A pé desde os Camarões

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A pé desde os Camarões

«Mãe, estou num campo chamado Melilla. Acredita, não te estou a enganar. Uma jornalista portuguesa emprestou-me o telefone. Não, mamã, não te estou a enganar».

A mãe de Jules mal conseguia acreditar que o filho tinha entrado em Espanha. O rapaz saíra de casa, nos Camarões, há dois anos, tinha então 18 anos. Partiu com um amigo da mesma idade, Romiald, fiel companheiro das horas difíceis. Juntos lançaram a escada à vedação, treparam-na como gatos discretos, desenvencilharam-se das hélices de arame farpado, saltaram para a «terra de ninguém» (a zona neutra no meio das duas vedações) e repetiram o procedimento para saltar a segunda vedação. Jules e Romiald estão em Melilla fez na quarta-feira uma semana.

A viagem desde os Camarões foi atribulada. Começou por seguir em direcção à Nigéria, Benin, Togo, Burkina Faso, Mali e Mauritânia. Daí voltou ao Mali e corrigiu a rota na direcção da Argélia. Por fim, abrigou-se na noite para atravessar a pé a fronteira argelo-marroquina, que está encerrada em virtude dos dois países não terem relações diplomáticas. Depois, foram mais 300 quilómetros a pé.

Sobrevivia como podia, arranjando trabalho nos sítios por onde passava ou pedindo à berma da estrada. Mas de todos os países por onde passou, Jules não consegue eleger um particularmente complicado. Verdadeiramente dramáticos foram alguns momentos: «...quando não tinha comida, nem roupa...». Em Marrocos, Jules e Romiald passaram oito meses na floresta, com a fronteira no horizonte. De vez em quando, a polícia marroquina aparecia para dispersar quem lá estava abrigado. Lembra-se de uma madrugada, eram três da manhã, em que começaram a fugir dos marroquinos e só pararam 15 quilómetros adiante.

Jules fez a «escola» da floresta. Aprendeu a fazer escadas e, todos os dias, tirava as medidas à vedação, estudando a melhor forma de a superar. Para quem atravessa um terço do continente africano, não há medo nem receio que impeçam o salto final, pelo que um dia, juntamente com Romiald, lançou-se à rede. Havia polícia por perto, mas seria um erro olhar para trás: «Corremos, caímos, levantámo-nos, voltámos a correr.....».

Agora que se sente na Europa, permite-se sonhar alto. Jules quer ir para Barcelona... porque adora futebol e gostava de tentar uma carreira no desporto. Romiald vai com ele, claro.

Expresso. 7.Outubro.2005