A Percepção de Si a Partir Da Autoimagem Um Caso Clínico

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Revista de Psicologia l 1 A percepção de si a partir da autoimagem: um caso clínico Luciana Neves Ferreira 1 Raquel Neto Alves 2 RESUMO: O artigo a seguir trabalha a autoimagem e a sua relação com o corpo, com o tempo e com a morte, a partir da teoria Existen- cial–Fenomenológico. Será realizada uma interlocução com um caso clínico para melhor elucidação da questão. PALAVRAS-CHAVE: Autoimagem. Corpo. Tempo. Morte. Existência. O presente trabalho pretende articular a experiência clí- nica de uma cliente atendida na Clínica do Centro Universi- tário Newton Paiva, durante o período de um ano. Para isso, articula os conceitos da Teoria Existencial-Fenomenológico. Para preservar sua identidade, a cliente receberá um nome de fictício, de Joana. Joana traz para o setting psicoterapêutico uma dificuldade em relação à sua autoimagem, possuindo uma concepção ne- gativa de si. Essa dificuldade impossibilita Joana a compreender e dar significado ao seu projeto de vida e faz com que ela vi- vencie um mal-estar em relação ao seu corpo. Também não consegue lidar com a questão da temporalidade. Erthal (1989, p.65) considera que “para encontramos o projeto original de um indivíduo, precisamos compreender a imagem que ele aprendeu a ter de si próprio; a totalidade de significação que ele assegura à sua existência”. Desta maneira, articula-se a teoria com algumas situações trazidas por Joana no encontro psicoterápico. Para compreender a existência do ser humano, é necessá- rio percebê-la em sua totalidade, em seu processo de abertura, como ser-no-mundo. A teoria Existencial–Fenomenológico afir- ma que a existência precede à essência. Isso significa dizer que o homem não possui uma essência pronta, algo já determinado, é sempre um vir-a-ser. Assim, a existência não é concebida como algo estável. Ela está sempre em um processo de construção. É, a partir das escolhas que o indivíduo realiza em sua vida ligada à sua existência, que ele poderá construir o seu ser. Porém, escolher não se constitui em uma missão fácil, Erthal (1989) menciona que escolher se torna um risco, por causa, de sua incerteza. Nesse manejo, existir é escolher, é escolher sua essência. Assim, a pessoa no processo, se expõe ao risco de ter que se deparar com a responsabilidade de construir por si só o destino de sua vida. No projeto de existir, ela é sempre um de- vir. Na visão heideggeriana, o ser humano deve ser compreen- dido como um Dasein, ou seja, o ser-aí, o homem em abertura para o mundo. O ser humano, conforme relatado por Erthal (1989), é um ser paradoxal, pois consegue descrever-se externamente para alguém, porém, possui dúvidas a respeito de sua identidade. Não consegue, por vezes, dizer o significado de sua própria vida. Nesse contexto, o significado que se encontra está ligado às escolhas que se realizam. O valor que se dá às coisas destaca na verdade a autoimagem. A autoimagem do indivíduo irá de- terminar seu comportamento perante o mundo. Desta forma, compreender a imagem é assumi-la com responsabilidade. E ter consciência de seu projeto é uma escolha que acarretara riscos para a vida da pessoa. A autora citada pondera ainda que a existência psicológica de uma pessoa encontra-se na forma de um eu. Logo, o primeiro aspecto a ser desenvolvido é o eu-corporal. Sendo o corpo a parte material mais visível, é ele que será o principal fundador para a identidade. “O esquema corporal proporciona o conheci- mento da posição do corpo. Schilder o preferiu chamar de ima- gem corporal”. (SCHILDER, 1950 apud ERTHAL, 1989, p.60). Pode-se compreender que a imagem que o indivíduo tem de si está interligada com a relação dele com o próprio corpo. Esse corpo irá interligar a pessoa com o mundo no qual ela está envolta. O corpo como meio de comunicação e interlocução com a imagem do eu irá permitir que o indivíduo possa realizar não somente uma interpretação do que ele percebe que é, mas também do que ele deseja ser. Augras (1989, p. 39) considera que, “o corpo tem como função estabelecer a relação entre o eu e o mundo exterior. Manifestação da individualidade, garantia da identidade, o corpo expressa toda a ambigüidade existencial”. Assim, em uma visão Existencial-Fenomenológico, o corpo é compreendido como uma expressão da manifestação da subjetividade. É nesse corpo que se vai experienciar a percepção de si e do mundo. Essa per- cepção de si e do mundo diz respeito a como cada pessoa lida com sua identidade corpórea, ou seja, de como cada pessoa se percebe e relaciona com as coisas que estão à sua volta. Em relação à Joana, percebe-se que ela tem uma deprecia- ção de sua autoimagem. Não consegue enxergar-se em seu pró-

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  • Revista de Psicologia l 1

    A percepo de si a partir da autoimagem: um caso clnicoLuciana Neves Ferreira1

    Raquel Neto Alves2

    RESUMO: O artigo a seguir trabalha a autoimagem e a sua relao com o corpo, com o tempo e com a morte, a partir da teoria Existen-cialFenomenolgico. Ser realizada uma interlocuo com um caso clnico para melhor elucidao da questo.

    PAlAvRAS-ChAvE: Autoimagem. Corpo. Tempo. Morte. Existncia.

    O presente trabalho pretende articular a experincia cl-nica de uma cliente atendida na Clnica do Centro Universi-trio Newton Paiva, durante o perodo de um ano. Para isso, articula os conceitos da Teoria Existencial-Fenomenolgico. Para preservar sua identidade, a cliente receber um nome de fictcio, de Joana.

    Joana traz para o setting psicoteraputico uma dificuldade em relao sua autoimagem, possuindo uma concepo ne-gativa de si. Essa dificuldade impossibilita Joana a compreender e dar significado ao seu projeto de vida e faz com que ela vi-vencie um mal-estar em relao ao seu corpo. Tambm no consegue lidar com a questo da temporalidade. Erthal (1989, p.65) considera que para encontramos o projeto original de um indivduo, precisamos compreender a imagem que ele aprendeu a ter de si prprio; a totalidade de significao que ele assegura sua existncia. Desta maneira, articula-se a teoria com algumas situaes trazidas por Joana no encontro psicoterpico.

    Para compreender a existncia do ser humano, necess-rio perceb-la em sua totalidade, em seu processo de abertura, como ser-no-mundo. A teoria ExistencialFenomenolgico afir-ma que a existncia precede essncia. Isso significa dizer que o homem no possui uma essncia pronta, algo j determinado, sempre um vir-a-ser. Assim, a existncia no concebida como algo estvel. Ela est sempre em um processo de construo. , a partir das escolhas que o indivduo realiza em sua vida ligada sua existncia, que ele poder construir o seu ser.

    Porm, escolher no se constitui em uma misso fcil, Erthal (1989) menciona que escolher se torna um risco, por causa, de sua incerteza. Nesse manejo, existir escolher, escolher sua essncia. Assim, a pessoa no processo, se expe ao risco de ter que se deparar com a responsabilidade de construir por si s o destino de sua vida. No projeto de existir, ela sempre um de-vir. Na viso heideggeriana, o ser humano deve ser compreen-dido como um Dasein, ou seja, o ser-a, o homem em abertura para o mundo.

    O ser humano, conforme relatado por Erthal (1989), um

    ser paradoxal, pois consegue descrever-se externamente para algum, porm, possui dvidas a respeito de sua identidade. No consegue, por vezes, dizer o significado de sua prpria vida. Nesse contexto, o significado que se encontra est ligado s escolhas que se realizam. O valor que se d s coisas destaca na verdade a autoimagem. A autoimagem do indivduo ir de-terminar seu comportamento perante o mundo. Desta forma, compreender a imagem assumi-la com responsabilidade. E ter conscincia de seu projeto uma escolha que acarretara riscos para a vida da pessoa.

    A autora citada pondera ainda que a existncia psicolgica de uma pessoa encontra-se na forma de um eu. Logo, o primeiro aspecto a ser desenvolvido o eu-corporal. Sendo o corpo a parte material mais visvel, ele que ser o principal fundador para a identidade. O esquema corporal proporciona o conheci-mento da posio do corpo. Schilder o preferiu chamar de ima-gem corporal. (SCHILDER, 1950 apud ERTHAL, 1989, p.60).

    Pode-se compreender que a imagem que o indivduo tem de si est interligada com a relao dele com o prprio corpo. Esse corpo ir interligar a pessoa com o mundo no qual ela est envolta. O corpo como meio de comunicao e interlocuo com a imagem do eu ir permitir que o indivduo possa realizar no somente uma interpretao do que ele percebe que , mas tambm do que ele deseja ser.

    Augras (1989, p. 39) considera que, o corpo tem como funo estabelecer a relao entre o eu e o mundo exterior. Manifestao da individualidade, garantia da identidade, o corpo expressa toda a ambigidade existencial. Assim, em uma viso Existencial-Fenomenolgico, o corpo compreendido como uma expresso da manifestao da subjetividade. nesse corpo que se vai experienciar a percepo de si e do mundo. Essa per-cepo de si e do mundo diz respeito a como cada pessoa lida com sua identidade corprea, ou seja, de como cada pessoa se percebe e relaciona com as coisas que esto sua volta.

    Em relao Joana, percebe-se que ela tem uma deprecia-o de sua autoimagem. No consegue enxergar-se em seu pr-

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    prio projeto vital. Essa diminuio, em relao a sua autoimagem, foi transferida diretamente para o corpo. Ela se percebe como sendo uma pessoa feia, (sic) No me acho bonita. desde sem-pre. Nunca me achei bonita. No consigo me olhar no espelho. Quando vou olhar no espelho s olho para arrumar meu cabelo. Nunca olho verdadeiramente. No consigo me ver.

    A cliente traz uma angstia em relao sua imagem corpo-ral. Ela, por vezes, menciona que o que pior em seu corpo a barriga. Joana possui um horror em relao barriga, deslocando esse sentimento para as outras pessoas, principalmente para os homens. Segundo Joana, ela no suporta homens barrigudos, (sic) no suporto homens barrigudos, nunca me imaginei possuindo algum relacionamento com um homem assim.

    A percepo que Joana tem de si compromete a sua forma de relacionar com os outros, pois sempre se coloca em uma posi-o de inferioridade. Em vrios momentos, a cliente relata possuir um grande talento para fazer trabalhos manuais, realizando es-ses, muitas vezes, na escola onde trabalha como faxineira. Obtm como resposta dos outros muitos elogios. Ao ser questionada so-bre por que no utiliza suas possibilidades como trabalho, ela no acredita que seja capaz de realizar tal tarefa.

    Quando se fala de corpo no se pode desvincular a relao que possui com o tempo. A questo da temporalidade para a abordagem ExistencialFenomenolgico diferente da relao que o senso comum em geral, lida com a questo do tempo. Conforme Michelazzo (2003), o tempo no um conceito, nem algo que se trata fora do homem. No o tempo cronolgico, que se observa em relgios. No um tempo dado, nem conta-bilizado nos calendrios.

    Michelazzo (2003, p. 27), relata que:

    s poderemos finalmente, compreender o fenmeno funda-mental do corpo, como expresso da existncia temporal, quando, ento esse cruzamento de encontros for por ns pensado, experimentado, assumido. S assim nosso corpo, tal como as mos do poeta, poder realizar o seu miste-rioso destino de ser corpo, enquanto porta de acesso ao Aberto da existncia.

    Em relao dimenso temporal, Joana tem dificuldades em lidar com sua idade. Ela tem 50 anos, mas sempre em seu discur-so quer deixar bem claro que no se percebe com essa idade. Diz sentir-se jovem, que se percebe como uma pessoa animada, ex-trovertida e bem humorada. Porm, traz consigo um sentimento de que em sua vida tudo ocorreu muito tarde. (Sic) Meu primei-

    ro emprego, eu tinha 35 anos. Meu primeiro relacionamento, de verdade, foi com mais de 40. Meu filho nasceu quando eu tinha 45 anos. Tudo em minha vida tarde.

    Nota-se que Joana sente que os acontecimentos em sua vida so vivenciados tardiamente, causando, assim, certo hor-ror com o seu passar. Esse tempo reflete sua imagem, seu corpo. Um corpo no mais jovial. No possui a mesma vitali-dade de antes.

    Nessa percepo do tempo, o futuro algo que jamais po-der ser dado. Muitas vezes, ele poder ser sonhado ou temido. Essa limitao causa na pessoa certa valorizao de seu futuro, na vivncia do seu presente e na tentativa de entender seu passado. A esse horizonte existencial se d o nome de morte. O ser para frente de si mesmo nada mais do que o ser para a morte (AU-GRAS, 1986, p.32).

    O medo da morte uma realidade trazida por Joana dentro do encontro psicoterpico. Joana j chegou a dizer que possui muito medo de morrer. Ela se justifica dizendo que o medo est ligado preocupao com o filho pequeno. Relata que tem medo de morrer, pois saberia que seu filho ficaria desamparado, j que ela quem o cria sozinha.

    Joana relata que no consegue se envolver com homens de sua idade, que sua atrao apenas por homens mais jovens. Menciona que o pai de seu filho mais de 20 anos mais jovem do que ela. Mesmo hoje, no possuindo um relacionamento, quando pensa em um homem para se relacionar, sempre lhe vem em mente homens mais jovens.

    Pode-se pensar na hiptese de Joana, por vivenciar o medo da morte e ter horror com o passar do tempo, no consegue se envolver com homens da sua idade, porque eles so como espe-lho, do que ela , um ser de finitude.

    Assim pode-se compreender que a cliente busca a ajuda psi-coterpica por ter uma dificuldade para aceitar a sua autoimagem. Desta forma, conforme Erthal (1989), o trabalho da psicoterapia possibilitar que o cliente possa compreender e determinar qual a sua autoimagem. O psicoterapeuta dever buscar o sentido que o indivduo d para sua existncia. E tentar compreender como que ele lida com sua autoimagem, seu corpo, com o tempo e com a questo da morte. O processo psicoterpico ir proporcionar o cliente uma maximizao de sua autoconscincia, aumentando, assim, suas possibilidades de escolhas.

    Compreender as possibilidades que cercam seu projeto exis-tencial permitir que o indivduo seja autntico em suas escolhas, tomando a direo de sua vida de forma mais responsvel e reco-nhecendo em si mesmo as suas prprias escolhas.

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    REFERNCIASAUGRAS, Monique. O ser da compreenso: fenomenologia da situao de

    psicodiagnstico. 3ed. Petrpolis: Vozes, 1986. 96 p.

    ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Terapia vivencial: uma abordagem existen-

    cial em psicoterapia. Rio de Janeiro: Vozes, 1989 183 p.

    MICHELAZZO, Jos Carlos. Corpo e tempo. Associao Brasileira de Da-

    seinsanalyse. So Paulo, n. 12, 2002.

    SCHILDER, P. The image and appearence of th human body. Nova Iorque, In-

    ternacional University Press, Inc, 1950 apud ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha.

    Terapia vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Rio de Janeiro:

    Vozes, 1989 183 p.

    NOTAS DE RODAP1 Aluna do curso de Psicologia, do Centro Newton Paiva.

    2 Professora Supervisora do curso de Psicologia do Centro Universitrio Newton

    Paiva.