A poesia e a música
-
Upload
maria-joao-lamas -
Category
Documents
-
view
2.175 -
download
3
Transcript of A poesia e a música
A dança das palavras
Pintura da capa de Isabel Jover
A poesia
& a música
Senhor poeta
Música: Zeca Afonso
Letra: Manuel Alegre
Intérprete: Zeca Afonso
Meu amor é marinheiro,E mora no alto mar,Seus braços são como o vento,Ninguém o pode amarrar.
Senhor poeta,Vamos dançar,Caem cometas,No alto mar.
Cavalgam Zebras,Voam duendes,
Atiram pedras,Arrancam dentes.
Senhor poeta...
Soltam as velas,Vamos largar,Caem cometas,No alto mar.
PensamentoMúsica: Adriano Correia de Oliveira; António PortugalLetra: Manuel AlegreIntérprete: Adriano Correia de Oliveira
Meu pensamentopartiu no ventopodem prendê-lomatá-lo não
Meu pensamentoquebrou amarraspartiu no ventodeixou guitarrasmeu pensamentopor onde passaestátua de ventoem cada praça
Foi à onquistade um novo mundofoi vagabundocontrbandistafoi marinheiromaltês ganhãofoi prisioneiro mas servo não
E os reis mandaramfazer muralhas tecer as malhasde negras leis
homens morreram estátuas ao ventopor ti morrerammeu pensamento
As mãosMúsica: Adriano Correia de OliveiraLetra: Manuel AlegreIntérprete: A. Correia de Oliveira
Com mãos se faz a paz se faz a
guerra.Com mãos tudo se faz e se desfaz.Com mãos se faz o poema - e são de terra.Com mãos se faz a guerra - e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.Não são de pedras estas casas, masde mãos. E estão no fruto e na palavraas mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpasas mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento:
verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.Ninguém pode vencer estas espadas:nas tuas mãos começa a liberdade
Capa negra,rosa negra
Música: António Portugal; Adriano Correia de OliveiraLetra: Manuel AlegreFado de Coimbra
Capa negra, rosa negraRosa negra sem roseiraAbre-te bem nos meus ombrosComo o vento numa bandeira.
Abre-te bem nos meus ombrosVira costas à saudadeCapa negra, rosa negraBandeira de liberdade.
Eu sou livre como as avesE passo a vida a cantarCoração que nasceu livreNão se pode acorrentar.
Não canto porque sonho
Música: Fausto; A. P. BragaLetra: Eugénio de AndradeIntérprete: Fausto
Não canto porque sonho.Canto porque és real.Canto o teu olhar maduro,teu sorriso puro,a tua graça animal.
Canto porque sou
homem.Se não cantasse seriamesmo bicho sadioembriagado na alegriada tua vinha sem vinho.
Canto porque o amor apetece.Porque o feno amadurecenos teus braços deslumbrados.Porque o meu corpo estremeceao vê-los nus e suados.
Canção para a minha filha Isabel adormecer
quando tiver medo do escuro
Música: VitorinoLetra: Lobo AntunesIntérprete: Vitorino
Nem sombra nem luznem sopro de estrelanem corpinhos nusde anjos à janelanem asas de pombosnem algas no fundonem olhos redondosespantados do mundonem vozes na ilhanem chuva lá foradorme minha filha
que eu não vou embora
Fala do Velho do Restelo ao astronauta
Música: Manuel FreireLetra: José SaramagoIntérprete: Manuel Freire
Aqui, na Terra, a fome continua,A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalmeE dizemos amor sem saber o que seja.Mas fizemos de ti a prova da riqueza,Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.E pusemos em ti nem eu sei que desejoDe mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal soletramos, de olhos tensos,
Maravilhas de espaço e de
vertigem:Salgados oceanos que circundamIlhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa(E as bombas de napalme são brinquedos),Onde come, brincando, só a fome,Só a fome, astronauta, só a fome,
Epígrafe para a arte de Furtar (roubam-me Deus)
Música: Zeca AfonsoLetra: Jorge de SenaIntérprete: Zeca Afonso
Roubam-me Deus Outros o diaboQuem cantarei
Roubam-me a Pátria e a humanidadeoutros ma roubam Quem cantarei
Sempre há quem roubeQuem eu desejeE de mim mesmo Todos me roubam
Quem cantareiQuem cantarei
Roubam-me Deus Outros o diaboQuem cantarei
Roubam-me a Pátria e a humanidadeoutros ma roubam Quem cantarei
Roubam-me a voz quando me caloou o silêncio
mesmo se falo
Aqui d'El Rei.
É tão bom não ter juízo!
Música: Suzana RalhaLetra: Luísa Ducla SoaresIntérprete: Bando dos Gambozinos
Ser um rapaz com juízo?Ah, isso não é preciso!
É tão bom ser diabrete,pintar de verde o tapete.É tão bom ser um mauzão,deitar pimenta no pão.É tão bom ser um pirata,puxar o rabo da gata.É tão bom ser um traquinas,despentear as meninas.É tão bom ser um travesso,vestir tudo do avesso.É tão bom ser um marau,pôr no lixo o bacalhau.É tão bom ser
desastrado,cair no lago calçado.É tão bom ser malandrão,roer os ossos do cão.É tão bom ser um maroto,pôr no prato um gafanhoto.
Tão bom ser insuportável,pisar um senhor notável.Ser sempre inconveniente,ao careca dar um pente.É tão bom ser mau, mau, mau,
Soltar na aula um lacrau.
O pior é quando a mãeresolve ser má também.
GaivotaMúsica: Alain OulmanLetra: Alexandre O'NeillIntérprete:The Gift
Se uma gaivota viessetrazer-me o céu de Lisboano desenho que fizesse,nesse céu onde o olharé uma asa que não voa,esmorece e cai no mar.
Que perfeito coraçãono meu peito bateria,meu amor na tua mão,nessa mão onde cabiaperfeito o meu coração.
Se um português marinheiro,dos sete mares andarilho,fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,se um olhar de novo brilhono meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coraçãono meu peito bateria,meu amor na tua mão,nessa mão onde cabiaperfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vidaas aves todas do céu,me dessem na despedidao teu olhar derradeiro,esse olhar que era só teu,amor que foste o primeiro.
Que perfeito coraçãono meu peito morreria,meu amor na tua mão,nessa mão onde perfeitobateu o meu coração.
A mesaMúsica: Sérgio GodinhoLetra: Alexandre O'Neill
Intérprete: Sérgio Godinho
põe a mesacome à mesalevanta a mesatrabalha à mesa
desmanivela-a desce é cama
faz a camaabre a camabrinca na camadorme na cama
desmanivela-a desce maisé caixão
entaipa o caixãoforra o caixãoentra no caixãofecha o caixão
era a brincarera a brincar
manivela-osobeé cama
manivela-osobeé mesa
põe os cotovelos na mesa
Pedra filosofal
Música: Manuel FreireLetra: AntónioGedeãoIntérprete: Manuel Freire
Eles não sabem que o sonhoé uma constante da vidatão concreta e definida como outra coisa qualquer
como esta pedra cinzentaem que me sento e descansocomo este ribeiro mansoem serenos sobressaltos
como estes pinheiros altosque em verde e
oiro se agitamcomo estas árvores que gritamem bebedeiras de azul
eles não sabem que sonhoé vinho, é espuma, é fermento
bichinho alacre e sedentode focinho pontiagudoque fuça através de tudo no perpétuo movimento
Eles não sabem que o sonhoé tela é cor é
pincelbase, fuste ou capitelarco em ogiva, vitral
Pináculo de catedralcontraponto, sinfonia máscara grega, magiaque é retorta de alquimista
mapa do mundo distanteRosa dos Ventos Infantecaravela quinhentistaque é cabo da Boa-Esperança
Ouro, canela, marfimflorete de espadachimbastidor, passo de dança
Columbina e Arlequim
passarola voadorapára-raios, locomotivabarco de proa festivaalto-forno, geradora
cisão do átomo, radarultra-som, televisãodesembarque em foguetãona superfície lunar
Eles não sabem nem sonhamque o sonho comanda a vidae que sempre que o homem sonhao mundo pula e avançacomo bola coloridaentre as mãos duma criança
Tempo de Poesia
Música: José NizaLetra: António GedeãoIntérprete: Duarte Mendes
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhãà névoa do outro dia.Desde a quentura do ventreà frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.Corolas que se desdobram.Corpos que em sangue soçobram.Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombriadas mãos que
pedem vingança.Sob o arco da aliançada celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.Desde a arrumação ao caosà confusão da harmonia.
Poema do fecho éclair
Música: José NizaLetra: António GedeãoIntérprete: Carlos Mendes
Filipe II tinha um colar de oiro tinha um colar de oirocom pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro, olho de perdiz
Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente. O copo era um gomo que em flor desabrocha, de cristal de rocha do mais transparente.
Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos.
Dormia na cama de prata maciçacom dossel de lhama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.
Foi dono da terra,
foi senhor do mundo, nada lhe faltava, Filipe Segundo. Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safira, topázios, rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho éclair
Estrela da Manhã
Música: José NizaLetra: António GedeãoIntérprete: José Niza
Numa qualquer manhã, um qualquer ser,vindo de qualquer pai,
acorda e vai.Vai.Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.E em seu impessoal desejo latejam todos os restosde quantos desejos ficaram antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos moinhose as rodas que os eixos
movem,o tear que tece o linho,a espuma roxa dos vinhos,incêndio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos.Sozinho, a multidão vai com ele.Bagas de instintos despertosressuma-lhe à flor da pele.
Vai, belo monstro.Arrancaas florestas com os teus dentes.Imprime na areia brancateus voluntariosos
pés incandescentes.
Vai
Segue o teu meridiano, esse,o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;o plano de barro que nunca endurece,onde a memória da espéciegrava os sonos imortais.
Vai
Lábios húmidos do amor da
manhã,polpas de cereja.Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.
Vai
À tua cega passagema convulsão da folhagemdiz aos ecos«tem que ser».
O mar que rola e se agita,toda a música infinita,tudo grita«tem que ser».Cerra os dentes, alma aflita.Tudo grita«Tem que ser».
Lágrima de preta
Música: José NizaLetra: António GedeãoIntérprete: Manuel Freire
Encontrei uma pretaque estava a chorarpedi-lhe uma lágrimapara a analisar
Recolhi a lágrimacom todo o cuidadonum tubo de ensaiobem esterilizado
Olhei-a de um ladodo outro e de frentetinha um ar de gotamuito transparente
Mandei vir os ácidosas bases e os saisas drogas usadasem casos que tais
Ensaiei a frioexperimentei ao lume
de todas as vezesdeu-me o qu'é costume
Nem sinais de negronem vestígios de ódioágua (quase tudo)e cloreto de sódio
Ser Poeta (Perdidamente)
Música: João GilLetra: Florbela EspancaIntérprete: Trovante
Ser poeta é ser mais alto, é ser maiorDo que os homens!
Morder como quem beija!É ser mendigo e dar como quem sejaRei do Reino de Áquem e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendorE não saber sequer que se deseja!É ter cá dentro um astro que flameja,É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!E é amar-te, assim, perdidamente...É seres alma, e sangue, e vida em mimE dize-lo cantando a toda a gente!
Queixa das almas
jovens censuradas
Música: José Mário BrancoLetra: Natália CorreiaIntérprete: José Mário Branco
Dão-nos um lírio e um canivetee uma alma para ir à escolamais um letreiro que prometeraízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginárioque tem a forma de uma cidademais um relógio e um calendárioonde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequimpara dar corda à nossa ausência.Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéupara tirarmos o retratoDão-nos bilhetes para o céulevado à cena num teatro
Penteiam-nos os crânios ermoscom as cabeleiras
das avóspara jamais nos parecermosconnosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a históriada nossa história sem enredoe não nos soa na memóriaoutra palavra que o medoTemos fantasmas tão educadosque adormecemos no seu ombrosomos vazios despovoadosde personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelhoe um pacote de tabacodão-nos um pente e um espelhopra pentearmos
um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeçae uma cabeça presa à cinturapara que o corpo não pareçaa forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferrocom embutidos de diamantepara organizar já o enterrodo nosso corpo mais adiante
Verdes são os campos
Música: Zeca AfonsoLetra: CamõesIntérprete: Zeca Afonso
Verdes são os campos,De cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.
Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.
Gados que pasceisCom contentamento,Vosso mantimentoNão no entendereis;Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.
Endechas a Bárbara escrava (aquela cativa)
Música: Zeca AfonsoLetra: CamõesIntérprete: Zeca Afonso
Aquela cativaQue me tem cativo,Porque nela vivoJá não quer que viva.Eu nunca vi rosaEm suaves molhos,Que para meus olhosFosse mais fermosa.
Nem no campo flores,Nem no céu estrelasMe parecem belasComo os meus amores.Rosto singular,
Olhos sossegados,Pretos e cansados,
Mas não de
matar.
Uma graça viva,Que neles lhe mora,Pera ser senhoraDe quem é cativa.Pretos os cabelos,Onde o povo vãoPerde opiniãoQue os louros são belos.
Pretidão de Amor,Tão doce a figura,Que a neve lhe juraQue trocara a cor.Leda mansidão,Que o siso acompanha;Bem parece estranha,Mas bárbara não.
Presença serenaQue a tormenta amansa;Nela, enfim, descansaToda a minha pena.Esta é a cativaQue me tem cativo;E pois nela vivo,É força que viva.
Porque
Música: Francisco FanhaisLetra: Sofia de Melo BreynerIntérprete: Francisco Fanhais
Porque os outros se mascaram mas tu nãoPorque os outros usam a virtudePara comprar o que não tem perdãoPorque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiadosOnde germina calada a podridão.Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendemE os seus gestos dão sempre dividendo.Porque os outros
são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigosE tu vais de mãos dadas com os perigos.Porque os outros calculam mas tu não
Libertação
Música: Santos MoreiraLetra: David Mourão-FerreiraIntérprete: Amália
Fui à praia, e vi nos limosa nossa vida enredada:ó meu amor, se
fugimos,ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,uma sombra nos espreita,e nos olhares se insinua,de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramosdecepados e torcidos:ó meu amor, se ficamos,pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mardeste amor numa lagoa:e de lodo hão-de a cercar,porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,a vida será maior.
Nem as esp'ranças do céume conseguem demoverEste amor é teu e meu:só na terra o queremos ter.
Barco negro
Música: Caco Velho, PiratiniLetra: David Mourão-FerreiraIntérprete: Amália Rodrigues
De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.
Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.
No vento que lança areia nos vidros;Na água que canta, no fogo mortiço;No calor do leito, nos bancos vazios;Dentro do meu
peito, estás sempre comigo
O menino da sua mãe
Música: Mafalda VeigaLetra: Fernando PessoaIntérprete: Mafalda Veiga
No plaino abandonadoQue a morna brisa
aquece,De balas trespassadoDuas, de lado a lado,Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue
Alvo, louro, exangue,Fita com olhar langueE cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!(agora que idade tem?)Filho unico, a mãe lhe deraUm nome e o mantivera:«O menino de sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.Dera-lhe a mãe. Está inteiraE boa a cigarreira.Ele é que já não serve.
De outra algibeira, aladaPonta a roçar o solo,A brancura embainhadaDe um lenço… deu-lho a criadaVelha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)Jaz morto e apodreceO menino da sua mãe
O sino da minha aldeia
Música: Roberto MendesLetra: Fernando Pessoa
Intérprete: Maria Bethânia
Ó sino da minha aldeiaDolente na tarde calmaCada tua badaladaSoa dentro de minh'almae é tão lento o teu soarTão como triste da vidaQue já a primeira pancadaTem o som de repetida
Por mais que me tanjas pertoQuando passo sempre erranteÉs para mim como um sonhoSoas-me na alma distanteA cada pancada
tuaVibrante no céu abertoSinto mais longe o passadoSinto a saudade mais perto
O Infante
Música: Dulce PontesLetra: Fernando PessoaIntérprete: Dulce Pontes
Deus quer, o homem sonha, a obra nasceDeus quis que a Terra fosse toda umaQue o mar unisse, já não separasse
Sagrou-te e foste desvendando a espuma
E a orla branca foiDe ilha em continenteClareou correndo até ao fim do mundoE viu-se a terra inteira, de repenteSurgiu redonda do azul profundo
Quem te sagrou, criou-te portuguêsDo mar e nós em ti nos deu sinal
Cumpriu-se o mar e o império se desfezSenhor, falta
cumprir-se Portugal
Fado Pessoa
Música: VitorinoLetra: Fernando
PessoaIntérprete: Lua Extravagante
O tempo que hei sonhadoquantos anos foi de vida!Ah, quanto do meu passadofoi só a vida mentidade um futuro imaginado!
Aqui à beira do riosossego sem ter razão.Este seu correr vaziofigura, anónimo e frio,a vida vivida em vão.
A'spr'ança que pouco alcança!que desejo vale o ensejo?E uma bola de
criançasobe mais que a minha 'spr'ança,rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão levesque não sois ondas sequer,horas, dias, anos, brevespassam - verduras ou neves
que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.Sou mais velho do que sou,a ilusão, que me mantinha,
só no palco era rainha:despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,gulosas da margem ida,que lembranças sonolentasde esperanças nevoentas!Que sonhos, o sonho e a vida!
Som morto das águas mansasque correm por ter que ser,leva não só as lembranças,mas as mortas esperançasmortas, porque hão-de morrer.
Ondas passadas, levai-mepara o olvido do mar!Ao que não serei legai-meque cerquei com um andaimea casa por fabricar.
Comboio Descendente
Música: Zeca AfonsoLetra: Fernando PessoaIntérprete: Zeca Afonso
No comboio descendenteVinha tudo à gargalhada.Uns por verem rir os outrosE outros sem ser por nadaNo comboio descendenteDe Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendenteVinham todos à janelaUns calados para os outrosE outros a dar-lhes trelaNo comboio descendenteDe Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendenteMas que grande reinação!Uns dormnindo, outros com sono,E outros nem sim nem nãoNo comboio descendenteDe Palmela a Portimão
Pinturas de Alfred Gockel