvendo mitos e critrios religiosos. Herder aborda o fato de que para a maior parte dos povos da Antiguidade, as esttuas no eram apenas obras de arte, mas eram reais e vivas e detinham o poder dos deuses. Por isso tantas obras foram destrudas ao longo dos tempos, sendo que pouca coisa restou. No princpio, a origem das esttuas eram os deuses que nela habitavam. Herder desenvolve aqui uma espcie de histria da arte que vai do mtico ao prosaico (HER-DER, 1995, p. 82). No entanto, esse tpico apenas insinuado, sendo que Herder avana a seguir para a questo da figurao colossal ligada relao do homem com os deuses.

    Por fim, tratado do tema da alegoria, lanado inicialmente pelo ensaio de Winckelmann, que Herder apenas menciona,8 mas no aborda, mesmo porque, segundo Herder, Winckelmann apenas teria iniciado a discusso (HERDER, 1995, p. 86) e, alm disso, sua investigao teria tido um sentido bastante amplo. Herder acaba por defender, como mais tarde tambm o far Friedrich Schlegel, que toda obra de arte alegoria (HERDER, 1995, p. 87). O termo alegoria remete, nesse caso, presena de uma expres-so elevada na obra de arte. No se trata somente do sentido mais restrito de alegoria, que se refere figurao especfica de determinada ideia ou pensamento.9

    8.Cf. o comentrio que Herder fez acerca da incompletude do Ensaio sobre a alegoria de Wincklemann, no ensaio Denkmal Johann Winckelmanns (HERDER, 1993, p. 667).

    9.Herder aborda o tema tal como depois o far Friedrich Schlegel, quando enuncia que toda beleza alegoria (In: SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia, traduo de Victor P. Stirnimann, So Paulo, Iluminuras, 1994, p. 58).

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    O legado de Herder para o romantismo

    Anatol Rosenfeld organizou uma coletnea de artigos do movimento Tempestade e mpeto, inti-tulado Autores pr-romnticos alemes. Sempre achei um pouco exagerada essa denominao, pois ela encaminha a especificidade dos textos do jovem Goethe e de Herder a uma determinada direo, a preparar o terreno para o surgimento do romantismo. No caso de Herder, porm, pode-se dizer quer h um certo sentido em situ-lo como estando base do romantismo, se considerarmos que uma srie de motivos romnticos provm de fato de seu pensamento.

    Por mais problemtico que seja a abordagem que Rudiger Safranski apresenta em seu Roman-tismo. Uma questo alem, pode-se dizer que acertou em comear com Herder, embora se possa ques-tionar o modo como o fez, ressaltando somente uma obra como o Journal de minha viagem, de 1769. bastante bombstico dizer que Herder nutriu-se a vida toda de idias que lhe ocorreram em alto-mar.10

    Um outro aspecto a ser levado em conta nessa possvel aproximao entre Herder e o romantis-mo diz respeito biografia de Herder: a morte de Herder em 1803 coincide com a dissoluo do grupo em torno do primeiro romantismo de Jena. Alm disso, figuras como August Wilhelm Schlegel e mesmo Jean Paul se sentiam por vezes mais atrados a Weimar por Herder do que pelas grandes figuras da poca, Goethe e Schiller. Jean Paul (nascido em 1763) desenvolveu justamente uma teoria das foras poticas11 e se mudou para Weimar em outubro de 1798, onde mantm um contato estreito com Herder. No que se refere a August Wilhelm Schlegel, o germanista Emil Staiger indica sua dvida em relao abertura promovida por Herder diante das manifestaes literrias de diferentes provenincias e povos, embora ele considere que a recepo literria de Schlegel tenha sido muito maior que a de Herder.12 Por fim, Friedman Apel (Romantische Kunstlehre, p. 724-6) ressalta que Herder foi muito importante com sua concepo de homem e humanismo apresentada em Tambm uma filosofia da histria da humanidade. Novalis teria se proposto tambm a escrever uma histria da humanidade em seus primeiros escritos (p. 726). Alis, a concepo de um sonho romntico do ver, a idia de conseguir ver aquilo que no se v com os olhos normais, a saber, o imaginrio, a figura do cego, do sonhador, etc. remete Herder a Novalis (p. 7-15). Friedrich Schlegel, por sua vez, fez uma resenha da obra de Herder Briefe zur Befrderung der Humanitt (Cf. Kritische Schriften und Fragmente, Band 1, p. 171-6).

    Mas, se avanarmos para alguns temas especficos, pergunta-se: o que de fato oriundo de Herder foi fundamental para o romantismo? Indico de modo geral alguns tpicos, a guisa de concluso:

    1)O tema da origem e a viso abrangente da histria, para alm da dicotomia entre modernos e antigos. A questo da origem como critrio de exame das diferentes artes e sua relao com uma energia interior constituinte, no caso a poesia.

    10.Safranski, Rdiger. Romantismo. Uma questo alem, traduo Rita Rios, So Paulo, Estao Liberdade, 2010, p. 22.

    11.Cf. a explicao do editor em Paul, Jean. Vorschule der sthetik, Hamburg, Meiner, 1990, p. XXV.

    12.Introduo a Schlegel, A. W. Kritische Schriften, ed.. por Emil Staiger, Zrich/Stuttgart, Artemis, 1962.

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    2)Passagem de uma viso mecnica da arte para uma viso orgnica. Em seu exame dos temas do Laocoonte de Lessing, Herder j opera com uma percepo orgnica da poesia, de modo muito semelhante ao esprito da crtica que August Schlegel faz de Burke ou Kant.

    3)Herder distingue uma poesia natural, ligada a expresses espontneas vindas do mbito po-pular, e uma poesia artificial, mais elaborada (Verbete Herder do sthetik und Kunstphi-losophie von der Antike bis zur Gegenwart, Stuttgart, Krner, 1998, p. 391-7). Isso lembra a distino entre histria natural da arte e histria artstica da arte de August Schlegel. Alm disso, F. Schlegel fala de cultura natural e cultura artificial, em referncia aos antigos e mo-dernos, em seu ensaio Sobre o estudo da poesia grega, de 1795. Digamos que a explorao do popular em Herder tenha muito em comum com uma redescoberta dos antigos.

    4)O tema da esttua viva, da necessidade de que o mito esteja novamente vivo nela (Plsti-ca, HERDER, 1995, p. 81) remete a toda a temtica da relao entre mitologia e poesia em Friedrich e August Schlegel. At Fichte, em O esprito e a letra na filosofia, cita esse mito.13

    5)A especificidade das artes a partir da sensao humana (esse tpico aparece na Kunstlehre de August Schlegel).

    6)Toda obra de arte uma alegoria (HERDER, 1995, p. 87).

    7)O tema do ergon e da energeia, no sentido de a arte ser vista pela fora potica da lingua-gem; as artes plsticas so pensadas como obra. A poesia, porm, no obra, energia, se manifesta desde um fundo que no pode ser fixado espacialmente. Sobre esse ponto, cf. es-pecialmente o captulo 16 da Primeira Floresta Crtica, por exemplo, HERDER, 1993, p. 194. Herder se refere uma fora potica [poetischer Kraft]. Sob certo aspecto, Herder antecipa a concepo de uma poesia do infinito no romantismo.

    Essa concepo de fora potica tambm permite repensar o tema da imitao e traar uma linha que vai de Herder a Moritz, pois esse pensava a imitao a partir de uma imitao que vai de dentro para fora. Moritz tambm emprega o termo fora.

    Na concepo de poesia defendida por Herder notamos uma nova perspectiva em relao cr-tica potica. Ou seja, um novo tipo de crtica se impe em suas anlises: tendo em vista que na poesia a energia potica que determinante, o crtico no pode se contentar em analisar partes do discurso, visando extrair ou confirmar determinadas concepes. Pois, a verdade do poema se exprime de modo orgnico, no e pelo todo. Assim, no se trata de procurar na poesia passagens belas ou sublimes, trechos que seguem as regras, sejam de composio ou de imitao, e sim a crtica necessita ficar atenta para fora que se exprime e emana do todo da obra.

    13.Se Pigmalio expe sua esttua animada diante dos olhos do clamoroso povo, ele deve ter conferido a ela pois nada nos impede de completar a Fbula a vida e ao mesmo tempo o privilgio secreto de ser observada como viva apenas por olhos espirituais e permanecer fria e morta para os olhos comuns e apticos (ber Geist und Buchstabe, trad. de Ulisses Razzante Vaccari, no prelo).

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    8)Herder introduz o paradigma da msica (e da dana) no mbito da crtica de arte e literria.

    9) preciso tambm levar em conta o tipo de escrita e o estilo de Herder, que de algum modo antecipa a o fragmento romntico.

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