A Partida Das Naus
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A Partida das Naus
Como era habitual, o dia começou com uma cerimónia religiosa em santa Maria de Belém, com
missa e comunhão geral, seguida de procissão até à praia do Restelo (praia de lágrimas, como disse João
de Barros), onde nos aguardavam as naus.
A gente da cidade estava toda na Praia, ou porque eram amigos, ou parentes, ou por simples
curiosidade. Estavam já saudosos na vista e descontentes – todos nos tinham por perdidos e
manifestavam com suspiros, os homens, com lágrimas, as mulheres. Particularmente sofredoras eram as
Mães, Esposas, Irmãs – que o temeroso amor mais desconfia, isto é, torna desconfiadas – e que se
encontravam desesperadas, com o receio de não os tornar a ver.
Dizia uma das Mães:
- Ó filho, com quem eu contava para refrigério e doce amparo na velhice, porque me
abandonas, em troco de uma morte no mar, para seres mantimento de peixes?
E uma Esposa:
- Ó doce e amado esposo, /sem quem nunca quis amor que viver possa porque aventurais no
mar essa vida que não é já vossa, mas minha? Como é possível que esqueçais a afeição tão doce
nossa?/ Nosso amor, nosso vão contentamento, / Quereis que com as velas leve o vento?
Também os velhos e os meninos acompanhavam com lamentos estas mulheres e a própria
Natureza parecia apiedar-se. Foi por isso que dei ordens para partirmos de imediato, sem as despedidas
habituais, antes que mudássemos de ideias.
Amélia Pinto Pais, Os Lusíadas em Prosa
O episódio pode dividir-se em três partes:
1ªparte – 83 -86: Introdução:
- Localização espácio-temporal;
- Vista geral da praia;
- Preparação religiosa/ espiritual dos marinheiros.
Nesta parte, é feita uma localização espácio-temporal da ação. Assiste-se ao alvoroço geral dos
últimos preparativos para o embarque da “gente marítima e a de Marte” – marinheiros e soldados.
As naus já estão prontas e os nautas reúnem-se em oração na ermida de Nossa Senhora de Belém.
2ªparte – 87 – 92: Desenvolvimento:
Na segunda parte, descreve-se a procissão do Gama e seus companheiros, desde a ermida até
aos batéis, pelo meio da gente da cidade, homens e mulheres, velhos e meninos, dando-se relevo
especial às mães e esposas. Tanto os que partem como os que ficam entristecem-se e a despedida
ganha grande emotividade.
O narrador, Vasco da Gama, narrador participante homodiegético, com a finalidade de fornecer
maior autenticidade ao seu discurso perante o rei de Melinde, evoca palavras emocionadas de uma mãe
e de uma esposa. A própria natureza partilha do sofrimento e da dor deste momento.
3ªparte – 93: Conclusão:
A terceira parte refere-se ao embarque que, por determinação de Vasco da Gama, é feito sem as
despedidas habituais, para assim diminuir o sofrimento tanto dos que partem como dos que ficam e
também para evitar que os marinheiros desistissem de partir.
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Este episódio corresponde ao início da viagem de Vasco da Gama. O episódio só surge
neste momento, visto que está inserido na sequência cronológica da História de Portugal que
Vasco da Gama está a narrar ao rei de Melinde e também visto ser obrigatório que a
narração se iniciasse in media res.
Nas estâncias 84 e 85, é descrito o ambiente festivo que se vivia na partida,
contrapondo-se aos momentos apresentados nas estâncias seguintes, quando os
navegadores, preparando-se para a viagem (“Aparelhamos a lama para a morte”), imploram
a proteção divina e escutam os lamentos e o choro das muitas pessoas que acorreram à
praia (estâncias 88 a 92), e até da própria natureza que participa destes sofrimentos
(estância 92). De entre essas muitas pessoas, destaca-se a figura de uma mãe (estância 90)
e de uma esposa (estância 91), que, transmitindo a dor de todas as outras, revelam a tristeza
pela incerteza do regresso dos seus familiares. Repare-se que o discurso de ambas apresenta
várias interrogações, são as chamadas interrogações retóricas, para as quais não se
espera uma resposta direta, mas pretende-se realçar, neste caso, os sentimentos de dúvida
e de aflição destas pessoas.
A determinação de partir era firme, por isso Vasco da Gama diz ao rei de Melinde
que, apesar de “Cheio de dúvida e receio” (estância 87), embarcaram sem se despedirem de
quem ficava, antes que se arrependessem. Nesta estância, é notória a emotividade de Gama,
que revela também a sua experiência vivida.
A partida fez-se da praia de Belém, “Que o nome tem da terra, para exemplo, /
Donde Deus foi em carne ao mundo dado”. Estaperífrase poderia substituir-se por uma
simples palavra, Belém, mas perder-se-ia toda a beleza da comparação entre o lugar onde
Cristo nasceu e o lugar de onde partiram as naus portuguesas