A PESSOA JURÍDICA COMO VÍTIMA DO CRIME DE CALÚNIA TISSERANT... · Ao ver de Sérgio Salomão...

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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ REGINA TISSERANT SIQUEIRA DOS SANTOS A PESSOA JURÍDICA COMO VÍTIMA DO CRIME DE CALÚNIA CURITIBA 2008

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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ

REGINA TISSERANT SIQUEIRA DOS SANTOS

A PESSOA JURÍDICA COMO VÍTIMA DO CRIME DE CALÚNIA

CURITIBA

2008

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REGINA TISSERANT SIQUEIRA DOS SANTOS

A PESSOA JURÍDICA COMO VÍTIMA DO CRIME DE CALÚNIA

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, na área de concentração em Direito Penal, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil - UniBrasil.

Orientador: Prof.Ms.Robertson Fonseca de Azevedo

CURITIBA

2008

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TERMO DE APROVAÇÃO

REGINA TISSERANT SIQUEIRA DOS SANTOS

A PESSOA JURÍDICA COMO VÍTIMA DO CRIME DE CALÚNIA.

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de

Especialista no curso de Pós-Graduação em Ministério Público - Estado

Democrático de Direito, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná -

FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil, examinada pelo

Professor Orientador Ms. Robertson Fonseca de Azevedo.

_____________________________

Prof. Ms. Robertson Fonseca de Azevedo

Orientador

Curitiba, 31/03/2009

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO................................................................................................06 2.HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA..........................................................................................................07 2.1 DIREITO GREGO.............................................................................09 2.2 DIREITO ROMANO...........................................................................11 2.3 DIREITO MEDIEVAL.........................................................................12 2.4 REVOLUÇÃO FRANCESA...............................................................17 2.5 REVOLUÇÃO INDUSTRIAL.............................................................18 2.6 DIREITO PORTUGUÊS....................................................................20 2.7 PAÍSES DA COMMON LAW.............................................................21 2.8 EVOLUÇÃO MUNDIAL.....................................................................23 3. A CRIMINALIDADE MODERNA....................................................................25 4. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO BRASIL..........27 4.1 A ADMISSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA...........................................................................................32 5. DO CRIME DE CALÚNIA..............................................................................39 5.1 O BEM JURÍDICO TUTELADO.........................................................40 5.2 A PESSOA JURÍDICA COMO SUJEITO PASSIVO DO CRIME DE CALÚNIA...........................................................................................................42 6. CONCLUSÃO................................................................................................51 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................52

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RESUMO

O presente trabalho é um estudo a respeito da possibilidade da pessoa

jurídica ser sujeito passivo do crime de calúnia, tendo em vista o advento da Lei

9605/98 que em seu art. 3º prevê a responsabilização penal das pessoas

jurídicas que praticarem infração ambiental cometida por decisão de seu

representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou

benefício da sua entidade. Assim, tendo em vista a possibilidade de imputação

penal de crime à pessoa jurídica as mesmas também podem, através de uma

interpretação lógico-sistemática do direito, sofrer dolosamente falsa imputação

de conduta considerada crime, e diante dessa realidade confirma-se a

necessidade de evolução jurisprudencial criminal nesse sentido.

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1.INTRODUÇÃO

O assunto abordado apresenta-se à disciplina de Direito Penal

demonstrando a tendência da evolução da jurisprudência criminal em relação ao

tema da pessoa jurídica como sujeito passivo em relação ao crime de calúnia, uma

vez que, a pessoa jurídica já se apresenta como sujeito ativo. Com isso, o presente

trabalho objetiva trazer uma contribuição à doutrina, e, quiçá embasar a evolução

jurisprudencial no sentido de se reconhecer a possibilidade da pessoa jurídica ser

vítima do crime de calúnia.

Será realizada uma pesquisa relacionada à interpretação da Constituição

Federal, de leis e da jurisprudência com ênfase na responsabilização penal da

pessoa jurídica primeiramente, e depois é analisada a tendência da atividade

criminosa através da criminalidade moderna e das decisões jurisprudenciais

tomadas a respeito.

É um estudo prático, tendo em vista a realidade da conduta criminosa cada

vez maior, praticada pelas pessoas jurídicas, principalmente na área ambiental à luz

da nova legislação.

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2. HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

A possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica é

debatida há longo tempo por duas correntes que não se confundem: uma pela

possibilidade da responsabilização e outra pela impossibilidade.

Por uma questão de diferença histórica de regimes adotados podemos dizer

que os países que adotaram o sistema romano-germânico levam em conta o

princípio do societas delinquere non potest, o qual entende ser impossível a

punibilidade penal das pessoas jurídicas, podendo apenas aplicar a elas a

responsabilidade civil e administrativa; do outro lado encontram-se os países que

adotaram o sistema do common law, os anglo-saxões, os quais já adotam a

possibilidade de se responsabilizar a pessoa jurídica.

Quase todo o direito legislado da antiguidade tem formas de

responsabilização coletiva. A pena passava da pessoa do condenado atingindo os

vizinhos, a cidade ou toda a comunidade.

Ao ver de Sérgio Salomão SCHECAIRA1:

As tendências coletivistas e individualistas marcam a evolução histórica da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, sendo destacadas as sanções da Idade Antiga à Idade Média, as quais eram impostas às tribos, comunas (pessoas coletivas), cidades, vilas, famílias etc., e a partir da Revolução Francesa, com o pensamento iluminista e o surgimento do liberalismo fortaleceu-se o individualismo, e com essa nova ideologia veio a extinção das sanções às corporações e todas as referências associadas às punições coletivas que pudessem pôr em risco as liberdades individuais.

1 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa jurídica – De acordo

com a Lei 9.605/98. São Paulo: RT, 1998. p. 23.

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Em princípio, por uma preocupação com a coletividade é que surge a

responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tempos antigos, prevalecendo o

individualismo com a Revolução Francesa.

Para CASTRO e SOUZA:

Os princípios individualistas e anti-corporativos do movimento revolucionário fizeram com que a responsabilidade criminal das pessoas coletivas não mais se sustentasse. Porém, como observa SCHECAIRA, com fundamento nos ensinamentos de João Castro e Souza, pode-se dizer que nenhuma dessas razões foi a verdadeira causa de tal mudança, a razão fundamental encontrou-se, antes no fato de ter desaparecido a necessidade de punir as pessoas coletivas, pelo simples motivo de elas terem perdido o poderio que tinham obtido durante a Idade Média. Com efeito, na época do absolutismo, o Estado sentiu a necessidade de aplicar sanções adequadas a essas coletividades que cresciam dentro de si, ameaçando sua soberania2.

O autor Affonso Arinos de Mello FRANCO aponta a existência de pessoas

jurídicas de direito privado desde a Grécia Antiga sendo as mesmas punidas

coletivamente pelos seus delitos penais3.

KIST acrescenta:

Já a partir do século XIX, encontra-se uma preocupação dos doutrinadores quanto aos fundamentos e princípios frente à própria responsabilidade penal da pessoa jurídica. Atualmente, há uma discussão acerca da dogmática do direito penal frente ao problema, sendo que alguns países acabam por aceitar e implantar a responsabilidade penal da pessoa jurídica frente aos que a repudiam com base na própria dogmática do direito penal4.

Assim, os países devem seguir a realidade de sua sociedade, não se

apegando ao passado dogmático do que foi entendimento em dada época histórica

2 CASTRO e SOUZA, João. As pessoas colectivas em face do direito criminal e do

chamado “direito de mera ordenação social”, p.24 apud SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Ob cit., p 23

3 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Gráfica Ypiranga,1930. apud ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa, 1ª ed., 3ª tir, Curitiba: Juruá, 2007. p.33.

4 KIRST, Ataides. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999. p.41-42.

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quando a realidade era outra, ou ainda, quanto a sua herança em relação ao regime

legal adotado (common law ou civil law).

Affonso Arinos entende que o espírito associativo trouxe perspectivas

diferentes de cooperação, além de algumas modalidades diversas de criminalidade

não imaginadas no período mais romântico de ascensão do capitalismo; é essa

criminalidade que ora alguns países pretendem coibir5.

Resta mais uma vez que a realidade se transforma com o passar do tempo,

surgindo fatos novos que devem ser protegidos pelo direito em sua totalidade.

2.1 DIREITO GREGO

Os gregos muito contribuíram para a evolução do Estado e da política.

Não foram grandes juristas, não chegaram a construir uma ciência do

direito, ou uma sistematização às instituições de direito. Mas, foram os grandes

pensadores políticos e filosóficos da antiguidade. Foram os primeiros a elaborar uma

ciência política e na prática instauraram em algumas cidades, regimes políticos que

serviram de modelo a várias civilizações6.

No direito grego, resta marcado o individualismo e o coletivismo:

A história do direito penal grego pode ser dividida em duas fases: uma marcada pelo espírito coletivista, característica dos primeiros tempos; outra cujo traço característico era o individualismo. Apesar da tendência democrática dos governos de suas cidades livres, a história marca uma fase de organização social coletivista. Antes do século VII a. C. não se conhecia a terra como propriedade individual. Essa terra pertencia a um grupo, a uma idéia abstrata, que era o espírito da família encarnado sucessivamente nos seus antepassados, nele e nos seus descendentes. Além disso, nas cidades, havia organizações coletivas (tiasos) que não tinham a conformação de nossos modernos sindicatos, mas se constituíam

5 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Op. cit., p. 12.

6 GILLISSEN, John. Introdução histórica do direito. Fundação Calouste Gulbenkrian, Lisboa, p. 75 apud KIRST, Ataides. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999. p.46.

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em uma forma de agrupamento social e religioso, e não econômico. Ora, essas corporações, existentes na Grécia, e que constituíam, fora de dúvida, pessoas jurídicas de direito privado, eram punidas corporativamente pelos seus delitos7.

Segundo estudos de CROUZET:

Nas cidades, os cidadãos repartiam-se em agrupamentos cada vez mais restritos: a tribo, a fratria e enfim, imediatamente acima da família individual, os genos, isto é, o clã ou a família ampla. Nessa época, não existia justiça criminal do Estado. Assim, uma ofensa a um dos membros do clã atingia o genos em sua totalidade, o que resultava em vinganças coletivas8.

Numa fase posterior, já marcada por um certo individualismo, decorrente da

própria invenção da moeda, o espírito coletivista cede espaço à projeção de

conceitos mais pessoais. A mais significativa evolução, no plano do direito penal,

deu-se em termos de responsabilidade que, no transcurso dos tempos, passa de

coletiva para individual. Mas, no tocante aos crimes de caráter religioso e político,

permaneceram, durante largos períodos, as sanções de caráter coletivo. Os

traidores e tiranos eram mortos e com eles toda a família. Há episódios de mortes

coletivas, de privação coletiva de direitos, de expulsão coletiva de paz, chamadas

pelos gregos de atimia, que acarretava aos criminosos terríveis conseqüências:

qualquer pessoa poderia matar o excluído do convívio social e apoderar-se de seus

bens. O castigo capital coletivo só seria abolido no século V a.C., enquanto que a

atimia sobreviveu até o século IV a.C.9.

7 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. p. 21-22. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão Op cit.,p.

28.

8 CROUZET, Maurice (org). História Geral das Civilizações. Trad. Pedro Moacyr Campos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1955, t.I, v.2º, p. 62. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op cit., p. 28.

9 JIMÉNEZ DE ASSUA, Luis. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1964. t. I, p. 275. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 28-29.

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No direito penal o direito grego manteve-se na tendência do

pensamento da antiguidade, ou seja, com sanções coletivas e individuais10.

2.2 DIREITO ROMANO

O direito romano, mesmo durando 22 séculos, contribuiu menos na área.

De início, o direito romano desconheceu a noção de personalidade coletiva,

que exigia um grau de abstração que repugnava ao caráter positivo e prático do

pensamento jurídico da época11.

A pessoa jurídica surge apenas na fase imperial:

Só como advento da época imperial surge claramente a idéia da personalidade coletiva. Os municipia,collegia e, em geral, todas as universitates, passaram a ser consideradas como titulares dos direitos e obrigações de seus membros. No entanto, tais entidades eram concebidas como pura ficção, um artifício legal a que não correspondia qualquer realidade social ou jurídica12.

Alguns estudiosos da responsabilidade penal da pessoa jurídica, como

MESTRE e VALEUR, negam aquela assertiva, tradicionalmente tida como

dominante, e, baseando-se no texto de ULPIANO sustentam que a ação penal quod

metus causa podia ser dirigida contra uma universitas, e que os colégios de

decuriões podiam ser culpados por fatos dolosos13.

10 KIRST, Ataides. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Editora de

Direito, 1999. p.48.

11 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 29.

12 Idem.

13 MESTRE, Aquiles. Lãs personas morales y su responsabilidad penal. Trad. César

Camargo y Marin. Madrid: Gongora Casa Editorial, s/d, p. 57-8. Robert Valeur. La responsabilité pénale dês personnes morales.Paris: Marcel Giard, 1931. p.9 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p.30.

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Na realidade, as citações de ULPIANO demonstram que a regra da

irresponsabilidade da pessoa jurídica foi mitigada, servindo de embrião para a

evolução que tal instituto veio a conhecer na Idade Média, quer pela ação dos

glosadores e pós-glosadores, quer pela extensão da dominação do direito canônico

que não se restringiu às questões espirituais, influindo também em inúmeros

aspectos temporais daquele período14.

Enfim, Roma, apesar de considerar as pessoas jurídicas uma ficção e da

noção que já tinha “do conceito subjetivo da imputabilidade pessoal, como

fundamento do dolo criminal”, contraditoriamente reconhecia “implicitamente a

possibilidade de delitos praticados por pessoas jurídicas, uma vez que estas eram

punidas com sanções penais”, marcadamente a “supressão de uma associação de

classe15”.

Assim, o direito romano foi muito interessante, apesar de contraditório na

evolução do pensamento quanto à responsabilização da pessoa jurídica, uma vez

que acreditava ser ela uma ficção não tendo uma realidade jurídica e ao mesmo

atribuindo-lhe responsabilidade penal.

2.3 DIREITO MEDIEVAL

O período medieval apresenta a pessoa jurídica como ocupando papel

essencial na sociedade.

14 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 31.

15 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Gráfica Ypiranga, 1930. p. 25-27 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit., p.33.

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A época medieval teria sido a “idade de ouro das comunidades”, que, sob

diversas modalidades representavam núcleos de atividade coletiva que dominaram o

sistema de produção e distribuição da economia medieval16.

Assim, por exemplo, cidades, colégios, monastérios ou corporações de

ofício eram sujeitos criminais ativos reconhecidos pela lei.

Faz-se presente também nessa época o poder da Igreja:

A época medieval reage contra o domínio individualista do direito romano, fundando suas bases nas comunidades, e coletividade. Notadamente, a Igreja governou a idade média, tanto politicamente e sociologicamente quanto juridicamente. Sob a sua influência tutelar, as raças em formação e os Estados que se constituíam, abandonaram a organização jurídica romana para adotarem o direito canônico, como regulador da vida civil e penal dos povos17.

Devido às pessoas jurídicas ocuparem um grande papel, a sociedade foi

evoluindo o pensamento no sentido da possibilidade de punibilidade das mesmas,

como qualquer outra pessoa que cometesse atos contrários ao interesse comum.

FRANCO conclui:

Assim, na Idade Média, as corporações eram grandes forças coletivas, que se fortaleciam ao lado da debilidade progressiva do poder público, e tinham grande influência na atividade coletiva de produção e distribuição da economia medieval. Este período, foi, talvez, o período supremo do domínio das pessoas jurídicas de direito privado, até nossa época, que a esse tempo se vem tanto assemelhando, pela mesma razão, em virtude do predomínio das grandes corporações industriais. Com essa importância na vida social, iniciaram as pessoas jurídicas na idade média, as suas múltiplas atividades, ameaçando constantemente a lei, colocando em foco a questão da capacidade criminal das entidades coletivas, forçando os Estados a se defenderem, por meio de leis repressivas de caráter penal18.

16 ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa. Curitiba: Juruá, 2007.

p.34

17 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Op. cit., p. 31 apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.50.

18 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Op.cit., p. 32 apud KIRST, Ataides. Op. cit.,p.50.

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Os glosadores, que foram os primeiros comentaristas do direito romano na

Idade Média, não observavam os princípios que constituíam as teorias romanísticas

sobre corporação e personalidade, consequentemente, diante da ausência de visão

global do direito romano, acabaram por não compreender o sentido e alcance de

muitos institutos, fazendo uma interpretação mais literal do que propriamente

sistêmica do Corpus Júris Civilis.

Para eles, a universitas não era uma entidade distinta das pessoas que a

compunham, razão pela qual acabaram por identificá-la com a totalidade de seus

membros. Dessa forma, consideraram a vontade e os atos de membros daquelas

associações como atos de vontade destas, e as infrações de seus membros, quando

agiam em seu nome, como infrações das coletividades. Assim, passaram a admitir a

possibilidade de as pessoas coletivas serem sujeitos ativos de infrações criminais19.

Esse entendimento dos glosadores foi muito marcante e o é até hoje em

relação à forma de se punir a pessoa jurídica.

Ao ver de GUIMARÃES:

Os glosadores, conquanto não chegassem a ter uma concepção nítida da pessoa jurídica, inclinavam-se no sentido da responsabilidade penal corporativa, não só pelas tradições romanas, mas principalmente pelos numerosos exemplos de repressão coletiva, que presenciaram no seu tempo e no seu próprio país. Na Itália, sobretudo, diz MESTRE, foi que as penas corporativas foram pronunciadas, inúmeras vezes, contra municípios. Várias cidades foram destruídas, perderam suas fortificações, foram multadas ou privadas dos seus privilégios, no caráter de pena20.

As corporações eram entendidas como a soma e a unidade de membros

titulares de direitos e tais entes podiam delinqüir. Havia crime da corporação,

19 MESTRE, Aquiles. Op. cit. p. 57-58. Robert Valeur. Op. cit., p.9 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p.31.

20 GUIMARÃES, Ruy Carneiro. Sociedades por ações. Rio de Janeiro: Forense, v. 3,

1960. p.335 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit.,p.35.

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quando a totalidade de seus membros iniciava uma ação penalmente relevante por

meio de uma decisão conjunta, sendo necessária uma decisão corporativa21.

Fora dessas hipóteses, a responsabilidade pela ação era atribuída ao

membro da corporação individualmente responsável, segundo os princípios da

imputação individual22.

Assim, a universitas era responsável por suas ações civil e penalmente.

Já para os canonistas, que seguiam o entendimento da Igreja, os direitos

não pertenciam à totalidade de seus fiéis, mas a Deus. Os titulares dos direitos

eclesiásticos não eram membros da comunidade religiosa, mas Deus, na figura de

seu representante terrestre. Aparece pela primeira vez então a diferenciação do

conceito jurídico de pessoa e o conceito real da pessoa como ser humano, a pessoa

natural.

Para Trajano de Miranda VALVERDE, também a maioria dos canonistas

sustentava que universitas et ecclesia delinquere possunt, ou seja, a pessoa jurídica

podia delinqüir. Precisa, esse ilustre autor as condições em que se poderia imputar

um ato delituoso à corporação:

Quando deliberado e executado na forma corporativa, isto é, segundo as regras prescritas nos estatutos para a elaboração regular da vontade corporativa e sua normal execução. Seria preciso que se houvesse tocado a campainha e reunido o conselho(pulsata campana et congregato consilio). Na assembléia, que delibera, na forma corporativa, os indivíduos desaparecem23.

E ainda, quanto às sanções:

21 BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal: parte especial.7.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 6.

22 Idem.

23

VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 146-147 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op.cit., p.35.

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As penas infligidas às corporações devem ser estritamente corporativas, isto é, não devem alcançar senão a elas, ressalvadas, entretanto, as penas individuais contra os membros que desempenharem o papel de instigadores do delito ou facilitarem à universitas os meios para �omete-lo24.

O direito canônico medieval admitiu amplamente a responsabilidade penal

das corporações e dos entes coletivos (conventos, claustros, congregações,

cidades, comunas etc.). Esses entes poderiam cometer crimes e ser punidos

conforme a prática dominante no período medieval, em grande parte por influência

do direito germânico25.

Sendo a partir de então a pessoa jurídica considerada uma pessoa ficta,

cujo entendimento chega até nossos dias.

A utilização do termo pessoa jurídica vem do século passado, em

substituição a outras expressões como pessoa moral e pessoa mística, sendo a

mesma empregada por Savigny que lhe deu confiabilidade, e sendo, então adotada

pelo nosso Código Civil de 191626.

Os chamados pós-glosadores admitiram a possibilidade da pessoa jurídica

praticar crimes. Fora sustentada a capacidade delitiva da universitas como uma fictio

iuris.

Pelos delicta própria responderia a corporação, e pelos delicta impropia

responderiam as pessoas físicas27.

24 Idem.

25 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 32.

26 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 4.ed., São Paulo: RT, 1974. p.284 apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.51.

27 BITENCOURT, César Roberto. Op. cit. p.7.

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É igualmente exigida a forma corporativa, para que o ato da maioria é

considerado como ato da universitas.Ela deve não só reparar o dano causado pelo

delito, como também sofrer as penas ou castigos, que lhe puderem ser aplicadas. A

pena capital é possível28.

Assim, conclui-se que na Idade Média a responsabilidade das corporações

aparece como uma necessidade exclusivamente prática da vida social e

eclesiástica.

2.4 REVOLUÇÃO FRANCESA

Com a Revolução Francesa houve a influência das idéias políticas e

jurídicas dos pensadores dos séculos XVII e XVIII. Os sistemas jurídicos existentes

sofreram decisivas transformações, sendo concretizadas novas idéias nos textos

das constituições quando das revoluções americana (1776) e francesa (1789)29.

Foi a Revolução Francesa com seu individualismo, que é o isolamento do

homem diante do mistério do Universo30, que fazendo da extinção das corporações

(e mais genericamente de qualquer organismo intermediário entre o indivíduo e o

Estado) uma das bases da Constituição francesa, desconheceu-lhes qualquer

capacidade criminal31.

A mulher passou a atuar de forma significativa na sociedade. Exploração e

limitação de direitos marcaram essa participação feminina e aos poucos foram

28 VALVERDE, Trajano de Miranda. Op.cit., p. 146-147 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op.cit., p.35.

29 KIRST, Ataides. Op. cit., p.52.

30 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Op. cit., p.39 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op.cit., p.36.

31 ROTHENBURG, Walter Claudius. Op.cit., p.36.

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surgindo movimentos pela melhoria das condições de vida e trabalho, a participação

política, o acesso à instrução e a igualdade de direitos entre os sexos32.

Através de BECCARIA33 houve a valorização do ser humano frente a sua

individualidade e a responsabilidade de seus atos, havendo uma mudança nos

princípios do direito penal através de sua obra “Dos delitos e das penas”.

Conclui-se que com a Revolução Francesa (o pensamento iluminista

propriamente dito), em 1789, fez com que a responsabilidade passasse a ser

individual. A ascensão da responsabilidade individual, em detrimento da coletiva,

deveu-se ao fato de que as pessoas jurídicas perderam a importância e o poder

político que detinham durante a Idade Média, o que tornou desnecessária sua

responsabilização criminal.

2.5 REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Na Revolução Industrial houve uma mudança radical do pensamento

anteriormente estabelecido:

Com a Revolução Industrial, as empresas tomaram um caminho vertiginoso. O potencial ofensivo desses entes morais foram contidos por outros ramos do direito, ad exemplum, na esfera civil e administrativa. Por essa razão, muitos países passaram a reconhecer a responsabilidade penal (societas delinquere potest) desses entes morais, passando a considerar a pessoa jurídica centro da imputação penal34.

32 NAZARETH, Fatima. 8 de março – Dia Internacional da mulher. Disponível em:< http://74.125.47.132/search?q=cache:8gf_oXxT3qUJ:www.universodamulher.com.br/index.php%3Fmod%3Dmat%26id_materia%3D3390+a+mulher+na+revolu%C3%A7%C3%A3o+francesa&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=3&gl=br > Acesso em 03/03/09.

33 BECCARIA, César. Dos delitos e das penas, p. 9-11.

34 AMORIM , Tathiana de Melo Lessa. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/33525/2> Publicado em: 20/05/08 Acesso em 03/03/09.

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19

Assim, nessa fase, a pessoa jurídica torna-se alvo da responsabilização

penal devido a sua grande participação na sociedade.

A Revolução Industrial teve marcante presença dos Estados Unidos que

tornaram-se a maior potência industrial do mundo, tendo assistido à uma expansão

meteórica da industrialização e da escala de produção. A grande quantidade de

terras disponíveis, a diversidade climática do país e a diversidade econômica

americana, bem como ampla presença de canais navegáveis, rios e lagos, bem

como mares e oceanos, bem como a abundância de recursos naturais que levaram

à extração barata de energia, mais a grande presença de recursos econômicos,

todos foram fatores que alimentaram esta Segunda Revolução Industrial, também

conhecida como Revolução Industrial Americana35.

A Revolução tornou os métodos de produção mais eficientes. Os produtos

passaram a ser produzidos mais rapidamente, barateando o preço e estimulando o

consumo. Por outro lado, aumentou também o número de desempregados. As

máquinas foram substituindo, aos poucos, a mão-de-obra humana. A poluição

ambiental, o aumento da poluição sonora, o êxodo rural e o crescimento

desordenado das cidades também foram conseqüências nocivas para a sociedade.

Até os dias de hoje, o desemprego é um dos grandes problemas nos países em

desenvolvimento. Gerar empregos tem se tornado um dos maiores desafios de

governos no mundo todo. Os empregos repetitivos e pouco qualificados foram

substituídos por máquinas e robôs. As empresas procuram profissionais bem

qualificados para ocuparem empregos que exigem cada vez mais criatividade e

múltiplas capacidades. Mesmo nos países desenvolvidos tem faltado empregos para

a população36.

Nessa perspectiva surge a inevitável responsabilização das corporações

pelos danos que suas atividades causam principalmente ao meio ambiente.

35 WIKIPÉDIA, História dos Estados Unidos da América (1865 – 1918). Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos_da_Am%C3%A9rica_(1865-1918), acesso em 23/03/09.

36 Revolução Industrial. Disponível em <http://www.suapesquisa.com/industrial/> , acesso em 23/03/09

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A primeira decisão da Suprema Corte norte-americana no sentido de

responsabilizar uma corporação foi relacionada às minas de carvão em 1906.

2.6 DIREITO PORTUGUÊS

VALVERDE cita o direito lusitano em que a responsabilidade criminal da

pessoa jurídica vem referida por Melo FREIRE (1789) que arrola inclusive o crime de

rebelião - PEREIRA e SOUZA (1803) – especificando que:

Os colégios, como pessoa moral, podem delinqüir, mas somente quando se verifica a aprovação de todos os membros. Os votos da maior parte não têm o efeito de se reputarem os de todo o colégio nos crimes e só podem então ser punidos os membros que votaram37.

Logo, havia uma responsabilização penal, mas diferenciada em relação aos

votantes, se fosse uma decisão unânime havia a responsabilização da pessoa

jurídica, chamada de colégio, já se não fosse unânime, haveria a responsabilização

só daqueles que detinham poder de voto.

Não se tem notícias efetivas de uma lei regulamentadora da

responsabilidade penal das pessoas jurídicas, mas era corrente a aplicação de

sanções a elas, como o era aos indivíduos. Todos esses autores estavam sujeitos

ao largo arbítrio do juiz, a quem cabia aplicar a pena ou mesmo deixar de aplicá-la38.

SHECAIRA conclui que o século XIX em Portugal é definitivamente marcado

pela eliminação da idéia de incriminação das pessoas jurídicas. Trata-se do apogeu

37 VALVERDE, Trajano de Miranda. Op.cit., p. 148 apud ROTHENBURG, Walter Claudius.

Op. cit., p.36.

38 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p.36.

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das idéias individualistas do liberalismo, que inviabiliza qualquer punição que não

seja estritamente pessoal39.

2.7 PAÍSES DA COMMON LAW

Nos países da commom law vigora o princípio da societas delinquere potest,

ou seja, a capacidade da pessoa jurídica ser responsabilizada penalmente pelos

seus atos. Segundo PRADO, a idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica

remonta ao século XIX, sendo essa uma criação jurisprudencial. A partir de 1940

alcançou todos os demais crimes de qualquer natureza40.

Vejamos alguns exemplos ocorridos nos países que adotam esse sistema:

No caso da Inglaterra, a partir da Revolução Industrial e do crescente

número de crimes cometidos através das grandes empresas, começa aplicar-se

sanções coletivas. Fator determinante foi que, através do Sumary Jurisdiction Act de

1879, superou-se a exigência pessoal do acusado para se fazer representar em

Juízo. Ademais, fez-se necessário impor uma regulamentação à atividade societária,

no aspecto penalístico, para coibir, pragmaticamente, algumas atividades ilícitas das

corporações41.

Na Grã Bretanha (Interpretation Act de 1889) a pessoa moral pode ser

responsabilizada por toda infração penal que sua natureza lhe permita praticar. Isto

ocorre, especialmente no campo dos delitos referentes a suas atividades

econômicas, segurança no trabalho, contaminação atmosférica e proteção ao

consumidor.

39 Idem.

40 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002, p. 228. apud AMORIM , Tathiana de Melo Lessa. Op.cit.

41 LEIGH, Leonard H., The criminal liability of corporations. La responsabilità penale delle persone giuridiche in diritto comunitário, p. 377 apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.129.

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Aníbal BRUNO comenta:

Na Inglaterra, a jurisprudência, apoiada mais ainda pelo Interpretation Act, de 1889, faz a expressão pessoa compreender também, mesmo em matéria penal, as pessoas jurídicas. Nos Estados Unidos, essa extensão é maior ainda, porque mesmo fatos que resultam de uma atividade pessoal, como o homicídio, podem ser penalmente imputados a corporações42.

Nos Estados Unidos o princípio da responsabilidade criminal das pessoas

jurídicas, por ele denominadas corporações, é mais difundido que na Inglaterra.

O sistema norte americano admite a responsabilidade do ente jurídico

desde 1882, quando da promulgação do Código Penal de Nova York.

Ao ver de Régis PRADO:

Nessas condições, as infrações culposas no direito norte americano são imputadas às empresas quando cometidas por um empregado no exercício de suas funções, mesmo que a empresa não tenha obtido proveito com o fato delituoso. Ademais, a corporação também será responsabilizada quando o fato criminoso for cometido a título de dolo, se praticado por um executivo de nível médio43.

Ao ver de Alessandro TRAVERSI:

A responsabilidade da pessoa jurídica, no direito norte-americano, vem geralmente acolhida sem nenhum específico apego a premissas dogmáticas ou teóricas, mas, com muito pragmatismo, simplesmente por força do critério da responsabilidade orgânica pelo qual, o ato ilícito realizado pelo administrador operando no âmbito de suas funções em nome da sociedade, torna esta última sujeita a sanções de natureza penal, que certamente são o “fines”, o confisco, ou ainda, a dissolução da sociedade44.

42 BRUNO, Aníbal. Direito Penal, p.561 apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.130.

43 PRADO, Régis. Direito Penal Ambiental. p. 82-83 apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.131.

44 TRAVERSI, Alessandro. Responsabilita Penali Di Imprensa, Padova, Cedam, 1983. p.151. apud KIRST, Ataides. Op. cit., p.131.

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Logo, a responsabilização penal da pessoa jurídica nos países que adotam

a common law é realizada de forma objetiva e prática.

2.8 EVOLUÇÃO MUNDIAL

O modelo liberal capitalista decorrente da Revolução Industrial trouxe em

seu bojo a necessidade da responsabilização das empresas, uma vez que sua

atividade na sociedade pode gerar danos em vários aspectos, por exemplo, quanto

ao direito ambiental, direito do consumidor, etc.

Com a conscientização trabalhista, o crescimento da criminalidade

econômica, a preocupação com a defesa do consumidor e com a tutela do ambiente,

a pessoa jurídica voltou a ocupar um lugar de destaque entre os criminosos45.

Decisões jurisdicionais de diversos lugares do mundo onde a

responsabilização da pessoa jurídica foi aceita com maior facilidade, principalmente

na França, acompanhadas pelas respectivas legislações, voltam-se à incriminação

de condutas imputáveis a entes coletivos. E já não é mais apenas a legislação

extravagante: a responsabilização criminal faz-se em nível de Códigos e até

Constituições46.

Ultrapassando os limites dos Estados, essa consagração da pessoa jurídica

como sujeito ativo de delitos alcança organismos internacionais – como a

Comunidade Européia, cujo Conselho, pela Resolução 77(28), considera necessário

o Direito Penal para a proteção do meio ambiente, acenando inclusive com a

responsabilidade das pessoas jurídicas47 e mundiais, como a Organização das

Nações Unidas.

45 ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit., p.37.

46 Idem.

47 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense,1991, p.393 apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit., p.37.

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Os países que adotam o instituto da responsabilização penal da pessoa

jurídica são: Estados Unidos, Holanda, Dinamarca, Áustria, Japão, China e Brasil.

Os países que não o adotam são: Alemanha, Suíça, Itália, Bélgica e Espanha.

Dos países que adotam a responsabilidade penal da pessoa jurídica,

podemos citar algumas legislações que foram de grande valia para adoção de tal

instituto, acrescidas pela pesquisa de Tatiana de Melo Lessa AMORIM:

A Noruega, pela Lei 13.3.81, emendada pela Lei 15.4.83 (artigo 80); Portugal, pelo Dec. lei 28, de 20.1.84; adotando a responsabilidade criminal das pessoas coletivas, sociedades e associações de fato; Canadá, baseado na decisão “Rainha contra Bata Industries Ltda.”, processo relativo a uma infração de poluição de água, desde que o administrador suspeite da insuficiência das medidas de prevenção de uma atividade poluente e que ele tenha conhecimento de um problema ambiental, deve ele agir prontamente, pois não pode alegar as ações de seus subordinados a título de defesa; Venezuela, adotou na lei ambiental de 1992, em seu artigo 3°. Podendo ser determinada a publicação da sentença às custas do condenado, e a obrigação de destruir, neutralizar ou tratar as substâncias, materiais, instrumentos ou objetos fabricados, importados ou oferecidos à venda e suscetíveis de ocasionar danos ao meio ambiente ou à saúde das pessoas, como também a proibição de contratar com a Administração por um período de 3 anos; França, que adotou em 1992 a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, que são chamadas de pessoas morais. Não se excluiu a responsabilidade da pessoa física de quem partiu a decisão (le decideur). Todas as pessoas jurídicas são objeto do novo Código Penal Francês. O legislador abrangeu os sindicatos e associações, porém duas exceções foram previstas, sendo que o Estado e as coletividades territoriais. No meio ambiente a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi acolhida nos casos de abandono de veículo na via pública, poluição atmosférica, delitos sobre a eliminação de rejeitos e sobre a água. Ressalta-se que há duas condições nesse país para a ocorrência da responsabilidade: a primeira condiz que a infração deve ser cometida por um órgão ou representante da pessoa jurídica e, a segunda é de que a infração deve ser cometida pour le compte da pessoa jurídica, agindo por conta da pessoa jurídica o agente que atua para o lucro dessa pessoa, no seu interesse, seja para obter um benefício material ou moral, atual ou eventual, direto ou indireto. O fundamento da responsabilidade dos grupos é a realidade da existência, sob todos os aspectos, da pessoa moral, modo de expressão de um verdadeiro querer coletivo, capaz de interdição, de ação, portanto de culpa48.

Assim, existe uma legislação sólida a respeito da responsabilidade penal

das pessoas jurídicas com uma constante evolução do instituto, sendo uma

realidade mundial, notando-se que independente do sistema do país, o instituto tem

sido adotado.

48

AMORIM , Tathiana de Melo Lessa. Op.cit.

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3. A CRIMINALIDADE MODERNA

Com a evolução da atuação das empresas na vida em sociedade houve a

dificuldade de punição eficaz das mesmas, surgindo a chamada criminalidade

moderna, na qual as pessoas jurídicas começam a exercer importante papel.

Essa criminalidade tem uma dinâmica estrutural e uma capacidade de

produção de efeitos incomensuráveis, que o Direito Penal clássico não consegue

atingir, diante da dificuldade de definir bens jurídicos, de individualizar culpabilidade

e pena, de apurar a responsabilidade individual ou mesmo de admitir a presunção

de inocência e o in dúbio pro reo49.

Conforme o entendimento de HASSEMER:

O princípio da subsidiariedade ou a ultima ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais frequentemente como a primeira, senão a única saída para controlar os problemas50.

Nessa criminalidade moderna é preciso se orientar pelo perigo ao invés do

dano, devendo o Direito se organizar preventivamente, uma vez que a repressão

vem tarde demais.

A delinqüência econômica tem destaque especial quando relacionada aos

crimes praticados por meio das pessoas jurídicas. Nesse tipo de criminalidade, as

instituições, as organizações empresariais não agem individualmente, mas em

grupo, realizando a exemplar divisão de trabalho51 de que fala JESCHECK.

49 BITENCOURT, César Roberto. Op.cit., p. 15.

50 HASSEMER, Winfried.Três temas de Direito Penal. Porto Alegre, Escola Superior do Ministério Público, 1993. p.48 apud BITENCOURT, César Roberto. Op. cit., p.15.

51 JESCHECK. Tratado de Derecho Penal,p.937; Hans Welzel, Derecho Penal alemán,

Santiago, Editorial Jurídica de Chile, 1987, p. 155 apud BITENCOURT, César Roberto. Op.cit., p. 15.

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Normalmente, as decisões são tomadas por diretoria, de regra por maioria. Assim, a

decisão criminosa não é individual, como ocorre na criminalidade de massa, mas

coletiva, embora, por razões estatutárias, haja adesão da maioria vencida. E mais,

punindo um ou outro membro da organização, esta continuará sua atividade, lícita

ou ilícita, por intermédio dos demais52.

Ao ver de ROTHENBURG, uma consulta perfunctória dos repositórios

sugere que, como de hábito, a jurisprudência brasileira é retraída e prefere acantoar-

se no que já é pacífico e tradicional, a enfrentar o “novo”, pouco ortodoxo ou

polêmico53.

Sendo reconhecido o combate à criminalidade moderna, HASSEMER

sugere a criação de um novo Direito, ao qual denomina Direito de Intervenção, que

seria um meio-termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que não aplique

as pesadas sanções de Direito Penal, especialmente a pena privativa de liberdade,

mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do

Direito Penal tradicional54.

E explica:

Há muitas razões para se supor que os problemas modernos de nossa sociedade causarão o surgimento e desenvolvimento de um Direito interventivo correspondentemente moderno na zona transfronteiriça entre o Direito administrativo, o Direito Penal e a responsabilidade civil pelos atos ilícitos. Certamente terá em conta as leis do mercado e as possibilidades de um sutil controle estatal, sem problemas de imputação, sem pressupostos de culpabilidade, sem um processo meticuloso, mas então, também, sem a imposição de penas criminais55.

52 BITENCOURT, César Roberto. Op. cit., p. 16.

53 ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit., p.134.

54 HASSEMER, Winfried. Op.cit., p.59 e 95 apud BITENCOURT, César Roberto. Op. cit.,

p.16.

55 HASSEMER, Winfried. Op.cit., p.59 e 95 apud BITENCOURT, César Roberto. Op. cit., p.15.

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Esse entendimento reduz praticamente todos os delitos ao cumprimento de

penas pecuniárias, o que para as empresas não seria algo de todo ruim. Afinal, o

próprio direito penal aplicado à pessoa física tem sido pouco satisfatório em nosso

ordenamento jurídico, gerando de todo uma revolta social em que podemos citar o

pensamento: “se o direito não atende as necessidades da sociedade ela se volta

contra o direito” e é o que vemos na atualidade.

É necessária uma conscientização em relação à função ético-social do

direito penal e seu objetivo fundamental, o bem estar social.

Assim, as empresas como entes que realmente praticam delitos, uma vez

tipificados pela lei ambiental, devem sofrer as respectivas sanções.

Uma proposta de mudança para que a punição das empresas seja

realmente eficaz é o cancelamento de benefícios tributários, a ampliação de projetos

sociais, além das multas administrativas, sendo que tais procedimentos têm,

inclusive, efeito psicológico de prevenção, uma vez que se faz necessária a

credibilidade no sistema para que haja um resultado eficiente.

4. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO BRASIL

A Constituição de 1988 inovou sobre o tema que nunca antes foi verificado

nas outras Constituições, não havendo dúvida no sentido de que a Constituição

estabeleceu a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

O tratamento constitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica

sofreu grande mudança no sistema tradicional do Direito Penal. Conforme art. 173,

§5º:

A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a a punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra ordem econômica e financeira e contra economia popular.

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E, ainda, no art.225, §3º houve a possibilidade da responsabilização da

pessoa jurídica por danos ambientais estabelecendo que as condutas e atividades

consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou

jurídica, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de

reparar os danos causados.

As resistências têm fundamento na tradição de nosso ordenamento jurídico-

penal. O Direito Brasileiro tem suas raízes no Direito Romano-Germânico, sempre

seguidor da máxima "societas delinquere non potest". A figura da pessoa jurídica

criminosa, portanto, é instituto alienígena, inspirado no Direito dos países da

"Common Law", de colonização britânica56.

Isso explica, em parte, a rejeição e o temor que a responsabilização criminal

da pessoa jurídica infunde a um grupo considerável de juristas nacionais.

Como exemplo de doutrinadores refratários à radical mudança que a

responsabilização criminal da pessoa jurídica viria a introduzir no Direito Penal,

podemos citar René Ariel DOTTI e Luiz Vicente CERNICCHIARO e Luiz Regis

PRADO.

Há, por outro lado, não menos respeitáveis juristas que entendem que o

instituto da pessoa jurídica criminosa acha-se perfeitamente incorporado ao nosso

Direito, dentre eles, podemos citar José Afonso da SILVA, Paulo José da COSTA

JÚNIOR, Ivette Senise FERREIRA, Edis MILARÉ e Sérgio Salomão SHCECAIRA.

Este último autor, partindo de uma análise sistemática dos dispositivos

constitucionais atinentes às garantias fundamentais e dos artigos 173, parágrafo 5º,

e 225, parágrafo 3º, da Lex Legum, conclui que está clara, na Carta Magna, a

vontade do constituinte de "excepcionar a regra geral da responsabilidade penal das

56 DAWALIBI, Marcelo. Dawalibi analisa a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Disponível em: < www.conjur.com.br> Publicado em:12/01/02. Acesso em 03/03/09.

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pessoas físicas e consagrar a imputabilidade da empresa, no âmbito de lesões ao

meio ambiente e nos crimes contra o sistema financeiro57".

José Afonso da SILVA entende que ambos os artigos invocados no início do

capítulo têm entre si uma articulação orgânica, devem ser interpretados dentro de

um mesmo contexto:

Cabe invocar, aqui, a tal propósito, o disposto no art. 173,§5º, que prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, independente da responsabilidade de seus dirigentes, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica, que tem como um de seus princípios a defesa do meio ambiente58.

Celso Ribeiro BASTOS e Ives Gandra MARTINS asseguram que “a atual

Constituição rompeu com um dos princípios que vigorava plenamente no nosso

sistema jurídico, o de que a pessoa jurídica, a sociedade, enfim, não é passível de

responsabilização penal59”.

E o fez, segundo esses autores, em mais de um passo, ao encampar a

punibilidade criminal das pessoas morais. Não obstante discordarem da postura do

legislador maior, não deixam de reconhecer que a vontade do texto Constitucional é

incontroversa.

Édis MILARÉ afirma que a Constituição deu importante passo ao superar o

caráter pessoal da responsabilidade penal, de forma a alcançar também a pessoa

jurídica como sujeito ativo do crime ecológico (art.225, §3º CF). Esse alargar de

responsabilidade, em seu entender, também atinge a pessoa jurídica, quando esta

57 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 40.

58 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo:

Malheiros, 1994. p.718 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p.115.

59 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra.Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990. p.103-104. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p.115.

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venha a praticar atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia

popular60.

Paulo José da COSTA JR., em mais de uma oportunidade, mostrou-se

defensor da responsabilidade penal da pessoa coletiva. Em seu livro Direito Penal

na Constituição, escrito em co-autoria com Luiz Vicente CERNICCHIARO, embora

critique a redação do dispositivo constitucional, afirma ter restado claro que as

condutas lesivas ao meio ambiente podem sujeitar os seus infratores, pessoas

físicas ou jurídicas, a sanções penais61.

O autor Walter Claudius ROTHEMBURG critica:

É certo que a maioria dos casos envolvendo violação de ordem criminal resolve-se na responsabilização de indivíduos. E não é uma mera dificuldade de investigação (determinação do autor individual) que vai conduzir, por si só, à responsabilização dos entes coletivos. Ocorre que essa necessidade de localização de um ou vários autores individuais pode ser uma manifestação de obstinação: pode não existir esse indivíduo culpado em si mesmo considerado. Como pode, também, eventualmente, ser útil uma responsabilização da pessoa jurídica por dificuldade/impossibilidade de identificação individualizada do autor. Para essas hipóteses menos freqüentes, mas nem por tanto desprezíveis é feito esse trabalho. Todavia, que a tese da sujeição criminal ativa da pessoa jurídica não sirva de artifício para ocultar ou proteger indivíduos que são, muita vez, os verdadeiros criminosos. O fenômeno criminal pode não se esgotar na participação do ser humano como ator exclusivo ou protagonista. Não seria então menos injusto o inverso: que indivíduos supostamente delinquentes barrassem a responsabilização dos entes coletivos, quando ela se mostrasse oportuna62.

SHECAIRA acrescenta:

Ademais, estabeleceu a nova lei ambiental que três podem ser as modalidades de penas: multa; restritiva de direitos; e prestações de serviço à comunidade. No que concerne às duas últimas modalidades de penas, estabeleceu o legislador inúmeras alternativas, como

60 MILARÉ, Edis. Processo coletivo ambiental São Paulo: RT, 1993. p.270 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op.cit., p.116.

61 CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA Jr., Paulo José da. Direito Penal na

Constituição. 3.ed. São Paulo: RT, 1995. p.262. apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit.,. p.117.

62 ROTHENBURG, Walter Claudius. Op. cit., p.241.

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a suspensão das atividades da empresa; interdição temporária do estabelecimento, obra ou atividade; proibição de contratar com o poder público; custeio de programas e projetos ambientais; manutenção de espaços públicos; execução de obras de recuperação de áreas degradadas etc.63.

Conforme art. 3º da Lei 9605/98, as pessoas jurídicas responderão

administrativa, civil e penalmente, quando a infração for cometida por decisão de

seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou

benefício da sua entidade.

Considerando as diferenças existentes entre a pessoa física e jurídica, a Lei

9605/98 estabeleceu penas diferenciadas para cada espécie de personalidade. As

pessoas físicas estarão adstritas às penas privativas de liberdade, restritiva de

direito ou multa; enquanto as pessoas jurídicas poderão ser sancionadas através de

penas restritivas de direito, prestação de serviços à comunidade e multa64.

A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada, sempre que a sua

personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados à manutenção

da sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações65.

Importa notar que ficou ainda mais evidente a opção político criminal de

utilizar o direito penal contra as pessoas jurídicas. Não suscitando margem a

dúvidas quanto à responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Há doutrina no sentido de se relacionar a responsabilidade penal somente à

pessoa física e a responsabilização da pessoa jurídica somente na esfera

administrativa fazendo uma tentativa de interpretação do §3º do art. 225 da CF,

porém tal hipótese resta absurda diante tanto da literalidade do art. 3º da Lei

9605/98, como de uma interpretação lógico sistemática do ordenamento.

63 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 41.

64 LIBERATO, Ana Paula Goulart. Resumo de direito ambiental para concursos. Curitiba: Juruá, 2007. p 105

65 Idem.

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Ao ver de Gabriela Rivoli COSTA:

Nessa perspectiva haveria uma dicotomia quanto às conseqüências para as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, vinculando-as, respectivamente, ao Direito Penal e Administrativo. Tal conclusão, porém, é manifestamente equivocada. Tanto uma interpretação literal, como uma interpretação lógico-sistemática ou teleológica que o constituinte permitiu a responsabilidade da pessoa jurídica66.

E conclui:

Não resta outra maneira senão de construir novo edifício dogmático, possibilitando um procedimento adequado para, paralelamente ao que define os limites da responsabilidade individual, reprimir as atividades desenvolvidas por pessoas jurídicas em prejuízo de bens e interesses juridicamente tutelados. A construção do sistema dogmático, nas palavras de Fernando A.N. G. da Rocha, requer, para a responsabilização da pessoa jurídica, um desafio árduo que se apresenta aos operadores do direito, mais ainda ao legislador e não se pode fugir dele67.

Logo, constata-se que a responsabilização penal da pessoa jurídica é uma

realidade na Constituição de 1988, tenha ela as diversas formas que tiver para uma

efetiva responsabilização por seus atos danosos a sociedade.

4.1 A ADMISSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA

JURÍDICA

A admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica vem

exposta em dois capítulos da Constituição Federal: “Dos princípios gerais da

atividade econômica” e “Do meio ambiente”, porém tais normas não são auto-

66 COSTA,Gabriela Rivoli. Responsabilidade penal da pessoa jurídica – livro: Antônio Herman Benjamin, Eladio Lecey e Sílvi Cappelli (coordenadores) Volume 2 - teses de estudantes pós graduação. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007 meio ambiente e acesso a justiça – environment and acess to justice. Flora, reserva legal e APP ) p.281

67 Idem, p. 282

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aplicáveis, uma vez que apenas houve regulamentação para atividades lesivas ao

meio ambiente, havendo tipificação legal para tais condutas que em sua maioria são

praticadas por empresários acobertadas pelo poder econômico e pelo anonimato

proporcionado pelas suas empresas.

Logo, constata-se a necessidade de da utilização do Direito Penal para

punição de tais condutas das pessoas jurídicas.

Em síntese, esta corrente sustenta que o princípio societas delinquere non

potest não é um princípio absoluto e que, no direito moderno, deve ser analisada a

responsabilidade social, e quanto ao princípio da culpabilidade, este deve ser

revisto.

Ao ver de SHECAIRA os argumentos para a inadmissibilidade da

responsabilização penal podem ser analisados iniciando-se pelo princípio da

personalidade:

Ora, os principais opositores da responsabilidade penal coletiva afirmam que esta deve ter natureza civil ou administrativa. Esses mesmos autores também afirmam que as penas às empresas ferem o princípio da personalidade. No entanto, dependendo da multa civil ou administrativa, no plano puramente do valor pecuniário, ela atingiria os sócios minoritários ou mesmo aqueles que não participaram da decisão tanto quanto a pena resultante de processo criminal aplicada à empresa. Assim, em suposta defesa aos sócios inocentes – ao proporem respostas não penais – esses autores ignoram que, da mesma forma atingir-se-á o patrimônio daquele que não contribuiu para a tomada de decisão ilícita68.

Quanto ao argumento de que a pessoa jurídica é incapaz de

arrependimento não podendo ser reeducada pela pena que lhe for aplicada:

Já se verificou que um dos principais objetivos atribuídos modernamente à pena é exatamente o de reprovar a conduta em conflito, a fim de validar o conceito de bem jurídico

68 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 90.

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para a maioria do grupo social69. Disso decorre que a imposição da pena deve ter como objetivo precípuo sua relevância pública e não objetivos morais. Dessa forma, pensar em impor objetivos morais a uma empresa, mais do que um contra senso, é tentar reavivar algo que mesmo relativamente às pessoas físicas já não deve ser aplicado70.

Em outras palavras, a prevenção geral é maior quando a empresa é punida,

em face da divulgação que a notícia do crime pode ter na própria mídia; a prevenção

especial (no que concerne ao autor individual) é praticamente inexistente, posto que

o agente não só não sofre a reprovação, que é ínsita à pena, mas ainda é

recompensado pelas vantagens que obtém. Já a empresa, com penas efetivas

contra ela, pode deixar de obter o lucro que visava com o cometimento do crime e

ainda sofrer algum prejuízo71.

A questão não se baseia em reeducação, mas numa política preventiva que

envolve os objetivos sociais da empresa, onde ela sofreria com o prejuízo de seus

atos criminosos.

Quanto ao último e principal argumento contrário à responsabilização penal

da pessoa jurídica, o qual não há responsabilidade sem culpa e esta pressupõe

vontade própria que só se encontra na pessoa física, SHECAIRA afirma que o

comportamento criminoso, enquanto violador de regras sociais de conduta, é uma

ameaça para a convivência social e, por isso, deve enfrentar reações de defesa

(através das penas). O mesmo pode ser feito com as pessoas jurídicas72.

É nesse contexto que entende-se que a empresa tem uma vontade, uma

vontade pragmática, que desloca a discussão do problema da vontade individual

para o plano metafísico.

MERLE e VITU acrescentam:

69 CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994. p. 137 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op.cit., p.92.

70 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 92.

71 Ibidem, p. 93.

72 Ibidem, p.94.

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A vontade coletiva que a anima não é um mito e caracteriza-se, em cada etapa importante da sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembléia geral dos seus membros ou dos seus Conselhos de Administração, de Gerência ou de Direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual73.

Existe uma notável tendência a uma grande conformidade que se

desprende da evolução da política criminal e do pensamento dogmático penal nos

últimos anos, e que se dirige a uma admissão, às vezes restrita, de uma

responsabilidade quase penal de empresas em nível da Comunidade Européia e

que está sendo considerada como modelo legislativo e jurisprudencial em muitos

Estados membros74.

Por sua vez, as multas administrativas ou a responsabilidade civil são

insuficientes e não traduzem a força coercitiva que se pode atribuir às penas

criminais, pois elas não têm a publicidade do processo criminal e permitem a

negociação entre a empresa e as autoridades administrativas. Ademais, não se

pode admitir que uma empresa possa ter uma culpa administrativa por um ilícito e

não uma culpa penal, tendo, como resposta estatal uma medida com o mesmo

caráter de sanção. As medidas administrativas ou civis deveriam ser reservadas

para casos de menor relevância, como aqueles em que se não identificasse o

atingimento de bens jurídicos relevantes na órbita penal; o que só se avalia como

decorrência de razões de política criminal, aplicar-se-ia uma medida de natureza

penal75.

Concluindo, SHECAIRA explica:

73 MERLE, Roger; VITU, André. Traité de droit criminel – problèmes g´néraux de la science criminelle: droit penal general. 6. ed. Paris: Cujas, 1988. p.778-779 apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op.cit.,p.95.

74 TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em

derecho comparado, p.21 apud KIRST, Ataides. Op.cit., p.114.

75 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit., p. 131 apud KIRST, Ataides. Op.cit.,. p.118.

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O estudo das teorias da ficção e da realidade serve também para confirmar a realidade da atividade conferida às pessoas jurídicas, no sentido de que, enquanto tais, podem ter decisões reais que eventualmente possam divergir das opiniões pessoais de alguns membros da empresa. É nesse contexto que podemos afirmar que a vontade da pessoa jurídica, executada por seres individuais, é uma realidade, não uma ficção76.

Alguns autores defendem uma reforma da teoria geral do delito para que a

responsabilidade penal da pessoa jurídica possa ser conciliada com as

necessidades de repreensão das atividades ilícitas praticadas pelas empresas.

Quanto à forma correta da imputação, há necessidade de distinguir a

responsabilidade pessoal da coletiva, sob o aspecto do benefício almejado: será

responsabilizado somente o representante legal, quando este agir em benefício

próprio, não visando proveito para a pessoa jurídica. Quando este representante agir

visando vantagens para sua empresa, esta, a beneficiada, deve também sofrer a

imputação.

Como afirma KIST:

O legislador brasileiro, ao adotar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, adotou o que havia de mais moderno no Direito Penal europeu, em especial, mas não alterou uma vírgula da parte geral do Código Penal, Desta forma, relegou aos operadores do Direito a tarefa de aplicar essa legislação, em boa medida incompatível com as regras procedimentais vigentes acerca da persecutio criminis77.

Salienta-se que, de acordo com o art. 225, §3º da CF, cada pessoa, quer

seja jurídica ou física, atualmente possui responsabilidade penal.

76 SHECAIRA, Sérgio Salomão. p. 131 apud KIRST, Ataides. Op.cit., p.118.

77 KIST, Dario José. Fundamentos do Direito Penal Democrático. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, nº45, Porto Alegre, abril/agosto de 2001, p. 165/205. apud COSTA,Gabriela Rivoli. Op.cit., p.283

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A responsabilidade penal das pessoas jurídicas foi inserida no ordenamento

jurídico sem a adequação aos institutos vigentes no Direito Penal gerando inúmeras

críticas ao legislador, que foram acolhidas e assim, já restam sanadas.

Conforme Gilson DIPP:

A Constituição Federal de 1988, consolidando uma tendência mundial de atribuir maior atenção aos interesses difusos, conferiu especial relevo à questão ambiental, ao elevar o meio ambiente à categoria de bem jurídico tutelado autonomamente, destinando um capítulo inteiro à sua proteção". O artigo 225 da Constituição afirma que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Prevendo em seu parágrafo 3º a criminalização das condutas lesivas causadas ao meio ambiente, fossem os infratores pessoas físicas ou jurídicas. A referência às pessoas jurídicas, no entanto, não ocorreu de maneira aleatória, mas como uma escolha política, diante mesmo da pequena eficácia das penalidades de natureza civil e administrativa aplicadas aos entes morais78.

E continua:

É sabido, dessa forma, que os maiores responsáveis por danos ao meio ambiente são empresas, entes coletivos, através de suas atividades de exploração industrial e comercial. A incriminação dos verdadeiros responsáveis pelos eventos danosos, no entanto, nem sempre é possível, diante da dificuldade de se apurar, no âmbito das pessoas jurídicas, a responsabilidade dos sujeitos ativos dessas infrações. O caráter preventivo da penalização, com efeito, prevalece sobre o punitivo. A realidade, infelizmente, tem mostrado que os danos ambientais, em muitos casos, são irreversíveis, a ponto de temermos a perda significativa e não remota da qualidade de vida no planeta79.

Assim, levando em conta a doutrina, o ministro entende que a

responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais surge,

assim, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente,

78 DIPP, Gilson. STJ reconhece responsabilidade penal de pessoa jurídica por dano

ambiental. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br/nucleo/noticias/2005/STJ_Resp_Penal_da_PJ.pdf,> Publicado em: 03/06/05. Acesso em: 09/03/09.

79 Idem.

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mas como forma de prevenção da prática de tais crimes, função essencial da política

ambiental, que clama por preservação.

Sendo a responsabilização penal da pessoa jurídica adotada por inúmeros

países, dentre eles: Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália,

França, Venezuela, México, Cuba, Colômbia,Holanda, Dinamarca, Portugal, Áustria,

Japão e China, surge uma tendência mundial no sentido da possibilidade da

aplicação de sanções penais a essas entidades.

Gilson DIPP entende que a responsabilização da pessoa jurídica decorre de

uma opção política e que dependeria de uma modificação no sistema penal clássico

adotado por nosso ordenamento, mas esclarece: "Ocorre que, a mesma ciência que

atribui personalidade à pessoa jurídica deve ser capaz de atribuir-lhe

responsabilidade penal80”.

A aplicação da teoria do delito está fora de cogitação, porém não pode ser

um obstáculo à responsabilização.

No processo citado por DIPP o Ministério Público apresenta razões no

sentido desta responsabilização ser compreendida à luz de uma nova

responsabilidade, classificada como social e não na idéia da responsabilidade

subjetiva, baseada na culpa.

A lei ambiental determina para as pessoas jurídicas penas autônomas de

multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação

forçada e desconsideração da pessoa jurídica, ou seja, novamente se constata a

forma de punibilidade aplicada à pessoa jurídica.

Na análise de Cláudio Réche IENNACO:

80 Idem.

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O que vem a justificar essa iniciativa do legislador brasileiro é o mesmo motivo analisado quando do estudo do sistema francês, exposto acima. Foi uma tomada de posição mais rigorosa contra a impunidade decorrente do grande poder econômico que é característico das grandes empresas que, costumeira e “dolosamente” degradam o meio ambiente natural. Rebatendo o argumento de que se poderia responsabilizar administrativamente a pessoa jurídica em caso de dano, cabendo a persecução criminal aos sócios ou responsáveis, ou mesmo aos funcionários executores, vêm os defensores da atual tendência criticando o sistema processual penal brasileiro, onde seria difícil individualizar a conduta de cada agente em particular situação81.

E conclui:

Em realidade, o espírito da lei sob análise é e deve ser alvo de elogios, haja vista a extrema e urgente necessidade em se tutelar o meio ambiente de forma efetiva, e punir com o rigor adequado todos que se valem do escudo do poder econômico para se livrarem impunes de seus atos82.

Conclui-se que, o Direito Penal está atuante na responsabilização da

pessoa jurídica, tendo previsão constitucional e tipificação na Lei de crimes

ambientais. Trata-se de uma realidade jurídica, que sofreu transformação devido a

própria característica de dinamismo da ciência do Direito, que vem a contribuir para

o alcance da função ético-social do Direito Penal.

5. DO CRIME DE CALÚNIA

O crime de calúnia vem previsto no Código Penal como crime contra a

honra, e prevê o tipo:

Art.138. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

81 IENNACO, Cláudio Réche. Da Pessoa Jurídica como sujeito passivo do crime de

calúnia. Disponível em : < http://www.direitopenalvirtual.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=26 > Acesso em: 24/02/09.

82 Idem.

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Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos

§1º Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

§2º É punível a calúnia contra os mortos.

Exceção da verdade

§3º Admite-se a prova da verdade:

I – se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível;

II – se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no n.I do art. 141;

III – se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível”.

Neste crime, descreve-se a ação de atribuir-se a alguém a responsabilidade

criminal pela prática de algum fato, sabendo ser esse fato criminoso falso.

Trata-se de imputação falsa e maliciosa feita a alguém de crime que não

cometera.

A lei precisa dizer que tal fato é crime, ou seja, que haja tipo.

A intenção do agente é a de difamar (animus difamandi ou calunniandi).

Quando se mostra que a imputação é falsa constitui crime contra honra

sendo passível de sanção.

5.1 O BEM JURÍDICO TUTELADO

Previsto dentro dos crimes contra a honra, esta, na definição de Magalhães

NORONHA, pode ser considerada como o complexo ou conjunto de predicados ou

condições da pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria83.

83 NORONHA, Magalhães. Direito Penal,p. 122. apud BITENCOURT, César Roberto.

Op.cit.,p. 276.

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Mas ocorre uma divisão dessa honra em honra subjetiva e honra objetiva,

sendo esta última a atingida pelo crime de calúnia. A honra objetiva trata da

reputação do indivíduo, ou seja, é o conceito que os demais membros da sociedade

têm a respeito do indivíduo, relativamente a seus atributos morais, éticos, culturais,

intelectuais, físicos ou profissionais84.

Já a honra subjetiva representa o sentimento ou a concepção que temos a

nosso respeito, a honra objetiva constitui o sentimento ou o conceito que os demais

membros da sociedade têm sobre nós, sobre nossos atributos.

Sendo objetivamente honra um valor ideal, a consideração, a reputação, a

boa fama de que gozamos perante a sociedade em que vivemos85.

Consuma-se o delito de calúnia quando a imputação falsa chega ao

conhecimento de terceiros.

DELMANTO ensina:

O tipo objetivo é composto de duas figuras ou formas: imputar falsamente e propalar ou divulgar, sabendo falsa. Imputar é atribuir; propalar é propagar, espalhar; divulgar é tornar público, bastando para tanto que se dê conhecimento a uma só pessoa, pois não se pode confundir o ato (divulgar) com o seu resultado (divulgação). O fato deve aparentar ser específico ou determinado. O elemento normativo falsamente impõe que o fato seja falso em si ou quanto à autoria atribuída. Note-se que é presumida a falsidade da imputação, a menos que se faça prova de sua veracidade86.

Além de falso, o fato também deve ser definido como crime, não bastando

tratar-se de contravenção.

84 BITENCOURT, César Roberto. Op.cit., p. 276.

85 Idem.

86 DELMANTO, Celso. Código Penal comentado, 4.ed. Rio de janeiro : Renovar, 1998. p. 260.

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O delito é comissivo e pode ser praticado por qualquer meio, mas a

imputação precisa chegar ao conhecimento de pessoa outra que não o ofendido.

5.2 A PESSOA JURÍDICA COMO SUJEITO PASSIVO DO CRIME DE CALÚNIA

A doutrina tem tido posicionamentos conflitantes quanto ao assunto,

havendo grande divergência doutrinário-jurisprudencial sobre se a pessoa jurídica

pode ser sujeito passivo de calúnia. O Anteprojeto do Código Penal de 1940, de

autoria de Nelson HUNGRIA, para afastar essa polêmica, definia como crime contra

a honra da pessoa jurídica: “Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de abalar

o crédito de uma pessoa jurídica ou a confiança que esta merece do público” (art.

148)87”.

Ao ver de Cezar Roberto BITENCOURT, admitindo a possibilidade da

pessoa jurídica ser vítima do crime de calúnia:

Como prevalece, no Brasil, a teoria da ficção, a doutrina historicamente tem-se posicionado contra a possibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito passivo do crime de calúnia. Contudo, para aqueles que admitem que a Constituição Federal de 1988, em seus arts. 225, § 3o e 173, § 5o teria conferido capacidade penal ativa à pessoa jurídica nos crimes contra a ordem econômica e o sistema financeiro, economia popular e meio ambiente, passou a sustentar, mais enfaticamente, a possibilidade de a pessoa jurídica figurar como sujeito passivo do crime de calúnia88.

Esse último entendimento resta mais acertado, uma vez que a pessoa jurídica já é considerada como sujeito ativo, logo, pode ser também sujeito passivo quando à mesma é imputada, falsamente, prática criminosa conforme descrito no art. 3º da Lei 9.605/98..

Ao ver de Rubens Oliveira da SILVA:

87

BITENCOURT , Cezar Roberto. Uma releitura do crime de calúnia. Disponível em:< http://74.125.47.132/search?q=cache:sxBsCEN9mvQJ:paginas.terra.com.br/servicos/xiru/calunia.html+pessoa+juridica+pode+sofrer+crime+de+calunia&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=6> Acesso em 10/02/09.

88 BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Crimes contra a honra. p. 179. apud BITENCOURT , Cezar Roberto. Uma releitura do crime de calúnia. Op.cit.

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Contudo, a despeito de todo o exposto, hoje os tempos são outros e aqui e acolá, neste ou naquele país, começa-se a criminalizar, pelo menos, alguns fatos passíveis, segundo sustentam, de serem praticados por pessoa jurídica; pois essa política criminalizadora de atividades empresarias, ainda que rarefeita, afasta o argumento, até então mais forte, contrário à possibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito ativo de crime, pela singela razão de que, como estava, não praticava crime e, assim, não podia ser caluniada. Assim, em tese, admitimos, por ora, a possibilidade de a pessoa jurídica figurar como sujeito passivo de crimes contra a ordem econômica e financeira, contra o meio ambiente e de economia popular89.

DAMÁSIO sintetiza posicionamentos dos tribunais:

Pessoa jurídica não pode ser caluniada no tocante a crimes comuns (homicídio, furto, roubo, etc.). a imputação caluniosa dirigida a uma pessoa jurídica se resolve em calúnia contra pessoas que a dirigem nos crimes comuns. Nesse sentido: STF, RHC 64860, DJU, 30 abr.1987, p.7650; RT, 460:371, 453:462, 409:278, 619:379, 670:303 e 686:373; RTJ, 94:589, JTACrimSP, 69:131, 76:161 e 97:143, STJ, HC 10602, 6ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, RT, 785:552. No sentido de que , na hipótese, não há crime contra os dirigentes da pessoa jurídica, não sendo pessoal a ofensa (TAMG, HC 11238, 13-12-1988; TARS, ACrim 292.064.508, RT, 686:373 e 375). É admissível ser sujeito passivo na Lei de Imprensa: julgados, 15:273. É possível ser sujeito passivo no Código Penal: RT, 336.309. De ver-se, contudo, que os arts. 3º e 21 a 24 da Lei de Proteção Ambiental (Lei 9.605, de 12-2-1998) prevêem a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Assim, ela pode ser caluniada em relação aos delitos ambientais90.

Ao ver de Delmanto:

Com relação à pessoa jurídica há grande controvérsia na doutrina; parte dos autores admite que ela não possa ser vítima do delito de calúnia (STF, RHC 64.860, DJU 30.4.87,p 7650;TARS, RT 686/373; TACrSP, RJDTACr 19/203), mas pode sê-lo do delito de difamação (STF, RTJ 113/88; TACrSP, RJDTACr 21/122, 17/72). A pessoa jurídica pode ser vítima de injúria e de difamação (TRF da 1ª r., Ap. 1011,DJU 30.4.90, p.8226). Não pode ser vítima de injúria nem de calúnia, mas sim de difamação (TACrSP, RT

89 SILVA, Rubens Oliveira da. Calúnia contra pessoa jurídica. Disponível em:

<http://forum.jus.uol.com.br/53704/calunia-contra-pessoa-juridica> Publicado em 05/05/2007. Acesso em: 18/02/09.

90 JESUS, Damásio E. de, Código Penal anotado. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.485.

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631/317). E contra: Não pode nem no crime de difamação, salvo nos delitos da Lei de Imprensa (TACrSP, julgados 69/132)91.

Hoje, o ente jurídico pode cometer crimes e sofrer sanções

independentemente de seus sócios ou responsáveis legais.

Sendo a honra objetiva o objeto jurídico nos crimes de calúnia e de

difamação, Adalberto José Q. T. de Camargo ARANHA, define tal conceito como

sendo “nossa reputação, traduzida como a face exterior da honra de alguém, o

respeito que deve merecer daqueles que o cercam, a boa fama, o estima pessoal,

enfim, a maneira pela qual é reconhecido na sociedade92”.

Não há, portanto, dúvidas de que a pessoa jurídica possui honra objetiva,

uma vez que a mesma, nas palavras do Professor Frederico Abrahão de OLIVEIRA,

ao mencionar uma corrente de pensamento:

A pessoa jurídica tem seu bom nome a proteger, seu crédito, sua respeitabilidade, enfim, garantir a sua confiabilidade que é patrimônio moral, é honra objetiva sem a qual estaria inviabilizada a empresa no seu meio (o mercado) por isso que carece de proteção legal contra ataques desinformados ou mal intencionados dos caluniadores93.

A honra objetiva da pessoa jurídica é o caminho pelo qual a empresa

alcança seus objetivos. Note-se que a confiabilidade em determinado serviço

prestado por alguma empresa é uma construção de tempo, de indicações de outras

pessoas que ficaram satisfeitas com o serviço, do bom atendimento dedicado pela

empresa, etc. Ou seja, a reputação é atributo da empresa, assim como também o é

do ser humano.

Em julgado do STF, relatado pelo eminente Min. Rafael Mayer, dissipa-se

as dúvidas da seguinte forma: "Ora, não se pode recusar às pessoas jurídicas o

91 DELMANTO, Celso.Op.cit.

92 ARANHA, José Q. T. de Camargo. Crimes Contra a Honra. São Paulo: Saraiva, 1995. p.3. apud RISTOW, Rogério. A pessoa jurídica vítima do crime de calúnia . Disponível em : < http://www.neofito.com.br/artigos/art01/penal121.htm > Publicado em 28/09/99. Acesso em:10/02/09. 93 OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Crimes Contra a Honra. 2ª ed. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto Editores, 1996. p. 37 apud RISTOW, Rogério. Op.cit.

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direito à reputação, à respeitabilidade e à incolumidade moral, no plano do convívio

social, bens da vida que estão sob a proteção do artigo 139 do Código Penal.”

Possuindo honra objetiva indiscutivelmente, e a mesma vindo a ser atacada

ilicitamente, presente estará algum dos crimes contra a honra.

Magalhães NORONHA explica:

Não se contesta que ela (pessoa jurídica) goze de reputação e conceito (p. ex., uma sociedade comercial que tem renome, crédito, boa fama etc.) que podem ser abalados por campanha difamatória, ainda que o difamador excetue à pessoa de seus componentes e atribua os fatos à entidade ou organização94.

Compartilhamos com o entendimento de Rogério RISTOW:

Em que pese entendimento em contrário, hoje, a pessoa jurídica pode perfeitamente cometer crimes contra o meio ambiente, sendo por isso responsabilizada penalmente, Independentemente de seus representantes legais. Havendo portanto, a possibilidade de a pessoa jurídica cometer algum ilícito penal, e por isso sofrer uma sanção criminal, e sendo ela indiscutivelmente possuidora de honra objetiva (reputação, etc.), não há sombra de dúvidas que a mesma pode perfeitamente vir a ser vítima do crime de calúnia! Assim por exemplo, aquele que imputar falsamente a qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica, fato definido como "crime ambiental", incorrerá nas penas do artigo 138 do Código Penal ou do artigo 20 da Lei de Imprensa, conforme o caso.Concluindo, a pessoa jurídica que for falsamente imputada de crime contra o meio ambiente, terá legitimidade para requerer explicações em juízo, requerer abertura de inquéritos policiais e ainda, oferecer Queixa-crime contra o causador deste mal, e consequentemente, com a sentença condenatória transitada em julgado em mãos, requerer a devida indenização para a reparação de danos causados contra a sua honra no juízo cível competente95.

No entanto, não há que se negar que realmente se vislumbra um período

evolutivo e de transformação, com o advento da Lei nº. 9.605/98, que prevê

expressamente, em seu art. 3º, a responsabilidade criminal da pessoa jurídica.

Silvio Romero Pereira LEITE afirma:

94 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 2º vol. Dos Crimes Contra a Pessoa. Dos

Crimes Contra o Patrimônio. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p.120 apud RISTOW, Rogério. Op.cit. 95 RISTOW, Rogério. Op.cit.

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Em relação à pessoa jurídica, segundo orientação do STF e a maioria da doutrina, pode ser sujeito passivo, ainda que a ofensa não atinja, diretamente ou indiretamente, isto porque a pessoa jurídica goza de reputação no meio social. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou a respeito em sua Súmula 227: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral 96.

Cláudio Réche IENNACO enfoca em outro aspecto:

Interessante registrar que, mesmo que a tendência atual do STJ em admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica se confirme, permanecerá em aberto o tema da possibilidade de figurar, o ente coletivo, como sujeito passivo do crime de calúnia. Isso porque, na responsabilidade penal por empréstimo, o sujeito ativo do delito é a pessoa física, que atua em nome ou em proveito da pessoa jurídica, sendo esta responsabilizada penalmente pelo fato de outrem. E caluniar é imputar a prática de crime97.

Assim, podemos constatar que, sendo a pessoa jurídica passível de sofrer

dano moral, ela possui honra objetiva, mas inviável a honra subjetiva devido a sua

própria natureza.

Em que pese a evolução doutrinária acima demonstrada, o STF firmou

entendimento no sentido de não admitir a pessoa jurídica como vítima do crime de

calúnia ou injúria, mas apenas como sujeito passivo do crime de difamação.

Vejamos alguns julgados:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM PETIÇÃO. PROCESSUAL PENAL. INTERPELAÇÃO JUDICIAL. LEI DE IMPRENSA. CRIME DE INJÚRIA. SUJEITO PASSIVO: PESSOA JURÍDICA. 1. A pessoa jurídica não pode ser sujeito passivo dos crimes de injúria e calúnia, sujeitando-se apenas à imputação de difamação. Precedentes. 2. Cuidando-se de situação em que caracterizado, em tese, crime de injúria, é incabível a ação penal que tenha por objeto a apuração de ofensa à honra de pessoa

96LEITE, Silvio Romero Pereira. Difamação. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/24583/2 > Publicado em 18/04/07. Acesso em 10/03/09.

97 IENNACO, Cláudio Réche. Op.cit.

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jurídica de direito público. Conseqüência: inviabilidade de prosseguimento da medida preparatória de interpelação judicial. Agravo regimental a que se nega provimento98.

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A HONRA. IMPRENSA. OFENSA A PESSOA JURÍDICA. A AUSÊNCIA DE PERIODICIDADE DE PUBLICAÇÃO A FALTA DE LINHA EDITORIAL, A PROPRIA SINGELEZA DA MENSAGEM E DO PROCESSO DE REPRODUÇÃO DESAUTORIZAM, NA ESPÉCIE, A IDEIA DO DELITO DA IMPRENSA. INAPLICAÇÃO DA LEI ESPECIAL. A PESSOA JURÍDICA PODE SER SUJEITO PASSIVO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO; NÃO, POREM, DE INJURIA OU CALUNIA. ORDEM DEFERIDA EM PARTE99.

No mesmo sentido, o STJ:

EMENTA: PESSOA JURÍDICA. VITIMA DE CRIME CONTRA A HONRA. A PESSOA JURÍDICA, NO DIREITO BRASILEIRO, SO PODE DIZER-SE VITIMA DE DIFAMAÇÃO, NÃO DE CALUNIA OU INJURIA. SEGUNDO FUNDAMENTO AUTONOMO. PRETENSÃO REEXAME DE PROVA INADMISSIVEL NA VIA DO RECURSO ESPECIAL (SUMULA 07/STJ).RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, PELO DISSIDIO, MAS IMPROVIDO100.

E, ainda, outros tribunais:

CRIME CONTRA HONRA – CALÚNIA –PESSOA JURÍDICA – RESPONSABILIDADE PENAL – REPRESENTANTE LEGAL – Se a pessoa jurídica contraria norma de natureza penal, a responsabilidade há de recair sobre a pessoa física que, em nome e por representação dela, agiu contra legem. Se o agente age com a vontade livre e consciente de imputar fato ofensivo à honra da vítima, não há de se acolher a tese do animus defendendi101. Crime contra a honra –pessoa Jurídica – sujeito passivo – Possibilidade – As pessoas jurídicas podem ser sujeitos passivos de crime contra a honra, exceto o de calúnia –

98 Pet-AgR 2491 / BA – BAHIA, AG.REG.NA PETIÇÃO, Relator(a): Min. MAURÍCIO

CORRÊA, Julgamento: 11/04/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 14-06-2002 PP-00127

99 RHC 61993 / RS - RIO GRANDE DO SUL, RECURSO EM HABEAS CORPUS, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Julgamento: 26/10/1984, Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA, Publicação DJ 14-12-1984 PP-21607

100 REsp 53761 / SP, RECURSO ESPECIAL,1994/0027541-2, rel. Min. Assis Toledo, órgão julgador:T5 – Quinta turma, data do julgamento: 21/11/94, data da publicação: DJ 12/12/1994 p. 34374

101 TAMG – Ap 0230733-7 – 2ª C.Crim. – Rel. Juiz Hyparco Immesi – J.17.06.1997.

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posto que não se cometeu delitos – pois sua reputação e credibilidade são passíveis de abalo, com reflexos em sua vida econômica”102.

Na conclusão de RISTOW:

Logo, este é o entendimento de nossos Tribunais, dentre os quais o Supremo Tribunal Federal, que como vimos, reiteradas vezes já decidiu que a pessoa jurídica pode ser vítima do crime de "difamação", não tendo portanto, ainda reconhecido o mesmo quanto ao crime de calúnia, por até então entender que, em a pessoa jurídica não podendo cometer crimes, igualmente impossível ser vítima de calúnia103.

Esse entendimento do STF, STJ e demais tribunais que adotam essa

posição, data vênia, necessitam de uma mudança rápida, condizente com a

evolução do direito a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo

esta uma realidade em nosso ordenamento.

Os tribunais têm adotado uma posição contraditória diante da realidade

jurídica que vivemos.

Sendo calúnia a atribuição de fato criminoso a alguém, havendo previsão

legal de que a pessoa jurídica pode cometer crimes, e tendo a pessoa jurídica honra

objetiva, ou seja, reputação, verifica-se a possibilidade da mesma ser passível do

crime de calúnia.

Como consta de jurisprudência supra citada a idéia de que “as pessoas

jurídicas podem ser sujeitos passivos de crime contra a honra, exceto o de calúnia –

posto que não se cometeu delitos – pois sua reputação e credibilidade são

passíveis de abalo, com reflexos em sua vida econômica”, há que evoluir, uma vez

que dada a possibilidade da pessoa jurídica cometer crimes, pode ser imputado o

crime de calúnia, podendo ser a pessoa jurídica sujeito passivo de tal crime.

102 TACRIM – SP – AC 428-169 – Rel. Silvio Rigo.

103 RISTOW, Rogério. Op.cit.

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Quanto aos crimes da Lei de Imprensa:

Inquestionável, pela Lei de Imprensa, ser a pessoa jurídica passível, de crime contra a honra, controvertendo-se apenas a compatibilidade de tal ou qual das figuras penais (calúnia, difamação, injúria) com a referida sujeição passiva104 . Lei de Imprensa – crimes contra a honra –pessoa Jurídica – difamação e injúria – a pessoa jurídica pode ser sujeito passivo de crimes contra a honra. Embora tal atributo seja próprio da pessoa humana, não se poderá negar a pessoa jurídica um patrimônio moral que consubstancia bom nome, respeitabilidade e confiança. Abalo do tal patrimônio, as conseqüências inevitáveis seriam o descrédito, a ruína, a falências ou a concordata105.

Demonstrada a possibilidade de a pessoa jurídica ser vítima de crimes contra a honra, notadamente difamação, surge-lhe a faculdade de exercer o direito previsto no artigo 25 da Lei 5.250/67 (“Lei de Imprensa”) e seus parágrafos106:

Art . 25. Se de referências, alusões ou frases se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julgar ofendido poderá notificar judicialmente o responsável, para que, no prazo de 48 horas, as explique.

§ 1º Se neste prazo o notificado não dá explicação, ou, a critério do juiz, essas não são satisfatórias, responde pela ofensa.

§ 2º A pedido do notificante, o juiz pode determinar que as explicações dadas sejam publicadas ou transmitidas, nos termos dos arts. 29 e seguintes.

Nota-se que referente aos crimes tipificados na Lei de Imprensa, a pessoa

jurídica está mais protegida, porém, não é preciso uma tipificação especial em cada

legislação extravagante para que seja realizada a responsabilização por crimes

envolvendo a pessoa jurídica. Há uma “espera” por tal tipificação no âmbito de

nossos tribunais, sendo ausente uma interpretação semântica e lógico-jurídica das

leis por parte dos aplicadores do direito.

104 STF – RHC – Rel. Rafael Mayer – RT 561/414 105 TACRIM – SP – AC 367/767 – Rel. Gilberto Gama

106LEITE, Silvio Romero Pereira. Op.cit.

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Resta a conclusão de que a jurisprudência nacional ainda precisa evoluir

quanto ao tema, até pela própria novidade do assunto, que talvez ainda não tenha

sido enfrentado em nossos tribunais, sendo uma possibilidade jurídica a ser inserida

em nosso ordenamento pelos advogados das empresas em suas defesas quanto à

falsa imputação da prática de crime à pessoa jurídica, que tanto mal faz para sua

reputação em sociedade.

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6. CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, conclui-se que a pessoa jurídica pode ser vítima

do crime de calúnia, uma vez que, podendo cometer delitos, o que antes não tinha

previsão legal, pode sofrer acusações falsas por terceiros neste sentido.

Com o advento da Lei de Direito Ambiental (Lei 9.605/98) a pessoa jurídica

pode ser sujeito ativo (agente) de crimes ambientais, havendo também previsão na

Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).

Diante de uma calúnia a empresa tem sua imagem prejudicada na

sociedade, gerando conseqüente prejuízo econômico e financeiro. Assim, como o

valor atrelado à imagem de uma pessoa jurídica é algo fundamental para seu

sucesso no mercado, necessita de proteção jurídica, inclusive mediante ou

reconhecidamente como vítima de calúnia.

Há grande resistência da doutrina clássica na aceitação até mesmo quanto

à responsabilização penal da pessoa jurídica, fato este já tipificado em lei, sem mais

o que ser discutido.

Nota-se que esta evolução do Direito Penal em relação à pessoa jurídica

ainda está em andamento, pois a jurisprudência ainda é tímida quanto ao assunto,

além da argumentação das decisões não ser satisfatória e ignorar a realidade de

que a pessoa jurídica, uma vez podendo cometer crimes, por lógica, pode também

sofrer crime de calúnia.

.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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