A Pintura Vol. 8 (Descrição e interpretação_ Panofsky, Sobre o problema da descrição e...

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A PINTURA Cole^ao em 14 volumes 1. O mito da pintura 2. A teologia da imagem e o estatuto da pintura 3. A ideia e as partes da pintura 4. O belo 5. Da imitacao a expressao 6. A figura humana 7. O paralelo das artes 8. Descricao e interpretacao 9. O desenho e a cor 10. Os generos pictoricos 11. As escolas e o problema do estilo 12. O artista, a formac.ao e a questao social 13. O atelie do pintor 14. Vanguardas e rupturas Dire^ao geral de Jacqueline Lichtenstein Colaboracjio de Jean-Franfois Groulier, Nadeije Laneyrie-Dagen e Denys Riout ,.y>/ 7 ^^/^^^^^^^ ,^" A PINTURA Textos essentials Vol.8 Descricao e interpretacao Apresentafao Jean-Francois Groulier Coordenacao da tradufao Magnolia Costa editoraH34

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A PINTURA

Cole^ao em 14 volumes

1. O mito da pintura

2. A teologia da imagem e o estatuto da pintura

3. A ideia e as partes da pintura

4. O belo

5. Da imitacao a expressao

6. A figura humana

7. O paralelo das artes

8. Descricao e interpretacao

9. O desenho e a cor

10. Os generos pictoricos

11. As escolas e o problema do estilo

12. O artista, a formac.ao e a questao social

13. O atelie do pintor

14. Vanguardas e rupturas

Dire^ao geral de

Jacqueline Lichtenstein

Colaboracjio de

Jean-Franfois Groulier,

Nadeije Laneyrie-Dagen

e Denys Riout

,.y>/ 7

^^/^^^^^^^ ,^"

A PINTURATextos essentials

Vol.8Descricao e interpretacao

Apresentafao

Jean-Francois Groulier

Coordenacao da tradufao

Magnolia Costa

editoraH34

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Editora 34 Ltda.

Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000

Sao Paulo-SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright da edicao brasileira © Editora 34, 2004La Peinture © Larousse, 1995

La Peinture © Larousse, 2004

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encarregado da cultura — Centre Nacional do Livro.

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Capa, projeto grafico e editoracao eletronica:

Bracher dr Malta Producao Grafted

Revisao da traducao:

Cide Piquet, Marina Kater

la Edicao - 2005 (la Reimpressao - 2008)

Catalogacao na Fonte do Departamento Nacional do Livro

(Fundacao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

Lichtenstein, Jacqueline (org.)

L696p A pintura — Vol. 8: Descricao c interpretacao /

organizacao de Jacqueline Lichtcnsrein; apresentacao

de Jean-Francois Groulicr; coordenacao da traducao de

Magnolia Costa. — Sao Paulo: Ed. 34, 2005.160 p.

ISBN 85-7326-325-3

1. Artes plasticas - Pintura - Cri'tica e historia.

I. Groulier, Jean-Francois. II. Costa. Magnolia.III. Titulo. IV. Serie.

CDD-750.1

A PINTURA

Nota da edicao brasileira 7

Vol.8

Descricao e interprera^ao 9

Cesare Ripa, Iconologia ("Introducao") 21

Jean-Baptiste Du Bos, Reflexoes criticas

sobre a poesia e a. pintura (I, 24) 34

Michel Frar^ois Dandre Bardon,

Apologia das aleyorias de Rubens e de Le BrunI o o

introduzidas nas galenas do Luxemburgo

e de Versailles ("Nota preliminar") 54

Louis Reau, Iconogmfia da arte crista

("Prefacio") 66

Erwin Panofsky, Sobre o problema

da descrifdo e interpretacao

do conteudo de obras das artes pldsticas 83

Erwin Panofsky, "Et in Arcadia ego ":

Poussin e a tmdi$ao elegiaca 110

Werner Weisbach, "Et in Arcadia ego" 133

Otto Pacht, Questoes de metodo em historia da arte 146

Relacjio dos tradutores 158

Sobre os organizadores 159

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Descri^ao e interpreta^ao

Jean-Francois Groulier

O conceito de interpreta9§o, tal como progressiva-mente se constituiu na historia da arte, nasceu do cruza-r

mento de diversas disciplinas. Ele e quase contemporaneodo desenvolvimento da hermeneutica no dominio das le-tras, da filosofia e das ciencias religiosas. Se o conceito naocessou de se redefinir segundo as diferentes contributesdas ciencias humanas, da filosofia, a interpretacao das obraspictoricas e uma atividade literaria e critica que desde a An-tiguidade sempre se exerceu. No entanto, que a interpreta-cao dos quadros tenha sido sempre uma pratica natural,assim como o julgamento de valor sobre as obras, e umaafirmacao que exige serias reservas. Com efeito, decifraruma significacao ou avaliar as produces artisticas sao pra-ticas especificas, mais ou menos dominantes em certas epo-cas da cultura ocidental. Assim como a beleza ou a harmo-nia, essas nocoes nao sao universais, e sabe-se que elas naodeixaram de ser fortemente contestadas, em nome seja dopositivismo, seja do relativismo cultural. Um dos primei-ros testemunhos que possufmos de formas de interpretacaoe seguramente a Ekphrasis, describe das obras de arte nas-cida da tradicao retorica. Embora nao corresponda a des-cri^ao no sentido moderno da palavra, a "pintura" feita porHomero do escudo de Aquiles anuncia um genero litera-

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A pintura

rio que os sofistas freqiientemente praticarao e que as Ima-gens de Filostrato a proposito dos afrescos de Napoles ilus-tram. Essa origem retorica da Ekphrasis como genero des-critivo fez dela o paradigma do discurso sobre a pintura atehoje, pelo menos no domi'nio literario. Quer se trate dateoria da arte, da critica de arte ou de ensaios mais gerais,a descri9ao foi sempre um genero dominante, desde os so-fistas ate os escritos mais contemporaneos. O leitor encon-trara multiples exemplos disso em cada um dos volumesdesta compila9ao.' Essa forma discursiva se nutre, porem,de algumas ambigiiidades que um discurso mais "cienti-fico", como o da historia da arte, nao pode dissipar intei-ramente. Com efeito, descrever as qualidades mais desta-cadas de uma obra, sua singularidade e sua alteridade es-sencial, exige uma arte do matiz, uma acuidade do olhar eum senso da evoca9ao, de modo que a referenda ao obje-to corre geralmente o risco de ser eclipsada pelo talento, eate mesmo pela subjetividade exclusiva daquele que des-creve. Donde o perigo de derivas, de logomaquias as maisdiversas e de saberes complacentes que pesam sobre todadisciplina, literaria ou nao, e contra os quais precisamentese constitui'ram modelos de interpreta9ao mais rigorosos emais sobrios. O fato e que, sem um conhecimento claro deseus proprios procedimentos de decifra9ao, toda descri9aoja e uma interpreta9ao da obra de arte. As descri9oes de um

' Ncs.sc scntido, a maior pane dos tcxtos rcprodu/.idos ncsta eolecao

poderia scrvir para ilustrar A qucstao da dcscrieao c da interpretacao. Ncstc

volume, opiamos por insistir sobre dois aspectos do probicma, de resto

insepanivcis: a alegoria e a iconologia. A alcgoria, por sua coinptexidade, e

de fato um objeto tie inierpretacao por cxcelcneia. Quanto a iconologia, ela

forneceu, no scculu XX, modelos de invcstigacao e de proccdimento de um

grande rigor.

Descri^ao e interpreta^ao

Vasari durante o Renascimento ou de um Bellori no seculoXVII continuam presas ao modelo retorico, como demons-tram a divisao e a ordem dos discursos. E assim que, naslongas analises dos quadros de Guido Reni ou de Sacchi,Bellori em primeiro lugar evoca, para cada um, o argumen-to da fabula, isto e, a ideia que anima a narra9ao; depoisintroduz a descri9§o propriamente dita, para em seguidadestacar o sentido ultimo da represenr^ao, acrescentandoas vezes observa9oes de ordem estilistica. Ao reproduzirmais ou menos a ordem das partes do discurso prescritapela retorica classica, a descri9§o se ordena em fun9§o dain&en9ao, que corresponde ao argumento da fabula, indoa seguir da disposi9ao ate a 3930. Ela implica portanto umaarte da interpreta9ao, ja que os autores analisam o quadropane por parte, figura por figura, ate que seja estabelecidaa significa9ao da representa9ao. O percurso do olhar do es-pectador devia se conformar a uma ordem ja preestabe-lecida pelos topoi da retorica, da historia sagrada e profa-na, e segundo as categorias proprias da pintura (inven9ao,composi9ao das figuras, disposi9ao etc.). Acreditando na

^obje^yijdade das regras e dos principios que concorrem paraa cria9§o de um quadro de historia ou de uma cena de ge-nero, os teoricos classicos nao podiam conceder senao umamargem muito estreita ao inevitavel arbftrio da leitura darepresenta9ao.

E corn o reconhecimento dos direitos da subjetivida-de e da "experiencia estetica" que se desenvolve a ideia deque a obra e suscetfvel de miiltiplas abordagens, portantode miiltiplas interpreta9oes. A concep9ao mais ou menosdifundida segundo a qual a compreensao da pintura, in-clusive a mais codiflcada, nao exige nem regras nem crite-rios de validade, e ainda hoje muito aceita. A cren9a naimediatez do prazer estetico, sem o recurso a fontes tex-

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A pintura

tuais, permanece muito forte. Ora, o seculo XIX e o seculoXX assistiram a iniimeros esforcos com o intuito de fun-dar, para alem das disciplinas historicas, teorias da interpre-ta£ao que apresentassem criterios satisfatorios de objetivi-dade. No im'cio do seculo XX, o metodo de Wolfflin pro-cura explicar o valor de uma obra de arte pelo primado daforma plastica e pelo grau de autonomia que distingue averdadeira criacao arti'stica das inumeraveis producoes deuma epoca.2 For sua vez, Riegl, autor de Stilfragen [Ques-toes de estilo] e de Spatromische Kumtindustrie [As artesaplicadas no Imperio romano tardio], introduz em seus tex-tos um conceito destinado a esclarecer o principio dinami-co operante nas mutacoes das artes, o de Kunstwollen, istoe, vontade arti'stica.3 Ele o definiu assim: "Nas questoes deestilo, em oposi9ao a concep9ao mecanica da natureza daobra de arte, propus uma hipotese teleologica, por ter vis-to na obra de arte o resultado de uma vontade arti'stica de-terminada e consciente que se poe no lugar, apos um durocombate, da materia e da tecnica".4 Esses procedimentos,formalistas ou historicistas, foram fecundos na medida emque abordaram a questao da forma abandonando a expli-cacao baseada no simples exi't'o tecnico. Mas o desenvol-vimento crescente das pesquisas iconograficas desde o se-culo XIX favoreceu a constituic.ao de modelos de analise

2 Hcinrich Wolfflin (1864-1945), disctpulo dc Burckhardt. Suas

obras principals sao Renascimeiito e Harrow (1888), A arte clAssica ( 1 899) e

Principius fundamentals da bistoria da arte (1915).

' Alois Ritgl (1858-1905), figura niaior da chamada cscola dc Vic-

na. Suas ohras principals sao Stilfr/igeii (1893), tradu/ida cm Frances por

Questions de style (1'aris, Ha/an, 1992), c Spiitmtnische Kumtindustrie (1901).

'* Spiitroiniscbe Kinistiiidiistrie, p. 9.

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< , . . Descrigao e interpretagao

mais complexes, mais aptos a tornar inteligi'vel o conjun-to das relacoes proprias aos sistemas simbolicos, tais comoa arte medieval ou a pintura do Renascimento italiano. Ini-cialmente ativa na Franca, a disciplina da iconografia sur-ge no seculo XIX, tendo originalmente por finalidade ape-nas contribuir para o crescimento das ciencias religiosas.Em 1848, A. Crosnier a define como uma "ciencia dasimagens".^ Pouco a pouco, todos os trabalhos sobre a ico-nografia crista se integram no corpo da historia da arte.Emile Male6 os submete a uma analise rigorosa, tomandopor base os textos medievais, criticando eventualmente osimbolismo excessivo de seus predecessores. As pesquisas daescola historica alema no seculo XIX resultam na formacaode vastos repertories relatives a mitologia antiga e se dis-poem, por sua vez, a sistematizar a iconografia crista, asvezes no quadro de uma "monumental teologia". Desdeentao, longe de se reduzir a uma simples disciplina auxi-liar, mais ou menos empirica, a iconografia se torna ummetodo de analise cujos progresses se baseiam num rela-cionamento constante das formas visuais com redes de re-ferencias textuais. A medida que os procedimentos de ana-lises formais e' psi'eologicas se revelam insuficientes na ex-plicacao da representacao pictorica, as investigates ico-nograficas mostram como as obras sao subterraneamentesolidarias aos modos de pensamento cientificos, filosoficos

A. Crosnicr, Iconographie chretienne, Caen, 1848. Ver, igualmen-

te, Didron, Iconographie chretiennc, bistoire de Dieu, Paris, 1843.

6 Emile Male (1862-1954), L'Art religieux du XllF siecle en France

(I 898); /, 'Art religieiix dc la fin du Mnyen Age en France (1908); L 'Art re-

ligieux du XII' siccle en Frnnce (1922); L 'Art religictix it/ires le Concilc de

(1932).

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A pintura

ou teologicos de uma epoca. Alem disso, a consideravelcontribuicao da Kulturgeschichte representada por JakobBurckhardt7 ou Aby Warburg8 orientam os estudos parauma concepcao mais globalizante das obras.

"A iconografia e esse ramo da historia da arte que serelaciona ao tema ou a significacao das obras de arte, poroposicao a forma." Em sua generalidade, essa defini^ao deiconografia dada por Panofsky nao se distingue particular-mente das outras defini^oes fornecidas antes dele. Ela dis-tingue em primeiro lugar dois m'veis de significacao: o sen-tido fenomenico, tal como se manifesta na percepcao ime-diata, e o sentido semantico, que corresponde ao da icono-grafia tradicional, e ao qual o autor acrescenta uma histo-ria dos tipos destinada a atenuar as insuficiencias da abor-dagem estilfstica da obra.y O segundo nivel, o semantico,nao deixa de apresentar dificuldades tecnicas, no sentido deque nao basta relacionar as fontes textuais adequadas como tema do quadro. E precise ainda encontrar, no caso deuma identificacao problematica do tema, um criterio de va-lidade que confira objetividade aos enunciados do histo-riador. Para essa finalidade, Panofsky propoe constituir

7 Jakob Burckhardt (1818-1897), historiador da arte suic,o. Siias obras

principals sao A cwilizaftio do Renasfimento na Italia (I860) c o ('icerone

(1855).

s Aby Warburg (1866-1929). Ami go c colaborador de Saxl c dc 1'a-

nolsky, seus cscritos foram rcunidos c publicados apos sua mortc (O Ke-

iiiisciineiito do/uigaiiisiHo rintigtr, 1932). Alguns artigos foram cradu/idos para

o Frances cm Essitisflureiithis, Paris, Klincksieck, 1990. Warburg constituiu

cm Hamburgo uma imcnsa bibliotcca dc historia da arte que loi transrcrida

para l.ondrcs cm 1933, transformando-sc no cclcbrc Warburg Institute.

'' Esses dois ni'vcis sao rcprcscniados nos csqucmas rcprodu/.idos mais

adiaiuc ncstc volume, no haul do primeiro icxto de 1'anolsky.

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'':Descrir;ao e interpreta?ao

uma historia dos tipos. A determinacao do tipo — porexemplo, Judite na Italia setentrional do seculo XVI — de-pende da maneira como uma epoca utilizou os elementose os atributos que permitem identificar os personagens in-troduzindo variances que se devem, as vezes, a uma modae a uma reinterpretacao do texto. Em todos os casos, so-mente uma fonte textual pode vir confirmar a hipotese quea iconografia formula diante de uma obra, e a func.ao dahistoria dos tipos e servir de resguardo contra todo risco deidentificacao erronea do tema. O terceiro m'vel, o do senti-do documental, mostra toda a ambi9ao do projeto teoricoque e totalizar o conjunto das relacpes possiveis compreerj-didas no ato da interpretacao e em seu objeto. Para isso,Panofsky introduz duas novas referencias: a do espectador(o historiador), tendo ele proprio categorias de percep9§oque remetem a uma visao de mundo determinada, e a deuma historia geral das ideias, que condiciona em profundi-dade o sentido ultimo da obra de arte como sintoma de ou-tra coisa, isto e, como estrutura simbolica. E esse movimen-to de totalizacao de todos os saberes possi'veis relativos auma composite pertencente a um perfodo preciso da his-toria da arte que Panofsky denomina, nos anos 1930, ico-nologia, tomando emprestado esse termo de Cesare Ripa.

O interesse do esquema interpretative que o autorpropoe e evidenciar a extrema complexidade da respostaque o metodo iconologico da a questao que cada um terno direito de fazer diante de um quadro, a saber: "O que issorepresenta?". Assim, diante de uma das composicoes da se-rie de Maria de Medicis de Rubens, uma coleranea de ini-tologias da epoca pode nos informar sobre a fui^ao dos atri-butos de um deus (Merciirio ou Netuno): esse e o m'vel do"sentido semantico". O "corretivo objetivo da interpreta-cao" que Panofsky indica em seu esquema poderia ser ilus-

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A pintura

trado com o auxi'lio dos testemunhos que reproduzimosaqui a proposito do debate entre Du Bos e Dandre Bardonsobre o estatuto da alegoria. Esses documentos vein opor-tunamente lembrar a historicidade de toda interpretacaona medida em que esta pertence a uma Weltanschauung, auma visao de mundo. O modelo de interpretacao que Pa-nofsky elaborou e certamente apenas uma tentativa entretodas as que marcam sua obra. Mas ele renovou profunda-mente diversas problematicas, como a das redoes do tex-to e da imagem, do estatuto da forma simbolica na arte eda significacao imanente a toda forma. Alem disso, ele mos-tra como toda leitura "selvagem" de um sistema simbolico.esta fadada a interpretacao ingenua, enquanto se ignora-rem as fontes textuais e as multiplas determina9oes sub-jacentes a percepcao artistica. Como disse Gombrich: "Oque se ve depende do que se sabe".1() A vantagem de tal me-todo e responder de maneira mais precisa as duas questoesessenciais que a iconografia prop5e, a saber: "Qual e o sen-tido deste quadro?" e "Qual era a inten9ao do artista que oexecutou?". Cada uma das duas questoes exige na maioriadas vezes uma referenda a textos que comprovem a vonta-de do pintor ou de quem encomendou a obra, ou que re-metam a circunstancias mais complexas. Essas duas ques-toes guardam estreita correlacao, visto que o sentido que ohistoriador revela na obra (atributos, indices, modos de nar-racao do quadro) permanece indeterminado enquanto ne-nhum documento informar sobre a intencao verdadeira dopintor ou sobre o assunto exato do quadro. Sabe-se que

'" Ernst tiombrich (1909-2001), ingles dc origcm austn'aca, foi um

dos miiiores historiadorcs da arte do seculo XX. Suas principals ohras sao

Ait tind illusion (I960), Norm and jonn (1966) c Symbolic images (1972).

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Describe e interpretacao

obras maiores, como a Tempestade de Giorgione ou as com-posi^oes de Hieronimus Bosch, continuam enigmaticaspor falta de documentos ou de provas que venham confir-mar as inumeraveis hipoteses formuladas a seu respeito. Aresposta as duas questoes constitui portanto a condicao mi-nima para uma interpretacao correta, ou mesmo justa, namedida em que ela e verificavel, comunicavel e pode aspi-rar a uma certa objetividade. Resta saber se a obra e passi-vel de uma ou de varias interpreta^oes justas. Esta e decer-to uma questao tradicional, mas ela e tambem seguramen-te dificil. Com efeito, trata-se de uma das questoes que fo-ram e continuam sendo mais asperamente debatidas peloshistoriadores da arte e pelos teoricos. Responder a essa ques-tao so seria possivel se se analisassem todos os pressupostossobre os quais repousa o conceito mesmo de interpretacao.O metodo do historiador da arte permanece assim expostoa dois perigos: de um lado, a pretensao a interpretacao lini-ca, justa, mas exclusiva e dogmatica; de outro, a reivindi-cacao a pluralidade de interpreta9oes, a qual contesta im-plicitamente toda cientificidade no procedimento histori-co e interpretative, dando-se o direito a arbitrariedade e aimprovisacjio, e ate mesmo a superinterpreta9ao.

A pertinencia desse principio pode naturalmente apli-car-se a propria iconologia enquanto procedimento as ve-zes suspeito de hegemonia nas disciplinas da historia daarte. Com efeito, e legitimo atribuir um lugar preponde-rante a iconologia no problema da interpreta9ao? Seria pre-ciso, sem diivida, evocar as multiplas tentativas feitas pelapsicanalise, pela sociologia ou pela semiologia de ultrapas-sar a etapa da simples compreensao (mais ou menos intui-tiva ou impressionista) e chegar enfim a uma explica9ao doato criador e da obra. Essas pesquisas certamente puderammostrar sua fecundidade e lembrar a necessidade de nos

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A pintura

prevenirmos contra a ilusao da interpreta9ao global e ex-clusiva, ja que toda abordagem permanece fundamental-mente determinada pela perspectiva na qual se inscreve. Aiconografia e o metodo iconologico como tecnica de inter-pretacao constituern um acesso privilegiado as obras, masnao o unico. O modelo teorico que empregarn, fortemen-te enraizado nas concepcoes humanistas e na tradicao eru-dita, foi o que mais produziu esquemas, investiga9oes ine-ditas, conceitos, redescobrindo inumeros sistemas de for-mas e de signos atraves do ato de recriacjio especifico dapesquisa historica. De resto, ele nao e obra exclusiva dcPanofsky, mas o resultado de multiplas pesquisas condu-zidas pelas escolas alemas. Contudo, o criterio de fecundi-dade proprio a uma disciplina nao deve fazer esquecer seusresukados por vezes contestaveis. De fato, inspirado emmetodos hermeneuticos, na filologia e mesmo na exegesemedieval, o metodo iconologico postulava necessariamen-te a existencia de uma certa textualidade da imagem, istoe, que toda representacao so era inteligfvel por referendaa esquemas, a correntes de ideias ou de crencas, portantoa textos. Quando se trata de determinar a influencia doneoplatonismo na obra de Michelangelo, tal procedimen-to e manifestamente legitimo. Por outro lado, os exitos dometodo nao deixaram de alimentar em muitos pesquisa-dores uma confian^a excessiva no poder referenda! do dis-curso como fonte quase linica de significacao. A historia daarte e a iconologia sao disciplinas universitarias, portantodisciplinas naturalmente praticadas por homens de letrashabiruados a conceder a priori uma primazia exorbitantea linguagem em detrimento das outras praticas significan-tes. A sedu^ao que exercem palavras como interpreta/^ao,sentido, leitura, decifrafno, signo iconico, nao deve fazer es-quecer que elas sao apenas nietaforas e metom'mias, mais

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,.... ..Descri^ao e interpreta^ao

proximas de nossa relacao com a escrita do que com nossapercepcao efetiva de uma obra pictorica. Elas ja pressu-poem implicitamente uma textualizacao da imagem antesde todo ato de interpretacao, se nao mesmo antes de todoolhar. Ora, mesmo em suas estruturas mais simbolicas, arepresentacao pictorica nao conduz a palavra. Do mesmomodo, a significacao ultima de um quadro nao poderia sereduzir ao tema representado.

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Louis ReauT

Se se quiser medir com um termometro muito sensi-vel o fervor crescente da devocao a Virgem, basta observara evolucao iconografica do tema da coroacao, que a partirdo final do seculo XII tornou-se obrigatorio nos timpanosdas catedrais a ela consagradas. A Virgem no Trono dos es-cultores romanos nao era senao a sede (Sedes Sapientiae) ouo trono vivo do Menino Jesus. Em Notre-Dame de Paris,ela e coroada por um anjo; no frontao do portal central deReims, e o proprio Cristo quem coroa sua mae; ainda maistarde, ela sera coroada pela Trindade e, no seculo XV, nocelebre quadro de Enguerrand Quarton no hospital de Vil-leneuve-lez-Avignon, ela ganhara lugar no meio da Triadedivina, entre Deus Pai e Deus Filho, sob as asas da pombado Espirito Santo: a Virgem se torna, por assim dizer, aquarta pessoa da Trindade, ampliada em Quaternidade.

A iconografia nao somente reflete as crei^as: aconte-ce muitas vezes de cria-las. Quantas lendas de santos devemsua origem a imagens as vezes mal compreendidas e inter-pretadas as avessas. Na origem do casamento mistico desanta Catarina ha possivelmente uma pequena roda con-fundida com uma alianca, e o tern'vel marti'rio de santoErasmo, a quem teriam aberto o ventre para arrancar os in-testinos, origina-se tao-somente de um equivoco acerca deseu atributo de padroeiro dos marinheiros: um cabrestanteem torno do qual se enrola o cordame.

Home: Louis Rc;iu, Iconogrnphie tie I'art chretien, Prcfacio,

Paris, I'UH, 1955, 6vols.

Erwin Panofsky

(1892-1968)

Sobre o problema da descri^aoe interpreta^ao do conteiidode obras das artes plasticas

(1932)

Nascido em Hanover em 1892 e falecido em Princeton em1968, Erwin Panofsky fez.estudos de historia da arte em Friburgo.Privatdozent na universidade de Hamburgo, leciona all ate 1933,ano em que se ve forcado ao exilio. Durante dois anos da aulas emNova York, como professor visitante, e trabalha a seguir no Insti-tute for Advanced Studies de Princeton, onde permanecera ate suamorte. 0 numero de obras e de artigos de Panofsky e tao consi-deravel (mais de 150 titulos) que so podemos mencionar algumasobras principals. As primeiras publicacoes marcantes sao certamen-te Diirers Kunsttheorie (1915), Die Deutsche Plastik (1924) e Du-rers "Melancolia", escrita com seu amigo F. Saxl. Idea, de 1923,mostra que as reflexoes teoricas-sempre acompanharam as pes-quisas historicas do Panofsky do periodo alemao. Com efeito, en-tre as duas guerras ele buscou examinar de maneira critica a maiorparte das teorias de interpretafao dos seus predecessores. A questaode saber quem o influenciou, seriamos tentados a responder: todaa tradicao critica e historiografica alema, sem a qual seu proce-dimento nao pode ser inteiramente compreendido. Donde as difi-culdades que ele encontrou durante seus primeiros anos nos Es-tados Unidos para "aclimatar" o metodo iconologico e para adaptarseus conceitos de inspira?ao filosofica as exigencias do pensamentoanglo-saxonico, reticente a toda forma de intelectualismo consi-derado como bizantino. Assim, a nocao de Weltanschauung, pre-sente no texto que reproduzimos aqui, e traduzida pelo proprio

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Erwin Panofsky

autor por basic attitude, nos Ensaiosde iconologia. No anos 1920,

Panofsky foi urn dos raros pesquisadores a querer introduzir nahistoria da arte preocupacoes epistemologicas, o que o levou a fazera critica dos conceitos de Riegl e de Wb'lfflin. Em sua formacaointelectual, afigura-se claramente que algumas teses de Cassirer,formuladas em A filosofia das formas simbolicas,^ exerceram so-bre ele forte influencia. Antes de mais nada, a ideia de que a obrade arte nao pode ser apenas compreendida em sua significacaoimanente, pois ela remete a estruturas mais profundas, a saber, a"valores simbolicos" que sao os da cultura a que pertence o artis-ta. Mas os trabalhos de Riegl, Dvorak, Schlosser e sobretudo AbyWarburg2 haviam aberto amplas perspectivas nesse sentido. 0 queos conceitos de Cassirer ofereciam a nosso historiador era a pos-

sibilidade de elaborar um metodo critico, e portanto mais preci-se, de interpretacao. 0 apoio de Cassirer Ihe permite livrar-se dealguns pressupostos, as vezes demasiado filosoficos, de seus pre-decessores. 0 livro epistemologicamente exemplar desse periodoe sem duvida A perspective como forma simbolica (1924/25). Osgrandes classicos de Panofsky pertencem ao periodo americano.Nessa prodigiosa profusao de artigos, pesquisas e livros, aparecementao algumas obras-primas tais como os Ensaios de iconologia

1 Ernst Cassirer (1874-1945) foi tambcmprofl'ss^i'eWHamburgo.

Em 1933 cmigrou para a Succia e dcpois para os Hstados Unidos. Falcccu

cm Princeton. Filosofo marcado pelo neo-kantismo da cscola de Marburg,

sua obra principal e A filosofia das formas simbolicas (A lingua, 1923; O pen-

samento mitico, \; Fenomcnologia do conhecimento, 1 929).

Sobrc Riegl, ver o tcxto dc apresentacao deste volume. Max Dvo-

rak (1874-1921), historiador da arte tchcco, disei'pulo de Riegl c rcprescn-

tantc da escola de Viena. Sua obra Kunstgeschichte ah (ieistesgeschichte (His-

toria da arte como historia das ideias) e unia colctanea postuma (1924).

Julius von Schlosser (1866-1938), tambcm incmbro da escola cle Viena, au-

tor da obra dc referenda KuHstlitmitur (1924, eclicao f ranccsa: /./(litterantre

urtistiqiie, Paris, Flanmiarion, 1984). Sobrc Aby Warburg, ver o texto de

apresenucao di-stc volume.

84

Sobre o probJema da descricao e interpretacao

(1939), Durer (1943), Arquitetura gotica e pensamento escolasti-co (1951), Os primitivos flamengos (1953), A obra de arte e suas

significances (1955).0 texto que reproduzimos aqui e a retomada de uma con-

ferencia pronunciada em Kiel, em 1931, no Kantgesellschaft. E oprimeiro resultado do periodo de reflexao teorica ainda marcadopelo pensamento de Cassirer, cuja importancia nao deve, porem,ser superestimada. Ele poe em cena a maior parte dos conceitosoperatorios destinados a constituir a iconologia como disciplineinterpretativa. Na introducao aos Ensaiosde iconologia, Panofskyretoma a problematica dessa "Contribuicao...", mas dando-lhe novaamplitude e maior riqueza conceitual. Nao pudemos reproduzir essetexto fundamental em razao da quantidade de reprodu9oes queilustram a demonstrafao de Panofsky, mas o texto que apresen-tamos contem, no essencial, a argumenta9ao decisiva do histori-ador. No entanto, juntamos a esse texto o quadro contendo os tresniveis de interpreta9ao, que aparece nos Ensaios de iconologia, afim de possibilitar ao leitor uma comparacao esclarecedora.

Bibliografia: K. Panofsky, Essais d'iainologie, tradu/.ido para o

Frances por Bernard Tcysscdrc e Claude Herbette, Paris, Cial l i -

mard, 1967.

Sobre o problema da descrigao

e interpreta^ao do conteudode obras das artes plasticas"

Na decima primeira de suas Cartas sobre a Antiguida-Lessing ocupa-se de um trecho que se encontra na des-

•' C) presence artigo — junto com algumas alteracoes parcialnicntc

resultantes de uma discussao posterior — reprodu/ a ordem de argumen-

cos de uma eonfercncia apresentada em 1931 para o Cirupo de Kiel da So-

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Erwin Panofsky ., ^ . . . . . .

crigao de Luciano sobre a Familia dos Centauros de Zeu-xis: "No alto do quadro, postado como numa especie desentinela, debruca-se sorridente um centauro." "Esse 'comonuma especie de sentinela' — observa Lessing — parece-me indicar claramente que o proprio Luciano nao tinha cer-teza se a figura estava apenas recuada ou ao mesmo tempomais ao alto. Acredito reconhecer aqui — continua ele —a disposicao dos antigos baixos-relevos, nos quais as figu-ras mais atras estao sempre indiferentes as do primeiro pia-no, nao porque elas estejam de fato acima delas, mas sim-plesmente porque devem aparentar estar muito mais atras".

A observacao de Lessing nos introduz de um so golpena problematica de um processo que em geral consideramosmuito simples e evidente (como de fato indica o estagiomais primitivo da discussao cientifica sobre a obra de arte):a problematica da pura descricao da imagem. Pois ela cha-ma a nossa atengao para o fato de que um individuo doseculo II d.C. — um individuo que cresceu num ambien-te arti'stico marcado por um ilusionismo altamente desen-volvido, tal como o da especie dos afrescos de Pompeia —

cicdadc Kantiana, a qual dcvcria iratar dos princfpios que condii/em du-

rantf o sen trahalho o historiador da arte particularmente interes.sado na

intcrpretacJio iconografica. A tarefa do autor, por isso, nao reside tanto

em fundamentar os problemas de semelhante trahalho de intcrprctacao

em sua sisccmatica, mas muito mais cm excmpliricar as suas conscqucncias

mctodologicas. E clc nao deve ser visto como prcsuncoso quando, dc acor-

do com a csscncia de seu "rcLuorio dc prcstacao de contas", rcpctidus ve-

xes fa/ mcn^ao as suas proprias tcntativas. (Nota dc Panofsky)

C. U. Lessing, Lettres nnccniant 1'Aiitiijnite, 1768 c 1769. A nona

carta, tradu/Jda por R. Klein, foi publitada em Lessing, Lriaofoii, Paris, Her-

mann, 1990.

"" Luciano (c. 125-r. 192 d.C.), cscritor grcgo.

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Sobre o problema da descri^ao e interpretacao

nao seria capaz de reconhecer e de descrever com facilida-de uma imagem do seculo V a.C. em sua pura existenciaobjetiva. Ele deve se satisfazer com uma indicacao, por as-sim dizer, topografica de um lugar do quadro e com umacomparacao intencionalmente nao conclusiva — a nao serque ele tivesse ultrapassado o "dado" imediato, como Les-sing faz conscientemente: Luciano so teria podido chegara um parecer inequi'voco se tivesse se esforcado em apreen-der a obra de arte antiga nao do ponto de vista do seculoII d.C. e sim do seculo V a.C., se ele tivesse se lembradode casos identicos ou semelhantes e, desse modo, houvessese conscientizado de uma alteracao nas possibilidades de re-presenta^ao do espago; em suma, se a sua descriqao nao sebaseasse somente nas perccpgoes imediatas do objeto iso-lado, mas num conhecimento geral dos princi'pios da con-figuracao artistica, quer dizer, num conhecimento estili's-tico, ao qual, no presente caso, so poderia ter chegado pormeio de uma reflexao historica.

I.

Quando nos defrontamos — para tomar urn exemploqualquer —^ com a tarefa de descrever a famosa Ressurrei-<;ao de Griinewald/1 ja nas primeiras tentativas aprendere-mos que a diferenciagao tao usual entre uma descri^ao pu-ramente "formal" e uma descricao puramente "objetiva"nao pode ser mantida em toda a sua abrangencia depois deuma observa^ao mais detida, pelo menos nao no que serefere as obras das artes plasticas (gostaria de fazer aqui um

Matbias Griincwald (c. 1480-1 528), pintor alemao, autor do rcta-

bulo de Iscnlieim que se cncontra cm Colmar.

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Erwin Panofsky

parentese para observar que, de acordo com a minha expe-riencia; nao se passa mutatis mutandis de modo diferentecom a arquitetura). Uma descricao que fosse puramenteformal nao poderia sequer empregar expressoes como "pe-dra", "homem" ou "rochas", mas deveria se limitar funda-mentalmente a descrever as cores como elementos forma-dores completamente destituidos de sentido e inclusive es-pacialmente ambfguos, cores que contrastam entre si comnuan9as variadas e que, no melhor dos casos, se agrupamconjuntamente em complexes formais quase ornamentaisou quase tectonicos. Se designassemos o piano escuro noalto do quadro como "ceu noturno" ou as luminosidadesnotavelmente diferenciadas no centre do quadro como um"corpo humano", e definitivamente se dissessemos que es-te corpo se encontra na frente daquele ceu escuro, ja teria-mos relacionado o que e exposto ao que vemos exposto, umevento formal espacialmente ambiguo a um conteiido re-presentative rigorosamente tridimensional. Nao e necessa-rio realizar aqui uma investigacao ulterior para constatar queuma descricao formal em sentido estrito e algo impossi'velna pratica: toda descricao — de certo modo, antes mesmo

•que-tenhaninfcio — ja teria de ter interpretado os fatoresexpositivos puramente formais como si'mbolos do que ve-mos exposto; e com isso, quer queira quer nao, ela ja ultra-passou a esfera do puramente formal e entrou numa regiaosemantica. Tambem no interior daquilo que costumamosdesignar no nosso uso cotidiano da linguagem como pon-to de vista "formal" (no sentido dado por Wolfflin, porexemplo), o que constitui o objeto da descricao imageticae na verdade nao apenas a forma (em cuja analise nao po-deremos nos aprofundar aqui), mas tambem o sentido daforma. Com a diferenca apenas — e isso e decisive — deque o "sentido" nesse caso se encontra numa outra cama-

88

Sobre o problems da descricao e interpreta^ao

da — mais primitiva, se se quiser, do que aquele outro sen-tido, com o qual se ocupa a investigacao assim chamada"iconografica". Quando designo aquele complexo de coresmais claro no centre do quadro como um "individuo quepaira no ar com maos e pes perfurados", sem diivida ultra-passo, como ja foi dito, os limites de uma deso^ao mera-mente formal, mas ainda permaneco numa regiao de repre-sentacoes sensiveis, que sao acessfveis e familiares ao obser-vador com base em sua percepcao visual, tatil e cinetica, emsuma, com base em sua experiencia existencial imediata. Seeu designar, ao contrario, aquele complexo de cores maisclaro como um "Cristo que se ergue no ar", entao eu japressuponho um conhecimento culturalmente determina-do; assim como, por exemplo, um individuo que nuncativesse ouvido nada sobre o conteiido dos Evangelhos pro-vavelmente teria compreendido a Ultima Ceia de Leonar-do como a exposicao de uma agitada refeicao coletiva mo-tivada, a se deduzir pelo saco de dinheiro, por uma ques-tao financeira. Gostanamos de designar aquela camada desentido primaria, na qual podemos penetrar gra9as a nossaexperiencia existencial vital, como a regiao do sentido fe-"v'vo ' • ' I • J J - • J'nomemco, o qual, se quisermos, podemos dividir em sen-tido objetivo e sentido expressive (pois i sem dtivida umadiferenca importance se o signo imagetico se nos apresentacomo a exposicao de um individuo ou como a exposicao deum individuo "belo", "feio", "triste", "feliz", "expressive"ou "apatico").

Aquela outra camada cle sentido, ao contrario, que nose acessi'vel apenas gracas a um conhecimento transmitidoliterariamente, gostan'amos de denominar como a regiao dosentido semantico. A partir do que nos e permitido afirmarque o historiador da arte nao tern direito algum de diferen-ciar, no interior desse sentido semantico, entre rcpresenta-

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Erwin Panofsky

TSabre p problems da descri^ao e interpretagao

goes que julga "essencialmente artisticas" (como, por exem-plo, 6 conteiido da Biblia) e representacoes que acredirapoder deixar de lado como "alegorias intrincadas" ou "sim-bolos abstrusos". Nessa diferenciacao tao comumente fei-ta nao se trata, a rigor, de uma diferenca entre o que e ar-tisticamente essencial ou nao, mas de uma diferenca entreo que por acaso (e quem sabe por quanto tempo ainda?) eem certa medida corrente para a consciencia atual e aquilode que precisamos nos apropriar novamente mediante aredescoberta de fontes hoje esquecidas: nao e de todo in-concebi'vel que a historia de Adao e Eva se tome tao estra-nha para os homens do ano 2500 como e para nos aquelaideia que originou as alegorias religiosas da Contra-Refor-ma ou as alegorias humanisticas do circulo de Diirer; e to-davia ninguem negara que para a compreensao do teto daCapela Sistina e essencial saber que Michelangelo expos aQueda do Paraiso e nao um "dejeuner sur I'herbe" J

II.

Depois dessa digressao, retornemos ao nosso quadrodeGriinewald. Como jafoi dito, sem determinados conhe-cimentos literarios previos nao podemos saber o que eleapresenta do ponto de vista do sentido semantico. Mas doponto de vista do sentido mcramente fenomenico — de ummodo inteiramente grosseiro e limitados aquilo que e evi-dente aos olhos — podemos descreve-lo como a imagem deum indivfduo que, em meio a um fenomeno luminoso, pai-ra com os bracos abertos sobre uma caixa, enquanto outros

homens, equipados com armas de guerra, encontram-se unstranstornados e agachados no chao, outros cambaleantes ecom gestos de terror ou de cegueira. Essa descricao pura-mente fenomenica nao pressupoe, de fato, mais do que umacontemplacao cuidadosa da imagem e uma associacao doseu conteiido com ideias que normalmente fazem parte doconjunto de nossa experiencia. E nem por isso a descricaoapresenta menos dificuldade. Sem diivida, temos o quadrodiante dos nossos olhos e sabemos por experiencia o que eum homem, o que e o terror e o que e pairar. O problemareside unicamente no ato de fazer associagoes. Basta apenasque coloquemos diante dos nossos olhos, no lugar do qua-dro de GrLinewald, um quadro de Franz Marc, o Mandril*1

da Kunsthalle de Hamburgo, para reconhecer que podemoscertamente possuir todas as ideias que nos torn am capaci-tados a revelar o sentido fenomenico deste quadro — masque nem sempre e possivel simplesmente aplica-las a obrade arte dada ou, para nos expressarmos de modo banal, nemsempre e possi'vel "reconhecer" o que esta exposto no qua-dro. Todos sabemos o que e um mandril; mas para "reco-nhece-lo" nesse quadro precisamos, como se costuma dizer,estar "•ajustados" aos princi'pios expositivos do expressionis-mo que prevalecem aqui na configuracao artfstica. E a ex-periencia nos ensinou que esse mandril que hoje nos pare-ce muito inofensivo, simplesmente nao foi reconhecido naepoca de sua aquisicao (para de algum modo chegar a umaconclusao, as pessoas procuravam angustiadas pelo foci-nho), porque ha quinze anos era ainda muito recente essaforma expressionista.

C't. 1'aiuirsky, Hercules iini Sclif/fti'it'cgr, in Sliitlifii tier Kibl. \Vrir-

I'lirg, n. 18, 1830. I ' l i n c i p a l n i L i i i c a in in i t lu^f io , da qua] lorum aqui toma-

das al»uma.s passagcns. (Nota dc Piuiolsky)

s O mandril 0 uma (.-specie dc babuino, dc K>cinho colorido, que

habita as savanas afncauas.

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Erwin Panofsky T Sobre o prpblema da descricao e interpreta^ao

Estamos aqui, por assim dizer, diante de uma inver-sao do caso "Luciano", ao qual podemos agora retornar: em1919, os hamburgueses nao podiam identificar o objetopintado por Franz Marc, porque ate aquele momento elesainda nao tinham se deparado com os principios expositivosdo Expressionismo; Luciano nao podia apreender a justa-posicao de figuras concebida por Zeuxis, porque na sua epo-ca ja tinham desaparecido os principios expositivos da artegrega primeva. Tanto num caso como no outro chega-se aconclusao de que a possibilidade de associacao mesmo dasrepresenta9oes empiricas mais comuns com um dado ima-getico — e com isso a possibilidade de uma descricao acer-tada — depende de uma familiaridade com os principiosexpositivos mais gerais que determinam a configurable daimagem, isto e, depende do conhecimento estilisdco, quetanto aqui como ali so pode ser adquirido mediante umaintimidade com a situacao historica: no caso de Marc, me-diante um acostumar-se inconsciente ao novo; no caso deZeuxis, mediante um voltar-se consciente para o passado.Com isso esta demonstrado, por mais paradoxal que possaparecer, que uma obra de arte ainda desconhecida, no quese refere a sua epoca e a sua especie, f&'dieve'estar classifica-da historica e estilisticamente por aquele que vai descreve-la, antes mesmo que a descricao se torne uma possibilidade.

No caso do quadro de Griinewald, certamente vemos"com facilidade" que os homens sao homens e as rochas saorochas. Mas onde vemos que Cristo "paira"? A resposta im-pensada seria: "porque ele se encontra no espaco vazio, semuma superficie de apoio". Essa resposta tambem e perfeita-mente acertada (pois mesmo sem a curva obli'qua do movi-mento corporal e sem a elevacao espiralada do pano, quetornam tao acentuada a dinamica do processo de ascensao,nao restaria a menor diivida de que se trata de uma situa-

cao de pairar); i necessario apenas dizer que a mesma re-flexao, que neste caso e correta, em outros seria inteiramen-te erronea.

Contemplemos uma obra de arte como o Nascimen-to de Cristo do chamado Evangeliarium de Otto III, surgi-da na virada do primeiro milenio e hoje em Munique;9

tambem aqui vemos que diversos objetos do quadro — amanjedoura com o menino Jesus, o boi, o asno e, principal-mente, Maria — estao situados no espa9o vazio, pairandoacima das formas curiosamente arredondadas que represen-tam o chao, sem que haja a indicacao de uma superficie deapoio. Neste caso, porem, e impossivel dizer que os obje-tos do quadro estejam de alguma maneira "pairando" (em-bora fosse possi'vel que um observador desavisado ou umacrianca os apreendessem dessa maneira) — e isto por ummotivo muito simples: porque nao esta dada aqui a con-formidade as leis da natureza e do espaco, tao admiravel-mente desafiadas por Griinewald. Em tal miniatura, o fun-do escuro nao e "ceu", mas um pano de fundo abstrato, eas pessoas e coisas nao sao concebidas e expostas como cor-pos naturais submetidos a gravidade e que preenchem umespaco, mas como raGipicjQt^s,por assim dizer sem peso deum conteiido espiritual ou de um significado objetivo. OCristo de Griinewald paira porque toda a exposicao e do-minada por um naturalismo perspectivista (apesar de to-da a irracionalidade) e plastico (apesar de toda a dissolu-cao da forma), portanto, a suspensao de um corpo so podeser interprctada como um pairar — a Maria da miniaturade Otto nao paira, porque toda a exposicao aqui e deter-

'' Ci. I.eidingcr, Miiiiiinmn iins Hmittscbrijieii da Bibliotccu Real dc

Muniquc, I, prancha 17. (Nota dc 1'anofsky)

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Erwin Panofsky

minada por um espiritualismo destituido de perspectivis-mo e de plastica, do que se segue que a suspensao de umcorpo no vazio simplesmente nao diz nada sobre a sua efe-tiva situacao no espaco.

De fato, as coisas se dao da seguinte maneira: parapoder descrever acertadamente uma obra de arte, inclusivede um modo puramente fenomenico, ja devemos re-la clas-sificado estilisticamente — mesmo que inconscientemen-te e na fra^ao de um segundo —, pois de outro modo naopodemos saber sob qual criterio devemos entender aquela"suspensao no vazio", se o do naturalismo moderno ou odo espiritualismo medievo. E vcmos com alguma surpresaque com a ora^ao aparentemente tao simples: "unthornemascende de sen tiimulo", ja decidimos coisas tao diffceis equestoes tao gerais como as das rela^oes entre superffcie eprofundidade, corpo e espaco, estatico e dinamico — emsuina: que a nossa contempla^ao da obra de arte ja ocorresob o ponto de vista daqueles "problemas artisticos fun-damentals", cujas modalidades de decifracao parricularescaracterizamos como o "estilo" da obra.'0

"'(I. \\mnlsky, 7<'irs<-/>nfi f Astt:. UrielAllg. Knmtwiis.,\\l\\\, 1925,

pp. 49 ss., c F,. Wind, pp. 438 ss. DC resto, cssa oKsciTa^ao 0 Icgilimada

pi'lo huo dc c]iic o que vale para a idcniiflca^ao do objcto cxposii) tamhcni

c actTfailo para a dctcrmina^iin do "gcncro arti'siico" a que pcrtciKV uma

dctcrminada obra dc arte. Seria uni cquivoco acrediiar que o pertenciniento

de uma obra dc arte a "arquitettira", a "plastica", ao "desenlio a miio" on

a "pintura" possa scr detcrininado dc modo satisfatono pura c .siniplesinente

pela intuicao on pelo aspeeto iixnico: tambem o sistema dos coiiccito.s do.s

genei'os aru'sticos (como se iiio.stra de modo baslame claro jnstameiue nos

"easos limi'tioles" do "moni in icnto ' , do "movcl", da "m;iquin.i" etc.) sao

no limdo um si.stema de "conccitos esiilistieos". (Nota de I'anorsky)

94

Sobre o problema da descrigao e interpretar;ao

III.Do que foi desenvolvido ate agora segue-se que a des-

cricao inicial de uma obra de arte (para retomarmos urntermo nosso: a descoberta do sentido meramente fenome-nico) ja consiste, na verdade, numa interpretacao historicada configuracao artistica ou, pelo menos, ja a inclui impli-citamente. E ainda mais que a descoberta descritiva do sen-tido fenomenico, a descoberta iconografica do sentido se-mantico vai naturalmente muito alem de uma simples cons-tatacao, uma vez que tambem ela e, e talvez ainda mais doque a primeira, uma interpretacao. Pois se o conhecimen-to empirico do que e "pairar" nao nos legitima ou capacitaa referirmo-nos a figura de uma obra de arte como uma fi-gura "que paira no ar" (pois ja vimos que a associacao en-tre a representa9ao empi'rica e o evento imagetico so podeser assegurada com base em um conhecimcnto estili'stico):tanto menos podemos acreditar estar certos quanto ao sen-tido semantico de uma obra de arte ao simplesmente "atre-larmos" uma fonte literaria ao monumento dado ou mes-mo quando o associamos com elementos convenientes denosso repertorio cultural — bem cohlo ila'6vllevernos espe-rar, inversamente, poder encontrar em qualquer situacaouma fonte literaria scmelhante. Assim como para a desco-berta do sentido fenomenico, tambem para a descoberta dosentido semantico sera preciso, de cerro modo, que existauma "instancia superior", diante de cujo tribunal, antes clemais nada, se justifique a associacao entre a nocao extra-arnstica (neste caso, portanto, um conteudo fornecido pe-la literatura) e o Fenomeno imagetico dado. Tal "instanciasuperior", que para a descoberta do sentido fenomenico erao conhecimento estili'stico, agora, para a descoberta do sen-tido semant ico, e a tipologia, entendendo af por "tipo"

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Erwin PanofskyI

Sobre o problema da descrigao e interpreta^ao

aquela representacao na qual um determinado sentido ob-jetivo conectou-se tao firmemente a um determinado sen-tido semantico, que a representacao, enquanto portadoradesse sentido semantico, tornou-se tradicional, como, porexemplo, Hercules com pele de ledo e clava ou O crucifixoentre Maria ejoao Batista.''

Uma publicacao recente reproduz um quadro do pin-tor barroco veneziano Francesco Maffei,12 quadro que de-ve representar, de acordo com a legenda, Salome com a ca-beca dejoao Batista.1^ Essa designac.ao e compreensivel namedida em que a cabe9a masculina decapitada, inteiramen-te de acordo com o descrito no Evangelho de Sao Mateus,se encontra sobre uma bandeja; mas e surpreendente e es- ! "tranho o fato de que a "Salome" tenha na mao uma espa-da, a qual (pois sem diivida nao executou a decapitacao comsuas proprias maos) ela teria de ter subtraido ao carrasco.Essa espada gera a suspeita de que nao se trata de uma Sa-lome, mas sim de uma Judite, para a qual a espada, enquan-to signo do seu ato de libertacao, possui de certo modo umsignificado mais essencial; contudo, tal suposic.ao se chocacom o motivo da bandeja, pois no tocante a Judite diz-seexpressamente que ela "deu a cabe9a de Holofernes a suaKcriada e ordenou que a enfiasse em um saco".

Por conseguinte, encontramo-nos aqui diante de umfato singular onde se apresentam duas passagens biblicasinteiramente diferentes para uma unica e mesma imageme para a qual sao apropriadas e inapropriadas tanto uma

1 ' Cf. h'estscbriftfur Fricclliindrr, \, p. 294 ss. (Nota dc Panofsky)

' ~ Tranccsco Mallei (r. 1605-1660), pintor i i . i l i ano .

'•* Cj . I'iocco, Die Vfiiezuin. Mnlen-i d. 17. mid 18. Jiiljr/iinidc'i'ts,

1929, prancha 29. (Nota dc Panofsky)

passagem quanto a outra (pois com "Salome" concorda abandeja, mas nao a espada — com "Judite" concorda a es-pada, mas nao a bandeja); e sem outros indfcios simples-mente nao e possivel encontrar uma solu9§o. A importan-cia da historia dos tipos e esclarecedora aqui: ela nao co-nhece nenhum caso em que seria permitido a uma Salomeapropriar-se da espada da heroina Judite, ao passo que, in-versamente, e justamente no ambito da arte italiana, podeidentificar um mimero relativamente grande de casos (navia daquela "forma9ao por analogia", que desempenhou naarte antiga um papel muito mais essencial do que o tipo deinven9ao recente, que cria imediatamente a partir da fonteliteraria) onde ocorreu uma transposi9§o da "bandeja deJoao Batista" para a representa9&o de Judite (exemplos detais imagens de Judite, confirmadas pela presen9a de umacriada, sao as pinturas de Romanino14 e de Bernardo Stroz-zi1^ do Kaiser-Friedrich-Museum de Berlim). A historia dostipos — e apenas ela — nos da o direito e a possibilidadede dizer que tambem no caso do quadro de Maffei trata-sede uma "Judite com a cabe9a de Holofernes"; e sob esse as-

14 Nos catalogos do K.F.M. a obra dc Romanino [Gerolamo Roma-

ni (c. 1484-1559), pintor i tal iano] esta indicada primeiramcntc como

"Salome" c depois como "Salome1 ou Judite". Essa transposicao do moti-

vo, provavelmentc ocorrida na metade do scculo XVI, e facilmentc com-

preendida sc levarnios em considera^ao que o tipo da "bandeja dc Joao

Batista" (inclusive como "pintura dcvocional" autonoma) fora fixado por

uma cradicao tao antiga e d i fundida em cantos exemplos, que dc ccrto mo-

do a conscicncia imagctica automaticamcnte associava as rcprescntacocs

"cabcca decapitada" e "bandeja": uma cabcca decapitada "pcrtcncia", por

assim di/.er, a uma bandeja, fosse ela. a -cabtca dejoao Batista ou a de qual-

quer oiuro. (Nota de Panofsky)

l s Bernardo Stro//.i (1581-1644), pintor italiano.

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Erwin Panofsky

pecto descobrimos posteriormente tambem que a cabecadecapitada, considerada em si mesma, apesar de estar sobreuma "bandeja deJoao Batista", todavia corresponde segun-do a sua aparencia fisionomica, muito menos ao tipo do"Batista" do que ao tipo nao menos tradicional do "tirano".O caso em si e por si tao facilmente solucionado (que dei-xa transparecer com bela clareza o significado da "forma-cao por analogia", independente do texto literario) mostra,por um lado, que mesmo na interpretacao de cenas cujasfontes historicas nao pertencem aquelas que precisam ser"novamente desenterradas", mas ainda estao vivas na cons-ciencia da epoca, pode haver problemas consideraveis se naofor levada em considerable a historia dos tipos; por outrolado, contudo, note-se o quanto e essencial o elemento "ico-nografico" mesmo para a compreensao de valores puramen-te esteticos. Pois quern compreende o quadro de Maffeicomo a imagem de uma jovem voluptuosa com a cabeca deum santo tera de julga-la, tambem por razoes puramenteesteticas, de um modo muito diferente de quem enxergarai uma heroi'na abencoada por Deus com a cabe9a de umcriminoso.

Neste caso, a historia dos tipos nos permite escolher,entre dois textos "proximos" e igualmente "apropriados" aimagem em questao, aquele que efetivamente acerta o seusentido semantico. Em outros casos, ela pode de inicio nosconduzir a uma fonte literaria relativamente remota e queem si e por si praticamente nao pode ser aplicada ao qua-dro, tal como aconteceu coin o autor destas linhas ao tra-balhar com a obra de Diirer chamacla O sonho do doutor, aqual inicialmente classificou, com base em fundamentospuramente tipologicos, na serie das "representacoes da pre-gui^a", excepcionalmcnte difundidas na Idadc Media; e en-tao, clepois que pesquisou os grupos de tratados morals e

98

Sobre o problems da descri^ao e interpreta^ao

de poesias que desse modo se colocaram em seu horizontede observacao, pode identificar uma associacao estreita como capitulo correspondente da Nau dos loucos de SebastianBrandt.16

E finalmente existem casos em que a historia dos ti-pos pode ja de antemao nos poupar a busca por uma fon-te literaria ou, depois de um longo esforco em vao, tornarcompreensi'vel a sua ausencia. Diante dos "Pessegos" de Re-noir, que pertencem ao "tipo" desprovido de sentido se-mantico natureza-morta, nao vamos, por exemplo, pro-curar um texto que pudesse revelar um significado alego-rico para as frutas (quando, ao contrario, uma figura femi-

'-nina do tipo das personificacoes da Virtude nos estendeprovocativamente um pessego, sem dlivida iremos atras desemelhante texto, e de fato descobriremos que o pessego,por motives que nao explicaremos aqui, pode ser o atributoda Veritas)}7 Ou encontraremos, num daqueles manuscri-tos nos quais a Idade Media tentava tornar vivas para si asrepresenta9oes dos deuses antigos, uma imagem de Mercii-rio que se destaca das outras por mostrar uma aguia voan-do por entre as suas pernas; e procuraremos sem sucesso

m texto mitografico em que essa peculiaridade fossecomprovada e explicada — ate que a observacao do tipoantigo de Mercuric nos ensine que simplesmente nao pre-cisamos de semelhante texto: aquilo que nos causa estra-nheza explica-se sem mais como um mal-entendido do de-

"' Miinchnerjahrb. d. bild. Kitnst, N.T. V I I I , 1931, primciro C;K|LT-

110. (Nota dc I'anofsky)

17 Hercules /tin Scbeidewege — Die Dei/lung dh i'/lrsicfis t//s cities

Wahrheits-Attribiits, (A\S;IIX- Ripa, in Icnnulugin, Roma, 1593. (Noia dc

I'anofsky)

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Erwin Panofsky

TSobre o problema da descrifao e interpretacao

senhista, que julgou dever completar com um passaro in-teiro as asinhas dos pes do mensageiro dos deuses.18

No que diz respeito ao quadro de Grunewald, eleapresenta uma cena — e queremos presumir que isto e umdado de nosso repertorio cultural conhecido por todos —em cujo ponto central se encontra a pessoa de Cristo e queocorre depois de sua morte na cruz. Para encontrar umafonte literaria dessa cena, nos remeteremos a passagem cro-nologicamente correspondente nos Evangelhos — e naoencontraremos nada que esteja efetivamente de acordo como evento apresentado. Pois os Evangelhos narram apenasque as mulheres proximas ao Salvador (cujo niimero e oraum, ora dois, ora tres, ora nao e absolutamente indicado)encontram o tiimulo aberto e vazio, e que sao instrui'daspor um — ou dois — anjos de que o Senhor ressuscitara;e de fato apenas a partir do seculo XII encontramos repre-sentacoes da saida do tumulo. Apenas uma investigacaomais detalhada, que leve em consideracao outros textos eque alem disso (e sobretudo) se remeta a historia dos tipos,nos ensinara que aquilo que denominamos "a Ressurreifdode Cristo de Grunewald" significa na verdade uma asso-ciacao sumamente complicada da propria saida do tumu-lo com a ascensao ao ceu e com a chamada transfiguracao.

IV.

No livro de Heidegger sobre Kant encontram-se algu-mas sentencas notaveis sobre a essencia da interpretacao —sentencas que a princfpio se referem apenas a exegese de

uj;i cm A. Goldschmidt, Vortriigecl. lifbl. Witrbwg, 1923/24, p. 217

com ilustnicao. (Nota dc Panofsky)

escritos filosoficos, mas que no fundo designam o proble-ma de qualquer interpretacao: "Se uma interpretacao repro-duz apenas o que Kant disse expressamente, entao desde oprincfpio ela nao e uma exegese, uma vez que ainda tern decumprir a tarefa de tornar visivel, para alem da formulacaotextual, o que Kant procurou trazer a luz com a sua funda-mentacao; mas isto, Kant nao foi capaz de dize-lo, pois odecisive em qualquer conhecimento filosofico nao e o queele diz expressamente, mas sim o ainda nao dito que elecoloca diante da vista por meio do que foi dito [...]. E cla-ro que toda interpretacao precisa necessariamente fazer usoda forca para arrancar do que as palavras dizem o que elasquerem dizer".iy Devemos reconhecer que tambem as nos-sas modestas descricoes de quadros e as nossas exegeses deconteiido, na medida em que nao sao simples constatacoes,mas ja interpretacoes, sao igualmente afetadas pela passa-gem acima. Pois tambem elas, inclusive a indicacao aparen-temente nao problematica de um sentido meramente feno-menico, no fundo colocam "diante da vista algo nao dito",e por isso tambem requerem o "uso da forca", para empre-garmos as palavras de Heidegger. Surge com isto a seguin-te quest-ao inevk^t^ <quem ou o que define um limite paraesse uso da forca? Em primeiro lugar, existe naturalmenteum limite externo, a saber, as circunstancias pura e simples-mente empiricas: uma descri9ao da imagem ou uma exegesedo conteiido sao "falsas" no instante mesmo em que tomamuma sombra por uma fruta ou um alee por um veado (doiscasos que efetivamente aconteceram), do mesmo modo

ly M. Heidegger, Kimt tinddns Problem der MeMphysik, 1929, p. 129

ss. (Nota de Panofsky)

20 R. Wustmann, Grenzboten, LXIU, 1904, v. 2, p. 151 ss. e Zeitsdn:

f b'lld. Kiinst, N.F. XXII , 1910/1 1, p. 110 ss. (Nota de Panofsky)

100 101

Page 19: A Pintura Vol. 8 (Descrição e interpretação_ Panofsky, Sobre o problema da descrição e interpretação_ Otto Päcth, Questões de método em história da arte)

Erwin Panofsky

que falhara a interpretacao de uma passagem de Platao separtir do fato de que a palavra grega aner deve ser traduzi-da por "indivi'duo" e nao por "homem". Mas para alemdesse limite externo devem existir barreiras estipuladas pelapropria atividade interpretativa, e o proprio Heidegger dizum pouco mais adiante: "Tal fo^a, no entanto, nao podeser uma arbitrariedade erratica; a descoberta deve ser im-pelida e guiada desde o prindpio pela fo^a de uma ideialuminosa". So que essa ideia tambem pode conduzir, e defato nccessariamente conduzira, em muitos casos, ao erro,ja que a sua origem esta nessa mesma subjetividade queimpele ao uso da for^a como tal.

Nao tenho a pretensao de assumir'dm'S'posigao no quediz respeito ao problema da interpretacao filosofica. Para onosso ambito, contudo, vale o seguinte: a fonte da interpre-tacjo (a qual pertence, para o repetir mais uma vez, a des-cri9ao pura e simples) e sempre o potencial cognitivo e orepertorio cognitivo do sujeito que interpreta: isto e, a nossaexperiencia existencial vital, quando se trata de descobrirapenas o sentido fenomenico, e o nosso conhecimento li-terario, se temos de lidar com o sentido semantico. Queriaacreditar que o que se opoe a essas fonfes«E0gnitivas subje->tivas como corretivo objetivo — e com isso "assegura" o seuresultado — nao e nada mais senao o que podemos deno-minar "historia da tradifao", que, no caso do sentido feno-menico, aparece como "historia das configurates" e, nocaso do sentido semantico, como "historia dos tipos". Essahistoria da tradigao nos mostra, na realidade, o limite ateonde pode ir o nosso uso da for9a; pois se temos o direito,se e inclusive necessario tirar de nos mesmos o que nao estaefetivamente dito nas coisas e traze-lo a luz, a historia datradicao nos mostra tambem o que nao podelia ter sido di-to, porque a sua representacao [Darstellung] on a sua ideia

102

Sobre o problema da descrifao e interpretagao

[ Vorstellung] nao teria sido poss/vel do ponto de vista dotempo e do lugar.

Esse estado de coisas (contra o qual nao se pode obje-tar que o conhecimento do estilo e o conhecimento dos ti-pos imageticos so poderiam ser alcancados por meio da in-vestiga^ao de cada uma das obras em separado; pois emqualquer ciencia os instrumentos cognitivos e o objeto a serconhecido sao condicionados e tern a sua "verdade demons-trada" reciprocamente, e inclusive os instrumentos do ffsi-co sao submetidos as mesmas leis da natureza que ele gos-taria de determinar, sim, eles contem justamente a teoriaque com a sua ajuda deve ser aprovada ou refutada);21 esse

"' Cf. Edgar Wind, Proceedings (if the Sixth International Congress of

Philosophy, 1926, p. 609 s.s. e Experiment und Metaphysik (in Hamburger

Hnbilitationschrifi, 1930). Wind [historiador da artc ingles (1900-1971),

foi dirctor do Instituto Warburg] clcmonstra que o que parece num prinici-

ro momcnto uni "'cimilus vitiosus" e na verdade um "circttlns mcthuclicni',

no decurso do qual tanto o "instrumento" qua mo o "objeto" sao mutua-

nieiite tomprovados — tal como na bela hist(Sria antiga sobre a vara do

equilibri.sta ("— Pai, por que o equilibrista nao tai?" "I'orque ele se equil i-

bra com a vara!" "Sim, mas por l|iYe"':iW:ill'a*ftatf ttii?" "C.rianca boba, por-

que ele a segura!"), cujo aspecto central esta no tato de que o suposto cimiltis

vitiosus nao verdade nao exclui a possibilidade pratiea da arte do lunam-

bolo, mas a fundamenra.

(^ mcsmo que vale para a relacao entre a "obra isolada" e o "tipo",

de res to e tambem valido para a relacao entre a obra isolada e a "serie do

dcsenvolvimcnto", o "estilo nacional" etc. Ou seja: tambem nesses casos

resulta o fato peculiar de que a classificacao da "obra isolada" repousa no

"contexto" de uma intcracao "circular" emre a investigacao do caso indi-

vidual e o conliecmiento do dcsenvolvimemo geral. Admiiamos que um

historiador da arte encoutre no urquivo da cidade N. tun contrato, semm-

do o qual um pin ior local X e encarregado no ano ile 1471 da confeccao

de um a-tabtilo para a Igreja |acobina que most re uma Deposicao da (,ru/

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Page 20: A Pintura Vol. 8 (Descrição e interpretação_ Panofsky, Sobre o problema da descrição e interpretação_ Otto Päcth, Questões de método em história da arte)

Erwin Panofsky Sobre o problems da descriijao e interpretagao

estado de coisas se mostra de modo mais claro onde a in-terpreta^ao, para alem da camada do sentido semantico, seeleva para uma ultima regiao, a qual podemos designar, deacordo com uma expressao de Karl Mannheim, como a re-giao do "sentido documental"22 ou ainda como a regiao do"sentido essencial". Se um homem nos cumprimenta narua, o sentido semantico desta ac^io (cujo sentido objetivopode ser descrito como um tirar o chapeu associado a umainclinacao sorridente da cabeca, e cujo sentido expressivopode variar entre amizade, devocao, indiferenca e ironia) e,sem sombra de diivida, uma demonstracao de gentileza.Mas, alem disso, poderemos receber dela a impressao deuma maneira de ser bastante determinada, que esta por traXtal como um ontos on, de todos esses fenomenos — a im-pressao de uma estrutura interna, em cuja constitui9ao par-ticiparam de igual modo o espirito, o carater, a origem, oambiente e o destine, e que e "documentada" no ato de

com os santos Filipc e Jaeo; e que o mcsmo historiador tcnha cncontrado

na mcsma igrcja um altar que corresponda exatamente a essas indicacoes.

Ncstc caso, o historiador cstari muito inclinado a identificar cssc altar tnn-v«-,»

a obra "legitimada polo docunicnto" c se alegrani de ter uma ohra genui'na

"firmemcnte datada e locali/.ada" — mas ha scmprc a possibilidade de que

o altar tivessc desaparecido durante o niovimento iconoclasta e tivesse si-

do sulistituido, por volta de 1 540, por um pintor que veio de muito longe.

I'ara estar certo de sua idcntiflca^ao, o historiador da arte dcve ser capa/ de

julgar se a obra que chegou ate ele e "algo absolutamentc dentro das pos-

sibilidades" da regiao de N. no ano de 1471, isto e, ele deve dispor de uma

noc,ao do "contexto" do descnvolvimento historico e das escolas artisticas,

o qual por micro lado so poderia ser reeonhecido coin base em momimcn-

tos "clauidos" c "locali/.aclos' ! (Noia de Panorsky)

21 Jiihr/nidj fiir Kiinstgmhichte I, 1922/23, p. 236 ss. (Nota de Pa-

noKsky)

cumprimentar de maneira tao clara e tao independente-mente da vontade e da consciencia daquele que cumpri-menta, quanto em qualquer outra manifestacao de vida doindividuo em questao. Portanto, num sentido muito maisprofundo e mais geral, tambem a producao artistica pare-cer ter como base, para alem do seu sentido fenomenico edo seu sentido semantico, um ultimo conteiido muito maisessencial: a auto-revelacao involuntaria e inconsciente deum comportamento em relacao ao mundo, o qual e tipico,e em igual medida, de cada criador em particular, de cadaepoca em particular, de cada povo em particular, de cadacivilizacao em particular; e como a grandiosidade de umaobra de arte e em ultima instancia dependente do quantumde "energia de visao de mundo" que foi introduzido na ma-teria configurada e que dela irradia para o observador (nestesentido, uma natureza-morta de Cezanne nao e de fato ape-nas "boa", mas tambem tao "plena de conteiido" quantouma Madona de Rafael) — tambem a tarefa suprema dainterpretacao e a de penetrar nessa camada ultima do "sen-tido essencial". A interpreta9ao so tera alcancado o seu ver-dadeiro objetivo quando tiver compreendido e evidencia-do a totalidade dos momentos atuantes (titf sejlTfrafr ape-nas os aspectos objetivos e iconograficos, mas tambem osfatores pura e simplesmente "formais" como a distribui9aode luz e sombras, a divisao das superficies e inclusive a con-du9ao do pincel, do cinzel e do buril) como "documentos"de um sentido homogeneo de visao de mundo. Num talempreendimento, porem — no qual a interpreta9ao de umaobra de arte se eleva mesmo ao ni'vel da interpreta9&o de umsistema filosofico ou de uma concep9ao religiosa —, o co-nhecimento de fontes literarias nos deixa na mao, pelo me-nos no que se refere a fontes que se pudessem relacionarimediatamente a obra de arte. Certamente podemos encon-

104 105

Page 21: A Pintura Vol. 8 (Descrição e interpretação_ Panofsky, Sobre o problema da descrição e interpretação_ Otto Päcth, Questões de método em história da arte)

Erwin Panofsky ;

trar textos que nos instruam sobre o que a Melancolia deDiirer significa do ponto de vista do sentido semantico, masnao textos que nos instruam imediatamente sobre o que erevelado do ponto de vista do sentido documental. E mes-mo que o proprio Diirer tivesse se declarado expresses verbissobre a intencao ultima de sua obra (o que artistas poste-riores muitas vezes tentaram fazer), rapidamente ficaria evi-dente que essa declaracao passa ao largo do verdadeiro sen-tido essencial da gravura e que, em vez de simplesmente nosfornecer a interpretagao da obra, seria antes uma interpre-tagao extremamente pobre.23 Pois assim como, sem diivi-da, aquele que cumprimenta e consciente do grau de gen-tileza com que tira o seu chapeu, mas nao de que indiciosele fornece nesse gesto sobre o seu ser mais fntimo, tambemo artista sabe (para citar um americano muito espirituoso)apenas " what he parades" [o que ele mostra], mas nao "whathe betrays" [o que ele trai].

A fonte daquela interpretagao que visa descobrir o sen-tido essencial reside, pelo contrario, no proprio comporta-mento original decorrente da visao de mundo do interpre-te, como se percebe tao claramente na interpretagao que

-Me'idegger faz de Kant quanto nas interpretac5es de Rem-brandt realizadas por Carl Neumann, de um lado, e porJakob Burckhardt, de outro. E justamente por este motivotorna-se claro que uma tal fonte de conhecimento, situadanum nfvel tao eminentemente subjetivo — deve-se mesmodizer: tao absolutainente pessoal — necessita de um corre-tivo objetivo possivelmente num grau ainda maior do quea experiencia existencial vital, com cujo auxilio apreende-

" CLJahrb. d. Knnstslgii. XL, 1919, p. 277 s. (Nota dc I'a-

ofsky)

106

Sobre 0: problems da descrigao e interpretacao

mos o sentido fenomenico, e o conhecimento literario, oqual nos ajuda a revelar o sentido semantico. E de fato umtal corretivo ja esta dado: ele se encontra igualmente numaesfera de facticidade historica, a qual tambem aqui nos in-dica o limite que nao deve ser transposto pela interpreta-gao "a forca", se nao quiser se converter numa "arbitrarie-dade erratica": e a historia universal das ideias que nos es-clarece sobre as possibilidades de uma determinada epocae de um determinado ambiente cultural de acordo com asua visao de mundo — assim como a historia das configu-racoes pareceu determinar o ambito das possibilidades derepresentacao [Darstellung] e a historia dos tipos pareceudemarcar o ambito das possibilidades de concepcao [ Vor-stellung]. A historia das configuracoes, podemos dizer, nosinstrui sobre as modalidades sob as quais, no curso das mu-dangas do desenvolvimento historico, a forma pura se ligaaos sentidos objetivos e expressivos; a historia dos tipos nosinstrui sobre as modalidades sob as quais, no curso das mu-dangas do desenvolvimento historico, os sentidos objetivose expressivos se conectam a determinados sentidos seman-ticos; a historia universal das ideias, finalmente, nos instruisobre as modalidades sob as quais, no curso das mudanijas*no desenvolvimento historico, os sentidos semanticos (oque inclui, por exemplo, tambem os conceitos da lingua-gem e os melismas da musica) sao preenchidos com deter-minados conteiidos da visao de mundo.

Assim, por exemplo, os testemunhos da historia dasideias da Renascenga, entre os quais naturalmente tambemos escritos de Diirer, nos mostram com base em quais pre-missas de visao de mundo Ihe foi possivel unificar em suaMelancolia urn typus acediae e um typus geometriae e, comisso, espiritualizar pela primeira vez um sofrimento natu-ral e, inversamente, patetizar, tambem pela primeira vez,

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- • • , . ' : - • - . . - . Erwin Panofsky

um atuar intelectual destitufdo de destine.24 No entanto,os testemunhos tracam assim um limite para aquilo queestarfamos talvez inclinados a denominar como um "tedioda vida" moderno — exatamente como o historiador dafilosofia podia aprender com a historia das ideias do seculoXVIII sobre os limites a que esta restrita uma exegese onto-logica de Kant, contanto que ela nao queira renunciar aosdireitos -— e aos deveres — de uma "interpretacao".25

Podemos resumir esquematicamente numa tabela aproblematica aqui descrita sobre o trabalho de interpreta-cao da historia da arte:

Objeto

da i

1. Scntido fcnomenico

(dividido cm

scntido objetivo e

scntido cxpressivo)

2. Scntido scmantico

Fontc subjetiva

del interprettifao

Expcricncia

existential vital

Conhccimento

litcrario

3. Scntido documental Comportamcnto

(scntido csscncial) dccorrcntc dc uma

visao dc mundo

Corrctivo objetivo

da interpretafdo

Historia das

configuracocs

(suma das possihilidadcs

dc rcprc.scntac.ao

[Ditrstel/ung] arti'stica)

Historia dos tipos

(suma das possihilidadcs

tic conccpcao

[ Vorstellung\)

Historia gcral das ideias

(suma das possibilidadcs

dc visao dc mundo)

- ' Cf. a segunda ctiicao do cstudo Mclimciiliti I, rcali/.ado cm parce-

ria com F. Saxl (in Stud/en d. Kibl. Wiit-bnrg, 2, 1923). (Nota dc Panofsky)

- h possfvcl pcnsar numa mancira dc vcr que sc declare por princi-

pio indcpendcntf dc todo conetivo historico c que rcconheca a pen as a exi-

108

Sobre o problema da descricao e interpretacao

Sem diivida, semelhante esquema — que esta para aefetiva realizacao de um processo intelectual assim como ummapa cartografico esta para a realidade da paisagem italia-na — corre sempre o risco de ser mal-interpretado comoum "racionalismo ingenuo". E por isso, a guisa de conclu-sao, devemos enfatizar que esses processes, que a nossa ana-lise teve de apresentar como movimentos aparentementeseparados em tres camadas de sentido e, por assim dizer,como limites instaveis entre o uso subjetivo da forca e ahistoricidade objetiva, na pratica se entrelacam em um even-to total completamente homogeneo e que se desdobra or-ganicamente atraves de tensoes e distensoes, evento este queso mesmo ex post e teoricamente pode ser decomposto emelementos isolados e em a9oes particulares.

Fonte: F.rwin Panofsky, "Zum Problem dcr Bcschreibung und

Inhaltsdeutung von Wcrkcn dcr bildcnden Kunst", in Aufsatze

zu Grundfragen der Kunstwissenschafi, Bcrlim, Wissenschafts-

verlag Volkcr Spicss, 1992, pp. 85-97.

gcncia linica de que a imagcm, a partir do fcnomeno isolado que ate agora

considerou, scja uma unidadc cm si mcsma plena de sentido, nao impor-

tando se cla se ajusta ou nao a algum contcxto historico. Tal mancira de ver

(que nao cxtrai dos tcxtos o que elcs "di/em", ncm o que clcs "queriam di-

/er", mas o que clcs, de acordo com esse principio de unidadc, "teriam de

ter dito") nao c niais uma "interpretacao", mas uma "reconstruct) livre e

criativa", isto e, o seu valor nao e estipulado pclo padrao dc medida da vcr-

dadc historica, mas pelo padrao de medida da originalidade sistematica e

da consistencia. I'.la c irrefutavel na medida em que tiver conscience de

sua posicao extra, ou mclhor, a-historica, mas dcve ser combatida a part ir

do momento cm que, ao difundir uma prcmissa de outra nature/a, coloca

a historia em posicao dc ter que sc defender. (Nota dc Panofsky)

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Otto Pacht

(1902-1988)

Questoes de metodoem historia da arte

(1977)

Aluno de Schlosser e de Dvorak em Viena, Otto Pacht cola-bora em diversas revistas especializadas, ate ser fo^ado a emi-grar para Londres, em 1933. Dedica-se entao a diversos estudosno Warburg Institute, buscando definir seu proprio dominio depesquisa. Especialista em gotico tardio, empreende varias pes-quisas sobre a iluminura medieval e a arte de Jean Fouquet. Seustrabalhos sobre a primeira pintura flamenca e a pintura goticafrancesa sao realizados no entre-guerras, resultando em diversaspublicacoes sobre o tema nos anos 1980. Suas interpretacoes mi-nuciosas da obra de Jan Van Eyck, baseadas num conhecimentoexcepcional do seculo XV europeu, fazem dele um dos grandesespecialistas nesse periodo. Em 1956, seu comentario critico naBurlington Magazine (98) sobre o livro de Panofsky Early Nether-landish Painting^ e lido com interesse. Publicado um ano depoisde sua morte, seu Van Eyck represents o resultado de meio seculode pesquisas.2 A analise formal da obra (construcao do espaco, dis-posicao dos pianos etc.) jamais se separa de um grande conheci-mento historico da epoca. A proposito desse pintor, ele escreve que

E. Panofsky, I.es I'rimitifs fiimaiuls, tradu^ao trancesa, Paris, Ha-

waii, 1993.

• Otio Piiclii, Van Eyck. Begriinder dcr iiirderlfindische Mulerei (Van

Eyck, o hmdador da p in tu ra flaniL'iiga], Munkjuc, 1989.

146

Questoes de metodo em historia da arte

o que Ihe interessa e "ver e compreender o processo revolucionariode nascenca como um desenvolvimento organico" (p. 30), projetoque corresponde bem ao espirito da escola de Viena. Suas refle-xoes sobre o metodo em historia da arte apresentam grande in-teresse pela extrema precisao de suas demonstracoes e de sua ar-gumentacao matizada. Embora Pacht tenha sempre manifestadoimensa admiracao pela obra historica de Panofsky, muito cedo eleexprimiu reservas quanto ao empreendimento iconologico, comoo fizeram varies historiadores da escola de Viena. De seus artigoscriticos e de suas observances, Pacht compos um livro: Questoesde metodo em historic da arte, do qual extraimos nosso texto.

Bibliografla: Ikonogmphie und Ikonologie, Hkkchard Kacm-

mcrling (org.), Cxilonia, DuMont Buchvcrlag, 1979.

Fun9§o da iconografia

Para tornar compreensfvel a necessidade da icono-grafia, Panofsky concebeu certa vez o seguinte exemplodrastico: coloquemo-nos, diz ele aproximadamente, na si-tua^ao de um selvagem australiano que contempla umaimageiTl:'cfa Ultima Ceia. Ele nao vera na imagem nadamais do que uma refeiclo coletiva na qual ha certa como-9ao. Para entender o sentido da imagem, o aborigine teriade se familiarizar com o conteiido do Evangelho. Quandonos deparamos com obras de arte cujos temas ultrapassamo atual circulo de representa^oes de um individuo com ins-tru9ao mediana, prossegue Panofsky, somos todos selva-gens australianos.-^

•( Erwin Panofsky, Studies in Iconulngy. Humanistic 'I'benies in the Art

of the Renaissance, Nova York, 1962, p. 1 1 . Rcimprcsso cm Meaning in the

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Page 24: A Pintura Vol. 8 (Descrição e interpretação_ Panofsky, Sobre o problema da descrição e interpretação_ Otto Päcth, Questões de método em história da arte)

Otto Pacht

Mas mesmo quem nao cresceu na selva nao pode, porsi mesmo, mediante a mera contemplacao da imagem, che-gar a conclusao de que um trono, sobre o qual se encon-tram um livro e uma cruz, significa a profecia do Juizo Fi-nal. Apenas quando somos instruidos pela iconografia daarte bizantina de que foi o Salmo (9, 7-8) — "Paravit injudicio thronum suum; et ipse judicabit orbem terrae inaequitate" [O Senhor permanece no seu trono eternamen-te, trono que erigiu para julgar. Ele mesmo julga o mun-do com justic.a] — que desencadeou a ideia do trono ain-da nao ocupado pelo juiz, portanto do trono vazio, com-preendemos a relacao do trono, sobre o qual estao cruz elivro, como insignias de Cristo, com o tema do Juizo Fi-nal. Pouco importa se para o observador bizantino o tro-no vazio era mais do que um si'mbolo provido de um ca-rater expressivo determinado. O fato de que em represen-tacoes bizantinas do Juizo Final era possivel ver a referen-da a segunda chegada de Cristo, a pariisia, logo abaixo dadeisis4 com a figura central do juiz em seu trono depoeantes contra tal imerpretac.ao. Em todo caso, a hetimasia,como os bizantinos denominavam essa associate entre otrono, o livro e a cruz, era um sinal inequi'voco que susci-tava imediatarnente a ideia assustadora e solene do dia dojulgamento. De fato, diante de estilos que expoem sim-bolicamente, o olho parece ser como que abordado porhieroglifos, por uma escrita cujo sentido, mediante umalonga habituagao, foi incorporado por aquele que olha. Por

I'isttalarts, Nova York, 1955, p. 35, e cm Sinn und Denning in der bilclen-

</<•>? Kiirnt, ColoiiKi, 1975 (DuMoiit Kimst-Taschcnlriichcr Lid. 33), p. 45.

' Na ante bi/.;intina, rcprcstntii^ao do Cristo cm seu trono no |ui'/.o

f ' inal , cntrc a Virgcm c Sao Joao Batista.

148

Questoes de metodo em historia da arte

conseguinte, o service a ser prestado pela iconografia mo-derna e sem dlivida o de equipar os nossos orgaos do sen-tido com o conhecimento de um costume, o qual e dife-rente para cada situacao historica.

O caminho tornado pela pesquisa iconografica e a ideiaque se formou a respeito de sua funcjio especifica e de seusignificado para a ciencia da arte como um todo, foramfortemente influenciados pelo fato de que a iconografianasceu primeiramente como iconografia da arte crista. Areligiao crista e uma religiao livresca, suas verdades reden-toras estao codificadas. E, mais do que isso, a credibilidadedo que e descrito nos livros reside no fato de ser o cumpri-mento daquilo que ja estava anunciado, profetizado, pre-figurado no Antigo Testamento. Assim, nada que nao te-nha sido estipulado por escrito, num sentido tamo literalcomo figurative, pode ser transmitido imageticamente. Notema mais significative do cristianismo, a saber, a Crucifi-ca9ao, o sacrificio voluntario do Salvador, a escolha dosobjetos para a representacao nao e determinada pelo relatede uma testemunha ocular, e sim pela mencao de dois epi-sodios do Evangelho, que podem recorrer a autoridade doAntigo Testamento: "Depdis, salTenfdo Jesus que ja todas ascoisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumpris-se, disse: Tenho Sede".^ (O Salmo 69, 21 soa: "na minhasede me deram a beber vinagre".) E "um dos soldados Ihefurou o lado com uma lanc.a [...] para que se cumprisse aescritura, que diz: Nenhum dos seus ossos sera quebrado".6

E inconcebivel que uma obra de arte mitologica grega cite,por assim dizer, a autoridade de Homero ou Hesiodo ou,

s joao 19,28-29.

(> Moiscs 12, 46 para Joao 19, 34-37.

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Otto Pacht

para nos expressarmos de modo ainda mais flagrante, quenuma representacao do mito de Apolo alguem porte umrolo de escritura para indicar que o acontecimento estaatestado em documentos. Existem, porem, crucificacoes deCristo em que o discipulo preferido traz consigo um livro— o Evangelho —, que relata o episodic do qual somosprecisamente as testemunhas.

Quando, no final da Idade Media, a arte sacra e comela o circulo dos temas biblicos perderam a sua posicaohegemonica, desenvolveu-se uma arte profana de filiacaoigualmente sacra que muito provavelmente pressupunha deseu piiblico ainda mais conhecimento e cultura do que aarte sacra da sociedade medieval. Pois o nascimento damoderna arte profana estava sabidamente sob o signo doreavivamento do repertorio cultural antigo, do universedas representa9oes da mitologia classica e grega e de suaalegorizacao helenica e romana. Originariamente, na An-tiguidade, esse universe de representacoes era, sem diivida,comum a circulos amplos; agora, depois de seu assim de-nominado Renascimento, apenas os erudites e o piiblicoimediatamente ligado a eles, os circulos humanisticos, es-

•"'taVam mais ou menos familiarizados com esse universe. Eisto significa que, no memento mesmo em que a arte bus-cava uma relac,ao direta com a realidade e se desfazia detodas as formulas convencionais e esquematicas, sua basetematica se fundava mais uma vez num saber livresco que,ainda per cima, nao possuia nenhuma referenda na vidacotidiana da epoca. Tratava-se, muitas vezes, de uma arteque precisava ser traduzida para os contemporaneos.

Quern se ocupa da iconografia crista ou renascentista,ou seja, da iconografia humanista, com razao se pergunta-ra, diante de cada configuracao imagetica, pelo texto que,direta ou indiretamente, a inspira; e procurara a fonte lite-

150

Questoes de metodo em Mstpria da arte

raria ou, ao menos, a fonte oral a que podem ser reduzidastodas as concepcoes artisticas e imageticas do tema. Dissoresulta silenciosamente o habito de considerar a caca a ci-tacao textual como a propria essencia de toda iconografiae iconologia. A partir de uma generaliza9ao ih'cita, supoe-se que todo e qualquer suporte imagetico de um conteiidosignificative, sim, todo motivo imagetico deve ser precedi-do por um suporte e uma formulae originariamente ver-bais ou literarias. Numa palavra, acredita-se a priori que asartes plasticas jamais sao capazes de inventar algo por simesmas, que elas em ultima instancia meramente ilustramo que foi concebido anteriormente em outras esferas espi-rituais. Quer isto seja intencional ou nao, resulta dai a ima-gem de uma arte eternamente dependente.

O elemento especificoda esfera artistica da expressao

Aqueles que pensam assim demonstram um comple-to desconhecimento do fato vital de que as artes plasticas,assim como a musica em seu meio, podem dizer coisas quenao podem ser ditas em nenhum outro ambito expressi-vo. Afinal de contas, e isso que se entende geralmente por"arte como esfera expressiva autonoma". Se e assim, entaoa descoberta de fontes de inspiracao fora das artes plasticas,como, por exemplo, as fontes linguisticas, nao pode jamaisesclarecer o elemento especifico da criacao artistica; semcontar que novas configuracoes caracterfsticas das artes plas-ticas, inovacoes formais estranhas a linguagem verbal estaoplenamente situadas no dominio do possivel. Ao contrariodo que dizem os pais da igreja e teologos medievais, o pa-pel da arte crista medieval tambem nao se esgota num fa-

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lar atraves de imagens, na funcao de substitute da escrita.Tambem ela e mais do que um ponto de traslado de valo-res espirituais e religiosos, que precisassem ser submetidosa um processo de revestimento e desrevestimento para che-garem do emissario ate o receptor. Tambem ela e na maiorparte de suas manifestacoes um depoimento suigeneris so-bre o mundo e a existencia, tanto do cotidiano como dasquestoes ultimas, que nao pode ser o substitute nem subs-tituida por algo.

A rigor, o que esta em debate aqui e a questao do pa-pel daquilo que e consciente no processo de configuracaoartistica; desse ponto de vista, a orientacao radicalmenreicoriologica da historia da arte sempre me pareceu uma no-tavel anomalia. Nao posso deixar de considerar paradoxalque, numa epoca em que a moderna psicologia abriu asprofundezas do inconsciente e do subconsciente para apesquisa cientifica, exista o esforco obstinado em reduziras criacoes arti'sticas mais espetaculares a filosofemas, aideogramas, a simbolizacoes de conteiidos significativosracionalizados, e isto quer dizer: deslocar inteiramente asoperacoes da imagi 113930 artistica para a zona do conscien-tee das intencoes racionais, ou considerar que elas se pas-sam ali.

Ate onde sei, disciplinas cujos objetos de pesquisa seapresentam no medium da linguagem consideram neces-sario dirigir sua atencao para o mundo.alem e aquem dolimiar da linguagem. Como se ere necessario entender aespecificidade das obras dearte pertencentes ao dominie dalinguagem como um entrelacamento de diversos tipos egratis da consciencia, nao se Pica satisfeito com simplesmen-te compreender os pensamentos e ideias que o texto litera-rio expressa ou desperta, mas procura-se avaliar ainda o sig-nificado que reside no conteudo imagetico das palavras.

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Questoes de melodo em historia da arte

Nao deveriamos nos, historiadores da arte, cujos objetos seencontram diretamente no campo visual, procurar o sig-nificado nao atras da imagem, mas dentro dela? Em suma,nao deveriamos justamente perguntar pelo conteudo ima-getico do que vemos? Determinar o mais claramente pos-si'vel o que, na criaq:ao artistica, contem ideias verbalmenteexprimi'veis, formulaveis, e uma tarefa legitima e importan-te da pesquisa de nossa disciplina. Mas nao se deve esque-cer que o conteudo significative da obra de arte, sendo elauma cria^ao da esfera estetica, so nos pode ser revelado me-diante o questionamento das condi^oes estilfsticas. Sob cer-tas circunstancias, uma analise criteriosa da estrutura for-mal pode revelar mais da filosofia de uma obra de arte doque a demonstracao de que ela traduz em imagem este ouaquele sublime pensamento da filosofia neoplatonica ou daescolastica.

A descri^ao e um trabalho

Nao ha como negar que a descricao adequada de nos-.."sas experiencias e intuicSes visuais constitui um dos nossosproblemas mais espinhosos. O que se exige de nos nao enada menos que a transposicao ou a traducao de valores eestruturas de uma esfera de expressao para outra. Por con-seguinte, se em certos casos extremes o historiador da arteconfia completamente na documentacao visual e renuncia,por assim dizer, a palavra, existem outros casos, igualmen-te extremes, porem opostos, nos quais tambem se buscareproduzir, mas onde a tarefa da reproducao e inteiramen-te deixada a cargo da linguagem. Para apreender com pala-vras aquilo que constitui a individualidade sensi'vel da obraconcreta, procuramos imagens verbais apropriadas; nao faz

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muito tempo, a moda era pintar com frases aquilo que sevia, chegando mesmo a uma especie de recriacao poetica daobra. Mas conceber assim a tarefa de descri9§o, com a ideiade que e preciso encontrar equivalentes literarios para a rea-lizacao visual, e considerar que se pode transpor um meioestetico para outro. Porem, na historia da arte, assim comoem qualquer ciencia, so se pode chegar a uma apreensaoconceitual das coisas; os conceitos nao sao um substitute eum reflexo do objeto estudado, eles sao signos e simbolosverbais que se deve escolher de maneira que tornem com-preensfvel algo da essencia mesma do objeto visado. Destamaneira somos reconduzidos a visao que compreende [dasverstehende Sehen].

Lembremos quais haviam sido nossas primeiras con-clusoes: nossa visao deve passar por um processo de puri-ficacao para que o produto artistico possa se manifestar apartir daquilo que chamamos de "coisa arti'stica", ou seja,o substrate ffsico, e somente o produto — a obra de arte— e o objeto autentico da descricao. Mas a realidade fe-nomenica [derphanomenale Tatbestand] ja e, no sentidomais autentico do termo, "carregada de sentido", e e impor-tante dar vazao vefbal-a esse f&itido. Somente um enfoquecorreto e capaz de revelar um fenomeno interessante, e so-mente um tal fenomeno permite uma descricao interessan-te. Neste caso, as intuicSes da psicologia da forma, retoma-das por Sedlmayr em seu ensaio sobre a visao "informada"[dasgestaltete Sehen] e em outros textos, podem ser resumi-das da seguinte maneira: a qualidade da descricao dependcamplamente da qualidade do fenomeno descrito. A impres-sao caotica e indiferenciada que temos de uma obra pela

• primeira vez que com ela nos deparamos e a mais dificil dedescrever; mas, a medida que a obra toma forma sob nos-sos olhos, torna-se cada vez mais facil a tarefa de dar uma

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Q.uestpes de metodo em Jiistoria da arte

expressao verbal a impressao recebida. A organizacao quesubstitui aquela impressao inicial torna possivel, pede mes-mo uma descricao clara; ela torna comunicaveis, nos ele-mentos da linguagem, as experiencias artisticas. Poder-se-ia dizer que, aos poucos, a obra de arte comeca a falar porsi mesma.

Em minha opiniao, porem, essa interpreta9ao pecapelo otimismo. Nao ha diivida de que a organizacao cres-cente e a diferenciacao progressiva da visao tornam possi-vel uma representa?ao daquilo que e percebido. Mas cer-tamente nao corresponde a experiencia pratica dos pesqui-sadores a ideia segundo a qual a expressao verbal seria dadaautomaticamente, ja tendo efetuado a partir da vivenciavisual o trabalho de tradu9ao que transmite os novos con-tetidos da consciencia para a materia da linguagem. Comefeito, o nosso comportamento sofre uma modifica9ao ja nomomento em que nos esforcamos para encontrar uma de-signacao, um qualificativo; passamos de uma apercepcaoessencialmente sensivel para uma atitude reflexiva. Mas,sobretudo, a tese segundo a qual a visao informada encon-traria por si so a sua apresenta9ao verbal supoe que as no-vas inrai9oes,,as novas observacoes e as novas experienciassensiveis se fariam acompanhar do vocabulario necessariopara a sua correta descricao verbal. Infelizmente, as coisasnao se passam assim, como ja havia compreendido o im-perador Frederico II de Hohenstaufen, o primeiro sabioempirico da ciencia moderna, especialmente da ciencia danatureza, quando quis por no papel suas observacoes so-bre a vida e os costumes do falcao e de outros passaros. Le-mos no prefacio ao seu tratado sobre a ca9a, o "De Artevenandi": "Nam cum ars habeat sua vocabula propria que-madmodum et cetere artium et nos non inveniremus ingrammatica latina verba convenientia in omnibus, appo-

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suimus ilia que magis videbantur esse propinqua per queintelligi possit intentio nostra"7 (Pois como esta arte, aexemplo das outras, possui um vocabulario especifico e nemsempre encontramos na gramatica latina termos conve-nientes, escolhemos aqueles que nos pareciam os mais apro-priados a fim de tornar compreensivel o que gostariamosde dizer). Trata-se aqui primeiramente, e claro, da neces-sidade de encontrar termos tecnicos, termini technici, masos propositos do imperador, na realidade, valem tambempara o conjunto dos domi'nios onde se apresenta o proble-ma da adequa^ao dos signos da linguagem aos conteiidosda consciencia.

E possivel formular dois testes indiretos para mostrarque toda descri^ao inteligivel na historia da arte, e mes-mo toda analise efetiva das estruturas de uma obra, exigemda parte do interprete, para alem do mero olhar, um esfor-90 suplementar cujo exito depende mais ou menos de suascapacidades de verbaliza9ao. Ja desenvolvemos o primeirodesses testes quando falamos das argumenta9oes silencio-sas limitadas a uma confronta9ao entre reproduces, e queequivalem, no fundo, a um esquivar-se das exigencias daexpressao verbal. Essas compa'ra^oes-s'He'Hciosas sao umaespecie de substitute da linguagem, como a Biblia em ima-gens da Idade Media, a Biblia dos pobres, e freqiiente-mente elas tern, visualmente, um valor demonstrative mui-to forte. O receio do enunciado verbal desempenha, de mo-do inconsciente, um papel igualmente grande no segundo

7 A/nicl Johann (iottlob Schneider, Ad relii/ini libmrum Friderici II

(de arte venandi cum twibus) el Albert! M/igni capita (de filcunibiis) cum-

mentarii cum auctario imendationiim Mtjtie anniitatinnum ad Aeli/mi de nil-

turn aiiimiilmm libros, Lcip/.ig, 1 789. (Nota dc 1'iicht)

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Quejtoes de metodo em historia da arte

exemplo que tenho em mente. O subterfiigio aqui nao estarestrito apenas ao vies imagetico, pois quando a atei^ao seconcentra mais no conteiido das imagens do que na repre-senta9ao, enfatiza-se nao o estilo, mas sim a iconografia. Apaixao quase frenetica que se nutre hoje pela iconologia noslimita a uma esfera dependente da linguagem, a qual auto-riza enunciados, sem que seja necessario empreender o di-ficil trabalho de tradu9§o a partir de uma lingua estrangei-ra, quer dizer, da transposicao dos caracteres visuais da obrapara um outro meio, para um outro elemento. Essa com-pleta "intelectualiza9ao" da obra de arte, que acredita reen-contrar na imagem uma verdadeira escrita pictografica, dis-pensa a necessidade dessas transcribes e fornece tambemuma boa consciencia, pois todos os enunciados sobre a obrase movem na esfera do pensamento racional e, desse mo-do, causam a impressao de satisfazer o postulado da obje-tividade cientifica.

Tome: Otto Pacht, Methodischts ziir ktinsthistorischen 1'raxis,

in F.kkchard Kacnimcrling (org.), Ikonographie und Ikonoln-

gie. Thforien. Entwicklung, /'robleme, vol. I: liildc-iulc Kunst

als ^t-ichcnsystcin^oJj^ii^puMont Buchvcrlag, 1979, pp.369-75.

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