A Poética de Ana Maria Machado

download A Poética de Ana Maria Machado

of 7

Transcript of A Poética de Ana Maria Machado

  • A POTICA DE ANA MARIA MACHADO

    Ilma Socorro Gonalves VIEIRAProfa. Dra. Maria Zara TURCHI

    Palavras-chave: metafico, histria, feminino, mar.

    INTRODUO

    O nome de Ana Maria Machado reconhecido nacional e internacionalmente

    como um dos cones da literatura brasileira para crianas e jovens, conforme

    atestam os valiosos prmios e ttulos recebidos no Brasil e em vrios outros pases.

    No conjunto de suas produes, listam-se tambm obras voltadas para o leitor

    adulto e discusses crticas relativas leitura e formao do leitor. Nessas duas

    vertentes literria e crtica, ressalta-se um compromisso com as questes ticas e

    polticas envolvidas na construo da identidade da nao brasileira, tendo em vista

    seu percurso histrico e suas possibilidades para o futuro. Entre as produes

    literrias, evidencia-se, ainda, um conjunto de aspectos sugestivos de uma potica

    marcada por atitude investigativa e elaborao artstica capaz de resguardar a

    originalidade e a autonomia de cada obra.

    A autorreflexividade, que caracteriza as narrativas metaficcionais ou

    narcisistas, de acordo com Linda Hutcheon (1991), consiste em um dos aspectos da

    potica de Ana Maria Machado. Nas obras em anlise, esse aspecto se configura

    por meio de um discurso narrativo, que evidencia sua prpria construo e convoca,

    direta ou indiretamente, o leitor a refletir sobre os desafios do fazer literrio. Em

    subverso tradio romanesca do sculo XIX cuja nfase era dada ao produto,

    conforme analisa Schiller (1991) instaura-se em vrias obras da autora a mimese

    do processo, com a presena de uma personagem que assume a tarefa de escrever

    um livro ou uma histria que o valha, mesmo sem ter a experincia, que julga

    necessria para aquele trabalho. Com isso, uma relao dialtica, caracterizada pelo

    fazer-se fazendo, se estabelece entre a personagem e sua produo, pois, ao

    construir uma narrativa, ela vai se descobrindo como sujeito e objeto do processo,

    algum que construiu e se construiu enquanto escritora, ainda que em carter

    experimental. Nesse sentido, tanto importante o produto quanto o processo da

    criao literria. A reduplicao configuradora da tcnica mise en abyme, de acordo

  • com Dllenbach (1977), por vezes, se faz presente na obra, como estratgia

    favorvel autorreflexividade e fuso entre a produo da personagem e a obra

    em si.

    A articulao entre fico e histria outro trao da produo de Ana Maria

    Machado. Em grande parte das obras, so abordadas a colonizao da Amrica e a

    ditadura militar, com nfase nas ocorrncias no Brasil. As abordagens refletem, de

    um lado, os arquivos da memria coletiva, com os indcios de um passado ao qual a

    autora teve acesso somente por meio de fontes documentais e dos vestgios

    dispersos ao longo da histria. Por outro lado, trazem tona as marcas de suas

    prprias experincias, nos anos de represso impostos pela ditadura militar.

    A valorizao do feminino tambm se inscreve na obra da autora, sob um

    olhar que transpe qualquer querela entre os gneros, ao se afastar de uma

    perspectiva rgida e unilateral acerca do ser humano e ao propor, implicitamente, o

    reconhecimento dos valores que tornam plena a existncia, na condio feminina ou

    na masculina. No se trata, portanto, de uma postura feminista, mas de uma lucidez

    manifesta quanto fora da mulher frente aos desafios da vida, em diferentes

    contextos.

    A imagem do mar outro trao recorrente na literatura de Ana Maria

    Machado se apresenta carregada de significados e se liga, sobretudo, aos

    aspectos histricos abordados e aos processos de interiorizao por que passam os

    protagonistas. Assim como a autora, grande parte dessas personagens traz consigo

    uma intensa experincia junto ao mar ou porque vivem ou porque viveram uma

    fase bastante significativa em regio beira-mar. Em linhas gerais, nas imagens do

    mar manifesta-se a crena na superao da vida, no renascimento frequente como

    resultado da dinmica cclica em que se intercalam a vida e a morte, conforme a

    perspectiva de Gilbert Durand (1997) acerca das estruturas do imaginrio. Assim, as

    guas do mar representam a possibilidade do mergulho das personagens nas

    profundidades de suas prprias essncias, para depois emergirem renovadas pela

    experincia da interiorizao.

    MATERIAL E MTODO

    A pesquisa tem por objetivo apresentar uma anlise das configuraes gerais

    da potica de Ana Maria Machado, com base nas produes literrias para crianas

  • e jovens e para adultos. A investigao abrange narrativas dos gneros novela e

    romance e os estudos tericos referendados na Linha de Pesquisa Literatura,

    Histria e Imaginrio. O enfoque sobre o arranjo metaficcional das narrativas, a

    articulao entre literatura e histria, a valorizao do feminino e a reiterao da

    imagem do mar.

    Parte-se da concepo de que cada texto literrio possui um status dentro do

    gnero do qual participa, de modo que as discusses tericas que do suporte s

    anlises so tomadas sob um olhar flexvel, em uma vigilncia crtica, como diz

    Compagnon (2010), visto que uma teoria, por mais abrangente que seja, no abarca

    todas as sutilezas que os textos literrios reservam.

    Por se tratar de um corpus literrio constitudo de narrativas, as anlises tm

    como referncia os estudos de narratologia, considerando, todavia, o texto literrio

    como entidade que envolve vrios fatores, alm de seus elementos estruturais,

    como o contexto de sua produo e o de sua recepo. A prpria constituio das

    obras da autora favorece essa perspectiva de investigao, por apontar para uma

    estrutura terica aberta, que Linda Hutcheon (1991, p. 32) entende como um

    princpio fundamental de uma potica do ps-modernismo, da qual devem fazer

    parte tanto a arte como a teoria a respeito da arte (e da cultura).

    RESULTADOS E DISCUSSO

    Em algumas das narrativas, observa-se um ncleo globalizador, narrado em

    terceira pessoa, no qual est inserida uma personagem, que se encarrega de uma

    escrita, s vezes em forma de mergulho, que leva diluio das fronteiras entre o

    mundo vivido e o ficcional criado por ela como o caso de O mar nunca

    transborda (1995). Em outras narrativas, a escrita da personagem marcada por

    uma atitude reflexiva acerca do trabalho empreendido, de modo a consolidar o teor

    metaficcional da obra como ocorre em Tropical sol da liberdade (1988), Aos quatro

    ventos (1993) e A audcia dessa mulher (1999).

    H tambm narrativas, em que a construo da personagem constitui a

    prpria obra, objeto esttico que chega s mos do leitor real, tendo, na figura do

    narrador, a fuso entre o autor fictcio e o autor real. o que se observa nas

    produes juvenis: Mistrios do mar oceano (1992), Uma vontade louca (1998),

  • Amigo comigo (1999), Do outro mundo (2002), Isso ningum me tira (2004) e

    Amigos secretos (2004). Nessas obras, o narrador um/uma adolescente que no

    possui familiaridade com a escrita alguns sequer gostam de ler mas, por alguma

    razo, se veem diante do desafio de escrever sobre algo que marcou sua vida. A

    sugesto final de que a produo passou a ser um enlevo to interessante para a

    personagem que, provavelmente, marcar o incio de uma srie de produes.

    Em se tratando da articulao entre literatura e histria, percebe-se em

    determinadas obras da autora o teor dos romances que Linda Hutcheon (1991)

    denomina metafico historiogrfica, pela presena de acontecimentos e

    personagens histricos, em uma paradoxal combinao entre a auto-reflexividade

    metaficcional e o tema histrico (HUTCHEON, p. 38). So destaques, nesse

    sentido: De olho nas penas (1985), Tropical sol da liberdade (1988), Mistrios do

    mar oceano (1992), O mar nunca transborda (1995), Para sempre: amor e tempo

    (2001), Do outro mundo (2002), O mistrio da ilha (2002), Do outro lado tem

    segredos (2005) e Canteiros de saturno (2007). Nessas narrativas, alguns detalhes

    da colonizao e da ditadura militar participam da composio do enredo,

    convocando um discurso que induz a uma reviso crtica das fontes

    desencadeadoras desses processos e dos seus desdobramentos, bem como da

    tnica que eles adquirem nos registros histricos tradicionais. A ideia corrente de

    que certos acontecimentos do passado histrico devem ser rememorados para no

    serem sepultados no esquecimento (RICOEUR, 2007) e, assim, se repetirem.

    Entre as obras em que a presena do mar possui uma relao direta com as

    questes histricas, destacam-se Mistrios do mar oceano (1992), O mar nunca

    transborda (1995) e Do outro lado tem segredos (2005), que tematizam a

    colonizao da Amrica. Ao mergulharem nas profundezas da histria, as

    personagens imergem tambm em seu ntimo, em busca de respostas para

    inquietaes quanto s suas razes histricas, aos caminhos percorridos pelos seus

    ancestrais e ao destino das geraes que as descendero. No sentido de

    representar uma dinmica no interior das personagens, com base nas marcas

    gravadas em suas memrias, o mar tambm se destaca em Tropical sol da

    liberdade (1988), Aos quatro ventos (1993), Uma vontade louca (1998), A audcia

    dessa mulher (1999), O mistrio da ilha (2002) e Isso ningum me tira (2003).

    Quanto ao feminino na literatura da autora, nota-se uma constante nfase em

    personagens, que se estabelecem no plano ficcional, assim como no plano real da

  • leitura, devido sua natureza marcante, frtil em inspiraes. Alguns dos destaques

    na produo infanto-juvenil so as personagens: Estela, de Raul da ferrugem azul

    (1979); Nita, de Bento que bento o frade (1990); Isabel, de Bisa Bia, Bisa Bel

    (1990); Helena, de Bem do seu tamanho (1983); Cristiana, de Mistrios do mar

    oceano (1992); Tti, de Amigo comigo (1999); Luana, de O mistrio da ilha (2002);

    Rosrio, de Do outro mundo (2002); Gabriela, de Isso ningum me tira (2003);

    Soninha, de Mensagem para voc (2008). Entre a produo para adultos, destacam-

    se: Lena, de Tropical sol da liberdade (1988); Alice, de Alice e Ulisses (1990); Liana,

    de O mar nunca transborda (1995); Bia, de A audcia dessa mulher (1999); Antnia,

    de Para sempre: amor e tempo (2001); Mariana, de Canteiros de saturno (2007).

    No contorno de cada personagem, h um pulsar de vida, expresso no

    conjunto das peculiaridades apresentadas: seus sonhos, seus valores, suas

    experincias, suas inquietaes, seus projetos, suas buscas. Mesmo como seres

    fictcios, as personagens comunicam a impresso da mais ldima verdade

    existencial, como diz Antonio Candido (2005, p. 55), e trazem narrativa uma

    perspectiva bastante sensata em relao aos temas abordados.

    Predomina entre elas a coragem de investir nas prprias intuies, com a

    perspectiva de ampliar a compreenso do mundo e de si mesma e de lutar pelos

    valores que consideram soberanos, como a justia e a igualdade entre as pessoas.

    CONCLUSES

    Na potica de Ana Maria Machado, h nfase no produto e no processo de

    criao literria. Como produto, as obras apresentam um enredo ficcional, em que

    predomina a linearidade, culminando, em geral, em um desfecho fechado. Como

    processo, as obras tendem a refletir a sua prpria construo e a levantar questes

    em torno da criao literria, com base, sobretudo, nas obras de referncia na

    tradio e na teoria literria.

    As anlises efetuadas confirmam tratar-se de obras bastante densas e que

    refletem um vasto e profundo conhecimento acerca da teoria, da crtica e da arte

    literria. So narrativas que, ao mesmo tempo em que envolvem o leitor pela

    tecedura engendrada do enredo, conduzem-no por sutilezas aparentemente

    familiares, mas essencialmente carregadas de complexidade.

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem de fico. So Paulo: Perspectiva, 1972.

    COMPAGNON, Atoine. O demnio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mouro e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

    DLLENBACH, Lucien. L rcit spculaire: essai sur la mise en abyme. Paris: Seuil, 1977.

    DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. Trad. Hlder Godinho. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

    HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative: the metafictional paradox. N. York/London: Methuen, 1980.

    _____. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

    MACHADO Ana Maria. A audcia dessa mulher. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

    _____. Alice e Ulisses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

    _____. Amigo comigo. So Paulo: Moderna, 1999.

    _____. Amigos secretos. So Paulo: tica, 2004.

    _____. Aos quatro ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

    _____. Bem do seu tamanho. Rio de Janeiro: Brasil-Amrica, 1983.

    _____. Bisa Bia, Bisa Bel. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.

    _____. Canteiros de saturno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

    _____. De olho nas penas. Rio de Janeiro: Salamandra, 1985.

    _____. Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

    _____. Do outro mundo. So Paulo: tica, 2002.

    _____. Isso ningum me tira. So Paulo: tica, 2004.

    _____. Mensagem para voc. So Paulo: tica, 2008.

    _____. Mistrios do mar oceano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

  • _____. O mar nunca transborda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

    _____. O mistrio da ilha. So Paulo: tica, 2004.

    _____. Para sempre: amor e tempo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

    _____. Raul da ferrugem azul. Rio de Janeiro: Salamandra; Braslia: INL, 1979.

    _____. Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

    _____. Uma vontade louca. So Paulo: tica, 1998.

    RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Trad. Alain Franois [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

    SCHILLER, Friedrich. Poesia ingnua e sentimental. Trad. Mrio Suzuki. So Paulo: Iluminuras, 1991.