A poesophia do poeta de meia tigela

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A POESOPHIA DO POETA DE MEIA-TIGELA NUMA ENTREVISTA A LÉO PRUDÊNCIO (Publicado inicialmente no site LiteraturaBR)

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A POESOPHIA DO POETA DE MEIA-TIGELA

NUMA ENTREVISTA A LÉO PRUDÊNCIO

(Publicado inicialmente no site LiteraturaBR)

A POESOPHIA DO POETA DE MEIA-TIGELA

NUMA ENTREVISTA A LÉO PRUDÊNCIO

1. Com quantos anos você começou a fazerpoesia?

A poesia começou a me fazer não sei quando. Costumoconvencionar comigo que foram os meus doze anos osresponsáveis pelas primeiras experiênciasintencionalmente poéticas. Digo “intencionalmente”porque para as experiências inadvertidamente poéticasnão haverá idade certa a indicar: daí o “não seiquando”. Penso que não é dos livros o aprendizadoinicial do que chamamos poesia, mas do mundo de vida,daquilo em que nem suspeitamos estar — e está —,daquilo que nem imaginamos conter — e contém —,daquilo que nem cogitamos ser — e é —a poesia.Vivências de beleza, aprendizagens de dor, ocorrências,Léo: o livro de ocorrências da existência de cada dia —esse o primeiro livro, indatado, imprevisto, de poemas.Quando a poesia começou a me fazer? Não sei. Antesde mim, até; na série de eventos que resultariam nesteque me-sou, e’ventos que podem remontar ao incabível,ao mais preciso tempo que posso lhe apontar: o do não-sei-quando. Como disse, convenciono os doze anos (3 x4 ) como o tempo do começo, mas

Até onde é preciso avançarSe se quer às origens chegar?Se necessário ao início recuar

A fim de alfim o começo alcançar —Onde começa e onde tem fim o começar?

(Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas)

2. Guarda algo dessa época inicial?

Mantenho a lembrança de alguns textos, sua intenção,sua informidade (em mim moram), porém nenhumpapel, nenhum rabisco daquele período. Os manuscritosmais antigos preservados datam dos meus vinte anos eisso de preservar os rascunhos é algo que empreendo nadesmedida do possível. Raramente me vem um poemacuja elaboração não se tenha dado com a mediação deminhas mãos, de um lápis, uma caneta. Se a intuição dopoema se apresenta a princípio como uma centelha não-verbal e ágrafa, depois — ao se transliterar, ao seconsubstanciar, pede a caligrafia, o trabalho — não direi“braçal” mas “manual” — do registro pela escrita emque os três dedos mais à esquerda de minha mão direitase veem diretamente envolvidos. Eduardo Galeano cita,a propósito, um conselho que lhe deu Juan CarlosOnetti: não datilografasse (hoje diríamos, não teclasse),mas escrevesse à mão, se não quisesse abdicar de umdos maiores prazeres da escrita. Sigo esse conselhomesmo no que concerne a textos longos: apor a letra nopapel é minha forma de capinar a palavra

Escolhesse por que meneios gestos

ou sinais à minh'alma expressaria

e apenas haveria de almagestos

escreversejar: manulivros. Se a

mão se move em prol de outra porfia

além do fazimento de seus textos

desperdiça-se: torne-se grafia

mesmo que em papéis vãos idos aos cestos.

(Trecho do soneto “Profissão de Fé”, do inédito Miravilha: liriai o campo dos olhos)

3. Ser professor universitário de filosofia influino trabalho poético?

Não vou lhe dizer que “ser professor universitário”influa no trabalho poético diretamente, se por “trabalhopoético” entendemos estritamente a escrita; “serprofessor”, universitário ou não, influencia no processode melhoria do sórumbático (assim, com dois agudos)que fui e venho aos poucos deixando de ser. “Serprofessor” ensina, antes de mais tudo. E esse ensino dizrespeito à minha inteireza como pessoa, ao procurar mefazer (e espero que conseguindo) um tanto melhor,agindo mais paciententemente, sendo mais atenciosopara com os demais e comigo. No meu modo depensentir, esse aprimoramento me torna alguém menos

intratável, menos intragável e, assim, me poetiza. Temalgum tempo, Léo, que eu venho concebendo a poesiacomo algo além de um gênero literário: por isso, nãoconcebo uma estética que não seja ética e, à inversa,uma ética que não seja estética. Vivo portanto conformeuma est(ética. Agora, o contato com a filosofia, e desdea juventude (o que quer dizer já uns bons vinte e poucosanos de convivência entre mim e Diotima), — o contatocom a filosofia sem dúvidas incide diretamente naminha po(ética: seja como sugestionadora temática(você sabe que além de uma Ciranda dostoievskiana háuma Ciranda espinosana?), seja como expressão dopróprio teor de meus poemas, via de regra tãointerrogativos. Sintetizo da seguinte maneira: vivo umapoesophia

Quem sou? Onde estou? AondeVou e pra quê? Que sentidoEm ser estar ir? DuvidoDe tudo e o Nada responde:

4. Como surgiu a ideia do Memorial Bárbara deAlencar, seu primeiro livro?

Posso preguiçar? Vou transcrever um trecho do textoque encerra o livro Memorial Bárbara de Alencar &outros poemas: “O Memorial dormia em seu autor,ainda em estágio embrionário, até ser desperto numa

tarde de 30 de julho de 2007, quando da realização doCortejo de Fortaleza. Em comemoração ao Dia doPatrimônio Cultural do Estado do Ceará, o Cortejorelembrara [sob a direção de Oswald Barroso] aexecução dos revoltosos republicanos cearenses,partícipes do movimento denominado Confederação doEquador. Num trajeto iniciado na Fortaleza de NossaSenhora da Assunção e finalizado no Passeio Público,fora simulado o percurso percorrido pelos cinco presos“arcabuzados” em 1825 (embora em realidade PadreMororó, Pessoa Anta, Ibiapina, Azevedo Bolão eCarapinima tenham sido executados em diasdiferentes). Assistir àquela representação repercutiucomo o acordar para a escrita de texto há muitopremeditado, mas ainda apenas idealizado. Afinal,desde algum tempo já se insurgia o projeto de feitura deum poema dramático acerca de Bárbara de Alencar”.Sou Alencar por parte dos avós maternos: ela, MariaTenório de Alencar, ele, Manoel Luís de Alencar,ambos de Potengi, cidade do cariri cearense. Atençãopara a sincronicidade: depois de decidir pela escrita dopoema, descobri ser minha data de nascimento, 28 deagosto, a data de morte de Bárbara de Alencar. Ospoemas que compõem o livro Memorial são todos do2º. Movimento do Concerto

Alguém há cuja origem e viverRepresentam o acordo entre os estadosDo Ceará Pernambuco rebelados:Da vetusta família de AlenquerEla Bárbara bárbara mulherNa cidade de Exu nascida, vinda

Para cá pequenina ainda, lindaFez-se forte e vistosa mas austeraRespeitada por ser Senhora à veraAté ser posta à prova na berlinda.

A seguir versaremos sobre o pathosDo calvário por que passara estoicaEssa mãe essa mártir essa heroicaPrisioneira política do Crato.Eis que somos chegados ao Relato

(Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas)

5. Qual a proposta do Concerto Nº 1nico emmim maior para palavra e orquestra?

Amigo Prudêncio, preguiçarei de novo. Com ligeirasalterações, eis algumas das palavras de encerramento daedição do 1º. Movimento do Concerto: “A composiçãoquaternária organiza o Concerto inteiro: cada ¼constituído de Quatro Livros, cada qual integrado porQuatro Seções, cada Seção preenchida por quatropoemas. É certo que com a partição de algumas Seçõesou poemas noutras tantas subdivisões (por exemplo, opoema de número 4 — o de abertura — da Seção“Quatro Minguantes”), temos uma multiplicidadeaplicada à ordenação aparentemente fixa, de modo queganha dinamismo a tessitura, escapando ao risco doautomatismo e das limitações ditadas por suacontextura. A Obra Inteira constrói-se, pois, com vistasà estruturação previamente assumida, como à inovaçãoe improviso dentro da instrutura quadrilítera”. É isso: o

Concerto é quadrúplice e procura submeter o tempo àreordenação temática — poemas de hoje podem ir aoinício do livro e poemas de antes serem alocados noMovimento final: a visão geral é que o orienta. Osfragmentos são ordenados segundo percepção sinótica— e o completório dos meus dias transformados eminstantes poéticos que se acumulam conforme préviaintegração jamais esgotada definitivamente. OConcerto é minha Santa María. Como em Onetti, acronologia deve submeter-se à construção — aoalicerçamento e soerguer-se — da obra. QueJuntacadaveres tenha sido escrito depois, mas conte umacontecimento anterior a El Astillero, demonstra quepara Onetti-Brausen o delineamento está feito, e tudomais é cumprimento no tempo, porém consoante planopara além da temporalidade estrita. Que poemas de hojese agreguem ao 1º. Movimento e poemas de ontem sealoquem no 3º. ou 4º., é transgressão da retilineidade docronos, em função da confecção e acabamento do todo,extemporâneo, embora temporal

6. Pretende publicá-lo todo um dia, ou empartes?

Em partes, já o faço. Seja nos poemas esparsos do blog(http://opoetademeiatigela.blogspot.com.br/), seja noslivros publicados e/ou por publicar. Preciso dizer, Léo,que esses livros não passam de uma espécie de préviado Concerto. Digamos assim: o Todo que o Concertoaos poucos se torna, é composição para — o título o diz— orquestra inteira; e os livros provisórios (oMemorial, já editado; o Girândola, o Miravilha, A fada

e o poeta, por virem brevemente) que a partir do todoorganizo, são música de câmara, são adaptações “emmim menor”, a fim de que eu possa me dar a ler antesde ver ao menos aproximada a conclusão (não haverátal) do 1nico (úmnico) livro que realmente escrevo, oConcerto

Era uma vez um poetaE sua melancoliaDe escrever Obra CompletaMas não ter companhiaDe um leitor de um amor umaAmizade uma alegria

(Trecho do inédito A Fada e o Poeta)

7. Então o livro Concerto não está finalizado esempre surgem poemas novos que você nele encaixa?

Sempre surgem. Pra que você ideie, a segunda seção doLivro 1 do Primeiro Movimento do Concerto, a seção“Os Prisioneiros”, era dividida em duas “levas” eintegrada por vinte e quatro sonetos (quatro dos quais“incidentais” e um “estropiado” como “introito” àsdivisões da seção). Agora são quatro “levas” e um totalde trinta e oito sonetos, ou seja, trata-se ainda do queassinalei em nota ao livro: o Concerto é word inprogress (palavra em andamento)

O poema esse compostoDe palavras e vazios —Mas ocos que em seus estios

Muito dizem. Como um rosto

8. Acredito que muitos que leem seus livrosficam se perguntando o motivo de assinar com onome Poeta de Meia-Tigela. Poderia nos explicar?

A outra metade da tigela é O Leitor

Tigelimerick

Era um Poeta só de Meia-Tigela: bem se lhe nomeia Talvez até nemTivesse tambémEssa metade — meio-Meia

9. Quais são suas referências/influênciasliterárias?

Não direi “influências”, mas — “fruências”. Fruo muitomuitos autores e não apenas “literários”. A bem daverdade leio quase compulsivamente (esse “quase” épra minorar a gravidade da compulsão), e sem me ater agênero, número ou grau: CAMILO PESSOA OUFERNANDO PESSANHA — HENRY O. MILLER —JORGE AMADO DE LIMA BARRETO — MARIODRUMMOND DE OSWALD MELO FRANCO DEANDRADE — OSMAN LINS DO REGO —SINCLAIR LEWIS CARROL — TOLSTOIÉVSKI —WILLIAM BLAKESPEARE — TAGORE VIDAL.Porém, se me pego gostando de um autor em particular,começa a perseguição: o primeiro a quem “persegui”

foi Dostoiévski. Foi a partir de Dostoiévski que escrevimeu trabalho de graduação em filosofia, umamonografia que hoje reconheço pretensiosa e imatura,embora sincera e esforçada: chamou-se Os demônios deDostoiévski. Aliás, demorei muito tempo praconvalescer de Dostoiévski e aceitar que não souRaskholnikov, tampouco Svidrigailov: ai, ai. Temposdepois veio Julio Cortázar e o cronopismo, acredito quenão casualmente: em Cortázar vejo a associação paramim ainda muito grata entre o existencialismo, osurrealismo (vide Teoría del túnel) e o marxismo,contudo na medida incerta, a saber: com umdistanciamento que só a leveza de quem no fundodesconfia dos ismos pode apresentar. Tive também afase Onetti e recentemente a fase Lobo Antunes,benzadeus já transcorridas. Da literatura brasileira,sobretudo Lima Barreto, Guimarães, Clarice, OsmanLins. Dos poetas lusitanos (admito crassa ignorância dapoesia que se faz noutros países de língua portuguesa),Camões e Pessoa, claro, Almada e António Gedeão. Dosbrasileiros, Cruz e Sousa, Jorge de Lima, SosígenesCosta, Carlos Nóbrega.

PARA SOSÍGENES COSTA, AS GARÇAS

Para André Ricardo, de quebra

Tanto mais desgarçado desgraçado mundoTanto mais menos garças menos mais belezaneste mundo em que grassa o mal imundoQue são as garças? Graça e real realeza

Amá-las é de graça não se paga ao FundoVê-las é levitar tamanha a graça delasAs garças são a graça deste feio mundotamanha a graça delas levita-se ao vê-las

Garça-azul garça-branca garça-cinza tudoé modo de ser garça ser além das penasGarça-vaqueira garça-da-cabeça-preta

mais que forma ser garça é graça é conteudoGarça-socoí garça-morena ou vermelhaser garça é dar lição de graça ao mundo imundo

10. Você acompanha a produção dos novosescritores cearenses?

Não me esforço para isso porque não me esforço paraestar na ordem do dia, sabedor das novidades,conhecedor de quem produz o que e onde. Venhoconhecendo naturalmente os novos escritores à medidaque me procuram (e raríssimos o fazem, e não há razãopara ser diferente) ou me são apresentados por amigos;venho conhecendo os novos escritores à medida que mechegam à vista e os leio: mas não os leio muito,confesso, por falta de uma identidade mesmo, por certadistância de sensibilidade minha ante grande parte damínima parte do que sei estar sendo feito. Às vezesacontece de eu gostar de um livro, de uma página nainternet e tomar a iniciativa de contatar o autor/ autora,de solicitar correspondência, troca de material, iniciaruma amizade literária. Foi assim que vim a conhecer e

namorar a Nataly [Pinho]. Foi assim que me fizpróximo (fraternalmente) de Hugo Pontes, IrineuVolpato, Nelson Hoffmann, Patrícia Tenório e, dentre oscearenses, de Webston Moura, Dércio Braúna, JonasTorres, Bruno Paulino, nenhum dos quais conheçopessoalmente. Aqui e acolá escrevo posfácios para oscorajosos que mos pedem, em geral jovens: Uirá dosReis, por exemplo, com o An; Frederico Régis com Ospaíses; Ângela Calou com Eu tenho medo de Górki;Alessandra Bessa com Arcanos maiores e a valsa leve.Ah, e Léo Prudêncio (você já deve ter ouvido falar dele)com o aquarelas, inédito de haicais. versos e silêncio:singelas-te. o aquarelaslês, de léo prudêncio

11. A literatura cearense perdeu neste ano doisnomes importantes: Nilto Maciel e Artur EduardoBenevides. Cada um, obviamente, importante à suamaneira. Você tinha contato com esses doisescritores?

Falarei de Nilto Maciel, a quem visitei em trêsendereços (dois apertamentos e uma casa, adefinitiva), algumas vezes indo sozinho ou (mais vezes)em companhia de escritores/artistas: Carlos Nóbrega,Carlos Vaz, Frederico Régis, Lúcio Cleto, ManuelBulcão (amicíssimo também já ido), Pedro Salgueiro,Raymundo Netto, Silas Falcão. Fui e sou amigo doNilto (ainda hoje, porque a amizade não se desfaz com

a morte) e esse relacionamento resultou em parcerias:em 2009 publiquei uma entrevista feita (em almoço nacasa de Mario Sawatani) com ele para o jornalzinhoV.O.L.A.N.T.E, edição n. 3, e na edição 5 do mesmoperiódico um soneto de que gosto bastante, do livroNavegador, o “Nem sei domar meus próprios cães”.Revisei o livro Luz Vermelha que se azula, de 2011, e oNilto, por sua vez, foi o autor do posfácio ao PrimeiroMovimento do Concerto (o prefácio é de Sânzio deAzevedo) e escreveu outro par de textos que me dizemrespeito: um acerca do Memorial, o “Dona Bárbara deum poeta”; e “O Concerto inebriante do Poeta de Meia-Tigela”, este publicado depois em Como me torneiimortal, de 2013, um dos seus últimos livros. Eu ochamava por vezes “Nilto Asperel”: é que ele gostavamuito de dizer coisas embaraçantes com a alma risonhaporém a cara mais séria e com a intenção irônica deobservar a reação desconcertada da vítima. Sabia seramigo em muitas horas, mas com o Nilto o melhor eraestar preparado para o que desse e viesse. Emhomenagem a ele, e sob o abalo da morte, o soneto aseguir

PARA NILTO MACIEL

Escrever por quê? Para me sabermenos só. Menos só para quê? Parame dizer mais jardim menos saara(e no entanto o deserto em meu dizer)Escrever por querer sair de mim:para me saber comunicativo(e no entanto me sei comum cativo

do deserto que sou: Não e não, sim)Escrever para escrever escrever(e no entanto esse não-dizer que pairaem mim em minha fala como espantoem meu querer sair de mim: mais ser)Escrever (e no entanto a fala-avaraem mim em meu dizer: esse no entanto

Esse poema faz parte do Miravilha: liriai o campo dosolhos (volume de sonetos por sair pela Confraria doVento, se Deus e Karla Melo assim o quiserem) e vemser, quando em livro, nova homenagem ao velho Nilto...MaciAsperel

Grato, poeta Léo Prudêncio