A personagem -_beth_brait

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A A P P E E R R S S O O N N A A G G E E M M Beth Brait http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

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  • 1. AA PPEERRSSOONNAAGGEEMM Beth Brait http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

2. Srie Princpios Beth Brait Doutora em Letras Crtica literria e professora do Ensino Superior em So Paulo A PERSONAGEM 3. Direo Samira Youssef Campedelli Benjamin Abdala Junior Preparao de texto Sueli Campopiano Projeto grfico/miolo Antnio do Amaral Rocha Arte-final Ren Etiene Ardanuy Joseval de Souza Fernandes Capa Ary Normanha CIP-Brasil. Catalogao-na-Publicao Cmara Brasileira do Livro, SP Brait, Beth. B799p A personagem / Beth Brait. So Paulo tica, 1985. 84-2303 (Srie princpios) 1. Personagens e tipos na literatura 1. Ttulo. CDD801 .953 Indice para catlogo sistemtico: 1. Personagens : Fico : Teoria literria 801.953 1985 Todos os direitos reservados Editora tica S.A. Rua Baro de Iguape, 110 Tel.: (PABX) 278-9322 Caixa Postal 8656 End. Telegrfico Bomiivro So Paulo 1. 4. Sumrio Introduo _____________________________________________ 5 2. O faz-de-conta das personagens __________________________ 8 Personagens e pessoas _____________________________________ 8 Reproduo e inveno ____________________________________ 11 Ai, palavras, ai, palavras,/que estranha potncia a vossa! ________ 18 3. A personagem e a tradio crtica ________________________ 28 No princpio est Aristteles ________________________________ 28 Spielberg e Alencar? ______________________________________ 31 Perseguindo a personagem __________________________________ 35 Os novos ares dos sculos XVIII e XIX ______________________ 37 A personagem sob as luzes do sculo XX ______________________ 38 Personagem: inveno do autor e da crtica ____________________ 47 4. A construo da personagem_____________________________ 52 Recursos de construo ____________________________________ 52 O narrador uma cmera ___________________________________ 53 A cmera finge registros e constri as personagens _______________ 56 A personagem a cmera __________________________________ 60 Apresentao da personagem por ela mesma ___________________ 61 A personagem testemunha_________________________________ 63 Resumindo as possibilidades de construo_____________________ 66 5. De onde vm esses seres? ________________________________ 69 Os escritores respondem____________________________________ 69 Antnio Torres, 71; Doe Comparato, 72; Domingos Peliegrini, 73; Igncio de Loyola Brando, 75; Joo Antnio, 78; Jos J. Veiga, 79; Lya Luft, 80; Lygia Fagundes Telies, 81; Marcos Rey, 82; Marilene Felinto, 83; Moacyr 1. Scliar, 84; Renato Pompeu, 85. 6. Vocabulrio crtico ____________________________________ 87 7. Bibliografia comentada _________________________________ 90 5. 1 Introduo Este livro deve ser tomado como uma introduo ao estudo da personagem, pois dirige-se a um pblico que analisa, produz e transforma textos de fico. Na verdade, este um livro que se destina a um pblico especial, que tem no texto um instrumento de prazer, conhecimento e trabalho, mas que se encontra no incio das reflexes acerca das especificidades da narrativa. Considerando esse fato decisivo para o encaminhamento da diseusso, e levando em conta que esta obra faz parte de uma srie que aborda outros aspectos da teoria da literatura, procurei cercar algumas questes a respeito da personagem, dando ao livro a forma que eu imagmava pertinente e que buscava encontrar em cada estudo a respeito do assunto, no incio de minha vida universitria. Assumindo uma postura at certo ponto didtica e correndo todos os riscos fatais que essa postura pode acarretar, a obra procura adequar-se s necessidades dos leitores que no so especialistas, mas candidatos a, simulando o isolamento da questo personagem e flagrando esses habitantes da fico no seu espao de existncia: o texto. Aqui, preciso que se esclarea, a palavra texto 6 cobre duas manifestaes de natureza diferente: a fico literria, a prosa de fico que materializa esses seres, e o texto crtico que, com seus instrumentos especficos, persegue a natureza desses seres. Os captulos que constituem essa obra, procuram orientar o leitor no sentido de refletir sobre a concepo de personagem, sondando a sua variao no decorrer de um percurso literrio que engloba a diversidade da produo e a tradio crtica que a enfrenta. Cabe ao segundo captulo iniciar a reflexo, procurando desfazer os compromissos rgidos existentes entre as palavras pessoa e personagem; ao terceiro, traar um rpido caminho das vrias perspectivas tericas que se debruam sobre a questo da personagem; ao quarto, esboar alguns procedimentos de caracterizao de personagem; 6. e ao quinto reservar a escritores brasileiros contemporneos uma palavra a respeito de suas criaturas. Quanto ao quinto captulo, cabe aqui um esclarecimento e um agradecimento. Essa runio de depoimentos inditos foi possvel graas a gentil colaborao de escritores que, em meio a suas inmeras atividades, acharam um tempinho e se dispuseram a colaborar com esse livro, concedendo autora e aos leitores a fora de seus testemunhos. O reduzido vocabulrio crtico e a bibliografia comentada no tm a pretenso de cercar todos os termos de todas as obras referentes personagem, servindo apenas como ponto de partida para os que iniciam os estudos do problema. As obras aqui comentadas, com raras excees, no so livros dedicados exclusivamente personagem, mas estudos de teoria literria que dedicam um espao a este componente da narrativa. Por esta razo, aconselha-se que as obras sejam lidas na ntegra, a fim de que o leitor possa estabelecer a relao entre o estudo da personagem e os outros itens tratados pelo crtico. 7 Sendo uma obra de introduo, fica clara a necessidade de complementao pelos leitores, na medida de seu interesse, atravs da convivncia com as grandes obras de fico e os grandes criadores de personagens, bem como com as possibilidades de leitura instigadas pelas diversas tendncias crticas. 1 1 Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno de facilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazer receb-lo em nosso grupo. 7. 2 O faz-de-conta das personagens Personagens e pessoas provvel que os leitores mais crticos, aqueles que tm um contato menos ingnuo com a obra de fico, achem curioso e at engraado que muitos leitores de Conan Doyle reservem um espao de sua viagem turstica visita a Baker Street, nmero 221 B, na esperana de ali encontrar os aposentos, o laboratrio e os velhos livros de Sherlock Holmes. Esses amantes da fico policial, que leram e releram cada uma das aventuras do heri, acreditam realmente na existncia de uma pessoa chamada Sherlock Holmes, um ser humano muito especial, que viveu todas as apaixonantes peripcias relatadas por um outro ser humano, o caro Watson. No encontrar esse nmero em Baker Street uma decepo. Mas no to forte que possa apagar a iluso da existncia de Holmes. Para os leitores fiis, isso no passa de mais um truque genial do brilhante detetive. Mas no h motivo para riso. Ao menos no h motivo para esse riso de desdm, caracterstico dos que nunca tiveram dvida de que Watson e Sherlock so apenas criaes de Conan Doyle. Curiosamente, esses mesmos leitores 9 que acreditam separar com clareza a vida da fico, mesmo que muitas vezes apreciem mais a fico que a vida, teriam algumas dificuldades para negar que j se surpreenderam chorando diante da morte de uma personagem. No h distanciamento leitortexto que possa refrear a emoo sentida, por exemplo, quando em Grande serto: veredas nos defrontamos com Reinaldo-Diadorim morta. E no se trata de uma emoo superficial, provocada apenas pelo dado da surpresa: a releitura do romance no impede que a emoo seja revivida. E precisamente isso que faz cessar o riso e aflorar 8. as cismas. Afinal de contas, diante do leitor h apenas papel pintado com tinta. Alm disso, que outra matria, que outra natureza reveste esses seres de fico, esses edifcios de palavras que, por obra e graa da vida ficcional, espelham a vida e fingem to completamente a ponto de coiquistar a imortalidade? Essa questo no simples. Nem este o primeiro ou o ltimo livro que tenta rastrear os segredos da personagem. Na tentativa de recolocar a questo da personagem de forma a recuperar a tradio do estudo deste item da narrativa e discutir aspectos de relevncia para os que se interessam por teoria literria, comearemos pela trilha mais prosaica:consultar um dicionrio. O Novo dicionrio Aurlio oferece a seguinte definio de personagem: Personagem [Do fr. personnage.] S. f. e m. 1. Pessoa notvel, eminente, importante; personalidade, pessoa. 2. Cada um dos papis que figuram numa pea teatral e que devem ser encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramtica. 3. P. ext. Cada uma das pessoas que figuram em uma narrao. poema ou acontecimento. 4. P. ext. Ser humano representado em uma obra de arte: A criana um dos personagens mais bonitos do quadro 1 1 FERREIRA., Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975. 10 Esse verbete no ajuda muito. Na verdde, ele mais confunde que esclarece. Para explicar a palavra personagem, a palavra pessoa(s) foi utilizada trs vezes e a expresso ser humano uma vez. Tratando-se de um dicionrio geral da lngua e no de um dicionrio especializado em teoria literria, plenamente justificvel o jogo explicativo em que uma palavra tomada por outra. Mas esse jogo metalingstico simplista aponta mais uma vez para uma confuso terminolgica que traduz com clareza a confuso existente entre a relao pessoa ser vivo e personagem ser ficcional. Ainda que os termos papis e figuras dramticas indiquem possveis diferenas existentes entre pessoas e personagens, a frase Cada uma das pessoas que figuram em uma narrao, poema ou acontecimento obriga o leitor a encarar a narrao, o poema e o acontecimento como sendo fenmenos de uma mesma espcie, de uma mesma natureza. 9. E, textualmente, a identificar pessoas e personagens. Mas, se um dicionrio geral da lngua no tem qualquer obrigao de contribuir para a resoluo de dvidas muito especializadas, passemos a um dicionrio especializado. No Dicionrio enciclopdico das cincias da linguagem, organizado por Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, h um item que parece pertinente transcrever aqui, pois ajuda a pensar o difcil problema da relao personagempessoa. Uma leitura ingnua dos livros de fico confunde perconagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever biografias de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro (O que fazia Hamlet durante seus anos de estudo?). Esquece-se que o problema da personagem antes de tudo lingstico, que no existe fora das palavras, que a personagem um ser de papel. Entretanto recusar toda relao entre personagem e pessoa seria absurdo: as per 11 sonagens representam pessoas, segundo modalidades prprias da fico. 2 Essas poucas linhas contm, agora sim, alguns elementos que permitem iniciar uma reflexo. Ao discutir a questo personagempessoa, os autores procuram salientar dois aspectos fundamentais o problema da personagem , antes de tudo, um problema lingstico, pois a personagem no existe fora das palavras; as personagens representam pessoas, segundo modalidades prprias da fico. Na aparente simplicidade desses dois enunciados residem os ncleos essenciais da questo. Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar frente a frente a construo do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma s suas criaturas, e a pinar a independncia, a autonomia e a vida desses seres de fico. E somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espao habitado pelas personagens, que poderemos, se til e se necessrio, vasculhar a existncia da personagem enquanto representao de uma realidade exterior ao texto. 10. Reproduo e inveno Partindo da premissa de que a personagem um habitante da realidade ficcional, de que a matria de que feita e o espao que habita so diferentes da matria e do espao dos seres humanos, mas reconheendo tambm que essas 2 DUCROT, Oswald & Toooaov, Tzvetan. Dictionnaire encyclopdique dez sciences du langage. Paris, Seuil, 1972. p. 286. 12 duas realidades mantm um ntimo relacionamento, cabe inicialmente perguntar: De que forma o escritor, o criador da realidade ficcional passa da chamada realidade para esse outro universo capaz de sensibilizar o receptor? Que tipo de manipulao requer esse processo capaz de reproduzir e inventar seres que se confundem, em nivel de recepo, com a complexidade e a fora dos seres humanos? Ao colocar essas questes, camos necessariamente no universo da linguagem, ou seja, nas maneiras que o homem inventou para reproduzir e definir suas relaes com o mundo. Voltamos, portanto, nosso olhar s formas inventadas pelo homem para representar, simular e criar a chamada realidade. Nesse jogo, em que muitas vezes tomamos por realidade o que apenas linguagem (e h quem afirme que a linguagem e a vida so a mesma coisa), a personagem no encontra espao na dicotomia ser reproduzido/ /ser inventado. Ela percorre as dobras e o vis dessa relao e a situa a sua existncia. Para comear a compreender a questo, vamos partir de uma forma de reproduo da realidade, a linguagem fotogrfica, normalmente aceita e vista como uma maneira bastante objetiva de captar o real. Tomemos como exemplo dois gneros de reproduo de imagem atravs da fotografia: o retrato trs por quatro, normalmente utilizado em documentos, e os retratos de strelas consagradas pelos anos de ouro do cinema americano. A foto trs por quatro parece ser uma das maneiras mais objetivas de reproduzir a imagem de uma pessoa. Tanto verdade que oficialmente elas garantem a identidadeda pessoa retratada. Elas so as pessoas retratadas. Ningum duvida. 11. Entretanto essa presena de uma ausncia, esse testemunho irrespondvel de uma existncia no pode ser 13 confundido com a pessoa. Papel e gradaes de branco e preto, resultantes de conquistas tcnicas, so criaes que a habilidade humana inventou para representar, simular o real. A semelhana com o real reside no registro de uma imagem, flagrada num dado momento, sob um determinado ngulo e sob determinadas condies de luz. Esse produto diz muito pouco, ou quase nada, da complexidade do ser humano retratado. Talvez por essa razo as pessoas faam tanta fora para aparentar e passar para a fotografia a imagem que fazem de si mesmas: cabelos penteados, sorriso, leve ar de seriedade, queixo erguido e outros aspectos selecionados pela pessoa e pelo fotgrafo para compor a imagem que ser registrada. Os resultados e a reao dos fotografados diante de suas fotos demonstram que no fcil construir a prpria imagem para fazer de conta que se exatamente aaquilo. Basta olhar alguns retratos trs por quatro, aqui ou na vitrina dos fotgrafos, para pensar um pouco nos frgeis limites que separam (se que esses limites existem. . .) a reproduo fiel da realidade e a simulao do real. 14 Mas, se as fotos para documentos guardam ainda uma proximidade entre a pessoa retratada e a imagem resultante, tomemos um outro exemplo em que o resultado evidencia uma composio, um trabalho de linguagem em que o fotgrafo utiliza conscientemente os recursos oferecidos pelo cdigo fotogrfico, selecionando e combinando os elementos necessrios para criar uma realidade, ainda que, para um receptor ingnuo, parea estar apenas reproduzindo uma realidade. 15 Essas duas fotos, feitas em 1941 por dois talentosos fotgrafos da poca, vo muito alm de um simples e espontneo retrato de duas pessoas. O assunto escolhido por eles Hedy Lamarr, no caso de Clarence Sinclair Buil, e Marlene Dietrich, sob a perspectiva de A. L. (Whitey) Schafer trabalhado com o requinte dos grandes 12. artistas. No jogo de claro-escuro, tcnica que nesses casos contribui para dissimular o real a fim de captar uma beleza, uma presena que extrapola o simples universo dos A. L. (Whitey) Schifor Columbia. 1941. 16 mortais, o fotgrafo esculpe quase que uma mscara . A expresso fotogrfica, que tem como ponto de partida no as pessoas de Hedy e Marlene, mas as estrelas de cinema com toda a carga cultural e esttica que elas representam, encontra na combinatria da luz, nos elementos que o fotgrafo selecionou para registrar o seu assunto, um momento de captao de um mundo maravilhoso, dos sonhos vendidos por Hollywood e avidamente consumidos pelos espectadores. Nos dois casos a manipulao dos recursos fotogrficos (preparao da estrela, utilizao de estdio e mais a habilidade do fotgrafo) impe ao receptor dois rostos misteriosos, produzidos por um filtro que acaba por registrar no pessoas de carne e osso, mas ideais de beleza, sonho e glamour. Na verdade, no lugar de simplesmente registrar uma imagem, o fotgrafo cria o assunto. E o que se v, atravs de recursos fotogrficos, a representao do mundo dos artistas que encantavam o pblico justamente por pertencerem a um universo que nada tinha a ver com o cotidiano prosaico e endurecido pela crise que o mundo atravessava naquele momento. Portanto, para essas fotos, a expresso registro do real comea a assumir caracterstcias especiais. O fotgrafo no registra uma imagem. Ele cria uma imagem. Seu ponto de partida e seus instrumentos so trabalhados para criar a iluso do real. Embora no se possa falar em personagens, no sentido de seres inteiramente fictcios, impossvel no captar nessas imagens a mitologia hollywoodiana, imposta precisamente pela mscara que o fotgrafo esculpe no lugar de um rosto mortal. E a comea a ficar difcil separar imagem reproduzida de imagem inventada. Ainda no rastro das formas que o homem inventou para registrar a realidade, vamos observar um desenho 3 Roland Barthes, no livro Mitologias, faz um estudo bastante interessante a respeito do rosto de Greta Garbo. Vale a pena conferir. 17 13. de Cndido Portinari, datado de 1944 e intitulado Retirantes. Aqui, a fora dos traos e a combinao das cores arrancam o observador da postura de quem v o registro de uma realidade, a fim de conduzi-lo diretamente misria humana expressa em cada milmetro do quadro. A paisagem endurecida, o cu povoado por aves agourentas, e as figuras que se amontoam numa sinistra pardia de foto para lbum de famlia constituem uma cena brasileira de onde possvel captar um enredo e as personagens que 18 dele participam. Um enredo trgico, flagrado pela sensibilidade de Portinari e transmitido por sua linguagem fortemente expressionista. Neste caso, mesmo o observador mais ingnuo forado, pelas tcnicas utilizadas pelo pintor, a enxergar, alm do registro de um grupo de pessoas, persanagens de uma tragdia num estgio muito mais prximo da morte que da vida. Assim sendo, possvel verificar nesse quadro que a idia de reproduo e inveno de seres humanos combina- se no processo artstico, por meio dos recursos de linguagem de que dispe o autor. Ao mesmo tempo que Portinari distorceu a realidade no reproduzindo mimeticamente o mundo, conseguiu apontar de forma mais violenta para a realidade exterior ao quadro, justamente porque a cena, feita de cores e traos, reinventa e faz explodir mltiplos ngulos dessa realidade. Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potncia a vossa! At aqui, com o propsito de iniciar a discusso a respeito das diferenas e semelhanas existentes entre pessoas e personagens, foram examinadas mensagens que utilizam unicamente a linguagem visual. Nessas rpidas abordagens, iio foi possvel flagrar limites que separem com nitidez a reproduo da inveno. Esses dois processos de registro do real parecem misturar-se constantemente, mesmo quando se acredita estar lidando com linguagens consideradas objetivas, fiis ao que est sendo captado. Neste item, finalmente, o objeto de estudo ser o texto literrio, concebido como o 14. espao em que, por meio de palavras, o autor vai erigindo os seres que compem o universo da fico. 19 O fragmento escolhido para anlise pertence ao romance O Ateneu, de Raul Pompia4 e sua escolha, neste momento, prende-se ao fato de estarmos interessados em verificar as estratgias que o autor utiliza para reinventar a realidade, transportando sua viso de mundo ao leitor e fazendo-o, por essa iluso, reportar-se chamada realidade. No primeiro captulo de O Ateneu, reconhecido romance de crtica social articulada a partir de tcnicas no apenas realistas-naturalistas, mas tambm expressionistas e impressionistas, encontra-se o trecho aqui destacado para observao. So seis pargrafos que formam uma unidade: momento em que o narrador caracteriza pela primeira vez o colgio Ateneu. Na verdade, essa primeira caracterizao do colgio acaba funcionando como um pretexto para a apresentao da personagem Aristarco, que desempenha, como o espao configurado pelo Ateneu, uma significativa funo no romance. Uma leitura desse trecho, pargrafo por pargrafo, ajuda a perceber os recursos lingsticos utilizados por Raul Pompia para criar a realidade ficcional. 1 . Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalao. Esse primeiro pargrafo, composto por um perodo simples, funciona ao mesmo tempo como introduo ao fragmento escolhido e como elemento de ligao, como conexo, entre o que foi narrado antes e o que vai ser narrado agora. Para o enfoque proposto aqui verificar como so construdas as personagens , ele importante pois, independentemente do restante do texto, informa ao leitor (por meio da incluso de um pronome possessivo, minha) que a narrativa feita em primeira pessoa, ou seja, o narrador tambm personagem. 5. ed. So Paulo, tica, 1977. p. 12, 13, 14. 20 2. Ateneu era o grande colgio da poca. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o 15. estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomear com artigos de ltima remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crdito na preferncia dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamaes o bombo vistoso dos anncios. Nesse segundo pargrafo comea a caracterizao, processo utilizado pelo narrador para criar a iluso da existncia de espaos e personagens. O objeto da caracterizao focalizado no incio do pargrafo, por meio de uma sntese dos aspectos que o narrador considera importantes: Ateneu era o grande colgio da poca. A simples decomposio da frase demonstra que elementos foram selecionados e de que maneira foram combinados pelo narrador para colocar o leitor no ngulo exato de sua viso: inicialmente, um substantivo, um nome prprio, individualiza e confere existncia ao espao evocado; em seguida, reforando essa existncia, a utilizao do verbo ser, na terceira pessoa do singular do pretrito imperfeito do indicativo, confere ao substantivo Ateneu o estatuto de sujeito da proposio; finalmente, um predicativo do sujeito, formado pelo adjetivo grande antecedido do artigo definido masculino o, mais o substantivo colgio seguido do adjunto adnominal da poca, atribui ao sujeito as qualidades que o narrador quer transmitir. Dessa forma, nessa sntese de caracterizao, o leitor enxerga sob a tica do narrador no as caractersticas fsicas do espao evocado, mas o grande colgio da poca, uma entidade educacional destacada por sua importncia, por sua maneira de ser num dado momento. 21 A fim de dar continuidade caracterizao desse espao, visualizado sob uma perspectiva temporal que, necessariamente, implica elementos sociais e culturais do momento evocado, o narrador utiliza alguns recursos lingsticos que deslocam o foco 16. da descrio para um outro objeto, diretamente ligado a esse primeiro. No desenvolvimento do segundo pargrafo, possvel flagrar, na construo sinttica das frases, a estratgia de deslocamento que possibilita passar para o primeiro plano um outro sujeito: o sujeito de um fazer que provoca, que causa da existncia e da subsistncia do colgio Ateneu, caracterizado como sujeito do verbo ser Os dois primeiros traos desses deslocamentos encontram-se na utilizao dos tertnos afamado e mantido. Do ponto de vista morfolgico, esses dois termos podem ser analisados como particpio passado: afamado, particpio passado de afamar, verbo transitivo direto, empregado no sentido de dar fama, celebrizar, notabilizar; mantido, particpio passado de manter, verbo transitivo direto, empregado no sentido de prover do necessrio para a subsistncia. Como se sabe, o emprego do particpio desacompanhado de auxiliar exprime fundamentalmente o estado resultante de uma ao acabada. Alm disso, o particpio dos verbos transitivos tem valor passivo. Portanto, ao utilizar esses dois termos, o narrador consegue, ao mesmo tempo, caracterizar um estado do sujeito Ateneu e apontar a ao e o agente que provocam esse estado. Por meio dessa estratgia lingstica, facilmente verificvel pela anlise gramatical, o sujeito do verbo ser torna-se passivo de uma ao que tem o seu agente declarado: afamado por um sistema de nutrido reclame; mantido por um diretor que. . . . Em seguida, confirmando essa lgica combinatria que desloca o foco da caracterizao de um sujeito do ser para um sujeito do fazer, encontra-se a 22 orao pintando-o jeitosamente de novidade.. . , que tem como sujeito o termo diretor, declarado anteriormente pelo agente da passiva, e o colgio como objeto direto, recuperado por meio do pronome pessoal o. Da em diante, ainda que na concluso do segundo pargrafo o narrador apresente consideraes sobre o sujeito do verbo ser, o foco da descrio j est deslocado para o sujeito do fazer, agente provocador das condies, selecionadas como fundamentais para caracterizar o Ateneu, que ganha a partir desse momento o primeiro plano na dico do narrador e, conseqentemente, na recepo do leitor. Assim sendo, a caracterizao da personagem Aristarco no comea no terceiro pargrafo desse trecho, 17. como poderia pensar um leitor menos atento, mas tem seu incio ainda nesse segundo pargrafo. Essa sntese radical apresentada nessas linhas iniciais do romance, e conseguida atravs de recursos lingusticos precisos, oferece elementos a respeito da personagem que so, no conjunto da obra, essenciais para a construo, a funo e as interpretaes possveis a respeito de Aristarco e do livro O Ateneu. Essa leitura, iniciada aqui atravs de mincias gramaticais que correm o risco de cair em desgraa se o texto for conduzido somente nesse sentido, mas que de resto ajudam a perceber que a questo da personagem , tambm sob este ngulo, um problema lingUstico, poder ser confirmada a cada linha do romance. Entretanto possvel, sem crucificar gramaticalmente cada centmetro do texto, encontrar a pertinncia e as conseqncias dessa abordagem no restante do texto escolhido para demonstrar as estratgias usadas por Raul Pompia para criar o mundo da fico. Considerando o pargrafo como uma minisseqncia, uma unidade de composio que permite fragmentar o texto conforme um critrio do autor, pode-se perceber o seguinte caminho na construo da personagem Aristarco, no segundo pargrafo: 23 a personagem aparece como o agente de um fazer, no como um ser; sua existncia est condicionada a uma outra existncia (colgio); a personagem designada atravs do termo diretor, substantivo masculino que indica uma funo aquele que dirige; o fazer da personagem est ligado a um sistema publicitrio, divulgao de urna imagem (afamado por um sistema de nutrido reclame, como um comerciante que. . 3 O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida famlia do Visconde de Ramos, do Norte, enchia o imprio com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas provncias, conferncias em diversos pontos da cidade, a pedidos, sustncia, atochando a imprensa dos lugarejos, caixes, sobretudo, de livros elementares, fabricados s pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente annimos, caixes e mais caixes de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas pblicas de toda a parte com a sua invaso de capas azuis, rseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos 18. esfaimados de alfabeto dos confins da ptria. Os lugares que os no procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontnea, irresistvel! E no havia seno aceitar a farinha daquela marca para o po do espirito. E engordavam as letras, fora, daquele po. Um benemrito. No admira que em dias de gala, ntima ou nacional, festas do colgio ou recepo da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelaes de pedraria, opulentando a nobreza de todos os honorficos berloques. apresentao da personagem, anunciada anteriormente atravs de uma funo; individualizao atravs do nome e sobrenome duplo, antecedidos de um ttulo, Dr., e de um artigo definido; 24 referncia ascendncia aristocrtica (da conhecida famlia. . referncia a sua atuao como renomado pedagogo, por meio da enumerao exaustiva de sua forma de atuar; identificao da figura da personagem com o sistema publicitrio por ela engendrado; utilizao de uma linguagem excessivamente retrica, carregada sinttica e semanticamente por termos e expresses que, ao mesmo tempo, esboam e engordam uma figura moldada na caricatura parasita de um fazer comercial, sustentado unicamente pelas aparncias; isomorfismo personagemlinguagem caracterizadora, atravs do abuso da caracterizao positiva, ironizada pela remotivao de ditados (e no havia como no aceitar a farinha daquela marca para o po do esprito) e pela insistncia de identificao personagempropaganda. 4 Nas ocasies de aparato que se podia tomar o pulso ao homem. No s as condecoraes gritavam-lhe do peito como uma couraa de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei o autocrata excelso dos silabrios; a pausa hiertica do andar deixava sentir o esforo, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de 19. empurro, o progresso do ensino pblico; o olhar fulgurante, sob a crispao spera dos superclios de monstro japons, penetrando de luz as almas circunstantes era a educao da inteligncia; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das conscincias limpas era a educao moral. A prpria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui est um grande homem.., no vem os cvados.de Go!ias?!... Retora-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas macias de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lbios, fecho de prata sobre o silncio de ouro, que to 25 belamente impunha como o retraimento fecundo do seu esprito, teremos esboado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impresso de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsesso da prpria esttua. Como tardasse a esttua, Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluncia dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira. construo da figura fsica da personagem; declarao, pela primeira vez, do ser da personagem (Aristarco todo era um anncio); o ser da personagem aparece, definido coerentemente com o que foi mostrado pelo narrador at aqui, como uma mensagem de propaganda, elaborada e veiculada com finalidades comerciais e institucionais divulgao de imagem; levantamento dos traos que compem a figura fsica, seguidos sistematicamente por uma parafernlia de atributos excessivos, de elementos caracterizadores de uma aparncia vultosa, impositiva, conseguida, como no pargrafo anterior, atravs da abundncia da adjetivao, da remotivao de ditados e de outros recursos caractersticos da retrica da seduo publicitria; sntese da figura fsica e moral da personagem: o narrador declara a impresso causada pela figura da personagem, resumida nos termos enfermo, obsesso da prpria esttua; 20. caracterizao do sucesso do fazer da personagem, que atinge seus objetivos: seu pblico-alvo, definido como a fina flor da mocidade brasileira. 5. A irradiao da rclame alongava de tal modo os tentculos atravs do pas, que no havia famlia de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que no reputasse um compromisso de honra com a posteridade domstica mandar dentre seus jovens, um, 26 dois, trs representantes abeberar-se fonte espiritual do Ateneu. atuao e participao da personagem num espao caracterizado e localizado social e culturalmente; personagem no mais nominalizada, mas identificada, confundida com o sistema publicitrio (A irradiao da rclame alongava de tal modo os tentculos. . o narrador abandona a retrica excessiva, pardica e ironizada, e assume um tom crtico mais direto, no deixando de filtrar uma referncia ao afrancesamento atravs do emprego de um termo da lngua francesa, a rclame, quando ele j havia utilizado o termo portugus reclame, considerado arcaico na linguagem publicitria, e anncio, substituto desse arcasmo; a permanncia da ironia pode ser percebida na utilizao de um termo francs em franco contraste com a expresso posteridade domstica; introduo de um sujeito coletivo, famlia de dinheiro, mantenedor do sistema. 6. Fiados nesta seleo apuradora, que comum o erro sensato de julgar melhores famlias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e sorrindo do estdrdalhao da fama, l mandavam os filhos. Assim entrei eu. encerramento da seqncia; 21. avaliao do sistema mantenedor da fama da personagem e do colgio, localizado num sujeito coletivo, identificado como famlias mais ricas. ligao existente entre o personagem-narrador e os demais elementos da seqncia. Na anlise dos fragmentos escolhidos, mesmo sem remontar a tudo o que j se disse a respeito de Raul Pompia e seu significativo romance O Ateneu, possvel 27 perceber o requintado trabalho de linguagem desenvolvido pelo autor a fim de construir um mundo ficcional que espelha e aponta para uma realidade exterior ao texto, mas que vale, que se impe pela sua prpria existncia. A personagem que vai se delineando aos olhos do leitor, montada unicamente com os recursos oferecidos pelo cdigo verbal, passa a ter uma existncia que carrega em si toda uma crtica ao sistema educacional vigente no final do Imprio. Nesses poucos pargrafos, o autor comea a construir uma personagem que , ao mesmo tempo, exten s e condio de existncia de um sistema educacional calcado apenas nas aparncias, na iluso, na miragem desrovida de consistncia. Para conseguir esse efeito, Raul Pompia no escolhe o fcil caminho da exposio de idias, ou de um realismo mimtico que visa copiar o mundo. Ao contrrio, ele vai buscar nas caractersticas da linguagem, elemento signi ficativ capaz de dar forma ao real, as caractersticas do mundo inventado e retratado. O aspecto caricatural de Aristarco, e, por extenso, do prprio sistema educacional, conseguido atravs da utilizao de uma linguagem cari caturesca Antes mesmo do narrador afirmar que Aris tarc todo era um anncio, o leitor pode perceber a cada linha um abuso retrico proposital, que, sendo duplamente irnico, vai chamando a ateno para a extravagante ma neir de ser da personagem e da linguagem, ambas produ zida pela acumulao de signos que apontam para o mundo da fragilidade oca das aparncias. Com um pouco mais de ousadia, mas sem perder de vista o carter profunda ment literrio do texto, pode-se at afirmar que Raul Pompia, pela linguagem acumulativa que vai construindo a personagem e tudo que ela representa, consegue recupe ra alguns aspectos significativos de um determinado momento do capitalismo: acumulao e valorizao da aparncia. 22. 3 A personagem e a tradio crtica No princpio est Aristteles Tanto o conceito de personagem quanto a sua funo no discurso esto diretamente vinculados no apenas mobilidade criativa do fazer artstico, mas especialmente reflexo a respeito dos modos de existncia e do destino desse fazer. Pensar a questo da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos trilhados pela crtica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental adequado anlise e fundamentao dos juzos acerca desse objeto. J foi dito e impresso, muitas vezes, que inevitvel iniciar uma reflexo terica sem voltar o olhar para a Grcia antiga e para os pensadores que impulsionaram o conhecimento. No caso da personagem de fico, tambm nesse momento que se vai encontrar o incio de uma tradio voltada para o conhecimento e a reflexo dessa instncia narrativa. Dos tericos conhecidos, Aristteles o primeiro a tocar nesse problema. Ao discutir as manifestaes da 29 poesia lrica, pica e dramtica 1, esse pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam at hoje o conceito de personagem e sua funo na literatura. Um aspecto relevante desses estudos o que diz respeito semelhana existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na discutida, e raras vezes compreendida, mimesis aristotlica. Durante muito tempo, o termo mimesis foi traduzido como sendo imitao do real, como referncia direta elaborao de uma semelhana ou imagem da natureza. Essa concepo, at certo ponto empobrecedora das afirmaes contidas no 23. discurso aristotlico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituao, caracterizao e valorao da personagem. Na verdade, o que alguns crticos contemporneos 2 tm procurado demonstrar que uma leitura mais aprofundada e menos marcada do conceito de arte, e, conseqentemente, do conceito de mimesis contidos na Potica, revela o quanto Aristteles estava preocupado no s com aquilo que imitado ou refletido num poema, mas tambm com a prpria maneira de ser do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaborao de sua obra. Aristteles aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais: a personagem como reflexo da pessoa humana; a personagem como construo, cuja existncia obedece s leis particulares que regem o texto. 1 ARISTTELES. Potica. Trad. Eudoro de Souza. Lisboa, Guimares. s.d. 2 Ver COSTA Lia&, Lus. Estruturalismo e crtica da literatura. Petrpo1is, Vozes, 1973. Ver tb. WIMSATr JR., William K. & BROOKS, Cleanth. Crtica literria. Lisboa, Fundao Calouste-Gulbeirian, 1971. 30 Seria importante, portanto, reler Aristteles para resgatar o conceito de verossimilhana interna de uma obra, muito mais importante que imitao do real, mal-entendido que marcou uma longa tradio crtica e que at hoje assombra os estudos da personagem. A esse respeito e a ttulo de exemplo, considere-se a seguinte passagem da Potica: No ofcio do poeta narrar o que realmente acontece; , sim, representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que possvel, verossmil e necessrio. Com efeito, no diferem o historiador e o poeta, por escreverem em verso ou prosa (...), diferem sim em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as coisas que poderiam suceder. Por isso a poesia mais filosfica e mais elevada do que a histria, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Referir-se ao universal, quero eu dizer: 24. atribuir a um indivduo de determinada natureza pensamentos e aes que, por liame de necessidade e verossimiIhana, convm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia quando pe nome s suas personagens (...)3. Ou ainda uma passagem anterior: Una a fbula, mas no por se referir a uma s pessoa, como crem alguns, pois h muitos acontecimentos e idf 1 nitamente vrios, respeitantes a uma s pessoa, entre os quais no possvel estabelecer unidade alguma. Muitas so as aes que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ao una. (...) Homero, assim como se distingue em tudo o mais, parece bem ter visto este lado da poesia, quer fosse por arte, quer por engenho natural, pois ao compor a Odissia, no poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por exemplo o ser ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento da expedio. 3 ARISTTELES, Op. Cit., p. 117. 31 Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, no se seguia necessariamente ou verossimilmente que a outra houvesse de acontecer, mas com ps sobre o fundamento de uma ao una, a Odissia, no sentido que damos a estas palavras, e de modo semelhante, a Ilada. Nessas duas passagens evidencia-se o destaque dado por Aristteles ao trabalho de seleo efetuado pelo poeta diante da realidade e aos modos que encontra de entrelaar possibilidade, verossimilhana e necessidade. Portanto no cabe narrativa potica reproduzir o que existe, mas compor as suas possibilidades. Assim sendo, parece razovel estender essas concepes ao conceito de personagem: ente composto pelo poeta a partir de uma seleo do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade s podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para a criao. Spielberg e Alencar? Considerando essa leitura possvel de Aristteles, podemos perceber que o conceito de verossimilhana interna de uma obra extremamente pertinente e pode ser 25. utilizado na leitura de obras produzidas em outros momentos que no os estudados pelo pensador grego. Consideremos, por exemplo, o filme Indiana Jones and the Temple of Doon (EUA, 1984), dirigido por Steven Spielberg. Nessa narrativa cinematogrfica, como se sabe, a personagem central Indiana Jones enfrenta uma srie de perigos para encontrar centenas de crianas raptadas por fanticos religiosos e tambm recuperar uma pedra sagrada. A ao se passa na India. Quem assistiu ao filme, uma seqncia vertiginosa de aes emocionantes em que o heri e seus dois compa- 4 Aristteles, op. cit., p. 115. 32 nheiros levam selhpre a melhor sobre os poderosos inimigos, poder entender perfeitamente o que significa verassimilhana interna. Se o espectador quiser julgar o filme atravs dos dados plausveis que a realidade exterior ao texto oferece, ter de admitir a falta total de veracidade, julgando-o inteiramente absurdo. Como possvel aceitar que, durante uma longa luta nas escarpas de um precipcio em que todos os inimigos so derrotados, o heri saia intacto, sem derrubar sequer o chapu que traz na cabea? Entretanto, se essa obra-prima da indstria cultural pode ser questionada por uma srie de fatores, certamente no o ser pela ausncia de verossimilhana. A personagem Indiana Jones, vivida pelo belo ator Harrison Ford, apesar de todo o aparato modernoso sustentado pelos efeitos especiais, no deixa de ser o mesmo mocinho dos filmes de cowboy, o mesmo heri das narrativas tradicionais, cheias de obstculos a serem transpostos, o mesmo mocinho romntico, cujo destino vencer inimigos e conquistar o corao da mocinha. Ou seja, seu comportamento e o desfecho das aes por ele protagonizadas esto apoiados nas necessidades do encaminhamento da histria, da fbula, que neste caso suficientemente redundante, exaustivamente marcada por traos acumulados por uma tradio narrativa despida de estranhamento. Indiana Jones , desde o comeo, reconhecido como mocinho, como o heri que vai vencer o mal. Ele bonito, inteligente, esperto, detm um saber um arquelogo e fala vrias lnguas e est revestido, alm disso tudo, do mito do super- 26. homem. Como o espectador j assimilou todos esses traos em outras narrativas, identifica de imediato o heri e espera que a narrativa cumpra, assim como a personagem, o seu conhecido destino. Dessa forma, as surpresas ficam por conta da articulao das 33 aes e do desempenho coerente da personagem em suas emocionantes aventuras. Como a narrativa transcorre dentro da frmula tradicional, o que seria absurdo, se o parmetro fosse a realidade exterior obra, torna-se coerente, torna-se verossmil. E, se o chapu de Indiana no cai da cabea mesmo nos momentos mais crticos, isso fica por conta da verossimilhana interna da obra. De Aristteles e suas consideraes sobre a tragdia e a epopia passamos para Spielberg e sua verso espalhafatosa dos surrados heris, provavelmente chocando alguns leitores. Agora vamos para uma outra personagem, desta vez da literatura brasileira, que tambm ajuda a entender o conceito de verossimilhana interna de uma obra. Vamos espiar sob essa tica a nossa Iracema de Jos de Alencar. O ponto de partida do romance um argumento histrico: a fundao do Cear. Nem por isso ele vai ou deve se comportar como um historiador. A personagem Iracema, elemento que nos interessa neste momento, vai sendo esculpida no por imitao a um ndio real, com quem se pudesse tropear nas selvas brasileiras, mas com a seleo de informaes fornecidas pelos cronistas e com um trabalho de criao de um romancista-poeta empenhado em resgatar, pela linguagem, uma criatura possvel de um mundo selvagem ainda no dominado pela civilizao: Alm, muito alm daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema. a virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da grana, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da lati no era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu hlito perfumado. Mais rpida que a ema selvagem, a morena virgem corria o serto e as matas do lpu, onde campeava sua guerreira 34 27. tribo da grande nao taba jara. O p grcil e nu, mal roando, alisava apenas a verde pelcia que vestia a terra com as primeiras guas . A personagem Iracema, desde o nome lbios de mel, de ira, na lngua tupi, ou reverberao de Amrica at as ilaes possveis com a matriz do Novo Mundo ela a me de Moacir, cujo pai o branco Martim, ela a selvagem penetrada pelo colonizador, ela morre e deixa um filho mestio com sobrevivente e primeiro de uma raa parida e marcada pelo sofrimento , deve ser lida como verossmil. Jos de Alencar recorre para a construo dessa personagem, e de todo o romance, a um processo tradutor da lenda, do argumento histrico, que aponta no para o aportuguesamento do ndio, para sua diluio atravs de uma tica ocidentalizada, mas, ao contrrio, para o que se poderia chamar de tupinizao 6 da literatura. Todas as comparaes, todas as metforas, todas as imagens que vo dando forma personagem, s podem ser decodificadas a partir da cultura indgena recuperada e reinventada pelo escritor. Assim sendo, a consistncia, a poesia e a beleza da personagem Iracema s podem ser julgadas (se que alguma personagem pode ser julgada...) por meio de uma compreenso dessa atitude potica radical, desses recursos tradutores de um mundo recriado por Alencar e articulado de forma a estabelecer um dilogo eptre a Histria e suas possibilidades. Invertendo a mo, o escritor brasileiro faz o texto falar a lngua indgena numa dico de um mundo possvel, que s a literatura pode recuperar. ALENCAR, Jos de. Iracema. 12. ed. So Paulo, tica, 1981. p. 14. 6 O termo tupinizao eu tomo emprestado de Haroldo de Campos. 35 Perseguindo a personagem Os estudos empreendidos por Aristteles serviram de modelo, num certo sentido, concepo de personagem que vigorou at meados do sculo XVIII, momento em que o conceito de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por seus interpretadores comea a ser combatido. Durante esse longo perodo, todos os tericos que trataram de questes ligadas arte, incluindo-se a o problema da personagem, foram influenciados pela viso aristotlica e mais particularmente pela tese tico- 28. representativa encerrada em sua teoria. No incio desse percurso situa-se Horcio, o poeta latino que em sua A rs poetica divulga as idias aristotlicas e reitera as suas proposies. No que diz respeito personagem, Horcio associa o aspecto de entretenimento, contido pela literatura, sua funo pedaggica, e consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres fictcios. De certo modo, a concepo de personagem divulgada pelo pensador latino contribui de forma significativa para que se acentue o conceito de imitao propiciado pelo termo mimesis para a reinstaurao da finalidade utilitarista da arte, entrevista em Aristteles. Apegado s relaes existentes entre a arte e a tica, Horcio concebe a personagem no apenas como reproduo dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto de moralidade humana que supe imitao. Ao dar nfase a esse aspecto moralizante, ainda que suas reflexes tenham chamado a ateno para o carter de adequao e inveno dos seres fictcios, Horcio contribuiu decisivamente para uma tradio empenhada em conceber e avaliar a personagem a partir dos modelos humanos. 36 Seguindo o percurso, vamos encontrar tanto na Idade Mdia quanto na Renascena o florescimento da concepo de personagem herdada dos dois pensadores. A natureza da literatura produzida na Idade Mdia e o imperialismo dos princpios cristos propiciam a identificao da personagem com fonte de aprimoramento moral. A cano de gesta, como se sabe, ocupa-se das faanhas de um heri que personifica uma ao coletiva, enraizada na memria coletiva. O romance medieval, por sua vez, est profundamente ligado historiografia, espelhando a vivncia corts e o idealismo guerreiro. Em funo dessas narrativas e das constantes formulaes acerca da moralidade da arte, a personagem conserva na Idade Mdia o carter de fora representativa, de modelo humano moralizante, servindo inteiramente aos ideais cristos. O compromisso estabelecido entre personagem e pessoa perdura, sob novos auspcios, na Renascena e nos sculos que a ela se seguem. E Aristteles e Horcio so os modelos literalmente retomados para fundamentar essa concepo e garantir a perpetuao crtica desse ponto de vista. No sculo XVI, o escritor ingls Philip Sidney (1554- -86), autor, entre outras obras, de A defesa da poesia, um dos primeiros ensaios 29. de apreciao crtica da literatura inglesa, cujo carter polmico vem justamente da exaltao da funo do poeta na sociedade, procura deixar claro, rastreando Aristteles e Horcio, que as artes tm valor na medida em que conduzem a uma ao virtuosa, e que a personagem deve ser a reproduo do melhor do ser humano. Essa concepo, extrada das consideraes que o autor faz da poesia e dos poetas de sua poca, que virtualiza a personagem como um ente semelhante mas ainda melhor que seu modelo humano, encontra eco em outros tericos. No sculo XVII, o poeta e autor dramtico ingls John Dryden, considerado o primeiro grande crtico da 37 Inglaterra, deixa entrever em seus prefcios e principalmente na obra Ensaio sobre a poesia dramtica (1668) uma concepo antropomrfica de personagem, baseada tambm nos conceitos aristotlicos e horacianos. E ele no o nico. Seria possvel numerar aqui vrios outros conceituados autores que, durante os sculos XVI e XVII, legaram posteridade curiosos estudos da personagem como imagem de pessoa, revestida da moralizante condio de verdadeiro retrato do melhor do ser humano. E essa concepo que vai continuar vigorando at meados do sculo XVIII. Os novos ares dos sculos XVIII e XIX A partir da segunda metade do sculo XVIII, a concepo de personagem herdada de Aristteles e Horcio entra em declnio, sendo substituda por uma viso psicologizante que entende personagem como a representao do universo psicolgico de seu criador. Essa mudana de perspectiva se d a partir de uma srie de ircunstncias que cercam o final do sculo XVIII e praticamente todo o sculo XIX. nesse momento que o sistema de valores da esttica clssica comea a declinar, perdendo a sua omogeneidade e a sua rigidez. tambm nesse momento que o romance se desenvolve e se modifica, coincidindo com a afirmao de um novo pblico o pblico burgus , caracterizado, entre outras coisas, por um gosto artstico particular. Especialmente no sculo XVIII, o romance entrega-se anlise das paixes e dos sentimentos humanos, stira social e poltica e tambm s narrativas de intenes 30. filosficas. Com o advento do romantismo, chega a vez do romance psicolgico, da confisso e da anlise de almas, do romance histrico, romance de crtica e anlise da reali- 38 dade social. E durante a segunda metade do sculo XIX que o gnero alcana seu apogeu, refinando-se enquanto escritura e articulando as experincias humanas mais diversificadas. Aos realistas e naturalistas coube perseguir a exatido monogrfica dos estudos cientficos dos temperamentos e dos meios sociais. Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, estendem-se as pesquisas tericas que procuram encontrar na gnese da obra de arte, nas circunstncias psicolgicas e sociais que cercam o artista, os mistrios da criao e, conseqentemente, a natureza e a funo da personagem. Nesse sentido, os seres fictcios no mais so vistos como imitao do mundo exterior, mas como projeo da maneira de ser do escritor. E por meio do estudo dessas criaturas produzidas por seres privilegiados que possvel detectar e estudar algumas particularidades do ser humano ainda no sistematizadas pela Psicologia e pela Sociologia nascentes. Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropomrfico cuja medida de avaliao ainda o ser humano. No existe a rigor, at esse momento, uma teoria da prosa de fico que possa estudar e entender a personagem em sua especificidade. Os estudos desenvolvidos durante esse longo perodo nada mais fazem que reproduzir por prismas diversos a viso antropomrfica da personagem. Ess tradio s vai ser alterada nas primeiras dcadas do sculo XX com a sistematizao da crtica literria, em suas diversas tendncias, e com a reabertura do dilogo acerca das especificidades da narrativa e de seus componentes. A personagem sob as luzes do sculo XX A prosa de fico sofre, no sculo XX, grande metamorfose, se comparada aos modelos narrativos que se tor- 39 31. naram clssicos no sculo XIX. Ao lado das profundas anlises empreendidas por escritores do porte de Marcel Proust, Virgnia Woolf, Kafka, Thomas Mann e James Joyce, opera-se uma significativa modificao na concepo da escritura narrativa desenvolvida por esses e outros escritores. Essas transformaes, que correm pralelas s grandes transformaes do texto potico, coincidem com uma violenta reao contra o factualismo das indagaes biogrficas e das pesquisas de fonte. Sistematizada por vrias tendncias e objetivando um conhecimento das especificidades da obra literria como um ser de linguagem, a crtica respira novos ares. No que diz respeito especificamente ao romance e personagem de fico, somente com a obra Teoria do romance, de Gyiirgy Lukcs, publicada em 1920, que essas questes so retomadas em novas bases. Lukcs, relacioe nando o romance com a concepo de mundo burgus, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto entre o heri problemtico e o mundo do conformismo e das convenes. O heri problemtico, tambm denominado demonaco, est ao mesmo tempo em comunho e em oposio ao mundo, encarnando-se num gnero literrio, o romance, situado entre a tragdia e a poesia lrica, de um lado, e a epopia e o conto, de outro. Nesse sentido, a forma interior do romance no seno o percurso desse ser que, a partir da submisso realidade despida de significao, chega clara conscincia de si mesmo. A nova concepo de personagem instaurada por Lukcs, apesar de reavivar o dilogo a respeito da questo e de fugir s repeties do legado aristotlico e horaciano, submete a estrutura do romance, e conseqentemente a personagem, influncia determinante das estruturas sociais. Com isso, apesar da nova ticaa personagem continua sujeita ao modelo humano, no obstante as teorias a 40 respeito da poesia j terem avanado quilmetros na direo da especificidade da linguagem. Ainda na dcada de 20, um outro crtico empenha-se em esclarecer alguns aspectos diretamente ligados ao romance e personagem de fico. Mais precisamente em 1927, aparece o livro Aspects of the novel, de E. M. Forster, romancista e crtico ingls que, apesar de todas as suas outras obrajportalizou-se pela sua classificao de personagens 32. em flat na, tipificada, sem profundidade psicolgica e round redonda, complexa, multidimensional. A publicao de Aspecis of lhe novel acontece no exato momento em que as obras de um Marcel Proust, de uma Virgnia Woolf, de um James Joyce, por exemplo, abalavam as velhas estruturas do romance e, ao mesmo tempo, o barulho da crtica fazia-se ouvir sonoro pela dico da estilstica, do formalismo russo e do new criticism norte-americano, sistematizando a reao contrt6s da histria literria positivista. Sensvel produo literria do momento e tocado possivelmente pelo posicionamento florescente do new criticism, Forster encara a intriga, a histria e a personagem como os trs elementos estruturais essenciais ao romance e trabalha o ser fictcio como sendo um entre os componentes bsicos da narrativa. Essa concepo, que encara a obra como um sistema e possibilita a averiguao da personagem na sua relao com as demais partes da obra, e no mais por referncia a elementos exteriores, permite um tratamento particularizado dos entes ficcionais como seres de linguagem, e resulta numa classificao considerada profundamente inovadora naquele momento. Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que a obra, podem ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas so construdas ao redor de uma nica idia ou qualidade. Geralmente, so definidas em 41 poucas palavras, esto imunes evoluo no transcorrer da narrativa, de forma que as suas aes apenas confirmem a impresso de personagens estticas, no reservando qual- quer surpresa ao leitor. Essa espcie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo e caricatura, dependendo da dimenso arquitetada pelo escritor. So classificadas como tipo aquelas personagens que alcanam o auge da peculiaridade sem atingir a deformao. O grande exemplo de tipo, citado por todos os manuais de literatura, o Conselheiro Accio, da obra O primo Baslio, de Ea de Queirs. Quando a qualidade ou idia nica levada ao extremo, provocando uma distoro propositada, geralmente a servio da stira, a personagem passa a ser uma caricatura. Se a literatura est repleta dessas duas espcies e se a classificao pode ser discutvel do ponto de vista das grandes obras literrias, servindo apenas como orientao didtica, temos que reconhecer que uma classificao pertinente, 33. especialmente se voltarmos os olhos para a novela de tev, ou para outros festejados produtos da indstria cultural. As personagens classificadas como redondas, por sua vez, so aquelas definidas por sua complexidade, apresentando vrias qualidades ou tendncias, surpreendendo convincentemente o leitor. So dinmicas, so multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar, poderamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que permanecem como janelas abertas para a averiguao da complexidade do ser humano e potncia da , escritura dos grandes narradores. Mas a esta altura, o leitor poderia perguntar: Apesar da contribuio e das inovaes apresentadas por Forster no que diz respeito ao estudo da personagem, ele ainda no estaria pautado na ligao entre ficcionalpessoa humana? Ou de uma outra maneira: Ser que existe realmente 42 alguma forma de escavar a materialidade dos seres fictcios abstraindo inteiramente sua relao com o ser humano? De fato a questo no simples. O caminho que estamos tentando perseguir neste captulo, entrecortado por atalhos e veredas, por labirintos crticos que de forma alguma apontam para uma estrada principal (se que ela existe. . .), parece se aproximar cada vez mais da concepo da narrativa como um universo organizado, coerente e lgico, como uma maneira particular de formalizar a realidade. Se em Forster essa concepo pode ser entrevista, outorgando personagem um estatuto especfico ainda que no inteiramente despido das injunes humanas, fato idntico vai acontecer com outros crticos da mesma poca, como o caso de Edwin Muir, poeta, romancista e crtico ingls que publicou, em 1928, The structure of the novel. Nessa obra, Muir analisa diversos aspectos da estrutura romanesca, procurando separar a fico, o romance, da vida. Perseguindo os princpios estruturais do romance, apresenta a personagem, no como representao do homem, mas como produto do enredo e da estrutura especfica do romance. Ao estudar, pr exemplo, O morro dos ventos uivantes (Emily Bront, 1847), que classifica como um romance dramtico, demonstra que o tempo est encarnado e articulado nas personagens, assim como o ritmo psicolgico est determinado pela rapidez das aes. A essa classificao 34. romance dramtico o crtico ope narrativas do tipo Guerra e paz (Tolstoi, 1878), em que o ritmo no mais determinado pela intensidade da ao, existindo, ao contrrio, uma regularidade fria, exterior s personagens, de forma que sua transformao no mais obedece aos movimentos inerentes ao. Nos romances dramticos, os heris morrem num dado momento predeterminado pelo destino. Nos outros, morrem acidentalmente, e o tempo continua a correr. 43 J bem prximos da especificidade da personagem, ainda no so Forster e Muir que vo se desvencilhar da relao ser fictciopessoa, que marca essa longa tradio. A radicalizao para uma concepo da personagem como ser de linguagem s vai acontecer com os fornialistas russos, que iniciam, por volta de 1916, um movimento de reao ao estudo naturalista-biolgico ou religioso-metafsico da literatura. Filiado ao futurismo russo e lingstica estrutural, o fonnalismo surpreende na dcada de 30 por sua oposio ao didatismo predominante na crtica russa e por sua reao ao materialismo histrico marxista, prescrito pelo partido. Os estudos desenvolvidos pelos formalistas, os quais s sero conhecidos no Ocidente por volta de 1955 com a publicao do livro Formalismo russo, de Victor Erlich, constituem, num certo sentido, uma verdadeira cincia da literatura, contribuindo decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformao e a significao dessa obra. Essa nova concepo da obra literria procura na organizao intrnseca de seu objeto o material e o procedimento construtivo que conferem obra seu estatuto de sistema particular. Nesse sentido, ao estudar as particularidades da narrativa, os formalistas preocupam-se com os elementos que concorrem para a composio do texto e com os procedimentos que organizam esse material, denominando fbula o conjunto de eventos que participam da obra de fico, e trama o modo como os eventos se interligam. De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fbula, e s adquire sua especificidade de ser fictcio na medida em que est submetidas aos movimentos, s regras prprias da trama. Finalmente, no sculo XX e atravs da pespectiva dos 44 35. formalistas, a concepo de personagem se desprende das muletas de suas relaes com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia prpria. A contribuio decisiva para esse estudo da personagem desvinculada das relaes com o ser humano aparece com a publicao da obra Morfologia skazki (Morfologia do conto), em 1928, onde o formalista Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo estudo ao conto fantstico russo, explicitando a dimenso da personagem sob o ngulo de sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa. A partir dessa ruptura com a viso tradicional da obra literria, elemento que coloca o formalismo como um verdadeiro divisor de guas dentro da teoria da literatura, os tericos comeam a explorar desde a dcada de 50 os caminhos abertos pelos formalistas russos na dcada de 20. Roman Jakobson, Lvi-Strauss, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, Roland Barthes, Julien Greimas e outros exploram as teses oferecidas pelos formalistas e encaminham os estudos da narrativa na direo exploratria de suas possibilidades estruturais. O desenvolvimento desses estudos aporta, sob nomenclaturas e teorias diversificadas, numa concepo semiolgica da personagem. A esse respeito, e a ttulo de exemplo, vale a pena conferir o texto Pour un statut smiologique du personnage, de Philippe Hamon . Nesse ensaio, a personagem estudada sob a perspectiva semiolgica, isto , como um signo dentro de um sistema de signos, como uma instncia de linguagem. Para o autor, falar de personagens como se fossem seres vivos uma postura banal e incoerente. Sob essa Litterature, 6 :86-110. 1972. 45 perspectiva, afirma que a existncia de uma teoria literria rigorosa, entendida aqui como funcional e imanente de acordo com os termos impostos pelos formalistas , implica fazer proceder tda exegese, todo comentrio, dentro de um estado descritivo que se coloca no interior de uma problemtica estritamente semiolgica ou semitica. Isso significa considerar, a priori, a personagem como um signo e, conseqentemente, escolher um ponto de vista que constri este objeto, integrando-o no interior da mensagem, definida como um composto de signos lingsticos. Tal procedimento, 36. segundo o autor, tem a vantagem de no aceitar a personagem como dada por uma tradio crtica e por uma cultura centrada na noo de pessoa humana e, ao mesmo tempo, torna a anlise homognea a um projeto que aceita todas as conseqncias metodolgicas nele implicadas. A partir dessa viso, apresenta a noo semiolgica de personagem no como um domnio exclusivo da literatura, mas como pertencente a qualquer sistema semitico. Discute os domnios diferentes e os diversos nveis de anlise, colocando a questo do heri/anti-heri e da legibilidade de um texto como pontos que divergem de sociedade para sociedade e de poca para poca. Tomando como ponto de partida trs grandes tipos de signos, viso pautada na diviso semntica, sintaxe e pragmtica preconizada pelos semilogos e semioticistas, Philippe Hamon define trs tipos de personagens: . Personagens refernciais: so aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo, comumente chamadas de personagens histricas. Essa espcie de personagem est imobilizada por uma cultura, e sua apreenso e reconhecimento dependem do grau de participao do leitor nessa cultura. Tal condio assegura o efeito do real e contribui para que essa espcie de personagem seja designada heri. 46 Como exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A ordem do dia, de Mrcio Souza. Personagens embrayeurs: so as que funcionam como elemento de conexo e que s ganham sentido na relao com os outros elementos da narrativa, do discurso, pois no remetem a nenhum signo exterior. Seria o caso, por exemplo, de Watson ao lado de Sherlock Holmes. Personagens anforas: so aquelas que s podem ser apreendidas completamente na rede de relaes formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande serto: veredas, poderia estar nesta categoria. Essa classificao, que permite ainda enfrentar a personagem como participante das trs categorias ao mesmo tempo, foi utilizada aqui apenas como um exemplo da radicalizao da teoria da personagem, tomada como matria do discurso e analisada sob os critrios fornecidos pela Lingustica e pela 37. Semiologia e/ou Semitica. A ttulo tambm de exemplo do alcance e dos produtos tericos dessa viso, seria pertinente conhecer a tica funcionalista de A. J. Greimas 8 Especialmente nas obras Smantique structurale e Du sens, Greimas substitui a designao personagem por ator, referindo com esse termo a unidade lexical do discurso, cujo contedo semntico mnimo definido pelos semas (unidades de significao): entidade figurativa, animado, susceptvel de individualizao. Alm disso, Greimas distingue ator de actante, uma espcie de arquiator, conceito situado num nvel superior de abstrao e que, por essa razo, pode expressar-se em vrios atores numa mesma narrativa. Para Greimas, existem seis actantes: sujeito, objeto, destinador, destinatrio, opositor e adjuvante. E as relaes estabelecidas entre os actantes, numa dada narrativa, constituem o modelo actancial. 8 Smanrique structurale. Paris, Larousse, 1966; id. Du sens. Paris, Seuil, 1970. 47 Personagem: inveno do autor e da crtica Ao chegarmos ao final deste captulo, temos de reconhecer que as posturas alinhavadas nesse percurso esto relacionadas no apenas com as tentativas constantes de encontrar novos mtodos para analisar e interpretar a obra literria, mas tambm com a especificidade, dos textos produzidos em determinadas pocas e que 4m a ver com a mobilidade das diversas tendncias que circunscrevem esse fazer artstico. Nesse sentido, uma abordagem atual da personagem de fico no pode descartar as contribuies oferecidas pela Psicanlise, pela Sociologia, pela Semitica e, principalmente, pela Teoria Literria moderna centrada na especificidade dos textos. A essa altura dos estudos crticos, o analista deve considerar a longa tradio do estudo da personagem e, sem superestimar ou minimizar a funo desse componente em relao aos outros que do forma narrativa, encontrar a sua especificidade na ntima relao existente entre essa e as demais instncias do discurso literrio. Na obra Lunivers du roman , R. Bourneuf e R. Ouellett situam a personagem atravs da rede de relaes que contribuem para a sua existncia, incorporando elementos pertencentes a vrias tendncias crticas a fim de chegar a uma postura didtica mas no simplificadora do problema. O enfrentamento da questo se d atravs do destaque das relaes 38. existentes entre as personagens, os lugares e os objetos e as relaes existentes entre cada uma das personagens de um romance. Demonstrando que as personagens de um romance agem umas sobre as outras e revelam-se umas pelas outras, 9 Paris, Presses Un. de France, 1972 48 os autores apontam quatro funes possveis desempenhadas pela personagem no universo fictcio criado pelo romancista: elemento decorativo, agente da ao, porta- voz do autor, ser fictcio com forma prpria de existir, sentir e perceber os outros e o mundo. A personagem com funo decorativa, mas nem por isso dispensvel, seria aquela considerada intil ao, aquela que no tem nenhuma significao particular, a que inexiste do ponto de vista psicolgico. Apesar da expresso elemento decorativo estar carregada de sentido pejorativo e aparentemente descaracterizador, no assim que deve ser entendida neste contexto. Como elemento decorativo a personagem, se est no romance, desempenha uma funo. Ela pode constituir um trao de cor local, ou um nmero indispensvel apresentao de uma cena em grupo. No captulo III da obra O cortio, ao construir a cena do despertar desse ncleo habitacional dominado por Joo Romo, personagem talhada a partir dos traos marcantes de um imigrante portugus em busca de ascenso, Alusio Azevedo descarta qualquer possibilidade de individualizao de uma personagem, para compor um quadro coletivo, formado por um conjunto harmnico dos traos comuns das vrias personagens que formam esse ncleo. (...) das portas surgiam cabeas congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos (...) trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons- dias (...) destacavam -se risos, sons de vozes que altercavam (.. .). De alguns quartos saam mulheres que vinham pendurar c fora, na parede, a gaiola do papagaio (...). Da a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomerao tumultuosa de machos e fmeas (..). As mulheres precisavam j prender as saias 39. entre as coxas para no as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braos e do pescoo (...). 49 Nessa passagem, possvel perceber a funo das personagens denominadas decorativas. Elas contribuem aqui para a caracterizao de um dos ncleos de personagens do romance: a coletividade representada por brasileiros que, pouco a pouco, o narrador vai descortinando como dominados, sem conscincia de sua existncia miservel, biologicamente acomodados. A compreenso das caractersticas desse ncleo s pode ser conseguida por oposio a um outro, formado pelos portugueses que chegavam ao Brasil com o objetivo de enriquecer, e tambm pela tentativa de Alusio Azevedo realizar, atravs dessa obra, um minucioso estudo das relaes sociais implicadas no acmulo de capital de um grupo ambicioso em franca oposio pobreza e ociosidade do outro. Uma outra funo passvel de ser desempenhada pela personagem , segundo os autores que se apiam em vrios outros crticos, a de agente da ao. Inicialmente, para desfazer as controvrsias em torno do termo ao, eles definem essa instncia da narrativa como sendo o jogo de foras opostas ou convergentes que esto em presena numa obra. Ou seja, cada momento da ao representa uma situao conflitual em que as personagens perseguem-se, aliam-se ou defrontam-se. Esse jogo de foras e as funes suscetveis de combinarem-se em uma obra esto classificados a partir dos estudos desenvolvidos por E. Souriau e W. Propp, que permitem subdividir o agente da ao em seis categorias, nem sempre necessariamente encarnadas em uma personagem: condutor da ao: personagem que d o primeiro impulso ao; o que representa a fora temtica: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma carncia 50 oponente: personagem que possibilita a existncia do conflito; fora antagonista que tenta impedir a fora temtica de se deslocar; 40. objeto desejado: fora de atrao, fim visado, objeto de carncia; elemento que representa o valor a ser atingido; destinatrio: personagem beneficirio da ao; aquele que obtm o objeto desejado e que no necessariamente o condutor da ao; adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras foras; rbitro, juiz: personagem que intervm em uma ao conflitual a fim de resolv-la. Sem menosprezar os estudos de Souriau e Propp, devemos encarar essas seis funes como uma possibilidade de enfrentar a questo da personagem em certas narrativas. A fotonovela, a telenovela e outras espcies de narrativa centradas em frmulas tradicionais comportam perfeitamente essa abordagem. O mesmo reducionismo no se aplicaria a um conto de Clarice Lispector, a menos que o analista estivesse empenhado em aplicar essa teoria desprezando a especificidade e as particularidades do discurso em questo. Porta-voz do autor seria uma outra funo passvel de ser desempenhada pela personagem. Essa viso, tambm discutvel, baseia-se numa longa tradio, empenhada em enfrentar essa instncia narrativa como a soma das experincias vividas e projetadas por um autor em sua obra. Nesse sentido, a personagem seria um amlgama das observaes e das virtualidades de seu criador. Entretanto nenhum romance, nenhuma obra de fico se confunde com uma biografia ou uma autobiografia. Ela , quando muito, uma biografia ou uma autobiografia do possvel, ganhando por isso total autonomia com relao 51 a seu autor. Por essa razo, ao classificar a personagem como porta-voz do autor, necessrio, segundo observam de forma pertinente os autores de Lunivers du roman, ultrapassar a reconstituio anedtica da biografia, a descoberta das fontes literrias ou histricas e a anlise superficial das idias para atingir os nveis de apreenso invisveis a essa primeira abordagem. 41. Ao encarar a personagem como ser fictcio, com forma prpria de existir, os autores situam a personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua complexidade e o alcance dos mtodos utilizados para apreend-la. 42. 4 A construo da personagem Recursos de construo Como um bruxo que vai dosando poes que se misturam num mgico caldeiro, o escritor recorre aos artifcios oferecidos por um cdigo a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivncia real ou imaginria, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres s pode ser atingida atravs de um jogo de linguagem que torne tangvel a sua presena e sensveis os seus movimentos. Se o texto o produto final dessa espcie de bruxaria, ele o nico dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistncia sua criao e estimular as reaes do leitor. Nesse sentido, possvel detectar numa narrativa as formas encontradas pelo escritor para dar forma, para caracterizar as personagens, sejam elas encaradas como pura construo lingustico-literria ou espelho do ser humano. Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possveis de caracterizao de personagens esbarra necessariamente na questo do narrador, esta instncia narrativa que 53 vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando sua frente. Ainda que este captulo no tenha por objetivo discutir o papel do narrador, no h como fugir desse elemento presente, sob diversas formas, em todos os textos caracterizados como narrativas. Como podemos receber uma histria sem a presena de um narrador? Como podemos visualizar uma personagem, saber quem ela , como se materializa, sem um 43. foco narrativo que ilumine sua existncia? Assim como no h cinema sem cmera, no h narrativa sem narrador. Para efeito do estudo dos modos de caracterizao da personagem na fico, vamos utilizar a classificao narrador em terceira pessoa e narrador em primeira pessoa, extraindo da as diferentes possibilidades de construo de personagens, sem entrar em algumas questes especficas de Teoria Literria que dizem respeito essencialmente ao narrador. Assim sendo, consideraremos que o narrador pode apresentar-se como um elemento no envolvido na histria, portanto, uma verdadeira cmera, ou-como uma personagem envolvida direta ou indiretamente com os acontecimentos narrados. De acordo com a postura desse narrador, ele funcionar como um ponto de vista capaz de caracterizar as personagens. O narrador uma cmera No romance Os que bebem como os ces, do piauiense Assis Brasil, o leitor, grudado a essa cmera narrativa que o narrador em terceira pessoa, vive a curiosa experincia de conhecer uma personagem, a quem rarssimas vezes dada a palavra, de forma total e avassaladora, O espao habitado pela personagem, uma cela absolutamente escura, que se abre de tempos em tempos para um ptio onde 54 prisioneiros banham-se e lavam suas roupas, violado apenas pelo poder dessa cmera capaz de descortinar, progressivamente, as formas que vo materializando a personagem. A escurido ampla e envolvente. O silncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos. Sempre fora assim: quando em silncio, em paz ou expectativa, o zumbido voltava, em durao enervante, direto como a fala do policial: Deixa as mos dele algemadas. Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silncio da escurido, o zumbido 44. do prprio corpo estava no cho frio: no era cimento nem tijolo, terra batida mida, mas no molhada ao ponto de ensopar sua roupa os braos para trs das costas, os pulsos algemados. Aos poucos ia apalpando o cho com o corpo, de bruos, o rosto quase a tocar a areia: sentia o cheiro da terra um terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina sentia as pardes, mesmo sem v-las na escurido: a opresso do cubculo estava em seu corpo, em seus poros. A posio era incmoda: as mos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria 1 Nesse trecho a personagem vai emergindo da escurido graas aos recursos de um narrador privilegiado, que, na sua posio de observador no personificado, pode no apenas mostrar os movimentos que a vo delineando, mas tambm dizer o que ela est sentindo e, mais adiante, o que est pensando. Sem se dar conta disso, o leitor se instala na cela ao lado da personagem e, como observador de um parto doloroso, vai assistindo a seu nascimento, seu 1 BRASIL. Assis. Ciclo do terror; os que bebem como os ces. Rio de Janeiro, Nrdica, 1984. p. 13. 55 despertar para uma realidade impalpvel, sua dolorosa conquista da conscincia. Na verdade, esta forma de caracterizar a personagem, recorrendo perspectiva univalente do narrador, no pode ser considerada em si mesma boa ou m. No se pode afirmar, por exemplo, que em todas as narrativas em terceira pessoa o narrador no deixa a personagem viver, destruindo a iluso de vida no mundo que pretendeu criar. Ou, ainda, que esse tipo de caracterizao resulte sempre em personagens planas. O fato da narrativa ser conduzida em terceira pessoa no implica necessariamente personagens mal ou bem construdas. No romance utilizado como exemplo, o recurso pertinente e aponta para a verossimilhana interna da obra. A personagem est restrita a um espao mnimo, a cela escura e o ptio, e no tem noo 45. de quem , de por que est ali e de quanto tempo encontra-se nessa situao. A composio do espao, o desenho do ambiente, a caracterizao da postura fsica da personagem e a utilizao do discurso indireto livre para expressar os pensamentos e as emoes dessa criatura combinam-se de forma harmnica, construindo progressivamente o saber da personagem e do leitor. A apresentao da personagem por um narrador que est fora da histria um recurso muito antigo e muito eficaz, dependendo da habilidde do escritor que o maneja. Num certo sentido, um artifcio primeiro, uma manifestao quase espontnea da tentativa de criar uma histria que deve ganhar a credibilidade do leitor: Era uma vez uma moa muito bonita, que se chamava. . .; Naquele tempo, os homens caminhavam por. . . . No Antigo Testamento, assim como nas epopias clssicas ou nos contos de fada, a personagem no posta em cena por ela mesma, mas por suas aventuras, pelo relato de suas aes. E nem por isso deixa de ter consistncia e ganhar credibilidade. 56 O escritor habilidoso encontra formas de acoplar recursos narrativa em terceira pessoa de modo a tornar suas criaturas verossmeis. O narrador pico, assim como o narrador do texto sagrado, recorre ao sonho ou apario maravilhosa como formas de dramatizao que permitem representar a intensidade de um conflito interior, dimenso que em princpio estaria fora do alcance de uma externa, de um foco narrativo puramente exterior. A utilizao do discurso indireto livre, como acontece em Os que bebem como os ces, um artifcio lingstico que dissipa a separao rgida entre a cmera e a personagem, uma vez que lhe confere autonomia para auscultar uma interioridade que no poderia ser captada pela observao externa. A cmera finge registros. e constri as personagens O narrador em terceira pessoa simula um registro contnuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da histria e materializao dos seres que a vivem. No romance policial, por exemplo, o registro detalhado do comportamento das personagens tarefa, via de regra, de um narrador colocado fora da histria e 46. encarregado de acumular traos que funcionam como indcios da maneira de ser e de agir dos agentes das aes compreendidas pela narrativa. Atravs desses traos, a personagem vai sendo construda, e o leitor, por sua vez, pode descobrir, antes do final, a dimenso ocupada pela personagem no desenrolar dos acontecimentos. Essa tcnica, banalizada pelo romance policial de segunda linha, utilizada com muita eficcia por Dashiell Hammett, escritor americano nascido em 1894 e morto em 1961, consagrado por sua literatura policial, que, alm da 57 intriga e do suspense, fornece uma viso dos costumes polticos, do gangsterismo calcado no Big Business e da luta pelo poder e pelo dinheiro que caracterizam o mundo americano. Sem concesses violncia fcil, esse escritor instaura um narrador em terceira pessoa, uma cmera privilegiada, que vai construindo por meio de pistas fornecidas pela narrao, pelas descries e pelo dilogo o perfil das personagens que transitam pela intriga e simbolizam o mundo que ele quer retratar. Isso acontece, por exemplo, na obra The glass key, publicada em 1931 e recentemente traduzida para o portugus sob o ttulo A chave de vidro. Paul Madvig estava s na sala, parado de p, diante da janela, as mos enfiadas nos bolsos da cala, de costas para a porta, olhando atravs da tela a escura rua da China l embaixo. Voltou-se lentamente e disse: Oh, voc por aqui. Era um homem de quarenta e cinco anos, alto como Ned Beaumont, mas com uns vinte quilos a mais, sem flacidez. O cabelo, claro, partia-se no meio, emplastrado na cabea. Tinha um rosto bem proporcionado, com aspecto sadio, corado e robusto. As roupas escapavam do berrante pela qualidade e pelo modo como ele as usava. Ned Beaumont fechou a porta e disse: Me empreste algum dinheiro. Madvig retirou do bolso interno do palet uma grande carteira marrom. Quanto quer? 47. Umas duas de cem. Madvig deu-lhe uma de cem e cinco de vinte, perguntando: Dados? Obrigado. Ned Beaumont embolsou o dinheiro. . Faz muito tempo que voc no d uma ganhadazinha, no ? perguntou Madvig, voltando a enfiar as mos no bolso. 58 No muito... um ms ou um ms e meio. Madvig sorriu. muito tempo para ficar perdendo. No para mim. Sentia-se uma nota de irritao em sua voz2 Nesse fragmento, extrado das primeiras pginas do romance, o leitor comea a visualizar duas importantes personagens. Essa visualizao, esse efeito de realidade vai ganhando forma a partir da descrio minuciosa de traos que apontam para a figura fsica das personagens, para a nominalizao desses seres, para a mincia dos gestos, para as roupas e para a linguagem de cada um. A descrio, a narrao e o dilogo funcionam como os movimentos de uma cmera capaz de acumular signos e combin- los de maneira a focalizar os traos que, construindo essas instncias narrativas, concretizando essa existncia com palavras, remetem a um extratexto, a um mundo referencial e, portanto, reconhecido pelo leitor. A delicadeza e a sutileza do estilo de Dashiell Hammett, em franco contraste com a grosseria do mundo que ele recria, permite que as personagens, ainda que focalizadas por um narrador em terceira pessoa, recebam um certo nmero de qualificaes e, no mesmo tempo, desnudem o seu fazer atravs de ndices que contribuem para a sua funo no decorrer da intriga, do suspense, e permitem a decifrao da simbologia social que elas encerram. O acmulo de ndices atravs de um narrador em terceira pessoa no . um privilgio dos bons e dos maus policiais mas uma tcnica de construo de personagens que permite muitas combinaes, dependendo sempre das intenes e da habilidade dos escritores. 48. 2 HAMMETT, Dashiell. A chave de vidro. Trad. Marcos Santarrita. So Paulo, Brasiliense, 1984. p. 8-9. 59 Dalton Trevisan, um dos mais refinados contistas brasileiros, utiliza freqentemente essa tcnica, dando a impresso, pela sua diablica escritura, de estar reinventando esse antigo instrumento de caracterizao de personagens. No conto Duas rainhas, uma das trinta narrativas que aparecem em Cemitrio de elefantes , as personagens Rosa e Augusta ganham a dimenso maldosa de grandes animais, acidentes geogrficos e depsito ambulante de comida. Essa imagem chega ao leitor por um narrador que vai puxando um discurso repleto de metforas, hiprboles, metonmias, diminutivos, contrastes semnticos irnicos e dilogos articulados com o intuito de compor figuras grotescas. Duas gorduchinhas, filhas de me gorda e pai magro. No sendo gmeas, usam vestido igual, de preferncia encarnado com bolinha. Sob o travesseiro mil bombons, o soalho cheio de papelzinho dourado. Rosa tem o rosto salpicado de espinhas. Dois anos mais moa, Augusta engraadinha, para quem gosta de gorda. Trs vezes noiva de suleitos cadavricos, esfomeados por aquela montanha de douras gelatinosas. Os amores desfeitos pela irm. (...) Duas pirmides invertidas que andassem, largas no vrtice e fininhas na base. Manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos mveis. Lamentam-se da estreiteza das por. tas. Sua conversa predileta sobre receita de bolo. Nos aniversrios, primeiras a sentarem-se mesa ou, para lhes dar passagem, todos tm de se levantar. Aqui o narrador, diferentemente dos exemplos anteriores, no dissimula a sua presena. Ele no circula como uma cmera impessoal que, postada fora da histria, finge no existir. Ao contrrio: ele um narrador bastante pes TREVISAN, Dalton. Cemitrio de elefantes. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1964. 60 49. soal. Ao utilizar os diminutivos gorduchjnha, bolinha, papeizinho, engraadnha somados hiprbole mil bombons , s metforas montanhas de doura gelatinosa, pirmides invertidas , e a outros recursos de linguagem, o narrador coloca em contraste o valor semntico das palavras e as figuras que esto sendo construdas, deflagrando um processo discursivo que corresponde ao volume das personagens e ironia com que so caracterizadas. Essas rotundas personagens ganham sua forma e sua existncia a partir de um meticuloso trabalho de linguagem. Elas no so apenas gordas ou prottipos do comportamento e da configurao de pessoas gordas. Elas so, desde o nome Rosa, que remete ao uso do termo como smbolo banalizado de flor, de fragilidade, de feminilidade e Augusta consagrada, sublime, superior, cercada de bons augrios , produtos de um discurso narrativo que aponta para a ironia de um observador empenhado em fazer da linguagem o seu instrumento de impiedosa caracterizao. No a gordura que define as personagens e chama a ateno do leitor. Mas o jogo de linguagem matreira, sibilina, que chama a ateno sobre si mesma a fim de espiar, para alm da gordura, a configurao grotesca e libidinosa das criaturas que vo sendo mostradas. A personagem a cmera A conduo da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condio de personagem envolvida com os acontecimentos que esto sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictcios que do a impresso de vida chegam diretamente ao leitor atravs de uma personagem. Vemos tudo atravs da 61 perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de conhecer-se e expressar esse conhecimento, conduz os traos e os atributos que a presentificam e presentificam as demais personagens. Se essa forma de caracterizao e criao de personagens for encarada do ponto de vista da dificuldade representada para um ser humano de conhecer-se e exprimir para 50. outrem esse conhecimento, ento seremos levados a pensar que esse recurso resulta sempre em personagens densas, complexas, mais prximas dos abismos insondveis do ser humano. Tomando como medida o romance moderno, empenhado cada vez mais em distanciar a personagem dos esquemas fixos que delimitam o ser fictcio, teremos que admitir que esse recurso ajuda a multiplicar a complexidade da personagem e da escritura que lhe d existncia. Mas no uma receita para a construo de personagens mais densas: tudo, como sempre, vai depender da percia do escritor, de sua capacidade de selecionar e combinar os elementos que participam da arquitetura da personagem. Apresentao da personagem por ela mesma Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa po