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§ | DOSSIER: NATURALEZA & CULTURA · 79 · A physis e o pensamento ameríndio Ugo Maia Andrade 1* “O único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum” F. Pessoa, ‘O guardador de rebanhos’ RESUMO Elemento fundamental no pensamento grego pré-filosófico, physis reflete unidade, presença e relação. Convertida em “natu- rans” pelos romanos foi, na modernidade, depurada em “nature- za” e com esse sentido passou a representar um domínio em face do qual a história e a cultura mantém uma relação crescente de assimetria e exterioridade figuradas pela máxima cartesiana de que “o homem deve ser Mestre e Senhor da natureza”. Fora do arco hegemônico do pensamento ocidental há, entretanto, per- cepções alternativas da natureza análogas à physis. Assumindo que para o que nomeamos natureza existe um plano originário – captado seja pelo pensamento selvagem, de Lévi-Strauss (1962), ou pela ontologia anímica, de Tim Ingold (2000; 2006) – o texto busca confluências entre a physis pré-filosófica e o xamanismo dos índios Galibi-Marworno da região do baixo Rio Oiapoque e Rio Uaçá (fronteira Brasil-Guiana Francesa). Palabras Clave: Chamanismo; Naturaleza; Ontología feno- menológica; Percepción. 1 * Doutor em Antropologia Social, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: [email protected]

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A physis e o pensamento amerndio

Ugo Maia Andrade1*

O nico sentido ntimo das cousas elas no terem sentido ntimo nenhum

F. Pessoa, O guardador de rebanhos

RESUMO

Elemento fundamental no pensamento grego pr-filosfico, physis reflete unidade, presena e relao. Convertida em natu-rans pelos romanos foi, na modernidade, depurada em nature-za e com esse sentido passou a representar um domnio em face do qual a histria e a cultura mantm uma relao crescente de assimetria e exterioridade figuradas pela mxima cartesiana de que o homem deve ser Mestre e Senhor da natureza. Fora do arco hegemnico do pensamento ocidental h, entretanto, per-cepes alternativas da natureza anlogas physis. Assumindo que para o que nomeamos natureza existe um plano originrio captado seja pelo pensamento selvagem, de Lvi-Strauss (1962), ou pela ontologia anmica, de Tim Ingold (2000; 2006) o texto busca confluncias entre a physis pr-filosfica e o xamanismo dos ndios Galibi-Marworno da regio do baixo Rio Oiapoque e Rio Ua (fronteira Brasil-Guiana Francesa).

Palabras Clave: Chamanismo; Naturaleza; Ontologa feno-menolgica; Percepcin.

1* Doutor em Antropologia Social, professor do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Brasil. E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

Central in the pre-philosophical Greek thought, physis reflects unity, presence and relationship. Turned into naturans by the Romans and nature in modern times, it has come to represent a domain where history and culture develop a growing relation-ship of asymmetry and externality represented by the Cartesian axiom that man should be Lord and Master of nature. However, outside the arc of the hegemonic Western thought there are alternative perceptions about nature equivalents to the physis. Assuming that there is an original plan for what we call na-ture captured by Lvi-Strausss savage mind (1962) or by Tim Ingolds animic ontology (2000; 2006) this text seeks similar-ities between pre-philosophical physis and the shamanism of Galibi-Marworno Indians in the Lower Oiapoque River and Ua River region (between Brazil and French Guiana borders).

Keywords: Shamanism, Nature, Phenomenological ontology; Perception.

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A physis e o pensamento amerndio

O propsito do presente texto refletir a respeito de uma experincia amerndia com o que denominamos natureza. Destarte, natureza aqui compreendida como um arranjo de relaes que existe diferentemente segundo certas disposies geradas em um domnio, a ela contguo ou no, e que nomeamos genericamente por cultura. Oriunda de antteses precoces no pensamento filosfico, como physis X nomos ou physis X lgos, a polarizao natureza X cultura tem sido a viga para a definio do humano, da intencionalidade e da razo. Este lastro, entretan-to, est longe de ser universal.

Utilizo conexes possveis entre modos distintos separados no tempo e no espao de percepo da natureza, propondo ana-logias entre a physis grega pr-filosfica e o pensamento sobre os entes expresso no xamanismo dos ndios Galibi-Marworno da fronteira com a Guiana Francesa (norte do estado do Ama-p, Brasil). Com este fim, recorro caracterizao dos Karuna (pessoas invisveis auxiliares dos pajs) pelos Galibi-Marworno a fim de sustentar que ambos, physis e xamanismo, derivam de um mesmo modo originrio de experienciar e refletir o cosmos como presena e relao. Retomarei esse ponto adiante1.

Physis, naturans, natureza

O Ocidente define natureza como o domnio total exterior ao homem ou a diferena da totalidade humana, contrapondo-a cultura (Heidegger, 2008); e tambm o domnio total interior

1 Uma verso, bastante preliminar, deste texto foi apresentada no colquio Guiana amerndia: histria e etnologia realizado em Belm, entre outubro e novembro de 2006, sob o auspcio do NHII-USP, EREA-CNRS e MPEG e serviu de apoio para o captulo IV e Eplogo de minha tese de doutorado (Andrade, 2007). Agradeo a Anto-nella Tassinari, Francisco Paes e Lux Vidal pelos comentrios na ocasio do colquio.

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ou imanente a qualquer ente. por meio desse ltimo que nos referimos natureza de uma coisa ou de algum, dizendo, por exemplo, que latir parte da natureza do co. H alguma co-nexo entre esses dois sentidos de natureza desenvolvidos pelo pensamento ocidental? Um domnio originrio da palavra que una exterioridade e interioridade, diferena e identidade, imanncia e transcendncia? Este solo talvez esteja representa-do por aquilo que o pensamento grego pr-filosfico (anmico, larga) nomeou por physis. Seguindo Merleau-Ponty (2006):

Em grego, a palavra Natureza deriva do verbo juw (raiz da palavra physis) que faz aluso ao vegetal; a palavra latina vem de nascor, nascer, viver; extrada do primeiro sentido, mais fundamental [...] A Natureza diferente, portanto, de uma simples coisa; ela tem um interior, deter-mina-se de dentro; da a oposio de natural a acidental. E no obstante a Natureza diferente do homem; no instituda por ele, ope-se ao costume (physis X nomos), ao discurso (physis X lgos). (Merleau-ponty, 2006:4. Parn-teses acrescentados).

Heidegger (2008) tambm sublinha o desenvolvimento da dupla pertena semntica de natureza no percurso do pensa-mento ocidental: Os romanos traduziram por natura; na-tura provm de nasci, ser gerado; em grego geu ; natura aquilo que deixa surgir a partir de si. Desde ento, o nome natureza constitui-se naquela palavra fundamental que nomeia relaes fundamentais do homem histrico ocidental com o ente que ele no e que ele prprio (Heidegger, 2008:251. Grifo acrescen-tado). Aquilo que deixa surgir a partir de si. A caracterizao da physis como surgir-aparecer pela ontologia fenomenolgica heideggeriana aprova simetrias entre tal experincia particular do cosmos (grega e pr-filosfica) e outras situadas em paragens amerndias. A mediatriz a o xamanismo. No por acaso, os

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physiokis (pensadores gregos da physis) foram os herdeiros dos antigos poetas-profetas-sbios (dentre eles Hesodo e Homero) que tinham por funo serem destinatrios de conhecimentos superiores revelados. Faziam, assim, ao modo dos xams asiti-cos cuja influncia alcanou os gregos e outros povos na Europa meridional, a interseo entre homens comuns e entes extraor-dinrios (Cornford, 1952:143). Ironicamente, em Parmnides o mais prximo da metafsica e da tradio filosfica dentre os physiokis que se encontra a vigncia das tcnicas xamnicas de comunicao inter-mundos quando narra, em seu poema (Peri physeos, Acerca da physis), sua saga pelo caminho do conhecimento verdadeiro que relembra the heaven-journey of the shamans ritual drama (Cornford, 1952:118). A filosofia grega nascente revelaria, assim, suas afinidades com o xamanismo, no obstante os xams serem muito mais physiokis que filsofos.

Este domnio originrio de experincia da natureza como cosmos foi determinado antes por predisposies sensveis que conceituais; pela identidade e contigidade que pela diferena e afastamento. Tal experincia seria marcada por (ou seria ela prpria) uma espcie de relacionismo. O relacionismo, presen-te tanto no pensamento escolstico de Duns Scotus e William Ockham quanto na filosofia da cincia moderna, concede pri-mordialmente que as relaes so constitutivas das coisas e delas derivam a ao mtua atinente a entes relacionados. A diferena do relacionismo filosfico para o relacionismo indgena tal qual o perspectivismo amerndio (Viveiros de Castro, 1996; 2002), por exemplo seria que, enquanto o primeiro acredita na relao entre coisas reais, o segundo promulga que o real fruto da relao, pois somente ela o a priori. A realidade no pode ser mensurada como uma propriedade de coisas em particular e o que real a relao.

Esta no , contudo, uma premissa exclusiva do pensamento amerndio, mas distribui-se entre sociedades caracterizadas pelo animismo, dentre as quais sociedades cosmocntricas como

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a dos gregos pr-filosficos. Trata-se de perceber como tais povos pensaram e pensam as relaes entre os entes no domnio que chamamos de natureza. Fiquemos, pois, com os physiokis. Heidegger busca a experincia originria representada por aqui-lo que os pensadores gregos do cosmos definiram como physis (). Na physis os entes so simplesmente porque surgem, uma vez experienciados como (fenmeno ou o que vem luz). Em um certo sentido, physis a reunio e simetrizao de todos os entes do cosmos que tm em comum serem no movimen-to de brotar (aparecer) e declinar (perecer) (Heidegger, 2002:73). Physis, , pois, o puro surgir, dimenso que determina todo e qualquer ente enquanto o que surge. Tal condio fenomnica originria (irredutvel a qualquer ontologia) torna-se natureza quando destilada em ontogneses diferenciantes, uma vez que o que para ns aparece como processos da natureza, para os gregos s se torna visvel luz da (Heidegger, 2002:102). O ente surge a partir de si mesmo, pois ser, na physis, sentido como vigor de presena; ser (os entes da physis) (Heidegger, 2002:73). O ser e o ente, pensados como disjuno metafsica ra-dical pelo projeto filosfico, no existem na physis enquanto tais. Ser na physis (enquanto aparecer e perecer) devir.

Esse movimento-devir, que os gregos pr-filosficos nomea-ram por physis, se d como emergncia mltipla de entes em reunio, resultando em horizontes de manifestao incessante-mente interseccionados. E o que eles tm em comum nessa reu-nio a condio de diferena. A relao (diferena), portanto, configurada como a priori. Tim Ingold percebeu tal movimen-to-devir nas ontologias anmicas manifestas por sociedades de caadores do crculo polar rtico, nomeando-o de entanglement (enredamento) (Ingold, 2000; 2006). Para Ingold, entanglement o modo originrio de percepo de environment e radicalmente diverso da concepo gerada no Ocidente para natureza como exterioridade e assimetria. A exemplo da physis, o vigor (anima-cy) dos entes nas ontologias anmicas imanente ao processo de

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gerao contnua do mundo que emerge das relaes entre os entes no fluxo do devir (Ingold, 2006:10). Com o vigor (animacy) distribudo no cosmos, os entes implicam-se mutuamente, agin-do uns sobre os outros. Vigor (animacy) e agncia2 so simtricos, tal qual a unidade que physis constitui com zoe () e psyche (), respectivamente vida e alma (Heidegger, 2002:307).

Como, portanto, no Ocidente, o vigor (animacy) recolheu-se e passou a propriedade de alguns entes (os animados, capazes de intencionalidade) dotados de certos princpios ou substn-cias responsveis por ele? Essa lgica da inverso (Ingold, 2006:17) comea a operar ainda nos primeiros sculos do advento da filosofia ao instituir domnios desconexos onde habitaro, separadamente, o ser e o ente. Destilado em (met t physik metafsica), o pensamento filosfico clssico busca ultrapassar o horizonte de manifestao dos entes para ascender ao reino das ideias e dos conceitos procura da essentia, o universal e necessrio que est fora das coisas. Met t physik tambm o salto por cima e para alm da reunio originria da physis, onde esto tanto o imanente quanto o transcendente, o ente e o ser. o movimento que, iniciado na Grcia sob o auspcio de um conjunto complexo de contingncias histricas e culturais, criou uma racionalidade poderosa que, tornada hegemnica, permitiria a inveno de dois modelos de pensamento baseados no conceito e na anlise: a cincia e a filosofia. A racionalidade metafsica vem sendo destilada ao longo de mais de dois milnios e embora no tenha sido a mesma, a rotura entre sensvel e inte-ligvel em todo o tempo a consagrou.

A criao de uma racionalidade metafsica no Ocidente produziu uma profunda alterao naquilo que os physiokis chamavam de physis. medida que os entes so (isto , vem

2 Tomo a noo de agncia de Sherry Ortner (2006), sintetizada como uma proprie-dade de sujeitos sociais, marcada, simultaneamente, pela universalidade e parciali-dade que, no obstante, justifica qualidades como intencionalidade e poder.

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percepo) pertencem ao domnio do que vive, pois o sentido originrio que os gregos formularam para vida muito pouco tem a ver com aspecto morfolgico ou condio fisiolgica. E o que vivo tem como seu fundamento (psyche), traduzido pelos escolsticos por alma. Contudo, ao contrrio do sentido reservado anima na tradio crist, a psyche no transcen-dente e nem uma substncia injetada nos corpos. Antes ela uma propriedade que tem a ver com o fato dos entes existirem fenomenicamente (em relao-reunio) e, assim sendo, deriva de noes meramente sensveis. No incio da racionalidade metaf-sica na Grcia clssica, aos entes eram atribudas ainda qualida-des essenciais que talvez correspondam ao que entendemos por vida ( - zoe) e alma ( - psyche) (Heidegger, 2002:307), atribuies que, por certo, derivaram da apreenso sensvel e sinttica do devir impresso nos entes e que delimita a fronteira entre racionalidades e tradies distintas.

Da totalidade dos entes em reunio, cuja forma anloga physis os gregos nomearam de (cosmos), participavam o homem, a cultura e a histria (Heidegger, 1987[1953]:45). Mas a transio difusa para a racionalidade metafsica consolidou um setor autnomo em relao physis, nomeado como (no-mos) e associado aos costumes e s leis da cidade. Inversamente physis, nomos no universal, mas restrito a um determinado conjunto de relaes sociais, a uma sociedade urbana em parti-cular e a seus membros. O que d suporte e existncia a nomos a vontade coletiva presente no contrato vigente entre os membros de uma sociedade (agreement) e no a fora independente dos homens que vigora na physis e compe a ordem estvel do mundo sensvel (Ostwald, 1990:298).

Conforme a physis produz a identidade entre os entes, faz equivaler no apenas homens, animais, deuses, o mar e a pe-dra partcipes de zoe (vida) e psyche (alma) mas indistingue tambm os homens entre si, obliterando as diferenas culturais to marcantes entre as cidades da Grcia antiga. Com nomos um

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ateniense distinguia-se de um espartano e um grego de um br-baro. Ultrapassavam a inexorvel identidade imposta pela physis enquanto entes. Deste modo, alm de permitir a isonomia entre iguais (as partes do contrato social, os habitantes de uma mesma cidade-Estado submetidos s mesmas leis e portadores de cos-tumes semelhantes ou controlados pelas leis citadinas), nomos marcava tambm a diferena entre gregos de cidades diferentes ou entre gregos e no gregos. Em sntese, nomos o universo particularizante da cultura e das normas jurdicas que emerge da forte tradio urbana grega.

Com a ascenso da racionalidade metafsica no incio da filosofia grega, a distino entre physis e nomos se define como oposio e criam-se setores distintos da realidade impulsiona-dos pela emergncia de um lgos transformado em discurso, argumento, razo e instrumento humano a favor do julgamen-to da verdade que constitui a busca da filosofia. Physis passa a ocupar o lado reverso da unidade tensa que compe com nomos; conserva-se sua totalidade, mas da qual o homem se separa enquanto ente urbano. Esta diferena entre physis e nomos, que mais tarde, s portas da modernidade, se converteria em anttese fundamental para o Ocidente, a gnese da distino natureza/cultura e um dos grandes marcadores da ascenso da racionali-dade metafsica que ope e hierarquiza o inteligvel e o sensvel, capacidades da razo humana antes inseparveis na conscincia mito-potica. Convertida gradativamente em natureza pelo pensamento filosfico, physis deixa de ser a reunio fundamental e originria dos entes e razo de sua equipolncia, uma vez que nela o homem que ocupar o domnio exclusivo de nomos e lgos (isto , cultura) j no mais habita.

A racionalidade metafsica produtora do princpio da no contradio predicativa pelo qual guiamos nosso pensamento uma contingncia, produto da confluncia de matizes culturais diversas na pennsula grega h mais de dois milnios, e no um universal da razo ou uma etapa do desenvolvimento da men-

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te humana. Onde ela est ausente, o pensamento permite uma reflexo originria sobre o ser e o ente predicando-o, inclusive, antinomicamente. Fora da metafsica do lgos, ser e no-ser po-dem ser o mesmo.

Este modo de proceder diante das coisas tambm um modo de estar-no-mundo com as coisas (os entes); um relacionismo que decorre da experincia de que tudo participa de uma mesma re-unio (sem fundir-se numa mesma massa) e que nessa reunio participativa que os gregos pr-platnicos chamaram original-mente tambm de (lgos) onde as coisas aparecem e so. Tal condio de ser e aparecer constitui a identidade do diverso, a unidade do mltiplo que se oferece como princpio fundamental do pensamento no metafsico inspirado por uma rigorosa classi-ficao das qualidades sensveis.

Tudo ocorre como se, partindo de constataes perceptivas e intuitivas sobre o diverso, o pensamento procurasse conhecer o que h de comum na multiplicidade dos entes e, fazendo um per-curso pericntrico (mas de resultado) declarasse uma concluso que tambm um retorno ao ponto de partida: que a unidade reside no fato de todo ente ser e ser com. Como ser com diferena (= relao), conserva-se a identidade no ponto da alteridade, pois todo ente igualmente diferente. O sensvel , simultaneamente, o objeto de interpelao e a resposta. Este domnio o da experin-cia e da transio como vigncia universal dos entes, um domnio onde as coisas so em seu surgimento e declnio; um domnio que , ao mesmo tempo, os entes, seu modo de ser, a identidade entre eles e a conjuntura de sua diversidade. A isto chamaram os gregos de (physis):

Physis significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, re-gido e impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se conserva, se acham includos tanto o vir-a-ser como o ser, entendido esse ltimo no sentido restrito da perma-nncia esttica. Physis o surgir, o ex-trair-se a si mesmo

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do escondido e assim conservar-se [...] O ente como tal, em sua totalidade, physis (Heidegger, 1987[1953]: 45-47).

Contudo, physis no atribui-se apenas uma estrutura fun-damental de relaes ou o movimento-devir que rege todas as coisas. Nos poemas gregos cosmolgicos, do 7 ao 5 sculo AC, a prpria physis aparece como um protogenoi, um dos primeiros imortais a emergir no universo ao lado de elementos conhecidos da cosmologia grega, como Khaos, Eros, Gaia, Nyx e Khronos. Ela , portanto, uma pessoa. E como prova testemunhal da persis-tncia das idias durante as pocas de sua transio, no perodo clssico a palavra physis ainda conservava a qualidade de bro-tar, designando por fora das reminiscncias semnticas por trs das transformaes dos significados aquilo que brota por si mesmo e aparece. o que se v em Aristteles:

Chama-se physis ()3, em um sentido, a gnese das coisas que crescem, o que se depreende se pronunciarmos o (a letra upsilon do alfabeto grego) de forma alongada. Em outro sentido, a parte primeira e imanente de uma coisa que cresce, da qual provm o seu crescimento. Tambm aquilo de onde procede em cada um dos entes da physis o movi-mento primeiro, que neles reside constituindo sua essncia. (Metafsica. V, 4, 1014b 17 21. Parnteses acrescentados)

Ao pensarem a physis os gregos no apenas reuniam todos os entes, todas as coisas que so, e extraiam-lhes a vigncia comum ou o seu modo de ser como presena (a sntese unificante entre brotar [aparecer] e declinar [recolher-se e perecer]). Funda-mentalmente pensavam-nos no mbito dos prprios entes e do

3 As tradues do texto aristotlico trazem termos derivados da palavra latina natura (natureza, naturaleza, nature, etc.) em lugar de physis. No texto original, entretanto, a presena da palavra inequvoca.

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ser dos entes. Esta franca inclinao para pensar o ser dos entes como, por assim dizer, aparescncia (Andrade, 2007:178), foi determinada na experincia grega pr-filosfica pela po-sio que as imagens possuam como conectivos no processo de construo das estruturas que edificavam o mundo conhecido, processo este cujas formas anlogas esto presentes em demais modos de pensamento no metafsico (Andrade, 2007:182).

Um pensamento assim estabelecido no postula a radical di-ferenciao entre imanncia e transcendncia, pois nele os entes (as coisas existentes) so a partir de seu modo de ser (ou a partir daquilo que conhecemos simplesmente por ser). De acordo com uma expresso grega conhecida, (on h on o ente como ente) as coisas so pensadas a partir de sua presena e do modo como se apresentam enquanto (fenmeno, palavra cujo radical designa vir luz). Assim, na conscincia no metafsica imanncia e transcendncia so o mesmo, uma vez que a razo das coisas est nas prprias coisas (Cavalcante, 1992:103). Em resumo: no perodo cosmolgico de sua tradio quando ainda pensavam o mundo tendo por prumo o mito e a poesia os gregos concebiam o ser (ou o modo de ser dos entes) a partir do horizonte de manifestao dos entes, destacando-se nessa modalidade de apreenso do mundo duas qualidades prec-puas: percepo e relao.

Estes dois elementos, somados presena, so os constitutivos noticos da physis que, como procurarei demonstrar com o au-xlio da etnografia do xamanismo na regio do baixo Rio Oiapo-que e Rio Ua, fazem parte de todas as formas de conscincias mticas, transformaes daquilo que Lvi-Strauss chamou de pensamento selvagem para designar o pensamento analgi-co que approfondit sa connaissance laide dimagines mundi (Lvi-Strauss, 1962:348); e Merleau-Ponty (1945) disse ser uma ontologia selvagem. Estas caracterizaes no possuem, obvia-mente, qualquer vinculao com a mentalidade pr-lgica de Lvy-Bruhl, epteto da alma primitiva que entrega-se aos afetos

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e irracionalidade. O pensamento e a ontologia selvagens, assim como seus correlatos morfolgicos, esto no horizonte da racio-nalidade humana e, no constituindo formas irracionais de conhecimento (para acentuar o equvoco da expresso), podem indicar, entretanto, modelos de desrazo no sentido de revela-rem um conhecimento que, procedendo da unidade entre ima-gens e conceitos, est vontade com a contradio e o paradoxo. Esse o ponto precpuo que permite cotejar physis e xamanismo: ambos so modelos de racionalidade (ou de desrazo, conforme sublinhado) constitudos a partir de balizas cognitivas como presena, relao e percepo. Todavia, isso no quer dizer que essas formas estejam encapsuladas na sntese e sejam analitica-mente insuficientes; a radical distino entre sntese e anlise (coroada por Kant) parece ser nelas, simplesmente, insatisfat-ria. Deste modo no esto em desvantagem em face de modelos anlogos, como a filosofia ou a cincia, e mutilam-se quando reduzidas a essas em nome da descoberta de novas equidades no eixo norte/sul. O acervo de (fragmentos) escritos recuperados de physiokis constituem uma fonte importante acerca de um modo originrio de pensar o cosmos e cuja comparao com o pensa-mento xamnico de tradies orais amerndias pode ser bastante profcua. As distncias no tempo e no espao entre pajs amaz-nicos de hoje e os physiokis gregos que viveram h dois mil e setecentos anos so pouco importantes se considerarmos physis e xamanismo amerndio formas originrias (e, em certo sentido, intercambiveis) de pensamento sobre o cosmos lastreadas na presena, relao e percepo.

O salto radical que conduziria para alm e contra o pen-samento dos physiokis foi primeiramente experimentado com a especulao filosfica e metafsica: Pensar o ente a partir da idia, do supra-sensvel, o que distingue o pensamento que recebe o nome de metafsica (Heidegger, 2002:266). Longe de ser um imperativo do esprito humano presente em todas as pocas e ecmenos con-forme variantes regionais; e mais distante ainda de ser o maturar

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da razo alcanado inelutavelmente em tempos diferentes pelos homens, a filosofia um acidente, o acaso ocidental inventado pelos gregos clssicos que, alm de ascenderem a uma lgica das formas com a superao (que no, necessariamente, destruio) do mito, passariam a interpretar conforme este novo modelo de pensamento sua prpria mitologia (Detienne, 1981:211).

No Ocidente, o percurso da physis natureza consequncia do pensamento filosfico e da hegemonia da metafsica, tendo sido concludo com jbilo quando, ao final dessa trajetria, em solo moderno, a natureza torna-se no apenas um algo exterior ao homem, mas contra ele, possibilitando que Descartes disses-se que o homem deve ser dela Mestre e Senhor, dominando-a brutalmente; e Francis Bacon defendesse que o mtodo cientfico deva extrair-lhe os segredos por meio de torturas experimentais. Tal percurso, sendo criao da filosofia que, por sua vez, apenas um modo dentre vrios outros de pensamento complexo, no estar distribudo dentre todos os povos e nem mesmo de forma unvoca no domnio do pensamento filosfico. Restam, portanto, caminhos para outras physis.

Cosmologia no baixo rio oiapoque e rio ua

Passo agora a uma caracterizao sinttica da cosmologia na regio do baixo Rio Oiapoque e Rio Ua, buscando conexes entre esta e a physis pr-filosfica. O liame sero as pessoas invi-sveis, denominadas genericamente Karuna (Kamahads e Zamis em patois da Guiana Francesa), com quem os xams (doravante pajs) devem manter relaes amistosas a fim de mitigar o risco da predao, uma vez que os Karuna atuam tanto na causao quanto na eliminao de doenas. Percorrem, assim, domnios de relaes com os humanos estandardizados, nos vrtices, pela cooperao e pela predao; no obstante os Karuna sejam, a um s tempo, agentes de cura e de agresso por causao de doenas,

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aes contguas e separadas somente a posteriori. Entre os anos de 2004 e 2007 efetuei trabalho de campo na regio do baixo Rio Oiapoque e Rio Ua com os ndios Karipuna, Palikur e Gali-bi-Marworno4 e meu argumento que o xamanismo regional atribui aos Karuna o mesmo vigor de presena que Heidegger identifica nos entes da physis grega pr-filosfica. Ambos consti-tuem modos de experienciao do cosmos como presena e rela-o. Trata-se de pensar as intersees entre physiokis e pajs no que diz respeito aos modos como experimentaram aquilo que no Ocidente tornou-se natureza, concedendo que h um domnio originrio e fundamental de percepo da natureza de onde as aproximaes entre physiokis e pajs podem ser extradas.

Para comear, a cosmologia regional pensada a partir de dois espaos diferentes, porm contguos, habitados por pessoas com distintas capacidades, e conhecidos como Este Mundo e o Outro Mundo. Ambos apresentam subdomnios diferenciados ecologicamente (fundo de rios, mares, lagos e lagoas; floresta de terra firme; espao sideral; aldeias; cidades, etc.) e so marcados segundo os tipos de gentes que os habitam (invisveis generica-mente chamadas de Karuna ou Bicho e humanas). As pessoas invisveis constituem diferentes tipos de gente que, com recurso s transformaes e metamorfoses, inter-relacionam-se em oca-sies particulares (Vidal, 2007b: 24). Esse postulado cosmolgico mantm-se autnomo em face das ideologias crists h dcadas instaladas na regio, no obstante as interseces e membranas, como a correspondncia entre as pombas Hami ou Uaramin (um Karuna que fica no topo do Mastro instalado por ocasio do rito do tur) e a do Divino Esprito Santo; ou ainda a sobreposio

4 O trabalho de campo foi efetuado para elaborao de minha tese de doutorado (Andrade, 2007) e cumprido majoritariamente entre os Galibi-Marworno, populao praticamente concentrada em uma nica aldeia no curso mdio do Rio Ua. Os Galibi-Marworno constituem uma amlgama de ndios (principalmente falantes de lnguas caribe) e no ndios que confluram para o Rio Ua a partir do sculo XVIII devido s rotinas coloniais instaladas na regio de fronteira (Nimuendaju, 1926:60-61).

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de funes, como a cura atribuda, pelos Karipuna, aos santos catlicos e aos Karuna (Dias, 2000: 245; Tassinari, 1999:458).

da competncia do paj fazer a mediao entre os habitantes dEste Mundo (ou o mundo para os humanos) e do Outro Mundo, uma vez que apenas ele sendo, simultaneamente, humano e Ka-runa consegue alternar-se entre os pontos de vista de ambos. Essa habilidade mpar garantida pelo tipo de relao que sus-tenta com seus auxiliares invisveis ora parceiros, ora afins em potencial, ora consanguneos metafricos/efetivos com quem compartilha substncias (notadamente se for um filho de Bi-cho), alimentos, festa e caxiri. Como um filho de Bicho (ou paj de nascena) ter as mesmas capacidades e ponto de vista dos Karuna, pois seu verdadeiro pai um Karuna com quem sua me se enamorou quando menstruada. Segundo um paj karipu-na, nascido palikur: [...] Ele (o paj) enxerga, Bicho. A pessoa que paj, Bicho j. Os olhos dele no so como os seus. assim que o Bicho. Uma cobra passa por voc e lhe morde, sem voc nem v-la. Assim tambm com o Bicho: ele (o paj) lhe enxerga, mas voc no o enxerga. Paj Bicho [...] Se for pra Macap, pra Braslia, ele j est l, porque j est vendo todos os lugares por onde vai passar. J sabe tudo o que tem na frente. assim que (Raimundo Iaparr, maio de 2005)

Aps cada viagem, por vezes empreendida como visita aos parentes extra humanos, o paj retorna trazendo novos cantos aprendidos com os aliados Karuna; frmulas fitoterpicas que usar em seus pacientes ou pedidos que devero ser atendidos em troca de favores. sua condio ontolgica liminar parte humano e parte Karuna que permite os trnsitos contnuos entre Este Mundo e o Outro Mundo.

Uma pessoa dizer-se paj, todavia, no condio suficiente para que tenha seus poderes de cura ou de agresso reconheci-dos, capacidades decorrentes exclusivamente de relaes sus-tentadas com os Karuna. O que, de fato, serve como ndice do poder de um paj a fora persuasiva de suas narrativas sobre

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as viagens empreendidas ao Outro Mundo. Mais do que por suas habilidades de cura, os grandes pajs da regio so lembrados pelo total controle que mantinham sobre os Karuna hostis (genericamente chamados de Djabs), enfrentando-os com seus exrcitos de Karuna aliados e liberando para a ocupao huma-na os grandes rios da regio (Vidal, 2007a; Tassinari, 2003). A habilidade em domesticar Karuna hostis e perigosos, possibili-tando a vida dos humanos nEste Mundo, faz um poderoso paj e o habilita a entrar para a histria.

Como uma metfora superlativa dEste Mundo, o Outro Mun-do constitudo por grades cidades habitadas por pessoas belas e bem paramentadas, donas de capacidades e bens tecnolgicos superiores aos dos humanos. Cada cidade o lar de uma classe de pessoa invisvel, de modo que nelas habitam gentes diferentes que utilizam invlucros distintos a fim de sarem nEste Mundo como animais, plantas, fenmenos meteorolgicos, artefatos, etc. De acordo com um conhecido paj galibi-marworno da aldeia Kumarum: Cobra Grande tem palet, mas quando tira gente. Tudo, tudo, tudo tem palet. O que a gente est enxergando assim como bicho, cobra, animal, peixe, a gente enxerga, mas tudo com palet. Se tirar palet gente. Sem palet gente, a pr-pria gente (Lven, setembro de 2004)

Um Karuna uma pessoa invisvel do Outro Mundo que uti-liza invlucro chamado regionalmente de palet ou camisa5 a fim de transitar por Este Mundo metamorfoseado em animais como Cobra Grande, Jacar, Cotia, Macaco, Gara, Tucano; em plantas como Nuri-Nuri e Apicuriw; ou ainda em fenmenos meteorolgicos como Arco-ris ou Trovo, e artefatos, como Ka-ramat (uma clarinete ritual), Marac e Bancos zoomorfos. Toda-via, o palet no simplesmente um suplemento que concentra

5 Na etnologia das terras baixas sul-americanas esse invlucro tem sido chamado de roupa e envelope (cf. Rivire, 1995).

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as capacidades concernentes espcie que representa. O prprio invlucro um Karuna, posto possuir agncia e intencionalida-de, ao modo das pessoas em geral. Sem o invlucro um Karuna volta a ser uma pessoa com forma humanoide desprovida de poderes especiais associados s espcies de animais, plantas ou fenmenos meteorolgicos.

destes invlucros que provm as capacidades das pessoas in-visveis, de modo que o invlucro de Poraqu que permite a seu portador distribuir descargas eltricas ou fazer queimadas no campo, assim como o invlucro de Cobra Grande o verdadeiro responsvel pela fora descomunal e apetite voraz da pessoa da Cobra Grande. Uma vez de posse do invlucro, o Karuna ter de manter vigilncia constante sobre ele ou se arriscar a t-lo rou-bado por outros Karuna e por pajs humanos. Decorre da que um invlucro no est associado a uma pessoa invisvel como sua substncia. Ela poder perd-lo para outrem que o deseja e preci-sar cuidar, amide, para que isso no acontea. Como o prprio invlucro um Karuna ser necessrio manter para com ele relaes pessoa-pessoa, atendendo a um protocolo apropriado de reciprocidades que define o cosmos como amplo domnio de relaes de domesticao e subordinao de intencionalidades, possibilitando estabelecer uma hierarquia conjuntural entre os entes e no essentias pertinentes s qualidades sujeito e objeto (Andrade, prelo).

Embora mutuamente irredutveis, o Outro Mundo e Este Mundo esto conectados por passagens por onde emergem inadvertidamente os Karuna. Tema recorrente na cosmologia regional, o aprisionamento desses Karuna invasores em cma-ras no interior dos grandes rios da regio (Oiapoque, Urukau, Ua e Curipi) a marca da grandeza dos pajs de outrora cujos poderes no se esgotavam no combate potncia letal dos Karu-na. Todavia, a hostilidade e a predao no so substantivas dos Karuna (os prprios pajs s curam por meio deles) e o aspecto principal da vida no Outro Mundo a ampla distribuio da pes-

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soa. Pois o que nEste Mundo (ou na perspectiva dos humanos) seriam objetos, a exemplo de manufaturas e bens industriais, no Outro Mundo so Bicho, isto , pessoas com intencionalidade: automveis, barcos, cadeiras, etc. Se as coisas no Outro Mundo so simtricas na condio de Bicho ou Karuna, suas potncias, todavia, so dessemelhantes, revelando que as capacidades ati-nentes s pessoas em geral, visveis e invisveis, so produtos da eterna domesticao de intencionalidades alheias. Assim que os pajs tm de amansar os Karuna que os assediam durante o processo inicial de xamanizao a fim de obterem poderes mlti-plos; os Karuna, por sua vez, precisam manter controle sobre os palets que portam, pois Bicho tambm. E at mesmo na periferia deste sistema de relaes como nas prticas dos pots ocorre a domesticao da agncia da palavra, por meio de sua enuncia-o propositiva. O cosmos, assim, sintetizado como mltiplos processos de domesticao e controle de intencionalidades que compem um tecido eternamente beira da ruptura integral.

Na escala de capacidades, os mais poderosos Karuna so, segundo os Galibi-Marworno, os mestres ou senhores de espcies animais e vegetais chamados de rei ou me de suas respecti-vas classes. Trata-se de pessoas invisveis que usam palet cuja forma e potncia so atinentes a uma espcie (ou ainda a suas subclasses, como da piranha vermelha), cabendo a elas zelar por seus pares subordinados. s vezes apenas o mestre de cada espcie animal ou vegetal percebido como uma pessoa invis-vel, pois, ao contrrio de seus congneres empricos, so como um presidente ou um Governo que fica l no Outro Mundo monitorando o que se passa com seus filhos n Este Mundo. So com essas pessoas invisveis que os pajs negociam a liberao de espcimes para fins de caa, a concluso do assalto de pragas s roas e o auxlio na efetuao de curas ou de agresso por meio de doenas. Por conseguinte, elas so Karuna poderosos e devem ser domesticadas por meio de alianas cuja sedimentao inclui a realizao de turs a fim de minimizar o risco da agresso.

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As pessoas invisveis: physis e xamanismo

Todo Karuna potencialmente letal, embora sejam eles que sustentem, por meio dos pajs, a clnica xamnica. A efetiva-o da agresso ou da cura no decorre, necessariamente, de qualidades inflexveis atribuveis a cada Karuna, uma vez que esses entes no podem ser classificados segundo essentias trans-cendentais amparadas no conceito.6 Sendo assim, as definies a eles atribudas so volveis, de ordem sensvel e relacional, e admite-se dizer que os Karuna so definidos a partir de sua apa-rescncia (Andrade, 2007) ou de seu horizonte de manifestao circunscrito pelas relaes que mantm com os humanos. Em seu horizonte de manifestao, todo ente um ser com ou um ser na diferena, no existindo para alm da relao com outro ente. Qualquer essentia transcendental para os Karuna seria, portan-to, inevitavelmente equvoca. Todavia, as coisas no repousam no vazio. H atributos primrios e necessrios que evocam pro-priedades sensveis, como invisibilidade e intolerncia ao cheiro de mnstruo (para uns Karuna), a rudos de aparelhos eletro--eletrnicos, luz e ao cheiro de peixe.

A esses atributos acrescente-se gosto por: caxiri, cheiro de mnstruo (para outros Karuna), cerveja industrial e/ou cacha-a e tawari e/ou cigarro industrial.7 Por seu turno, os atributos

6 Refiro-me noo platnica (isto , metafsica) de Idea. Dela podemos derivar o conceito como monlogo das ideias que transcorre no palco paralelo quele onde esto os objetos sensveis e que, por sua vez, formam um subconjunto da realidade.

7 A tolerncia a barulhos e preferncia por bebidas e fumo dependem da proveni-ncia do Karuna. Os pajs galibi-marworno e karipuna podem dispor da assistncia de pessoas invisveis que habitam rios, igaraps ou o mar; os espaos astral e celeste; o interior da floresta grossa ou ainda que so provenientes das imediaes de cidades como Amap, Cassipor, Macap, Belm, Saint Georges e Tampac. Karuna asso-ciados a aldeias exteriores rea indgena (notadamente Camopi, no alto Oiapoque) so mais raros, contudo ocorrem. Os Karuna habituados ao consrcio com pajs brasileiros so menos melindrosos e manifestam preferncias por coisas de branco, como cerveja industrial e/ou cachaa (em lugar do caxiri) e cigarro indus-trial (em lugar de cigarro de casca de tawari).

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secundrios e contingentes so morais e decorrem da agncia distribuda entre os Karuna e potencialmente presente entre todos os entes do Cosmos. So tais predicados (como curador, namorador, de feitio, etc.) que criam uma persona para os Karuna conforme o contexto de relaes que a qualificar. E em-bora a inconstncia e mudana sejam prprias de tal persona que se transforma de acordo com os cenrios de aparescncia, certos Karuna possuem tendncia a agirem de maneira algo previsvel, desde que se mantenha com eles a mesma qualidade de relaes.

Os predicados morais no podem ser constitutivos de uma essentia extra relacional para os Karuna por causa dos pontos de vistas plurvocos presentes em cada encontro entre eles e os humanos. Se para o paj a verdadeira causa mortis de uma partu-riente foi o rapto de sua alma pelo Djab Ho-ho, para este sua ao ser busca por mulher, posto que o rapto de almas humanas pelos Karuna expediente comum de efetuao da afinidade. Uma vez entes de intencionalidade, este atributo que far com que os Ka-runa sejam capazes de vontade e ao e predicados nas circuns-tncias e no previamente recorrendo-se a uma essentia transcen-dental. E isso verdadeiro para demais entes no imediatamente Karuna, mas pessoas invisveis que sustentam relaes poten-ciais com os humanos e que ocupam um lugar na interface com as coisas. Pois o que os Karuna so depende de como so.

Disso resulta que a diferena entre os entes no a fonte pre-cpua de perigo. A ameaa sntese de uma identidade origin-ria que, ao unificar todos na condio de ente (isto , contguos pela aparescncia), cria a identidade entre tudo o que . Pois uma vez equipolentes os entes (humanos e extra humanos; visveis e invisveis) implicam-se mutuamente. A aparescncia , assim, o concreto princpio da agncia. Tal postulado explica a agncia patolgica dos Karuna e a possibilidade de neutraliz-la me-diante ao xamnica que atua domesticando e dirigindo agn-cias extra humanas, uma vez que a anttese de uma agncia somente uma outra agncia.

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a identidade expressa pela aparescncia que traz luz ca-pacidades comuns responsveis pelo perigo de interveno dos Karuna no cotidiano social e no a diferena entre os entes. A diferena acresceria (e no fundaria) o perigo que provm da identidade porque, no domnio da alteridade, a capacidade fun-damental de ao est potencialmente fora de controle, agravan-do o risco da agresso. E a melhor maneira de afastar o risco imi-nente da interferncia dos Karuna controlando ritualmente sua agncia. A capacidade de um ente de agir sobre outro ente o resultado decisivo da identidade originria fonte da intenciona-lidade, de maneira que a agncia o valor equipolente dos entes e no qualquer referncia a um self destilado em subjetividade. Segundo uma frmula de Heidegger: No sentido de seu raio ilimi-tado de aes todos os entes se equivalem. Um elefante numa floresta virgem da ndia to bem um ente quanto um fenmeno de combusto qumica no planeta Marte ou qualquer outra coisa (1987[1953]: 35). Pensamentos originrios cujo fundamento a equipolncia dos entes partem de um princpio de identidade formulado a partir da diferena e da pertena do diverso unidade do mltiplo.8 Essa equipolncia determina a agncia de entes extra humanos descrita larga nas cosmologias amaznicas, consentindo sua caracterizao como pessoas. E no limite, no h distines subs-tanciais entre humanos e extra humanos, mas gradaes, seja conforme a extenso das agncias, ou as qualidades possveis de trocas de informaes baseados em aptides lingusticas, como revelam, por exemplo, os Achuar (Descola, 1998: 26).

A distribuio da pessoa , por conseguinte, o marcador principal da vigncia de uma racionalidade no metafsica. Onde h pessoa, h agncia e, logo, relao, uma vez que o estatuto de pessoa corresponde capacidade de gerar e sustentar relaes

8 Tal unidade a physis e a identidade fundada na diferena que ela comporta deve ser pensada como determinante do ser, que um trao desta identidade. De modo contrrio identidade metafsica, amparada no princpio da unidade do mesmo consigo mesmo e representada como um trao do ser (Heidegger, 1968: 262).

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recprocas (Hamlyn, 1984: 201-202). A agncia (e ainda psyche e zoe, em termos heideggerianos) decorrente da relao e no sua condio. Inversamente, quando as possibilidades e qualidades de relaes decorrem da no distribuio da pessoa, estabele-cem-se hierarquias e separaes expressas por antteses como sujeito/objeto; intencionalidade/objetividade; pessoa/coisa, etc. No domnio metafsico no h equipolncia, posto que a essentia de cada termo que determina sua posio e qualidade frente a termos alternos.

Se as racionalidades que distribuem psyche e zoe so no metafsicas, os modelos utilizados pela antropologia e que visam simetrizao de termos tradicionalmente polares a fim de compreender fenmenos recentes como aqueles que emergem do domnio da automao, esmaecendo as fronteiras entre o tcnico e o social, entre as coisas e os sujeitos (Latour, 1988, 1999; Ingold, 2000) so ps-metafsicos. Em ambos os casos, a simetrizao sntese da distribuio da pessoa, esta tambm a causa eficiente de agncias extra humanas.

Para terminar

Racionalidades anmicas estejam elas representadas pelos physiokis gregos, pelos pajs amaznicos ou pelos caadores do crculo polar rtico tm em comum a precedncia da relao sobre a categorizao de entes, permitindo mundos concretos onde a natureza o devir das relaes entre entes. E, conce-bendo um ente como aquilo que ou o que se mostra, a percepo sai na frente no processo de construo de mundos. Como todo ente um ser com, i.e., nunca est s em seu horizonte de mani-festao, a relao o a priori, pois o primeiro elemento captado em um mundo sempre sendo. Tudo transcorre como se tal movi-mento-devir ele mesmo confundido com a physis permitisse apenas a aplicao aos entes de definies contingenciais mais

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ou menos durveis conforme seus horizontes de manifestao. Dizendo de outra forma, o acaso moral atribudo aos Karuna galibi-marworno devido sua agncia e vontade potenciais (psyche) tanto testemunha do trasbordamento dos valores para alm do universo que determinamos humano (em oposio ao natural) em funo de uma exigncia do signo (Lvi-Strauss, 1962:30) como parte da empresa das classificaes sensveis que exprimem as transformaes e o devir das coisas enquanto resultantes da imponderabilidade do mundo concreto.

Em ternos cognitivos, poderamos assimilar tais operaes vigncia daquilo que Stephen Mithen (2002), um arquelogo da mente, chamou de fluidez cognitiva, resultado da sincronia entre mdulos mentais especializados (relativos linguagem, habilidades social e tcnica, explorao do meio ambiente, etc.) e a inteligncia geral que constituem a mente humana atual (muito baseada na mente dos caadores coletores do Pleistoceno), fazen-do-a adquirir uma verdadeira paixo por metforas e analogias (ib.: 113). Physis, entanglemente e o xamanismo amaznico seriam, assim, o processo normal (i.e., no anmalo) de percepo daquilo que chamamos de natureza, posto decorrem do uso integrativo das capacidades cognitivas humana. Inversamente, nossa percepo de natureza fabricada na ausncia da flui-dez cognitiva responsvel pela imaginao e criatividade que anmala e que, segundo bem observou Ingold (2006), merece uma explicao.

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