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A peonaje na América Espanhola Guilherme Leite Ribeiro Resumo: A peonaje, tradicionalmente conhecida como “servidão por dívida” não pode ser vista a partir de uma dicotomia entre dominadores e dominados. Ela é mais uma dentre os tantos sistemas de trabalho existentes na América Espanhola. A peonaje representa mais uma forma de maximização de lucros da Coroa Espanhola, mas, além disso, também é uma maneira de mostrar as várias formas de resistência indígena. As teorias mais clássicas a seu respeito a apresentam como extremamente severa e rigorosa. Apesar disso, faz-se necessário afastá-la de regimes escravistas tradicionais, caracterizados, entre outras coisas, pela restrição total à liberdade. Encarar a peonaje como mais um regime de trabalho requer parcialidade e cuidado, discutindo seus vários aspectos: humanitários, políticos e econômicos. Palavras chave: Peonaje; América Espanhola; Regimes de trabalho. Abstract: Peonage, traditionally known as “debt bondage” cannot be seen from a dichotomy between dominators and riddens. It can be seen as one of the many work systems found in the Hispanic America. The peonage stands for another way of increasing the Spanish Monarchy’s profits, and it is also a way to show the different kinds of native resistance. More classical theories present it as extremely hard and severe. Despite this, it’s necessary to determine the difference between the peonage and some others traditional slavery systems, known for the total restriction of freedom. To face the peonage as just another work system demands partiality and care, taking under consideration its several aspects: humanitarian, political and economic. Keywords: Peonage; Hispanic America; Work systems. Mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). [email protected]

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A peonaje na América Espanhola

Guilherme Leite Ribeiro

Resumo: A peonaje, tradicionalmente conhecida como “servidão por dívida” não pode ser

vista a partir de uma dicotomia entre dominadores e dominados. Ela é mais uma dentre os

tantos sistemas de trabalho existentes na América Espanhola. A peonaje representa mais uma

forma de maximização de lucros da Coroa Espanhola, mas, além disso, também é uma

maneira de mostrar as várias formas de resistência indígena. As teorias mais clássicas a seu

respeito a apresentam como extremamente severa e rigorosa. Apesar disso, faz-se necessário

afastá-la de regimes escravistas tradicionais, caracterizados, entre outras coisas, pela restrição

total à liberdade. Encarar a peonaje como mais um regime de trabalho requer parcialidade e

cuidado, discutindo seus vários aspectos: humanitários, políticos e econômicos.

Palavras – chave: Peonaje; América Espanhola; Regimes de trabalho.

Abstract: Peonage, traditionally known as “debt bondage” cannot be seen from a dichotomy

between dominators and riddens. It can be seen as one of the many work systems found in the

Hispanic America. The peonage stands for another way of increasing the Spanish Monarchy’s

profits, and it is also a way to show the different kinds of native resistance. More classical

theories present it as extremely hard and severe. Despite this, it’s necessary to determine the

difference between the peonage and some others traditional slavery systems, known for the

total restriction of freedom. To face the peonage as just another work system demands

partiality and care, taking under consideration its several aspects: humanitarian, political and

economic.

Keywords: Peonage; Hispanic America; Work systems.

Mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). [email protected]

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Introdução

Um dos temas mais discutidos pela historiografia da América Colonial e mesmo sobre

o período anterior à chegada dos espanhóis se refere aos sistemas de trabalho a que foram

submetidos índios, negros e mestiços. Com variações dependendo do lugar e da época, os

diversos regimes de trabalho não podem ser entendidos como sendo homogêneos; por isso, há

de se ter um cuidado especial para que não ocorram generalizações.

O intuito desse estudo é focar em um tipo de sistema de trabalho: a peonaje1, que

ainda é um tema marginalizado pela historiografia, seja pelo fato de outros regimes serem

considerados mais importantes - tendo como principal parâmetro a duração - ou pela

minimização que se dá a esse tipo de servidão, que será explorado aqui.

Mesmo com essa carência de discussão sobre o assunto, será feito um esforço de

síntese para tentar mostrar como a peonaje esteve integrada no projeto da Coroa de um

melhor aproveitamento da mão-de-obra indígena (outros grupos de trabalhadores não serão

objeto desse estudo) que respondesse aos seus objetivos - principalmente econômicos - e, de

que forma, diferentes correntes historiográficas enxergaram o fenômeno. O enfoque se

centrará na contraposição que fizemos de estudos clássicos e o que consideramos

revisionistas, pelo fato de estes apresentaram tal sistema partindo de um posto de vista menos

radical, minimizando os impactos negativos sobre os grupos indígenas, enquanto aqueles

enxergaram a peonaje como um regime exploratório ao extremo.

Porém, antes de adentrarmos nesses trabalhos, faz-se necessário apresentar os

antecedentes da peonaje, principalmente a partir da análise de outros regimes de trabalho,

destacando-se a encomienda e o repartimiento, assim como buscar entender a relação

estabelecida entre a Coroa, elites locais e os trabalhadores.

1. Sistemas de Trabalho

Em todas essas categorias- escravidão, encomienda, repartimiento e as

diversas formas de peonaje- a variação e o costume regionais eram tão

diferentes que todas as generalizações [...] deixam de cobrir muitas

situações. (MACLEOD, 2004: 233).

1 Assim como outros termos, essa palavra está grafada na língua espanhola. Para a professora Anieelle Aparecida

Gomes Gonçalves, a origem da palavra não é muito certa, “já que todas as línguas afirmam ser formação

vernacular. A paráfrase será feita a partir do espanhol, já que sua datação é mais antiga”. (GONÇALVES, 2009:

214). Em inglês, a grafia correta é peonage e em português, peonagem. Para mais informações,

http://www.usp.br/gmhp/publ/GonD.pdf (último acesso em 05/01/2014).

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1.1 Escravidão

Após a chegada dos espanhóis à América, tornou-se necessária uma remodelação do

trabalho já existente para que ele pudesse suprir as necessidades criadas pelos europeus,

principalmente no que diz respeito ao aumento do lucro por parte da Coroa. Dessa forma, o

meio mais fácil de conseguir uma mão-de-obra que respondesse aos anseios da monarquia

espanhola foi o uso do trabalho forçado das populações nativas.

Esse uso foi feito de diversas formas, mas Peter Bakewell traça uma linha de

continuidade, que é característica dos trabalhos mais recentes na historiografia (Charles

Gibson foi um dos pioneiros nessa linha2). Essa continuidade é explicada pelo fato de os

espanhóis terem mantido e aperfeiçoado o uso de antigas relações de trabalho das populações

nativas, como a mita imposta pelos incas e o coatequitl pelos astecas. (BAKEWELL, 2004:

119). Essa situação é confirmada por Murdo MacLeod, que afirma que em muitas sociedades

indígenas, os espanhóis encontraram condições de escravidão já existentes. (MACLEOD,

2004: 220). Além disso, ele também apresenta o coatequitl no México e a mita no Peru como

exemplos de instituições pré-colombianas que foram adaptadas aos moldes espanhóis.

(MACLEOD, 2004: 225).

Quando se analisa a forma com que os espanhóis empregaram a mão-de-obra que

julgavam necessária, normalmente se comete o erro de enxergar o fenômeno a partir de um

ponto de vista unilateral - visão dos “dominantes” sobre os “dominados” - porém há de se ter

cuidado com a questão. John Manuel Monteiro, por exemplo, enfatiza a heterogeneidade das

culturas indígenas, suas diferentes estruturas sociais e instituições políticas. Para o autor, esse

é o ponto de partida para estudar os sistemas de trabalho. (2008: 185).

Outro aspecto que deve ser ressaltado no que tange à escravização dos indígenas diz

respeito a dificuldade encontrada pelos espanhóis em empregar mão-de-obra nômade em

sociedades pré-colombianas. Pelo fato de esses povos serem menos organizados e

disciplinados, a dispersão entre eles se fazia presente, o que tornava o seu aproveitamento por

parte da Coroa muito mais trabalhoso. Por outro lado, nas populações sedentárias, a facilidade

no recrutamento era maior, por serem sociedades com maior organização, o que, por

conseguinte, fazia com que a resistência fosse menor.

2 “Os conquistadores argumentavam também que os índios que já eram escravos em sua própria sociedade nativa

deveriam continuar escravos após as conquistas, uma vez que isso envolvia apenas a perpetuação de uma

condição preexistente e não um novo ato de escravização.” (GIBSON, 1997: 290).

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Apesar disso, esse primeiro sistema de trabalho não durou muito tempo, pois a Coroa

era contra a escravidão por razões humanitárias, uma vez que não se deve desprezar a

influência da Igreja nessas sociedades, políticas, através da crescente redução da população

indígena demandava novas estruturas de trabalho e econômicas. Em relação a esse último

aspecto, Silvio Zavala fala de Luis de Velasco, vice-rei de Navarra, que no século XVI, fez

com que todos os escravos fossem postos em liberdade, pois a Coroa espanhola desejava

trabalho livre remunerado, o que não atraía diretamente os índios, pois estes não tinham os

mesmos interesses econômicos que os europeus. Assim sendo, as pretensões dos espanhóis

nessa rápida mudança na forma de trabalho se tornaram frustradas (1944: 718).

Corroborando a tese supracitada, John Manuel Monteiro afirma em seu artigo “Labor

Systems”, publicado no livro “The Cambridge Economic History of Latin America”, em seu

primeiro volume, que novos estudos - apesar de não citar quais - mostram que índios livres

não se sentiam atraídos apenas e simplesmente pelos salários, mas sim por outros benefícios,

como, por exemplo, o acesso à terra e parte da produção de minérios (2008: 187).

Monteiro ainda explica as primeiras formas de fornecimento da mão-de-obra no

imediato pós-conquista, citando como exemplo Hispaniola, que em um curto período de

tempo, usou das táticas de captura e escravização de grupos indígenas revoltosos (2008: 190).

Apesar de considerar que a escravidão não foi tão forte no México e no Peru, Charles Gibson

lembra que, muitas vezes, os países adotaram essa prática principalmente em relação aos

“índios capturados nas guerras” (1997: 290). Quanto a esse aspecto, deve ser lembrado o ideal

da chamada “Guerra Justa”, que previa punições para aqueles que não aderiam ao catolicismo

(estes eram considerados revoltosos).

Com o incremento da prática da mineração, a procura por mão-de-obra só crescia e o

trabalho forçado se mostrou uma estratégia para o fornecimento cada vez mais freqüente

desse tipo de servidão, principalmente a partir de 1520 na Nova Espanha (MONTEIRO, 2008:

196).

Porém, como já foi dito, por diversas razões (incluindo humanitárias, políticas e

econômicas), a Coroa se viu obrigada a investir em novas formas de recrutamento e isso ficou

claro quando na publicação das Leis de Burgos3, em 1512. A encomienda foi uma das

3 “Em seus trinta e cinco artigos, as Leis de Burgos mostram a preocupação do Estado em cumprir a finalidade

religiosa da conquista. Ordenavam a reunião de índios em novos povoados, com igrejas não muito distantes dos

povoados espanhóis; obrigavam os encomenderos a evangelizar os índios e a dar instrução aos filhos dos

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respostas a essas novas necessidades criadas, principalmente pela crescente redução da

população indígena e como uma forma de recompensa aos conquistadores.

1.2 Encomienda

A encomienda foi um regime que consistia na atribuição de nativos a colonos, que

eram escolhidos pela Coroa. Para os índios, cabia o pagamento dos tributos aos espanhóis e

eram considerados devedores de certa quantidade de trabalho. É claro que a encomienda não

foi igual em todo o continente, mas esta era basicamente a sua característica principal, como

se vê no trecho a seguir:

A instituição assumiu várias formas, de acordo com o grau de pressão dos

espanhóis e com o tamanho e o caráter da população indígena. Mas o tipo clássico

[...] foi a instituição exploradora em grande escala, que envolveu uma sociedade

indígena então fragmentada em comunidades independentes, cada uma das quais

dominada por uma encomendero espanhol e seu grupo. (GIBSON, 1997: 275).

Nesse sistema de trabalho, o índio tinha a sua liberdade, mesmo que restrita, garantida.

Ele mantinha seus vínculos com a aldeia e sua relação com o encomendero era temporária.

Além disso, ao contrário do escravo, o índio podia sair do seu território, não trabalhava a todo

tempo com a encomienda e não pertencia ao encomendero. Enrique Florescano afirma que era

algo como uma “vassalagem sem salário” (FLORESCANO, 2004: 162). A idéia inicial da

Coroa para a encomienda era atingir um relacionamento ideal entre índios e espanhóis

(MORNER, 2004: 189). Com o tempo, essa idéia se mostrou forte na teoria e fraca na

execução, pois os nativos, mesmo livres, continuaram submetidos a um regime severo de

trabalho.

John Manuel Monteiro aprofunda a questão levantada por Morner, afirmando que

mesmo que a encomienda tenha sido concebida como uma alternativa à escravidão, ela ajudou

no desenvolvimento de diferentes formas de servidão (2008: 192). Mesmo sem citar quais,

pode-se inferir que o autor se refere a recrutamentos posteriores, como o repartimiento e a

peonaje, objeto desse estudo.

Mesmo com a encomienda sendo vista como uma forma de agradecimento aos

conquistadores (MACLEOD, 2004: 222), havia uma grande desigualdade entre os

caciques; ordenavam os bons tratos e uma alimentação suficiente, além do pagamento de um salário.” (BRUIT,

1995:27) Para mais informações, ver

http://www4.pucsp.br/cehal/downloads/textos_congresso_goiania_2010/06_08_2010_Reis%20AR.pdf (último

acesso em 05/01/2014)

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encomenderos: muitos não foram agraciados; outros, que chegaram mais tarde, receberam

grandes concessões, a ponto de serem maiores do que as recebidas pelos primeiros

conquistadores. A distribuição da encomienda seguia um caráter social: ganhava mais quem

possuía um status maior. (MONTEIRO, 2008: 192).

John Manuel Monteiro considera esse tipo de trabalho como a segunda e mais

importante forma de recrutamento usada pelos espanhóis (2008: 190). Essa afirmação do

autor é ancorada no grau de intensidade e duração da encomienda, que surgiu nos anos

iniciais da colonização espanhola4 e durou muitos anos, fazendo com que muitos espanhóis

chegassem à América buscando ascender socialmente através desse sistema de trabalho.

Através desse regime, que introduziu alterações arbitrárias na forma e na periodicidade

das comunidades indígenas (MONTEIRO, 2008: 195), os índios pagavam tributos aos

encomenderos em produtos e serviços. Mais tarde, vê-se que a obrigação fez com que essa

classe, que controlava grupos indígenas e os tributos incididos sobre eles, se tornasse

autônoma, o que trouxe prejuízos para a Coroa, que teve de remodelar suas estratégias. Com a

crescente autonomia dos encomenderos, a Coroa se viu obrigada a mudar de atitude e impôs

sua autoridade5, passando a reter mais os lucros da encomienda. (MACLEOD, 2004: 223).

Com o passar do tempo, uma nova forma de recrutamento, visando otimizar a mão-de-

obra indígena e responder mais rapidamente aos anseios da Coroa foi tomando espaço e se

tornou a principal forma de trabalho em muitas partes da América Espanhola, principalmente

no Peru, como será visto a seguir.

1.3. Repartimiento

Esse sistema de trabalho se caracterizou pela rotatividade no recrutamento da mão-de-

obra indígena. Cada comunidade deveria ceder parte de sua população masculina durante

certo período. Dessa vez, quem estaria controlando o trabalho, de forma mais organizada e

presente, seria a Coroa.

4 Monteiro não sabe precisar quando a encomienda surgiu, mas lembra que o termo já aparecia na literatura no

início do século XVI, com a confusão de, muitas vezes, aparecer como similar ao repartimiento (2008: 190).

Gibson afirma que o sistema “desenvolveu-se nas Índias Ocidentais durante a segunda década do século XVI”.

(1997: 274). 5 Em 1542 são publicadas as chamadas “Leyes Nuevas”, com a obrigação do pagamento em tributos e trabalho

reduzidas; hereditariedade da encomienda abortada, maior controle sobre os encomenderos, dentre outras

mudanças. (GIBSON, 1997: 275).

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As tentativas do governo espanhol em esboçar um sistema no qual houvesse trabalho

remunerado tiveram sucesso através do repartimiento. Este foi criado em 1549 com o intuito

de substituir progressivamente a encomienda e representou “uma resposta tanto ao aumento

do número de espanhóis quanto à redução do contingente de trabalhadores índios” (GIBSON,

1997: 292), já começando a funcionar nos anos seguintes de forma efetiva (MONTEIRO,

2008: 199). Tomou proporções grandiosas no Peru sob o nome de mita6 e durou séculos em

quase toda a América Espanhola.

No final do século XVI, a forma predominante de emprego nos grandes distritos

mineiros já era o trabalho assalariado. A imposição do trabalho aos índios através de seu

recrutamento foi muito discutida na Espanha, mas acabaram prevalecendo os interesses

econômicos da Coroa e tal sistema só chegou ao fim completamente em 1812 (BAKEWELL,

2004: 122).

Para Zavala, esse sistema começou como um atentado contra a liberdade indígena e,

por isso, foram feitas muitas leis entre 1601 e 1609 para flexibilizá-lo7 (1944: 725). Essa

leitura do autor reflete a tendência historiográfica da primeira metade do século em tratar os

índios como simples vítimas e os espanhóis como algozes, sem entrar em mais detalhes

quanto a resistência daqueles.

Para além da questão da liberdade, um tema que vem ganhando cada vez mais força na

historiografia é o que relata as condições enfrentadas pelos índios em seu ambiente de

trabalho. Para Bakewell, nas minas e nas casas de fundição eram “desconfortáveis e

frequentemente perigosas” (BAKEWELL, 2004:126). O referido autor também não faz

menções à resistência dos nativos, o que leva a pensar numa dicotomia já bastante desgastada,

que opõem dominantes e dominados, tratando-se de uma relação unilateral, na qual o índio

aparece como sujeito passivo.

John Manuel Monteiro acredita que o repartimiento ajudou a resgatar limites étnicos

existentes antes da chegada dos encomenderos (2008: 198). Partindo desse ponto de vista,

pode-se prever que o autor ameniza os impactos causados por tal sistema nas comunidades

6 “O trabalho da mita para as minas peruanas em Potosí representa o repartimiento em sua forma mais

impressionante. [...] O fluxo de trabalhadores para as minas assumiu as proporções de migração em massa. (...)

Os trabalhadores e suas famílias ficavam às vezes afastados de suas comunidades por um ano ou mais. Nenhum

outro recrutamento de mão-de-obra da colônia se comparou a este no número de pessoas, na duração e na

intensidade” (GIBSON, 1997: 292). 7 Dentre as leis citadas pelo autor, estão a substituição do coatequitl; índios não seriam mais distribuídos

arbitrariamente por um juiz; suspensão dos juízes responsáveis pela repartição dos trabalhadores, entre outras.

(1944: 725).

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indígenas, pois teria contribuído para um retorno a antigos laços comunitários existentes entre

os nativos.

O repartimiento decrescia na mesma proporção que a sociedade nativa e, assim,

comunidades indígenas que ainda eram recrutadas para tal sistema – na obrigação de ceder

determinado número de membros para suprir a mão-de-obra da Coroa - passaram a alugar

trabalhadores de fora, demonstrando a fraqueza do sistema já na primeira metade do século

XVII. Assim sendo, outros meios de obtenção de trabalho se fizeram necessários para o

governo espanhol.

2. A Peonaje

Murdo MacLeod diz que com a abolição do repartimiento em 1632 - exceto para os

distritos mineiros, que durou nestes até 1812 - proprietários rurais foram buscar alternativas

na peonaje e no trabalho livre assalariado. Em quase toda a colônia, houve uma grande saída

de índios da encomienda e do repartimiento para o trabalho livre (MACLEOD, 2004: 231).

A peonaje clássica supõe uma relação entre o proprietário da hacienda (extensões de

terra que vinham ganhando cada vez mais espaço na América Espanhola) e o trabalhador, na

qual o primeiro recruta o segundo para que este realize certa quantidade de trabalho, em troca

de algum adiantamento. Nessa forma de propriedade, havia a expectativa por parte dos

hacendados (proprietários) de uma mão-de-obra permanente, sem interferência de nenhuma

autoridade. Com a decadência do repartimiento, a peonaje aparecia como uma alternativa

viável para os hacendados, ganhando força principalmente pela forma de recrutamento, que

não seria mais pela coerção.

Corroborando a tese de Zavala (1944), que considera a encomienda uma antecessora

da hacienda, Magnus Morner traça distinções entre as duas. Para este, a encomienda supunha

um pagamento de tributos, por parte dos índios, em produtos e serviços e não envolvia direto

à terra, ao passo que na hacienda, o pagamento era em trabalho e havia direito de propriedade

sobre o solo. O autor afirma ainda que a maioria das haciendas eram de pequeno porte

(MORNER, 2004: 192). Segundo Zavala, enquanto a base da encomienda é o trabalho dos

índios, a hacienda cresce a custa dele (1944: 745).

Com a ascensão desse tipo de propriedade, cada vez mais o nativo se torna um servo

por dívida, pois seu pagamento se dá em trabalho. Na teoria, ele só é liberado a partir do

momento que quitar toda a sua dívida. É justamente aí que começa a discussão na

historiografia: muitos autores clássicos consideram que os hacendados faziam o que podiam

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para que a dívida jamais fosse quitada, principalmente quando faziam empréstimos

volumosos e recorrentes aos índios, sem que esses pudessem arcar com as despesas.

Famílias indígenas inteiras eram obrigadas a permanecer na hacienda e se

comprometiam a vidas inteiras de trabalho. Tem-se entendido a peonaje

como uma instituição pela qual empregadores inescrupulosos extraíam de

uma força de trabalho controlada o máximo de serviço com um mínimo de

despesa. (GIBSON, 1997: 294).

Essa conceituação de Gibson é clássica na historiografia do tema. Relatos antigos

mostram esse sistema como tirânico, principalmente pelo fato de o trabalho ser opressor. O

adiantamento seria apenas uma isca para atrais os inocentes. Em geral, entendia-se a peonaje,

em seus estudos iniciais, como um sistema que previa um fornecimento barato e constante de

trabalho.

Apesar disso, o próprio Gibson tenta desmistificar essa tese através de dois

argumentos: a duração, que não teria sido tão grande como normalmente relatado e o interesse

do próprio índio, que se mudaria voluntariamente para a hacienda em busca de um salário ou

de um adiantamento, na tentativa de atrasar suas obrigações sem que para isso precisasse ser

punido. (1997: 294-95).

Dessa forma, Gibson relativiza o impacto da peonaje, criticando os historiadores que a

tratam como uma relação de domínio entre um hacendado autoritário e um índio submisso. O

autor faz isso justamente para mostrar que o nativo poderia optar por aquilo que melhor o

aprouvesse: sua aldeia ou a hacienda. Em muitos casos, ele escolhia a segunda.

Na contramão de Gibson, representando uma historiografia mais tradicional, Zavala8

acredita que a peonaje restringiu muito a liberdade de movimento de trabalhadores (1944:

711). O autor explica sua tese afirmando que os índios eram vinculados econômica e

juridicamente às terras, saindo delas apenas quando seu empregador permitisse.

No entanto, novas pesquisas têm mostrado que trabalhadores viam esse sistema como

um atrativo para mudar suas vidas, inclusive como uma forma de trocar de esposa. Dessa

forma, não são tão vítimas como tradicionalmente a historiografia os mostra (BAUER, 1979:

38).

Aglutinando teses tradicionais e mais recentes, Murdo MacLeod faz sua própria

reflexão sobre a peonaje, que parece interessante para o trabalho aqui exposto. O autor afirma

que tratar a peonaje como servidão forçada e como uma forma de recrutar trabalhadores

através de aliciamento por dívidas representa um olhar muito simplista sobre a questão. Cada

8 Bauer considera que a discussão acadêmica sobre a peonaje começou com Zavala, em 1935 (1979: 35).

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vez mais, a historiografia mostra que não foi bem assim. Por outro lado, o autor não deixa de

afirmar sua preocupação em relação às novas obras que abordam o tema, pois segundo ele,

[...] alguns estudos da peonaje tornaram-se tão revisionistas que é

aconselhável começar por reafirmar que a servidão por dívida e as condições

repressivas severas realmente existiram em muitos locais de trabalho.

(MACLEOD, 2004: 231).

Essa afirmação parece bastante razoável, pois, se de um lado, MacLeod deixa clara a

sua rejeição às teses que inferiorizam a capacidade de escolha do índio e superdimensionam o

domínio do hacendado, por outro, ele lembra que a peonaje, em suas mais variadas formas,

foi um sistema forçoso de trabalho e que, por isso mesmo, seus impactos negativos sobre

parte da população indígena que nela esteve envolvida - direta ou indiretamente - não devem

ser minimizados.

Magnus Morner também entra nessa discussão. Como se propõe a analisar aspectos da

economia, ele apresenta um trabalho comparativo, relacionando a hacienda às minas. Para

ele, as condições de trabalho na hacienda eram bem menos duras que a das minas. O motivo

seria puramente econômico: naquelas propriedades, o trabalhador recebe seu salário em

espécie ou em dinheiro. Além disso, ele teria direito ao usufruto de um pedaço de terra, onde

poderia cultivar alimentos. (MORNER, 2004: 193). MacLeod também cita as minas como

lugares que se caracterizavam por trabalho opressor, miséria e desespero (MACLEOD, 2004:

233).

Para além desse debate, Arnold J. Bauer, ao estudar esse tipo de servidão, que ganhou

força com o fim do repartimiento, relata o quanto é difícil abordar especificamente a peonaje,

pois mesmo com uma maior preocupação por parte dos estudiosos na investigação da História

rural da América Espanhola, o tema ainda apresenta muitas lacunas.

Os primeiros autores a tentarem entender tal sistema apresentaram poucas informações

sobre ele. Para o autor, esses primeiros estudiosos tinham “speculative nature of their views

and the ambiguity of scanty evidence” 9 (1979: 36). Bauer considera ainda o México (país de

origem de Sílvio Zavala) o lugar onde o tema melhor se desenvolveu.

Pelas fontes extremamente escassas a seu respeito, surgem algumas dúvidas que ficam

em aberto, como, por exemplo, os reais motivos de esse sistema existir em detrimento de

outras formas de trabalho. Outro questionamento bastante levantado pelos estudiosos diz

respeito à real duração da peonaje (BAUER, 1979: 35). E em relação ao período em que ela

9 Em tradução livre, “natureza especulativa de seus olhares sobre a questão e ambigüidade de evidências

insuficientes”.

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atingiu o seu clímax, também há divergências10

. Portanto, hoje em dia, apesar de não haver

mais dúvidas quanto à sua existência, outras lacunas permanecem.

Tentando diminuir as dúvidas quanto aos aspectos mais gerais da peonaje, Murdo

MacLeod afirma que a sua forma mais comum é aquela em que os camponeses alugam

pequenos pedaços de terra em grandes propriedades. O pagamento que lhes é cobrado

normalmente se faz com a renda gerada nesses lotes de terra, aliada ao trabalho propriamente

dito. (MACLEOD, 2004: 232).

Outra questão que concerne ao funcionamento da peonaje diz respeito aos motivos do

adiantamento dado pelos proprietários de terras aos índios. Por mais que se saiba que esse

adiantamento de fato existiu, pouco se aborda na historiografia o porquê dos índios

necessitarem dele. Essa dúvida é esclarecida por Enrique Florescano, que afirma que os

trabalhadores precisavam pagar um tributo anual aos funcionários reais. Além disso, também

deviam dinheiro aos padres na ocasião de casamentos, batismos e funerais. O hacendado

adiantava o seu pagamento em troca de “reter compulsoriamente os trabalhadores”

(FLORESCANO, 2004: 167).

A todo o momento se referindo à peonaje como “debt bondage” 11

, Bauer faz uma

importante distinção entre esse sistema no México (principalmente na parte Sudeste) e no

Peru (BAUER, 1979: 37). Segundo o autor, no Sudeste do México, os trabalhadores eram

importados através da força. A isso, somam-se as péssimas condições de trabalho existentes

lá. No Peru (bem mais documentado), havia um cruel e severo sistema de servidão por dívida.

Para ele, na região central e no Norte do México, as condições de trabalho não eram tão

pesadas. Essa comparação é importante, pois, nesses lugares a peonaje se fez presente de

forma efetiva durante séculos e o autor acaba ratificando a idéia de uma variabilidade dessa

forma de recrutamento em diferentes partes da América Espanhola (BAUER, 1979: 37).

O estudioso que primeiro analisou academicamente a servidão por dívidas, Silvio

Zavala, traça um importante ponto de vista, relacionando os anseios da parte de quem possuía

a mão-de-obra e a reação dos trabalhadores. Para o autor, as elites locais desejavam atrair, por

todos os meios (aqui fica claro o posicionamento de Zavala), famílias indígenas inteiras para

se estabelecerem permanentemente em suas terras (1944: 721). Ainda segundo ele, a maioria

dos indígenas resistiu a se estabelecer nas propriedades dos hacendados, justamente pelas

10

Para Enrique Semo, o clímax da peonaje foi no século XIX (1973:228). Para Charles Cumberland, foi no

século XVIII (1968: 82-83). Para mais informações ver BAUER,1979: 36. 11

Em tradução livre, “servidão por dívida”.

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péssimas condições de trabalho que iriam encontrar lá. Dialogando com o autor, Enrique

Florescano cita o exemplo de Puebla e Tlaxcala, onde houve uma manutenção permanente de

trabalhadores atuando como “servos registrados” (FLORESCANO, 2004: 167).

Do ponto de vista econômico, Zavala traz contribuições importantes para o debate

aqui exposto. Em relação às dívidas dos índios, o autor, quase sempre traçando uma linha

unilateral (o “forte sobre o oprimido”), mostra que os hacendados obtiveram diversas vezes

na justiça devoluções de dívidas dos índios que fugiam de suas fazendas. Isso mostra como o

projeto da Coroa esteve alinhado com o dos proprietários de terras (1944: 732).

Além disso, para confirmar a participação direta da Coroa Espanhola, Zavala cita

diversos exemplos de autoridades que mudaram as leis para favorecer a economia espanhola,

como D.Luis de Velasco, que, em 1609, obrigou os índios a voltarem a trabalhar nas

haciendas, desde que não tivessem saldado suas dívidas. Caso já tivessem quitado, a lei

ordenava que se investigasse se o dinheiro era sujo ou emprestado de outro espanhol, que

objetivava tirar o índio de seu antigo proprietário. Assim, percebe-se um jogo feito pelas elites

para remodelar o trabalho conforme suas necessidades. (1944: 737).

Segundo Murdo MacLeod, as dívidas, muitas vezes, não eram grandes nem usadas

para coerção. Outras vezes, no entanto, eram aplicadas para recrutar uma força de trabalho

permanente (MACLEOD, 2004: 231). Dessa forma, percebe-se como o autor tenta ser

imparcial, sempre relatando as dificuldades que os índios enfrentaram, mas mostrando que

eram bem menores do que a historiografia tradicional costuma pontuar.

Para Zavala, os salários eram insuficientes no sistema da peonaje e muitas dívidas

eram herdadas. Sendo um historiador que trata essa servidão como extremamente opressora, o

autor diz que o que caracterizava as haciendas coloniais - além dos salários ruins - eram os

altos tributos, os castigos e a restrição da liberdade dos trabalhadores. Para ele, nas haciendas,

a liberdade de movimento dos índios é comprometida por conta dos pagamentos adiantados.

(1944: 745).

Indo numa posição radicalmente oposta a Zavala, Bauer afirma que raramente dívidas

eram herdadas (1979: 48). Ao longo de toda a obra, ele deixa claro que, cada vez mais, novas

pesquisas mostram a possibilidade de os nativos fazerem escolhas e tirarem vantagens da

peonaje. Esses novos trabalhos, segundo o autor, têm demonstrado que a resposta dada ao

trabalho insatisfatório dos indígenas era simplesmente seu desligamento das haciendas (1979:

42). Assim, a possibilidade de os recrutados se moverem de um lugar para outro, podendo

optar por melhores condições de trabalho faz com que esse sistema, ao contrário de ter

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restringido a liberdade de movimento dos trabalhadores, era flexível, como visto no trecho a

seguir:

The haciendas appear to have been unable or unwilling to restrict

mobility, workers commonly left the estate owing money, and no effort

was made to bring charges or return them.12

(BAUER, 1979: 45)

Para o autor, as principais razões para os trabalhadores saírem das haciendas eram a

discordância com os seus superiores e, principalmente, a busca por melhores oportunidades de

trabalho (1979: 48).

Indo na mesma direção de Bauer, Murdo MacLeod - como já foi dito aqui, ele chega a

criticar algumas obras revisionistas - repete ao longo de seu texto que muitos trabalhadores

não precisavam ser coagidos. Ele vai mais além: afirma que nos séculos XVII na Nova

Espanha e no século XVIII, no Peru, a aldeia se tornou um lugar desagradável para os índios:

estes deveriam pagar diversos tributos aos chefes da aldeia, além de enfrentarem um trabalho

bastante opressor. Assim sendo, o autor caracteriza a aldeia indígena nessa época como “um

lugar de onde era preciso escapar”. Justamente por isso, diversas vezes, os índios optavam

pelas haciendas. (2004: 233).

Por fim, outra questão que distancia historiadores tradicionais dos considerados

“revisionistas” é a que concerne às diferenças étnicas e culturais presentes entre os índios que

foram trabalhar na peonaje. Bauer apresenta uma nova visão sobre o tema. Para ele, a tese de

que os menos hispanizados eram os mais vulneráveis a aderir o sistema foi desmistificada por

Henri Favre13

. Camponeses mestiços tiravam vantagens do sistema, que como já dito, para o

autor não era tão opressivo e coercitivo como as primeiras teses mostram. (1979: 40).

3. A escravidão permaneceu na América Espanhola sob diferentes nomes?

Partindo para um olhar mais teórico sobre a questão, mas ainda com um diálogo entre

a historiografia que se propõe a abordar novas maneiras de tratar a peonaje, assim como

outros sistemas de trabalho, com aquela que começou as suas abordagens, outra discussão

bastante polêmica é a que concerne à proximidade ou não dessas formas de trabalho com a

12

Em tradução livre, “as haciendas parecem ter sido incapazes ou não-dispostas a restringir a mobilidade, os

trabalhadores comumente deixavam o estado devendo dinheiro e nenhum esforço era feito para trazê-los

novamente.” 13

Na página 40, Bauer cita Henri Favre, que escreveu o texto "La crise de la society paysanne et la migration

vers les plantations cotiers dans le Perou Central”, traduzido e publicado por Kenneth Duncan e Ian Rutledge, no

livro “Land and Labour in Latin America”.

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escravidão. Há muitos estudiosos que pensam que a peonaje é uma forma mais sofisticada de

escravidão. É interessante ver o que os leva a pensar assim, pontuando seus argumentos, mas

sem deixar de refletir e apresentar objeções a suas visões.

Será que se pode dizer que todos os sistemas de trabalho analisados até aqui eram

formas mais sutis de escravidão? Quando MacLeod afirma que trabalhadores foram buscar

alternativas em regimes de trabalho “livres” (2004: 231), fica implícito que o autor trabalha

com a hipótese de que tanto na encomienda, quanto no repartimiento, não havia liberdade.

Enrique Florescano também vai nessa linha; para este, todas as formas de trabalho aqui

estudadas depois da escravidão, começando pela encomienda e indo até a peonaje, indicam

nitidamente uma “ausência de um mercado de trabalho livre”. (2004: 167).

Em uma posição radical, Jan Bazant afirma que os índios eram presos à peonaje e não

poderiam sair de lá até que pagassem suas dívidas. Caso fugissem, seriam severamente

punidos por seus superiores. Além disso, Bazant também denuncia a compra e venda desses

trabalhadores (2004: 437).

Tratando da encomienda, Gibson concorda com os críticos que acreditam que o

“regime da encomienda diferia muito pouco da escravidão” (1997: 290). Para corroborar sua

tese, o autor também aborda a questão da compra e venda dos indígenas.

Porém, apesar de todos os autores supracitados enxergarem um alargamento da

escravidão nos regimes que se seguiram à ela, é preciso analisar cuidadosamente a questão e

levantar alguns questionamentos. Segundo o dicionário Aurélio, escravidão supõe “falta de

liberdade; sujeição, dependência, submissão, servidão”. Partindo do pressuposto de que a

escravidão supõe alguém estar sob a posse de outrem e restringe o direito de ir-e-vir, ela se

distancia bastante das formas de trabalho posteriores à ela. Não se trata, aqui, de amenizar a

severidade da peonaje, mas, afastá-la de uma prática que restringia toda e qualquer forma de

liberdade, como a escravidão.

Além disso, é importante salientar que trabalho livre não é a mesma coisa que

assalariado. Este último era raro em qualquer regime de trabalho na região ibérica. Quando

existia, era escasso, quase nulo. A tradição portuguesa e espanhola de “cultura da

personalidade” faziam com que a troca de favores fosse uma alternativa à questão salarial.

Logo, a relação que alguns estudiosos fazem de tornar qualquer regime de trabalho colonial

como semiescravo ou escravo pelo fato de não ser assalariado não condiz com a realidade

daquela época.

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Para confirmar esse distanciamento, são necessárias algumas reflexões práticas. Na

encomienda, ainda que o índio estivesse submetido à terra e ao encomendero, ele tinha a sua

liberdade garantida e mantinha fortes relações com sua aldeia. Isso na escravidão seria

impossível. Já no repartimiento, deve ser destacado o salário que os trabalhadores recebiam, o

que não acontecia na época da escravidão. Por fim, na peonaje, havia a possibilidade concreta

de os índios mudarem de local para buscar melhores oportunidades. Dessa maneira, por mais

que essas formas de trabalho não implicassem em uma liberdade total para o trabalhador,

qualquer comparação com o regime de escravidão parece um pouco complicada, pois supõe

outras condições, que, de fato, os regimes que se seguiram à ela, não apresentaram.

Conclusão

The Spaniards discovered that the successful recruitment, distribution,

control, and extraction of value from indigenous labor require a delicate mix

of force, negotiation, material incentives, and institutional engineering.14

(MONTEIRO, 2008: 189).

Apesar da variabilidade dos sistemas de trabalho em vigor na América Espanhola, não

há dúvida de que todos precisaram dessa mistura a que se refere John Manuel Monteiro. Não

seria possível a instituição daqueles regimes com o uso exclusivo da força, por exemplo. Foi

necessária uma habilidade estratégica para que o diálogo com os indígenas se concretizasse a

fim de que os espanhóis atingissem seus objetivos.

Na análise de todos esses regimes de trabalho que aqui foram apresentados, faz-se

necessário frisar que eles não formaram uma sequência cronológica exata, ou seja, não se

sobrepuseram uns aos outros, na qual um some e outro aparece. O que aconteceu é que em um

dado momento, uma forma de trabalho se torna mais forte do que a outra, o que depende de

vários fatores, tais como: a economia da época, a mão-de-obra disponível, os interesses da

Coroa, etc. É sempre importante ratificar esse dado, pois não se pode deixar de mencionar a

grandiosidade da América Espanhola e suas variações regionais, pois enquanto em um lugar o

sistema predominante pode ter sido a encomienda, em outro, o repartimiento se fazia mais

presente. Como já foi dito, é sempre necessário evitar generalizações que possam encobrir a

realidade das colônias.

14

Em tradução livre, “os espanhóis descobriram que o recrutamento bem-sucedido, distribuição, controle e

extração do valor do trabalho indígena exigiram uma delicada mistura de força, negociação, incentivos materiais

e engenharia institucional”.

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Novas pesquisas se fazem necessárias para uma reinterpretação de tudo o que já foi

dito sobre o tema, principalmente no que concerne às diversas lacunas ainda existentes,

sobretudo por causa da escassez de fontes. O próprio Bauer insiste na necessidade de que

novas abordagens trabalhem com aspectos pouco vistos, como o da competição por

trabalhadores nas haciendas.

Mesmo assim, foi feito aqui um esforço de síntese para mostrar como os diversos

regimes, em especial a peonaje, estiveram dentro de um contexto de expansão crescente da

Coroa em busca de um aumento de lucro em seus mercados coloniais. Esse objetivo não

poderia ser concretizado se não fosse o trabalho dos indígenas. Forçoso ou voluntário, escravo

ou livre, o fato é que não houve uma relação unilateral, mas sim um diálogo permanente em

que os interesses da Coroa não desapareceram, mas a resistência indígena fez com que ela

fosse obrigada a negociar e assim, estes acabaram remodelando as estratégias das elites

dominantes.

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Artigo recebido em 19 de janeiro de 2015.

Aprovado em 02 de agosto de 2015.