A Pesquisa Educacional - Bernard Charlot
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A pesquisa educacional entre conhecimentos, polticas e prticas
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 7
Introduo
Quem atua no ensino de cincias da educao,
na Frana, ou em uma estrutura de ps-graduao em
educao, no Brasil, tem um problema de identidade
profissional. Quando me perguntam sobre o que ensi-
no, sobre o tema de minhas pesquisas, e respondo
cincias da educao, ou me perguntam do que se
trata (reao que predomina na Frana), ou acreditam
que trabalho com formao de professores (reao que
predomina no Brasil). Em suma, sou especialista de
algo impreciso, sem fronteiras claras, e difcil de iden-
tificar. O que, evidentemente, no muito agradvel
do ponto de vista narcsico.
Mas no sou o nico nessa situao. Se pensar-
mos no assunto, a ANPEd no mais clara do que
eu Associao Nacional de Ps-Graduao e Pes-
quisa em Educao. O que significa em educao?
Ser que guarda o mesmo sentido que em sociolo-
gia, em psicologia, em filosofia, em fsica?
Nesse caso, em educao remete a uma disciplina
que chamaramos educao. Ou ser que significa
sobre educao, acerca da educao, a respeito
da educao? Nesse caso, educao remete-nos a
um conjunto de situaes, de prticas, de polticas li-
gadas educao no sentido amplo do termo. Assim,
a ANPEd uma associao que rene pesquisadores
de diferentes disciplinas, interessados na questo da
educao. A questo-chave, portanto, : so vocs,
somos ns, pesquisadores debruados em estudos em
educao ou sobre educao?
Podemos colocar essa questo de outras duas
formas, ligadas ao prprio ttulo desta conferncia.
Existe uma pesquisa educacional, especfica, ori-
ginal? Ou esse o nome que damos a um conjunto de
pesquisas de cunho psicolgico, sociolgico, peda-
ggico, didtico, que tratam da educao ou da for-
mao?
Existe uma rea de saber chamada educao (ou
cincias da educao, o nome pouco importa, o im-
portante que ela seja uma rea de saber), ou ser
A pesquisa educacional entre conhecimentos,
polticas e prticas: especificidades e desafios
de uma rea de saber*
Bernard Charlot
Universidade Paris 8, Frana e Organizao da Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO)-Brasil
* Conferncia de abertura da 28 Reunio Anual da ANPEd,
realizada em Caxambu (MG), de 16 a 19 outubro de 2005.
Traduzida por Anna Carolina da Matta Machado.
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Bernard Charlot
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que a educao uma rea de prticas e de polticas
sobre as quais diferentes cincias humanas e sociais
produzem conhecimento?
A maneira como respondemos a essa questo
(porque, de fato, ela a mesma, mas em trs formas)
, evidentemente, essencial para definir a pesquisa em
educao ou sobre educao, sua especificidade, seus
desafios, os elos entre os conhecimentos, prticas e
polticas. Essa questo, portanto, ser o eixo princi-
pal da minha conferncia.
Eu a abordarei por meio de trs frentes sucessi-
vas. Em primeiro lugar, como os prprios pesquisa-
dores, na Frana e, acredito, no Brasil, respondem a
essa questo? Em segundo lugar, quais so, atualmen-
te, os diferentes tipos de discursos produzidos sobre
a educao, e quais so suas caractersticas? Em ter-
ceiro lugar, qual poderia ser a singularidade de uma
disciplina original, que permanece em construo,
denominada cincias da educao, ou educao, e o
que podemos fazer, sobretudo quando temos a fora
institucional e cientfica da ANPEd, para permitir o
avano e valorizar a especificidade e a originalidade
da pesquisa em educao?
claro que, abordando trs temas dessa ampli-
tude, no tenho a pretenso de esgotar o assunto.
A especificidade da educao comocampo de conhecimento e de pesquisa:
os pontos de vista dos professoresuniversitrios e pesquisadores
Os universitrios que atuam nos departamentos,
institutos, faculdades de cincias da educao, ou em
cursos de ps-graduao em educao, no esto de
acordo sobre a existncia de uma disciplina especfi-
ca chamada cincias da educao ou educao. Na
minha opinio, h trs posies possveis:
1. Os departamentos, faculdades etc. so apenas
espaos institucionais, nos quais colaboram especia-
listas de diferentes reas. So locais onde encontramos
socilogos, psiclogos, matemticos ou gegrafos que
se interessam pelo ensino, pedagogos especializados
em pedagogia (que no sabemos bem precisar o que
, mas que parece estar ligada a questes prticas).
Essas pessoas trabalham juntas, nos mesmos ambien-
tes os departamentos de educao , pesquisam nas
mesmas estruturas da ps-graduao, mas isso no
quer dizer que existe uma disciplina, um campo de
pesquisa especfico chamado educao ou cincias da
educao. As cincias da educao possuem uma rea-
lidade institucional, administrativa, organizacional,
mas no tm existncia epistemolgica especfica.
Fao pesquisa em sociologia da educao, meu cole-
ga a faz em psicologia da educao, um outro em did-
tica do ensino da matemtica, pertencemos a um de-
partamento de educao, mesma ps-graduao, mas
no existe pesquisa educacional, e sim uma pesquisa
sociolgica, psicolgica, didtica etc. sobre temas li-
gados educao. Por conseguinte, o problema da es-
pecificidade da disciplina educao est resoluto, por
no ser mais colocado.
2. A idia de uma cultura comum. Um colega,
Michel Bataille, explicou-me um dia, de modo inte-
ressante, qual era, na sua opinio, a diferena entre
ser psiclogo educacional em um departamento de
psicologia e em um departamento de cincias da edu-
cao. Quando trabalhamos em um departamento de
psicologia, interessamo-nos prioritariamente pelo que
publicado na rea de psicologia, o que inclui outros
temas alm da educao. Ao passo que, quando so-
mos psiclogos educacionais em um departamento de
cincias da educao, interessamo-nos sobretudo por
aquilo que se publica sobre educao, estando a in-
cludas reas diferentes da psicologia. Assim, em um
departamento, em uma ps-graduao, e, alm disso,
nas cincias da educao, constri-se pouco a pou-
co uma cultura comum, fortemente inter ou transdis-
ciplinar.
Essa cultura comum permite que as questes se-
jam colocadas de outro modo, produz uma especifi-
cidade das pesquisas desenvolvidas nas faculdades de
educao. Isso me parece poder estabelecer o con-
senso entre aqueles que do importncia ao fato de
trabalhar no mesmo campo, a educao. Quer con-
tinuemos a nos definir por uma disciplina de origem
(sociologia, matemtica etc.), quer sonhemos com a
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construo de uma disciplina especfica denominada
educao, podemos concordar com essa idia de cul-
tura comum e com o fato de que ela introduz uma
certa especificidade nas pesquisas feitas na ps-gra-
duao em educao. Com a condio, claro, de
interessarmo-nos pelo que fazem nossos colegas, de
ler o que eles produzem, de promover debates com
eles, de ter projetos comuns. Quem aceita essa idia
de cultura comum j introduz uma especificidade no
campo da pesquisa educacional.
Podemos estender essa idia, como fiz h dez
anos, em meu livro sobre cincias da educao
(Charlot, 1995). Essa cultura comum no se define
somente pela ateno dedicada s pesquisas de ou-
tras disciplinas sobre a educao, mas tambm por
uma certa relao que se estabelece entre as prticas
e as polticas no campo da educao.
Quem socilogo de educao se define antes
de tudo como socilogo, se interessa pela contribui-
o que a educao pode dar estruturao do campo
social. O que lhe interessa a construo do social e,
se ele trabalha sobre a educao, para melhor com-
preender essa construo. No fundo, a questo mes-
ma da educao no o interessa de fato, o que chama
a sua ateno so os seus efeitos sociais. Bourdieu
um autor tpico desse caso: o que o interessa no a
educao, mas a reproduo social.
Ao contrrio, o pesquisador que se defina de
educao, qualquer que seja sua origem acadmica,
se interessa fundamentalmente pela questo da edu-
cao; isso que o leva a dar importncia, de um lado,
prpria educao, naquilo que ela tem de especfi-
co, e, de outro lado, aos efeitos da pesquisa sobre a
educao. Como conseqncia, ele no poder mais
se desinteressar, se desligar das questes relativas aos
fins (em que se incluem as questes polticas) e das
questes relacionadas prtica. Os conhecimentos que
ele produz so levados em considerao, interpela-
dos, negados, ignorados pelos polticos e pelos prti-
cos, e o pesquisador em educao no pode negligen-
ciar a importncia disso. comum que o pesquisador,
ao chegar aos resultados de uma pesquisa, se preocu-
pe com a questo: o que eles faro com esses resul-
tados?. Sem falar daquele que to prudente que j
determina os resultados antes mesmo de comear sua
pesquisa
O que especfico da educao como rea de sa-
ber o fato de ela ser uma rea na qual circulam, ao
mesmo tempo, conhecimentos (por vezes de origens
diversas), prticas e polticas. Delimita-se assim uma
primeira definio da disciplina educao ou cincias
da educao: um campo de saber fundamentalmente
mestio, em que se cruzam, se interpelam e, por ve-
zes, se fecundam, de um lado, conhecimentos, con-
ceitos e mtodos originrios de campos disciplinares
mltiplos, e, de outro lado, saberes, prticas, fins ti-
cos e polticos. O que define a especificidade da disci-
plina essa mestiagem, essa circulao.
Portanto, por definio, uma disciplina episte-
mologicamente fraca: mal definida, de fronteiras t-
nues, de conceitos fluidos. Ela no tem e jamais ter
a aparente pureza e clareza da sociologia ou da psico-
logia. Quem desenvolve pesquisas na rea da educa-
o sempre um pouco suspeito, e com freqncia
obrigado a justificar-se, com relao a questes como:
O que exatamente esta pesquisa? de psicologia,
de sociologia, o qu?. Mas, tambm por definio,
uma disciplina capaz de afrontar a complexidade e
as contradies caractersticas da contemporaneida-
de. Quem deseja estudar um fenmeno complexo no
pode ter um discurso simples, unidimensional.
Existem, alis, outras disciplinas mestias, nas
quais se articulam conhecimentos oriundos de diver-
sos campos, prticas, polticas: as cincias polticas,
as cincias de administrao, o urbanismo e tam-
bm a medicina, mas no percebemos isso to clara-
mente. So disciplinas que possibilitam a insero da
inteligibilidade e da racionalidade em campos prti-
co-ticos complexos e, por atuarem nesses campos,
que correm o risco de ser contaminadas pelo utilit-
rio e pelo irracional. Mas quem nada arrisca, nada
realiza.
3. Poderamos deter-nos a uma definio susce-
tvel de obter largo consenso entre pesquisadores que
trabalham juntos em cursos de ps-graduao de edu-
cao, e de reforar sua identidade comum. Tal defi-
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nio, alis, acarreta conseqncias concretas, modos
de organizao e objetivos a serem alcanados.
Algumas pessoas, entre as quais me incluo, se
perguntam se no se pode ir alm da definio ante-
rior, ir alm de um simples espao de circulao e
mestiagem, e construir uma disciplina que tivesse
uma especificidade mais forte, com seus prprios con-
ceitos e, eventualmente, mtodos especficos de pes-
quisa. A questo fica aberta, eu no tenho resposta
para ela. Mas perteno ao grupo dos que tm vontade
de reanimar nessa aposta, nesse desafio de uma espe-
cificidade das cincias da educao, e que inscreve-
ram essa aposta em suas pesquisas.
Para refletir sobre isso, acredito que seja neces-
srio comear por um inventrio dos tipos de discur-
sos existentes sobre educao. Com efeito, jamais uma
cincia surgiu em um espao vazio; uma cincia sem-
pre se constri conquistando um espao no qual j
havia um outro tipo de discurso (por exemplo, a so-
ciologia ocupa um espao em que antes havia discur-
sos filosficos, psicolgicos e polticos).
A rea da educao: um espao saturadode discursos diversos e mltiplos
Podemos identificar ao menos sete tipos de dis-
curso sobre a educao, que vou apresentar a seguir,
rapidamente claro, reunindo alguns entre eles.
1. H discursos, de diferentes tipos, que negam
o interesse ou a legitimidade de um discurso cientfi-
co especfico sobre a educao.
A. O discurso espontneo. Cada um tem uma
experincia de educao, a sua ou a de seus filhos, e
sabe, ou acha que sabe, alguma coisa. Mas no se
pode confundir ter uma opinio (dizer o que acredita-
mos, a partir de uma experincia pessoal) e produzir
um saber (um discurso no qual a significao das pa-
lavras controlada, no qual levamos em conta diver-
sas formas de colocar o problema, vrios pontos de
vista, no qual nos apoiamos em provas que podem
ser verificadas por qualquer um). Quem deseja fazer
pesquisa em educao deve sair da esfera da opinio
e entrar no campo do conhecimento.
Isso nem sempre fcil Quem orienta pesqui-
sas de mestrado ou doutorado sabe que com freqn-
cia os alunos desenvolvem uma pesquisa para mos-
trar que.... Ou seja, mostrar coisas que eles j sabem
de antemo... Pessoalmente, eu digo: Bem, vamos es-
quecer tudo aquilo que intil. Vamos esquecer a jus-
tificativa, uma vez que a justificativa de uma pesqui-
sa sempre a construo do conhecimento; vamos
esquecer os objetivos, porque o objetivo de uma pes-
quisa sempre entender o que no sabemos. No quero
as hipteses, sobretudo, porque com suas hipteses
vocs j me do os resultados de suas pesquisas, an-
tes mesmo de come-las. O que quero so duas coi-
sas. Em primeiro lugar, o que vocs querem saber e
que ningum ainda sabe, inclusive eu? Porque se al-
gum j tem a resposta, no vale a pena fazer uma
pesquisa. Quando sabemos aquilo que queremos co-
nhecer, temos a base de um projeto de pesquisa. Pelo
menos um ponto de partida, pois, na realidade, so
necessrios cerca de seis meses de trabalho sobre uma
dada problemtica para se definir uma questo de
pesquisa. A segunda questo que coloco para os alu-
nos que me apresentam um projeto de pesquisa :
como, concretamente, vocs faro isso?
Tudo isso pode ser escrito em uma pgina e meia.
No so necessrias vinte pginas, cheias de termos
complicados e tcnicos. Mas h de ser uma boa pgi-
na e meia. Caso contrrio, quando no sabemos es-
crever uma boa pgina e meia, somos obrigados a
escrever vinte longas pginas... dessa forma que
funciona, tanto na Frana como no Brasil, e preciso
refletir sobre isso, porque esse momento de entrada
na pesquisa importante.
Um discurso cientfico sobre a educao no deve
ser um discurso de opinio; ele no cientfico se no
controla seus conceitos e no se apia em dados. A
pesquisa em educao (ou sobre a educao) produz
um saber, rigoroso como o todo saber cientfico. Po-
demos sustentar, e eu particularmente o fao, que h
diferentes formas de rigor. Essa idia parece-me im-
portante para a convivncia, o trabalho conjunto, de-
bates em um departamento de cincias da educao
ou em uma ps-graduao em educao, em que ne-
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cessrio aceitar a diversidade como riqueza, incluin-
do-se a a diversidade epistemolgica e metodolgica.
Mas, aps afirmar isso, preciso que cada forma de
rigor obedea a regras e deva ser controlada por uma
comunidade cientfica. No somos obrigados a fazer
pesquisa com qui quadrados, nem a fazer pesquisa-
ao. Mas, se optamos por fazer a primeira, h normas
estatsticas a respeitar. E, se optamos por fazer a outra,
tambm haver regras a respeitar, o que no consiste
(como se supe com freqncia) em agir e dizer que
fazemos pesquisa porque refletimos e escrevemos so-
bre a ao que fazemos. Existem normas de produo
cientfica. Elas so diversas em relao a alguns pon-
tos, por vezes so at conflitantes, mas essas normas
existem. Se no h regras, ou se no h uma comuni-
dade para control-las, no h mais pesquisa, h uma
conversa de botequim sobre a educao.
B. O discurso do prtico, que acredita saber
porque tem uma prtica. Ele ope sua prtica s teo-
rias, com o argumento de que ele pode apresentar re-
sultados enquanto o terico s pode falar. preciso
sair dessa pseudo-oposio entre teoria e prtica, e da
idia, a meu ver falsa, de um debate entre a teoria e
a prtica. Na verdade, aquilo que o prtico ope
teoria, no , como ele acredita, sua prtica, e sim seu
discurso sobre sua prtica. Ora, esse discurso utiliza
conceitos o mais das vezes no controlados, e fre-
qentemente enraizados em uma teoria sem que ele o
saiba. Por exemplo, a noo de carncias. O prtico
diz que v carncias, ou deficincias, em sua clas-
se, o que, por definio, impossvel, pois a carn-
cia uma falta, uma ausncia, um no-ser que no
podemos ver, mas somente identificar por uma com-
parao, o que pressupe pensamento, uma interpre-
tao do mundo. No que se considera confronto entre
teoria e prtica, h, na verdade, dois discursos que se
confrontam.
Podemos interpelar o discurso do prtico do ponto
de vista de seus conceitos. E podemos interpelar o
discurso do terico do ponto de vista de seus dados, e
da maior ou menor concordncia entre esses dados e
as situaes reais nas quais os professores e profis-
sionais trabalham. O prtico pode sempre contestar
os dados do pesquisador, dizendo que eles no tm
qualquer relao com as condies nas quais ele tra-
balha, as condies nas quais trabalha um professor
normal. O pesquisador deve prestar ateno, talvez
mais do que j faz, ao professor normal. Se quere-
mos mudar a educao no Brasil, preciso desvenci-
lhar-se dessa idia, bem estranha quando pensamos
sobre ela, de que para ser um bom profissional na
rea da educao e do ensino necessrio ter quali-
dades que so, na verdade, as de um santo ou de um
militante. A situao normal se podemos dizer
dessa forma do professor brasileiro trabalhar em
uma escola pela manh e em outra tarde, receber
salrios muito baixos e, com freqncia, mesmo ha-
vendo excees, ter feito o vestibular para pedagogia
porque era o mais fcil em determinada universida-
de. essa a condio real do professor no Brasil, e,
se queremos mudar a educao no Brasil, preciso
sempre pensar nesse profissional real, e no no pro-
fessor santo ou militante. Conseqentemente, o pes-
quisador deve controlar com bastante cuidado os da-
dos que utiliza, e sua relevncia em relao s
condies de trabalho do docente real.
preciso ter a coragem de dizer que a prtica
no um argumento, e sim um elemento do debate
que deve, ele prprio, ser analisado. preciso tam-
bm ter a coragem de dizer que a recusa do pesquisa-
dor ou do professor universitrio de confrontar as teo-
rias que ele ensina com as situaes e prticas do
professor ou do formador levanta suspeitas, srias,
sobre o valor de suas teorias, incluindo-se a a ques-
to do valor do ponto de vista da verdade. bvio
que no possvel dar receitas, isto , modos de
fazer que funcionam de imediato, que s precisam
ser aplicados. A prtica sempre contextualizada, e
uma receita nunca funciona. Entretanto, podemos e
devemos definir tcnicas a partir dos conhecimentos
que a pesquisa produz e que ensinamos. Ou seja,
modos de fazer, procedimentos, cujos fundamentos e
limites de validade foram explicitados. Devemos res-
ponder questo como fazer? explicando que, mu-
nidos dessas tcnicas, cada professor dever reinven-
tar sua prtica no contexto em que atua.
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C. O discurso dos antipedagogos, que teve um
certo sucesso na Europa, e, s vezes, mas isso est
mudando, o discurso dos didatas de disciplinas, s
vezes tambm o de alguns filsofos. Podemos resu-
mi-los, de forma um pouco sumria, com o seguinte
argumento: todo ser humano dotado de razo, e a
educao um encontro entre a razo humana e os
conhecimentos. O nico problema a ser resolvido
permitir que cada um encontre o conhecimento. No
h problema pedaggico nenhum. Pelo contrrio, a
pedagogia perverte a juventude, ela inventa artifcios
para aprender no prazer, ela afasta a juventude do es-
foro e, portanto, ela a afasta do verdadeiro saber, pois
no alcanamos o saber sem esforo, sem trabalho
crtico.
Essa objeo apresenta-se de forma democrtica
(a razo universal, cada um tem o direito ao conhe-
cimento), mas, na verdade, produz efeitos bastante
elitistas: na realidade, se no acompanhamos, de uma
forma ou de outra, o acesso dos jovens ao conheci-
mento, a ele chegam aqueles que, de fato, recebem
apoio na famlia ou nas escolas particulares. O erro
dos que defendem essa posio acreditar que a sim-
ples apresentao do conhecimento pe a intelign-
cia em movimento. Ao passo que a questo funda-
mental a ser resolvida por aquele que ensina saber
como provocar uma mobilizao intelectual daquele
que aprende. No direito, a Razo universal, mas, na
verdade, ela no mobilizada espontaneamente, ime-
diatamente e da mesma forma por cada indivduo que
encontra uma oportunidade de aprender. O problema
pedaggico fundamental est a: obter, de uma forma
ou de outra, uma mobilizao intelectual do aluno.
Da mesma maneira, durante muito tempo a did-
tica (francfona e anglfona) sups estar j produzido
o Eu epistmico. Ora, na realidade, se supe-se o Eu
epistmico j produzido, no h mais dificuldade para
ensinar. O problema fundamental , precisamente, pas-
sar do Eu emprico ao Eu epistmico, ou seja, do indi-
vduo preso no movimento da vida cotidiana ao indi-
vduo intelectualmente mobilizado, atento ao saber.
H dois ou trs anos, didatas franceses e canadenses,
principalmente os que trabalham com matemtica e
cincias, engajaram-se nessa reflexo, utilizando a
noo de relao com o saber. Essa evoluo contri-
bui, e contribuir, para reduzir as distncias entre pes-
quisadores em educao e pesquisadores em didticas
das disciplinas. Mas um movimento recente, por isso
no sei se j produziu efeitos no Brasil.
2. H um discurso que, ao contrrio, trata espe-
cificamente da educao e pode ser confundido com
o discurso das cincias da educao: o discurso pe-
daggico.
Podemos, claro, designar coisas diferentes com
a palavra pedagogia, quando tratamos daquilo que a
pedagogia deveria ser e poderia ser, daquilo que consi-
deramos sua essncia. Mas quando consideramos aquilo
que ela foi historicamente, o que so as pedagogias
que surgem, com esse nome, em tal ou qual poca, nos
damos conta de que elas tm uma caracterstica funda-
mental: elas unem diretamente os fins e as prticas (ou
tcnicas). H uma pedagogia tradicional (que no tem
nada a ver com aquilo que recebe essa denominao e
que menosprezado no Brasil...), uma pedagogia
Montessori, uma pedagogia Freinet, uma pedagogia
Paulo Freire etc. Cada uma um conjunto de fins liga-
dos a uma concepo filosfica e muitas vezes polti-
ca, da infncia e do homem, e traduzidos em prticas
especficas. A pedagogia no fundamentalmente um
campo de saberes, um campo de axiologia prtica,
poderamos dizer, um campo de valores com os meios
de coloc-los em ao, ou um campo de prticas orde-
nadas para determinados fins. Nesse sentido, muito mais
que conhecimentos, a pedagogia produz descries,
relatrios de experincias, manifestos. Porque tem sem-
pre um lado prtico e militante, ela objeto de experi-
mentaes, de debates, de pesquisa-ao, e produz mais
convices, instrumentos e inovaes do que conheci-
mentos demonstrados. Afirmar isso no significa de-
preciar a pedagogia; constatar que ela est centrada
nas prticas e nos fins, e no elo entre os dois, e no nos
saberes. O que no quer dizer que ela no sabe nada;
ela pode veicular saberes obscuros, implcitos, ligados
s prticas, interessantes para a pesquisa. Assim, as pe-
dagogias novas foram construtivistas mais de meio
sculo antes do surgimento do termo construtivista.
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3. H os discursos que podemos denominar os
discursos dos outros. So aqueles discursos sobre
a educao produzidos por disciplinas de cincias
humanas, principalmente a psicologia e a sociologia.
Esses discursos dominaram por bastante tempo a rea
da educao, e ainda hoje ocupam nela um espao
significativo.
Por exemplo, o discurso construtivista um
discurso que se desenvolveu no campo da educao,
mas que surgiu fora dele. Seus dois tericos so Piaget
e Bachelard. Piaget, que podemos considerar um psi-
clogo, mas que sobretudo bilogo e lgico (so os
processos de assimilao e de acomodao, pensados
com base num modelo biolgico, que constroem pou-
co a pouco as estruturas lgicas da inteligncia).
Bachelard, que um historiador das cincias e um
epistemlogo que estudou a formao do pensamen-
to cientfico. Nem Piaget nem Bachelard so pesqui-
sadores em educao; seus projetos cientficos so
outros. E Vygotsky era inicialmente um terico da li-
teratura Em outras palavras, o discurso hoje domi-
nante no campo da aprendizagem no vem da pesqui-
sa em educao, mas de outros campos de pesquisa.
Poderamos tambm considerar o discurso da
sociologia da reproduo, que explicou a duas gera-
es de professores que a escola contribui para a re-
produo, de gerao em gerao, das desigualdades
sociais. Isso significa (indo um pouco rpido, mas foi
assim que o discurso foi interpretado) que ele expli-
cou que os professores no servem para nada, ou ser-
vem apenas para pouca coisa, nada podem, ou podem
pouca coisa... Os professores gostaram bastante des-
se discurso, por razes que no tenho tempo de anali-
sar aqui, mas que, no fundo, tm a ver com o fato de
que, se os alunos no aprendem, a culpa no dos
professores, da sociedade. O interessante, alis,
que essa idia no equivocada: quando o professor
e o aluno fracassam, tambm uma falha da socieda-
de. Mas no somente uma falha da sociedade...
O discurso dos outros importante, preciso
lev-lo em conta. Mas preciso tambm saber o que
faz a pesquisa educacional para no apenas acompa-
nhar esse discurso dos outros.
4. Enfim, para atermo-nos aos grandes tipos de
discurso, h os discursos polticos sobre educao.
Eles so de vrios tipos. Vou abordar aqui os dois
tipos principais.
A. H um discurso militante, que com freqn-
cia se apia na sociologia da reproduo e, atualmen-
te, na crtica da globalizao neoliberal. Ele parte de
fundamentos exatos: certo que as crianas so so-
cialmente desiguais no que se refere escola, certo
que o neoliberalismo considera a educao como uma
mercadoria, e no como um direito. Mas esse discur-
so poltico tende a ignorar as diferentes ordens e es-
calas dos fenmenos. Ele tem a tendncia de utilizar
explicaes amplas, macros, para dar conta de to-
das as ordens de fenmenos, inclusive os fenmenos
micros. Ento, no h mais pesquisa possvel, pois
a resposta j est dada.
Isso ocorre, por exemplo, com a idia de que, se
as crianas so violentas na escola, em razo da po-
breza. difcil negar que a violncia do bairro tenha
efeitos sobre a escola. Mas ignora o fato de que exis-
tem escolas pouco violentas em bairros violentos e o
fato mais perturbador, de que entre as crianas po-
bres s uma pequena minoria violenta. Em outras
palavras, no suficiente considerar a pobreza para
dar conta da violncia dentro da escola. preciso que
haja pesquisa com dados, e os discursos polticos pr-
construdos no so suficientes, inclusive quando so
politicamente certos.
H a um desafio que me parece particularmen-
te importante para a pesquisa em educao no Bra-
sil. Trata-se, ao mesmo tempo, de integrar pesqui-
sa o fato de que a educao tem uma dimenso
poltica, e no pode deixar de t-la, e de se recusar a
reconhecer como pesquisa textos em que a anlise
precisa de dados precisos substituda por discur-
sos polticos muito genricos. inegvel que a glo-
balizao neoliberal faz surtir efeitos sobre a situa-
o da escola no Brasil. Da mesma forma, inegvel
que as dificuldades que os alunos brasileiros encon-
tram para aprender a ler no so os efeitos diretos da
poltica do Banco Mundial e do Fundo Monetrio
Internacional, e esto ligadas s prticas dos profes-
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sores. Articular as anlises macro e micro um
desafio fundamental da pesquisa em educao, no
mundo inteiro. Explicar diretamente o micro pelo
macro, ou o macro pelo micro, um erro epis-
temolgico e metodolgico, que deve ser tratado
como tal, quaisquer que sejam as boas intenes
polticas desse erro.
B. H, igualmente, um discurso gerado por ins-
tituies internacionais e que se difunde pouco a pou-
co nos crculos dirigentes, em seguida junto aos jor-
nalistas e, por meio deles, na opinio pblica. No
mundo, a principal agncia de produo de discurso
poltico sobre a educao , h 50 anos, a Organiza-
o de Cooperao e Desenvolvimento Econmico
(OCDE), e, em seu rastro, o Banco Mundial. A OCDE
ocupa-se da educao desde o final da dcada de 1950
(mais precisamente, depois do lanamento do Sputnik
russo). Foi dela que surgiu a reforma da matemtica
moderna. Foi dela que, ao longo dos anos de 1980,
surgiu o discurso sobre a qualidade da educao.
Foi dela que se originou a proeminncia atual da ques-
to da avaliao. Ela construiu e divulgou, h mais
de vinte anos, uma ideologia que se tornou dominan-
te entre os polticos, em que as palavras-chave so
qualidade, eficcia, avaliao. Trata-se de um
discurso do domnio e da transparncia: saber tudo,
controlar tudo, prever tudo, como o Panptico de
Bentham e de Michel Foucault. Trata-se tambm, com
freqncia, de um discurso que acredita que a inova-
o , em si, um progresso.
Esse discurso no automaticamente neoliberal.
difcil sustentar que se possa ensinar sem prestar
ateno qualidade e eficcia desse ensino. Pode-
mos ser de esquerda e defender a idia de uma qua-
lidade social da educao, como se diz no Brasil.
Mas, se no acompanharmos de perto esse discurso,
ele torna-se rapidamente neoliberal; basta supor, como
faz o Banco Mundial, que s a privatizao do ensino
e a constituio de um mercado da educao podem
assegurar a qualidade e a eficcia da educao. Esse
discurso perigoso, como podemos verificar hoje em
dia no Brasil. Aqui houve uma boa escola pblica,
que no mais existe h muito tempo. Depois que essa
escola foi deixada de lado pelos poderes pblicos, sem
os recursos e o apoio de que necessitava, o nvel de
formao dos jovens brasileiros ficou melhor, graas
ao mercado? No. O nvel de alguns melhorou, nas
escolas privadas (no em todas, alis), e o nvel de
outros, da maioria, foi abandonado. O discurso neoli-
beral de certas organizaes internacionais ainda
mais perigoso para o pesquisador quando vem acom-
panhado por instrumentos de poder: a difuso de te-
mas que, repetidos, se impem com uma pseudo-evi-
dncia, a encomenda de pesquisas por instituies
pblicas, as verbas e bolsas para equipes de pesqui-
sadores.
Essa a situao com que um jovem pesquisa-
dor se depara quando se engaja em pesquisas em edu-
cao. O campo da educao est saturado de discur-
sos j instalados, j prontos. Qualquer que seja a
questo, j h uma resposta, prtica ou poltica, j
existem discursos tericos, poderes intelectuais cons-
titudos, panelinhas tericas nas quais a defesa de con-
ceitos mais ou menos se confunde com a conquista
de postos e de poderes. Quando um campo est to
saturado de respostas, difcil levantar questes de
maneira nova; portanto, difcil fazer pesquisa.
Em contrapartida, h uma presso, difusa, im-
plcita, exercida sobre a escolha dos objetos de pes-
quisa. Existe o que chamo de objetos sociomiditi-
cos. So aqueles objetos que a opinio pblica e os
polticos, e na sua esteira os jornalistas, questionam,
sobre os quais a ateno se volta sem cessar, como se
fossem questes importantes, que tm de ser resolvi-
das (e a, o que faz a pesquisa?). Evidentemente,
grande a tentao de tom-los como objetos de estu-
do. Ainda mais porque so aqueles para os quais se
encontra verba para pesquisa. Trata-se de objetos de
discurso, socialmente relevantes, mas que no so,
enquanto tais, objetos de pesquisa. Hoje em dia, os
principais so: o fracasso escolar, a violncia na es-
cola, a cidadania, a parceria educativa, a qualidade
da educao, a avaliao, e ainda, sem nunca sair de
moda, a formao de professores. Seria interessante
fazer uma anlise de contedo, especialmente a partir
dos ttulos dos projetos de pesquisa educacional fi-
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A pesquisa educacional entre conhecimentos, polticas e prticas
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 15
nanciados pelos rgos cientficos e universitrios
brasileiros, o Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Cientfico e Tecnolgico (CNPq) sobretudo. Isso
permitiria identificar os temas que so apoiados, va-
lorizados, considerados prioritrios numa dada po-
ca, e saber se trata-se de objetos cientficos ou so-
ciomiditicos. Podemos fazer uma pesquisa partindo
de temas sociomiditicos que no so apenas simples
efeitos da moda, mas que remetem a problemas so-
ciais fundamentais. Porm isso pressupe que se de-
fina, a cada momento, um objeto de pesquisa, pois
esses temas no so, e no podem ser, enquanto tais,
objetos de pesquisa.
O objeto da pesquisa assim definido pode ser pen-
sado em relao a uma disciplina: filosofia, sociolo-
gia, psicologia, histria etc., da educao, ou didtica
desta ou daquela matria. Essas pesquisas, evidente-
mente, tm seu lugar em uma ps-graduao em edu-
cao. Tambm podem ser pesquisas de um tipo mais
pedaggico, que investigam os vnculos entre fins e
prticas, mais do que produzem conhecimento. Po-
demos ir alm, e ter a ambio de construir uma dis-
ciplina educao ou cincias da educao que te-
nha uma especificidade e conceitos prprios? No se
trata de construir a partir do nada. Hoje j existem
muitas pesquisas em educao que no sabemos mui-
to bem onde enquadrar. Mas elas continuam esparsas,
justapostas, em vez de articuladas. No sabemos bem
se se trata de objetos estranhos, misturados, fora dos
padres, ou produtos de uma disciplina que ainda no
existe...
Em direo a uma disciplina especfica,denominada educao?
O que foi dito anteriormente pretende possuir o
estatuto da anlise, e baseia-se em dados. O que se-
gue no pretende mais isso. Trata-se de convices,
apostas, desafios, que repousam sobre posturas epis-
temolgicas. Mas, precisamente, com apostas epis-
temolgicas que se constri uma disciplina. Propo-
nho aqui algumas delas, para um debate que
permanece aberto.
Quais especificidades?
Em primeiro lugar, convm levar em considera-
o o que h de mais especfico na educao. De mi-
nha parte, proponho definir essa especificidade argu-
mentando que, de um lado, a educao um triplo
processo; e, de outro, que educar, educar-se, apren-
der, ensinar, operam sempre numa tripla articulao.
A educao um triplo processo de humaniza-
o, socializao e entrada numa cultura, singulari-
zao-subjetivao. Educa-se um ser humano, o mem-
bro de uma sociedade e de uma cultura, um sujeito
singular. Podemos prestar mais ateno a uma dimen-
so do que a outra, mas, na realidade do processo edu-
cacional, as trs permanecem indissociveis. Se que-
remos educar um ser humano, no podemos deixar
de educar, ao mesmo tempo, um membro de uma so-
ciedade e de uma cultura e um sujeito singular. E,
partindo da socializao ou da singularizao, pode-
mos produzir enunciados anlogos.
Em contrapartida, o ato de ensino-aprendizagem
d-se em uma tripla articulao.
o jovem que se educa, que aprende. Vamos
considerar a vertente da aprendizagem, mas seria a
mesma coisa com a vertente da educao. Se o jovem
no se mobiliza intelectualmente, ele no aprende. O
que quer que o professor faa, ele no pode aprender
no lugar do aluno. Ou, se preferirmos: s o aluno pode
fazer aquilo que produz conhecimento, e o professor
s pode fazer alguma coisa para que o aluno o faa.
Evidentemente, sempre com um coeficiente de incer-
teza. Nesse sentido, o trabalho do professor no en-
sinar, fazer algo para que o aluno aprenda. Com
freqncia, esse algo consistir em ensinar; outras
vezes, pode tomar uma outra forma.
Entretanto, esses dois termos (educando, educa-
dor) articulam-se com um terceiro: uma instituio (a
escola, mas poderia tambm ser a famlia ou outra
instituio). Trata-se de uma instituio social, sub-
metida a polticas. Em outras palavras, preservando a
vertente da aprendizagem escolar, a atividade do alu-
no e a do professor operam em um quadro institucio-
nal que define as condies materiais, financeiras,
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Bernard Charlot
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006
burocrticas etc. Essa instituio no pode produzir o
conhecimento no aluno, contrariamente s vises de
transparncia e de controle total daqueles que do tanta
importncia avaliao que ela termina por prevale-
cer sobre a prpria aprendizagem. A instituio pode
apenas fazer algo que talvez modifique aquilo que o
professor e o aluno fazem. Existe a uma articulao
fundamental entre trs aes de fazer, na qual o
poder poltico est do lado da instituio e o poder
intelectual do lado do professor, mas na qual aquilo
que produz, em ltima instncia, o sucesso ou o fra-
casso do empreendimento est do lado do aluno.
Eis a uma das chaves para compreender a con-
dio do professor: ele deve fazer alguma coisa, e ele
ser cobrado por aquilo que tiver feito, mas ele no
pode produzir diretamente o resultado de sua ao. O
que vai produzir ou no o conhecimento a atividade
intelectual do aluno, e este tem a capacidade de blo-
quear todo o processo.
Eis a tambm uma chave para compreender as
possibilidades e os limites das polticas educativas.
Nenhuma reforma poltica, por si s, resolve um pro-
blema educacional. Acreditar nisso pensar como o
Banco Mundial e a OCDE: vou mandar fazer e ava-
liar, para verificar se eles fazem. Isso nunca funcio-
na. Quem empreende uma reforma poltica no campo
da educao deve perguntar-se: Como que isso que
estou fazendo vai modificar as prticas dos professo-
res e as dos alunos?. Porque, se aquilo que se faz
nada muda nessas prticas, ento no ter nenhum
resultado. Seria interessante voltar a analisar, a partir
dessa perspectiva, a reforma que substituiu a escola
seriada pela escola ciclada. A escola em ciclos bem
melhor que a escola seriada, mas com uma condio:
que sejam implementadas prticas dos professores e
dos alunos que correspondam ao projeto da escola em
ciclos. Porque, se as prticas continuarem a ser as da
escola seriada, a escola em ciclos no funcionar, e
poder at mesmo ser pior.
Toda cincia recorta seu objeto na complexida-
de do real. A psicologia pode, seu direito, decidir
interessar-se pela educao como processo de subje-
tivao; a sociologia, como processo de socializao;
a filosofia, como processo de humanizao. Se uma
disciplina especfica educao chegar a existir, creio
que ser tomando como objeto o triplo processo, ins-
talando-se no corao do processo, recusando-se a
deixar de fora seja a humanizao, seja a socializa-
o, seja a singularizao.
Da mesma forma, uma pesquisa pode interessar-
se seja pela atividade de aprendizagem do aluno (as
didticas), seja pela atividade do professor e por sua
formao, seja pelas polticas da educao. Mas se
uma disciplina especfica educao chegar a existir,
creio que ser levando em conta as articulaes entre
as trs formas de atividade: a do aluno, a do professor
e a das polticas.
Isso acarreta, no mnimo, duas conseqncias.
Em primeiro lugar, isso significa dizer que uma
disciplina especfica educao deve estar muito aten-
ta s contradies, s tenses, s defasagens, hete-
rogeneidade das lgicas. A educao um triplo pro-
cesso, que opera em uma tripla articulao, o que,
naturalmente, engendra tenses e modos de funcio-
namento heterogneos. De minha parte, em minhas
pesquisas, trabalhei muito as lgicas heterogneas;
penso ter sido capaz de mostrar que o sentido que os
alunos das classes populares do ao fato de irem
escola e aprender muito diferente do sentido que
isso faz para os professores. Mas esse apenas um
exemplo; h muitos outros.
A segunda conseqncia que necessrio, ao
mesmo tempo, distinguir cuidadosamente os nveis
de realidade analisados e identificar o modo como
um nvel opera nos demais. Existe, ali tambm, acre-
dito, uma especificidade de uma pesquisa em edu-
cao. O que acontece numa sala de aula decorre de
um certo nvel de realidade, do qual no podemos
dar conta com conceitos como reproduo ou glo-
balizao, que tm a ver com outro nvel da reali-
dade. Mas no h como ignorar o fato de que a desi-
gualdade social e o neoliberalismo igualmente
produzem efeitos na sala de aula. Que efeitos, pro-
duzidos de que maneira, atravs de quais mediaes?
De modo inverso, a acumulao de estratgias indi-
viduais produz efeitos coletivos. Quais, como? Es-
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A pesquisa educacional entre conhecimentos, polticas e prticas
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 17
tas so, acredito, questes especficas, para uma dis-
ciplina especfica.
Como fazer, concretamente?
Depois de definidas as particularidades de uma
disciplina educao, resta uma questo: como fazer,
concretamente, para, alm das pesquisas que levam
em considerao essas especificidades, construir uma
disciplina organizada, passvel de ser identificada? A
questo no trivial, e ela tambm permanece aberta.
Na minha opinio, preciso solucionar o problema
dos pontos de partida e da memria. Vou explicar.
Como avanam as cincias duras (fsica, qu-
mica, biologia)? Elas avanam a partir de seus pon-
tos de chegada: quando constroem um objeto novo, elas
o abrem, o questionam para saber do que ele feito.
Quando temos a molcula, vamos abri-la para encon-
trar o tomo, em seguida abrimos este ltimo, etc. Quan-
do temos um gene, o abrimos e trabalhamos o DNA.
Essas cincias trabalham a partir de seu ponto de che-
gada, por isso so consideradas cincias cumulativas.
Mesmo quando esse trabalho sobre os pontos de che-
gada leva redefinio dos pontos de partida, a pers-
pectiva anterior permanece integrada como um caso
particular da nova perspectiva (o universo de Newton
um caso particular do universo de Einstein).
As cincias do homem e da sociedade no avan-
am segundo o mesmo modelo. Elas progridem a par-
tir de seus pontos de partida. Quando h avano nessas
cincias porque foi proposta uma outra forma de co-
mear (e porque se prova que ela produz resultados).
Foi assim que fizeram Durkheim, Freud, Marx, Pavlov,
Braudel, Lvi-Strauss, Bourdieu, Garfinkel, Goffman,
Lacan, Piaget, Vygotsky, enfim, todos os grandes no-
mes das histria das cincias sociais e do homem.
Por isso no h acumulao nessas cincias. Em
compensao, elas tm uma memria. Durkheim no
deixou de ser interessante e de nos ensinar coisas, ain-
da que, hoje em dia, no faa tanto sentido se dizer
um durkheimiano.
Se aceitamos essa anlise, a conseqncia que
uma disciplina educao no surgir como especfica,
para alm de um grande nmero de pesquisas esparsas,
a no ser que ela venha a definir alguns pontos de par-
tida que a especifiquem. Levando em conta as anlises
precedentes, esses pontos de partida devem expressar
o cuidado com o triplo processo ou a tripla articulao
que esbocei anteriormente. Acredito que a noo de
relao com o saber um desses pontos de partida, e
que seu sucesso reside no fato de que ela fornece um
ponto de apoio para trabalhar aquilo que existe de es-
pecfico na educao. Mas h, sem dvida, outros pon-
tos de partida, ainda a serem identificados.
Se concordamos com a anlise sobre o modo como
as cincias humanas e sociais so construdas e vivem,
igualmente necessrio trabalhar a questo da mem-
ria. As cincias da educao na Frana, a pesquisa edu-
cacional no Brasil, carecem de memria. A principal
conseqncia disso que refazemos continuamente as
mesmas teses, as mesmas dissertaes, sem sabermos
o que foi produzido anteriormente. Fazemos uma tese
que j foi feita h dez anos, no mesmo pas ou no exte-
rior, e at mesmo, s vezes, uma tese que foi defendida
uma semana antes, em outra universidade, sem que ti-
vssemos conhecimento disso. Tambm nos esquece-
mos dos debates que aconteceram em dcadas anterio-
res, em proveito dos autores da moda. Nossa
disciplina no tem uma memria suficiente, e isso freia
o progresso da pesquisa em educao. De minha parte,
defendo, h dez anos, a idia de definir uma frente da
pesquisa, que seria tambm uma memria. O que sa-
bemos que foi estabelecido? Sobre o que discutimos
hoje em dia, o que questionamos, e quais as posies
assumidas no debate? Que pesquisas j foram realiza-
das sobre os temas que esto na moda (os objetos so-
ciomiditicos), a partir de quais questes, com que da-
dos, e quais os resultados? Quais foram as dissertaes
de mestrado e as teses de doutorado defendidas nos
ltimos anos, e que resultados foram estabelecidos? Que
pesquisas esto atualmente em andamento, sobre que
temas, onde? Para que progrida a pesquisa em educa-
o no Brasil, para que ela se organize, ganhe visibili-
dade, para que se definam, pouco a pouco, pontos de
partida e pontos de apoio, existe um trabalho a ser
feito. Quando um jovem pesquisador chega a um de-
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Bernard Charlot
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006
partamento de gentica, ele no vai dizer Vou estudar
a reproduo das moscas; e, se o diz, responderemos
a ele que isso foi feito h mais de um sculo, por
Mendel. Mas ocorre com bastante freqncia na Fran-
a, no Brasil e provavelmente em outros pases, um
jovem pesquisador anunciar que vai resolver o proble-
ma do fracasso escolar em seu mestrado
Tornou-se urgente constituir um arquivo coleti-
vo da pesquisa em educao e definir uma ou vrias
frentes da pesquisa. Acredito que, no Brasil, esse
um trabalho que deveria ser assumido pela ANPEd,
talvez em parceria com o CNPq e com outras insti-
tuies. A ANPEd tem hoje 28 anos. uma idade
em que ainda temos a audcia e as ambies da ju-
ventude, aliadas a uma certa maturidade prpria da
idade adulta. , portanto, uma boa idade para lan-
ar-se, de forma racional, em um empreendimento
um tanto ou quanto ousado.
Referncias bibliogrficas
CHARLOT, Bernard. Les sciences de lducation; un enjeu, un
dfi. Paris: ESF Editora, 1995.
BERNARD CHARLOT professor emrito em cincias da
educao da Universidade Paris 8, na Frana, e consultor da Or-
ganizao da Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cul-
tura (UNESCO) no Brasil. Publicou onze livros e organizou ou-
tros cinco. O ltimo, Relao com o saber, formao dos profes-
sores e globalizao: questes para a educao hoje, foi publica-
do diretamente no Brasil, pela editora Artes Mdicas, em 2005.
Realizou recentemente, para o governo de Sergipe, uma pesquisa
intitulada Juventudes sergipanas, financiada pela UNESCO. E-
mail: [email protected]
Recebido em outubro de 2005
Aprovado em dezembro de 2005
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Resumos/Abstracts/Resumens
Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 195
Resumos/Abstracts/Resumens
Bernard Charlot
A pesquisa educacional entreconhecimentos, polticas e prticas:
especificidades e desafios de umarea de saberSer que pode ser definida e construda
uma disciplina especfica, chamada edu-
cao ou cincias da educao? O autor
apresenta trs respostas possveis. Pri-
meira: os departamentos de educao
no passam de um agrupamento admi-
nistrativo de matrias interessadas pela
educao. Segunda: esse prprio agru-
pamento gera uma especificidade das
pesquisas, entre conhecimentos, polti-
cas e prticas. A terceira resposta con-
siste em apostar em uma disciplina es-
pecfica. Nessa ltima perspectiva, so
analisados sete tipos de discursos
atuais sobre educao: espontneo, dos
prticos, dos antipedagogos, da peda-
gogia, das cincias humanas, dos mili-
tantes e das instituies internacionais.
Nesse campo j saturado de discursos,
qual lugar para um discurso cientfico
especfico? Para responder a essa per-
gunta, o autor apresenta algumas pro-
postas tericas e prticas.
Palavras-chave: educao; cincias daeducao; pesquisa em educao
Educational research amid
knowledge, policies and practice:specificity and challenges of an areaof knowledge
Is it possible to define and construct a
specific discipline called education or
science of education? The author
presents three possible replies. First,
departments of education are no more
than mere administrative groupings of
subjects interested in education.
Second, this very grouping generates a
specificity of research amid knowledge,
policy and practice. The third reply
consists of betting on a specific discipli-
ne. In this last perspective, seven types
of current discourse on education are
analysed: spontaneous, practical,
antipedagogic, pedagogic, human
science, militant and of international
institutions. In this field already
saturated with discourses what space is
there for a specific scientific discourse?
In order to respond to this question, the
author presents some theoretical and
practical proposals.
Key-words: education; science of
education; educational research
La pesquisa educacional entreconocimientos, polticas y prcticas:especificaciones y desafos de una
rea del saberSer que puede ser definida y constru-
da una disciplina especfica, llamada
educacin o ciencias de la educacin?
El autor presenta tres respuestas
posibles: Primera: los departamentos
de educacin no pasan de un
agrupamiento administrativo de
materias interesadas por la educacin.
Segunda: ese propio agrupamiento
genera una especificacin de las pes-
quisas, entre conocimientos, polticas y
prcticas. La tercera respuesta consiste
en apostar en un mtodo especfico. En
esta ltima perspectiva, son analizados
siete tipos de discursos actuales sobre
educacin: espontneo, los prcticos,
los antipedaggicos, de pedagoga, de
ciencias humanas, de militantes y de
instituciones internacionales. En este
campo ya saturado de discursos, cul
es el lugar para un discurso cientfico
especfico?. Para responder a esta
pregunta, el autor presenta algunas
propuestas tericas y prcticas.
Palabras claves: educacin; ciencias de
la educacin; pesquisa en educacin
Nelson Pretto e Cludio da Costa Pinto
Tecnologias e novas educaes
O artigo analisa a sociedade contem-
pornea, a partir das transformaes
do mundo cientfico, tecnolgico, cul-
tural, social e educacional, com o obje-
tivo de fazer uma crtica a este. Consi-
dera importante a re-aproximao
entre a cultura e a educao, entendi-
das no plural, e destas com as tecno-
logias da informao e comunicao
(TIC). Aborda os avanos das TIC e
os movimentos de concentrao na
propriedade dos meios de comunica-
o de massa, faz a sua crtica, e apre-
senta as propostas em andamento na
Faculdade de Educao da UFBA para
a formao de professores, conside-