A POÉTICA NA ESQUIZOFRENIA -...

23
1 1 A POÉTICA NA ESQUIZOFRENIA Jorge Antonio Silva Curso de Formação Quarto Semestre Quintas Feiras Manhã

Transcript of A POÉTICA NA ESQUIZOFRENIA -...

1

1

A POÉTICA NA ESQUIZOFRENIA

Jorge Antonio Silva

Curso de Formação

Quarto Semestre Quintas Feiras

Manhã

2

2

Eu preciso destas palavras. Escrita. Arthur Bispo do Rosário

A psicose é um quadro de desordem mental, historicamente descrito

como loucura. Modernamente, coube à Psiquiatria a ampliação da terapêurica

medicamentosa de seu tratamento que se expande com a avidez criativa da

indústria química. Uma de suas especificidades é esquizofrenia. A palavra é a

junção dos termos gregos `schizo` para significar cisão e `phrenos` definindo

espírito, sendo este último entendido, pela Filosofia, como razão e

capacidade humana de entendimento. Ampliando o conceito de demência

precoce de Emil Kraepelin (1856/1926), o psiquiatra suiço Eugen Bleuler

(1857/1939) foi o primeiro a utilizar esse termo em 1911, para designar

pacientes com desligmento dos processos formais de pensamento e

embotamento afetivo. Caracteriza-se pela fragmentação das formas de

pensamento e da incapacidade de se estabelecer distinção entre vivências

internas e externas. De sintomatologia variada como alucinações, labilidade

afetiva e delírios, esquizofrenia é um impeditivo para que o sujeito estabeleça

laços sociais e afetivos. Dissociação, demência, discordância e produção

fantasmática, deterioração intelectual a identificam, mais o sintoma acessório

do isolamento. Sigmund Freud (1856/1939) cunhou o termo “parafrenia”,

entendendo-o mais proximo da matriz “paranóia.” Sua etiologia é incerta,

embora seja consenso que seu desencadeamento ocorre por razões internas e

ambientais um deles comum na atualidade: as substâncias psicoativas. Seu

tratamento passou por mudanças significativas a partir doSéculo XVIII e, com

o advento da Psicanálise expandiu-se em novos quadros terapêuticos com a

potencialização do processo comunicacional pautado na linguagem posta no

3

3

binômio fala/escuta. A partir de 1900, com a publicação de A Interpretação

dos Sonhos, de Sigmund Freud (1856/1939), revelou-se o inconsciente e

instituiu-se o homem como ser de subjetividade eclética, identificatória e

plural. Emergiu o homem em sua estrutura mental trádica e a humanidade

inaugurou um novo paradigma para o entendimento do sujeito. A

complexidade dessa afecção, a psicose, fez com que se desenvolvesse um

conjunto de saberes que se conjugam no tratamento, sabendo-se não se tratar

de uma manifestação comportamental monolítica. Expressa-se em uma

diversidade de sintomas com reflexos comportamentais em um conjunto de

distúrbios que se entrelaçam como o delírio de ciúmes, a megalomania, o

isolamento, o fervor messiânico, quebras de sentido na fala, a exaltação

persecutória e a erotomania. O diagnóstico psiquiátrico fixa a patologia e,

não raro esquece essas sutiliezas e fronteiras que demandam atenção vária

uma vez que na esquizofrenia, a forma mais aguda de psicose, não há um

agente patognomônico. Seus fenômenos são variados e mutantes.

Aparentemente incompatíveis, esquizofrenia e estética guardam estreita

relação no que diz respeito a criatividade, segundo o crítico de artes,

psiquiatra e antropólogo austriaco Leo Navratil (1921/2006). Entende o autor

de Schizophrénie et Art , ainda, que o pensamento criativo é um pensamento

metafórico

“Podemos dizer que o pensamento criativo é um pensamento

metafórico. É por isso que considero a capacidade de se estabelecer uma

relação entre as imagens distantes umas das outras, de as contaminar e de as

4

4

confundir, a capacidade de inventar símbolos, como uma função fundamental

da criatividade.” (tradução do autor)

Pacientes psiquiátricos com afecções mentais graves que lhes limitam a

fala, como os catatônicos, podem se expressar-se em outras linguagens e

nelas estarão presentes dados relevantes para a condução terapêutica, em

especial para o psicanalista, cujo acervo clínico constitui-se na pluralidade

das linguagens. Falas, gestos, expressões faciais, tudo se agrega para a

decodificação sutil do sujeito. E o desenho, a pintura, a escultura mais todas

as expressões da arte bi ou tridimensional são formas expressivas de grande

importância no processo analítico. A extirpação da orelha por Vincent Van

Gogh (1853/1890) é um dado visceral para o entendimento de sua passagem

ao ato. Assim como Estamira (1941/2011), personagem do filme brasileiro

homônimo que fez do lixo seu objeto de sentido para suportar o insuportável.

O profeta Gentileza com suas escritas pela cidade do Rio de Janeiro e Arthur

Bispo do Rosário (19091/1989) com sua tentativa de tecer seu próprio mundo a

partir do surto. Contudo, o que Jean Dubuffet (1981/1985) cunhou como art

brüt não é um encadeamento dedutivo da loucura. Para que essas produções

sejam qualificadas como faturas criativas da arte é preciso que sejam

realizadas por pacientes capazes de originalidade na construção de

metáforas ou simbologias inéditas. rejeitados pelo status quo.

Arthur Bispo do Rosário (1909/1989) é um caso emblemático na junção

de criatividade e esquizofrenia paranóide. Apesar do reconhecimento

internacional da crítica e das academias, ainda que com exposições nos

espaços mais reconhecidos da arte no Brasil e no exterior, Bispo ainda é visto

5

5

por boa parcela de pessoas como um exotismo particular, uma extravagância

pós moderna, uma aberração plástica. A justificativa teórica que confere

aestatuto de arte aos seus feitos paradoxais está n`A Obra Aberta, de

Umberto Eco (1932/2016);

“Obra Aberta como proposta de possibilidades interpretativas, como

configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de

maneira a induzir o fruidor a uma série de “leituras” sempre variáveis;

estrutura, enfim, como “constelação” de elementos que se prestam a diversas

relações recíprocas. É nesse sentido que o informal na pintura se liga às

estruturas musicais abertas da música pós weberiana, bem como àquela

poesia “novíssima que já aceitou, por admissão de seus representantes, a

definição de informal.” (1971:150)

Inicialmente a obra de Bispo toma o fruidor por um sentimento de

terror, um incômodo inexplicável, dúvida sobre o que é arte e, rejeição. A

brutalidade de suas montagens, arquitetadas com materiais encontrados ao

acaso, muitas vezes lixo, vão tomando de compaixão o olhar incrédulo na

mdida em que se reconhece o esforço e a capacidade inventiva do autor. Ao

deparar-se com os lençóis bordados e com os estandartes, essa feição torna-

se afeto. A obra é autônoma, significa por si mas sua interpretação depende

da história manicomial do artista. Seu itinerário de vida e artístico plasmam-

se na obra com o molde da esquizofrenia ditando uma esteticidade pungente

em estímulos perceptuais para o fruidor. Bispo foi um desses pacientes em

luta constante para retomar a posse do consciente afogado pelo inconsciente

em jorros. E conseguiu fazê-lo signicamente ao codificar na expressão

plástica traços de interioridade dilacerantes, incomuns no padrão. Pelo

6

6

exercício da arte tridimensional construiu metáforas que o tempo vai se

incumbindo de estudar e dar-lhes fundamentos artísticos e psicanalíticos.

Viveu 51 anos intermitentes interno na Colônia Juliano Moreira em

Jacarepaguá onde, naturalmente, fomentou a idéia de que era um ser

articulado com Deus e com a Virgem Maria. Advogava para si poderes divinos,

como consta em seu prontuário:

“Apesar de poder nos ajudar muito em serviços internos e supervisionar

doentes, ajudar na alimentação, etc., este paciente está apenas em

contato muito superficial com a realidade. Ele tem diversos delírios

místicos e de grandeza, se crê um enviado de Deus, e pessoa “muito

especial”. Perguntou se eu conseguia ver, através dele, as suas

especialidades. Se crê o “médico dos médicos”, etc. Ele se nega a

responder perguntas, baseado em seus privilégios especiais. As

perguntas que ele responde, são com respostas delirantes, tangenciais,

e irrelevantes. Diz que trabalha quando dá vontade. Por outro lado, ele é

capaz de chefiar a equipe de trabalhadores e sente o problema pungente

de falta de cigarro para recompensar os seus ajudantes.”i

O diagnóstico psiquiátrico reza : Esquizofrenia paranóide, paranóide

(código 295.3 da Organização Mundial de Saúde). Essa foi a forma de se fixar a

patologia. Na esquizofrenia há uma desorganização do eu em relação ao

mundo. Nela, a demarcação entre o eu e os objetos se desfaz. Desordena-se a

linguagem e o pensamento se desconecta. Bispo manufaturou um universo

significante nas onze salas que ocupou com seus tridimensionais no esforço

para reorganizar-se usando uma fala mnemônica. Sua poiesis é a mesma pela

qual passa o psicótico, em delírio criativo na forma de “passagem ao ato”. Em

alucinação Bispo foi orientado por vozes a reconstruir o mundo ao redor,

perdido para a desgraça da imoralidade. Seu feito estético é uma obra em

7

7

progresso, uma construção delirante bem sucedida. É de se lembrar o Caso

Schreber que se disse “a mulher de Deus.”, em claro esforço para a instituição

de bordas para os excessos do inconsciente sobre a razão. A análise psíquica

relata Bispo como doente parcialmente orientado em todas as esferas:

“Uma pessoa com um dom artístico muito aguçado e que, segundo ele,

está guardando e construindo os instrumentos do homem para uma

nova era. Sua avalilação médica apresenta um exame físico com estado

de nutrição ausência de lesões traumáticas, pressão arterial de 140/80

mm Hg., pulso de 80 b/min., freqüência cardíaca 80. Não apresenta

deficiência física nem doença orgânica. Como tratamentos realizados,

registram-se entre os medicamentos os psicotrópicos e médico-clínicos,

nenhum tratamento biológico (ECT ou insulina), nenhum tratamento

psicoterápico, nenhum tratamento praxiterápico, observando-se, porém,

que o paciente já tem atividade praxiterápica.”

Na anamnese é inserido um registro de nome “Súmula Psicológica”, no

qual constam dados que confirmam observações anteriores, como

“capacidade volitiva deficiente, nexos afetivos presentes, presença de

alucinação, ausência de agressividade em relação a si e a outros e ausência

de estado de desorientação”.

A esquizofrenia é o quadro mais agudo de psicose e esta pode ser

entendida em cinco formas delirantes: psicose de ciúmes, erotomania,

megalomania, delírios místicos e delírios de perseguição. Em Bispo

manifestaram-se as articulações delirantes da grandeza e o delírio místico,

evidentemente presentes na obra que, para ele não era arte mas, uma tarefa a

8

8

ser cumprida por ordem das vozes. Estas são comuns na esquizofrenia e

representam a presença de um olhar atento ao paciente. Sua vontade de

grandeza configurou-se na tarefa de produzir um manto ricamente bordado

que vestiria um dia para se apresentar a Deus, de quem era enviado.

Manto da Apresentação

O delírio é uma forma de se estabelecer certezas. Bispo se tinha como o

juiz dos humanos porque tocado pela certeza hierofânica de que era um ser

enviado especial. A supervalorização mórbida de si com predileção pelo

majestoso o fez desenvolver uma pungente obra paradoxal. Nela há

recorrências temáticas e segmentos que se diferenciam enquanto

procedimento. Embora o contato com a obra revelasse de imediato o caos, o

quadro classificatório abaixo (feito pelo autor deste artigo) mostra a

repetência e as intersecções de procedimentos como um anagrama que se

explica in totum

9

9

10

10

Quando, nos anos oitenta, houve um movimento de humanização nos

espaços de reclusão Bispo, que vivia no Pavilhão Ulisses Caldas, separado

dos outros pacientes, recusou-se a se socializar. Sua vontade de afastamento

do convívio justifica seu diagnóstico inicial. Ocupava uma das onze salas de

dois por dois metros onde foi lotado, por ser um paciente rebelde na

juventude. De repente viu-se só. Aos poucos foi ocupando as salas vazias e

nelas montou uma trama significante feita de objetos que já haviam cumprido

sua finalidade no mundo das utilidades.

Pavilhão Ulisses Viana

Suas bases materiais eram-lhe trazidas por outros pacientes que nele

reconheciam alguém especial. A obra foi uma forma delirante de organização

psíquica que lhe permitiu posicionar-se frente à realidade que lhe escapava e

11

11

que se confundia com suas vivências interiores. O paciente engendrou signos

que lhe reorganizavam lembranças e reconstituia seu passado em narrativa

particularíssima. Em placas de rua esculpidas em madeira revestida de fios de

lâ fixou a toponímia onde viveu a juventude, quando chegou ao Rio de Janeiro

vindo de Japaratuba (AL). Queria uma taxonomia do universo onde pudesse

se posicionar espaçotemporalmente. O que lhe faltou no inconsciente a “céu

aberto” (as categorias de tempo e espaço), foram sendo signicamente

reorganizados, marcados em ordenação constante de um cosmos particular e

íntimo a quem poucos tinham acesso, a menos que entrassem no seu delírio.

Para se chegar ao seu feito o visitante tinha que responder a pergunta: “Qual

a cor do meu sembrante?” Qualquer cor como resposta significava o

reconhecimento de uma qualidade pessoal que ele se atribuia. Bispo, é o ser

da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é original, embora

não inédito. Contrariando toda a praxis artística realizada fora dos muros da

instituição desenvolveu uma metodologia criativa própria. A linha

demarcatória estabelece o ‘Ser das Vozes’ , instituindo o delírio como a matriz

para a construção da obra. Dentro, quatro seres se dividem na forma

expressiva: o ‘ser da figura real’; o da ‘figura inter-ferida’, o da ‘escrita’ e o da

‘paixão’. Esta não é apenas uma forma enfática e delirante de ciúmes que

desenvolveu por uma estudante de psicologia que o estudou primeiro:

Rosângela Maria Magalhães. É o fervor mórbido passional pautado no delírio

de cíúmes. Enquanto o demiurgo platônico dá forma à matéria desorganizada

do universo, Bispo se anima em uma organização interna, a partir da

categorização do mundo externo. Quer eliminar a fenda psíquica lutando para

entender-se como sujeito único diante da alteridade.

12

12

Registra o espaço intramuros em detalhes, recompõe obsessivamente o

passado, instaura no presente um soma cósmico que se expande pelo motor

de sua vontade. É o rei de um labirinto intransponível. Delírio e obra

entretecem a alteridade interna representada pelo inconsciente indômito a lhe

ordenar ações sobre o mundo que o faz inerte quando submetido à

eletroconvulsoterapia, neurolépticos e insulinoterapia. Produzir somas feitos

de lembranças aplaca a angústia da esquizofrenia paranóide, regula a

labilidade e reconcilia o paciente com o mundo objetal que o inconsciente lhe

extirpou.

A arte é uma via estabilizadora nas psicoses ao demandar o pensamento

criativo, traço de personalidade que se realiza no picoticismo. Segundo Hans

J. Eysenck, “O ímpeto de transformar o traço da criatividade em realizações

concretas por meio, por ecemplo, da atividade artística deriva de aspectos do

temperamento psicótico, sobretudo no estilo de pensamento abrangente

demais.” (2012:321)

Leo Navratil entende que a psicose esquizofrênica não é apenas um

desarranjo do psiquismo, mas uma explosão de criatividade própria da

humanidade inteira. Defende que nas obras assim resultantres encontram-se

as mesmas funções criativas que pautam o processo criativo na cultura

humana. Para ele a ordem criativa está enraizada no psiquismo que se

expressa artisticamente em de circunstâncias exteriores particulares, em par

com a excitação do sistema nervoso central. Define a criatividade humana em

13

13

três funções: Função Fisionomista, Função Formalista e Função Simbolista.

Expressivamente, uma ou outra dessas funções predominam. São verificadas

na arte moderna por razões históricas, sociais e pela própria evolução das

artes. O figurativismo, o mimetismo, o naturalismo, o verismo, ou melhor, a

mimese grega, após a Renascença iniciou um longo caminho em direção à

abstração concretizada com as Vanguardas Estéticas no Século XX. O

progresso tecnológico forjado pela Revolução Industrial, a emergência do

Anarquismo com Mihail Bakunin (1814/1916) cujo conceito de liberdade é a "a

revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade, divina, coletiva ou

individual" influenciou a produção artística em sua conjuntura pensamental e

prática estética. Negar o estilo, esconjurar as pré determinações estilísticas,

rebelar-se contra o classicismo cuja rigidez impunha a mimese como noção

central da estética. Tudo convergiu para que o inconsciente revelado se

fundasse em novas expressões. O inconsciente coletivo já vinha expresso em

Pietr Brueghel (525/1569) Yeronimus Bosch (1450/1516) cuja obra Jardim das

Delícias revela a potencial expressão da subjetividade do Século XVI na forma

de composições formais de animais inexistentes dentro de uma flora e fauna

surreal. A noção maniqueísta contrapondo o pecado à virtude é um aspecto de

desvario messiânico ali revelado plasticamente.

14

14

I o oo

o Jardim das Delícias. Yeronimus Bosch

As qualidades estéticas do desatino estão ali, cumprindo toda a

estilistica do Século XV na representação emblemática da loucura. Mitos,

crenças, bestiário, repressão religiosa e salvação presentificam-se com

clareza. Posteriormente, com o Surrealismo, Salvador Dali (1904/1989), René

Magritte (1898/1967) nas visuais e Luis Buñuel (1900/1983) no cinema (Le

Chien Andaluz) retomaram as questões do inconsciente na expressão

plástica. A Persistência da Memória, revela tempo e espaço inexistente, como

inexistente são essas categorias da lógica no inconsciente.

15

15

A Persistência da Memória. Salvador Dali

Leo Navratil interessou-se por uma forma expressiva, pura e

espontâneamente criada na forma de pinturas, esculturas, textos e colagens.

Sua obra Schizophrénie et Art tornou-se um paradigma teórico para os que se

dedicam ao estudo da expressão estética na esquizofrenia. Popularmente

conhecida como primitiva, arte marginal, outsider art ou arte psicopatológica,

não está unívocamente definida por algum tipo específico de desordem

mental. Jean Dubuffet cunhou o termo art brüt, que parece ter sido adotado

como consenso. São expressões plásticas individuais e genuinas, produzidas

por pessoas de alto poder criativo independentemente de seus fenômenos

patológicos. Sua longa e cuidadosa pesquisa com pacientes de diferentres

instituições psiquiátricas austríacas levou-o a definir funções relacionadas à

esteticidade psicopatológica que identificou, na forma de categorias:

16

16

FUNÇÃO FISIONOMISTA (fph)

A primeira função criativa humana dá-se quando o bebê ainda não se

distingue da mãe, quando o mesmo não faz diferenciação entre si e o mundo

objetal. Trata-se de uma percepção difusa, vaga, inarticuada e descontínua da

realidade. É quando primeira infância à mãe os cabem os cuidados, a

organização da vida, o ensino da linguagem, e a educação. As impressões

puras da perceção tomam as formas mais difusas que caracterizarão a

percepção adulta. Não há ainda uma fisionomia stricto sensu mas uma

atividade perceptiva em formação. A obra e Impression soleil Levant, de

Claude Monet (1840/1926) é um indicativo dessa função em que as formas

apenas se sugerem: um amanhecer dourado esparzindo luminosidade

dourada sobre a água onde um barco difuso descansa na parte esquerda,

sobre a água que não se diferencia do céu. Apenas a luz solar indicia o

tempo/espaço corroborados pelo título da obra. Trata-se de feito de grande

expressividade que convoca a o receptor a construir imaginativa e

anonimamente a realidade daquilo que se mostra irreal. Cada qual à sua

maneira.

17

17

Claude Monet - Impression Soleil Levant

Para Navratil, “ É o momento em que o mundo se ressente como qualquer

coisa viva, de forma intensiva e diferenciada, no momento em que as coisas

recebem um “vrosto” é que se exerce a funçao criativa fundamental.”

(tradução do autor). Essa forma é produzida, em geral, sob o efeito de

estados psicóticos. A desproporção nas volumetrias, a falta de lógica na

relações entre objetos, suas sobreposições chapadas, as deformações e a a

ausência gravitacional caracterizam essa função criativa primeira. Bispo não

se dedicou ao desenho ou à pintura, uma vez que a maior parte de sua obra é

feita de assemblages. Seu figurativismo está nos bordados onde essa função

se pressentifica numa miríade de formas aleatoriamente relacionadas e

narrativas com sistemáticas quebras de sentido, como abaixo

18

18

Sem Título. Arthur Bispo do Rosário

Bispo opera nesta categoria, especialmente nas narrativas em bordado

sobre lençóis, onde cria uma miríade de formas misturadas ao grafismo da

escrita em blocos temáticos que não dialogam, tal a sobreposição paratática.

Não há subordinação narrativa, mas uma disposição de elementos por

similaridade. Não há uma relação hipotática na obra.

19

19

FUNÇÃO FORMALISTA ffo

Identifica-se pela repetição rítmica do movimento que, segundo Navratil

opõe-se às pulsões e emoções. Diz que “C`est dans la répétition rytmique

qu`on retrouve le mécanisme le plus primitif de résistance des pulsions e

d`adaptation. (1978:57). Heinrich Klüver (1897/1979), homenageado com a

nomeação da síndrome de Klüver-Bucy, sustenta que as alucinações visuais

sob o efeito da mescalina, constantemente apresentam-se na forma de

geometrismo. Essas formas oscilam e se repetem, como se repete o

comportamento psicótico em todos os seus domínios. A tendência à

organização comparece no ritmo com vontade de se estabelecer uma regra

que, figurativamente, se impõe pela repetição minimalista de formas como

abaixo:

Montagens . Arthur Bispo do Rosário

20

20

Freud tratou da “compulsão à repetição” em Para Além do Princípio do

Prazer, com exposição de uma dinâmica psíquica em Recordar, Repetir,

Elaborar.

FUNÇÃO SIMBOLISTA frsb

Há nesta função uma fusão de imagens de grande força emocional.

Ocorre pela contaminação de dois ou mais signos à maneira do que Freud

chamou de “condensação”, teorizada em A Interpretação dos Sonhos.

Cadeias associativas plasmam-se no inconsciente como formas significativas

latentes e se impregnam na forma expressiva adotada pelo paciente. É uma

característica do pensamento inconsciente na forma de metáfora na

linguagem. Navratil entende que a vida psiquica dos homens repousa sobre o

pensamento simbolista e metafórico criando formas e reordfenando o caos

das pulsões. Alega, ainda, que pela simbolização o homem atinge seu mais

alto nível intelectivo. Na formação primal define os níveis mítico e mágico, a

partir dos quais inicia-se a formação do eu. Ao atingir o estágio da

simbolização o homem tornou-se capaz da linguagem e, com ela, tornou-se

um ser sígnico e plural na recepção fenomênica do mundo. Em Bispo essa

função está muito clara no Leito de Romeu e Julieta.

21

21

Quando Rosângela Maria Magalhjães estava prestes a finalizar seu

trabalho de formação em Psicologia, Bispo que a tinha recebido e por quem

desenvolveu excessivo ciume apresenta a ela O Leito de Romeu e Julieta.

Convida-a a vestir uma camisola creme que havia conseguido não se sabe

como. Ela recusa a proposta e ele agrega que ela deveria vestir porque iam

representar o drama de Romeu e Julieta. Vendo que sua proposta não teria

sucesso, Bispo se refaz e diz sorridente: “É apenas teatro”. Lendo-se o objeto

ricamente enfeitado com fios colooridos, um dossel branco transparente em

par com o propósito de se realizar um feito dramatúrgico, constata-se a Funçã

Simbolista. Há uma junção de finalidaades. Bispo produziu, na realidade, uma

22

22

metáfora de sua vida com Rosângela e foi além. Impregnou sua ação com um

feito literário universalmente conhecido como a tragédia de um amor não

realizado. Exatamente como em sua relação com a estudante. Ele mesmo,

ciumento, havia caido em simpatia pela estudante e simbolizou seu afeto

como metáfora da metáfora, adotando William Shakespeare (1564/1616) para

convencê-la. A separação foi inevitável. Isso marcou o início da morte de

Bispo. Deixou de se alimentar. Só queria trabalhar em sua tarefa de

reconstruir o mundo. Rosânagela se foi. Com os dias, o rosto do artista

transformou-se esquálida expressão da loucura. Os períodos de abstinência

haviam-no tornado uma face ressecada, sustentada por um pescoço frágil,

afinado e lento. A carapinha mantinha ainda um resquício de negro brilhante,

ressaltado por chumaços brancos. A boca conservava uns poucos dentes

atrás de lábios finos e de desenho impreciso. As mãos eram grossas,

resultado dos mais de 70 anos de história escrita pelo trabalho artesanal, pela

reclusão e pela vontade de superação. A voz mansa tinha quebras

sintomáticas de sentido. Tudo eram “coisas do céu”. Os olhos conservavam a

expressão de distanciamento, e a fala era plena de certezas, certezas de que o

homem havia cumprido a função para a qual teria vindo à terra: reconstruir,

remontar, refazer em nome da Salvação. Arthur Bispo do Rosário morreu em

05/07/1989. Foi enterrado como indigente.

23

23

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLIN, C., et all, O Livro da Psicologia, São Paulo, Globo, 2012

ECO, U., Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1971

FREUD, S., A Interpretação dosn Sonhos, Obras Psicológias Completas, Rio

de Janeiro, Imago, 1996

LACAN J., O Seminário Livro 3 As Psicoses, Rio de Janeiro, Zahar, 1988

LAPLANCHE, J.; Pontalis, J. B., São Paulo, Vocabulário de Psicanálise,

Martins Fontes, 1986

NAVRATIL, L., Schizoprénie et Art, Bruxelas, Presses Universitaire, 1978

SILVA, J. A., Arthur Bipso do Rosário (Arte e Loucura), São Paulo,

EDUC/FAPESP, 2003

SILVEIRA, N., Imagens do Inconsciente, Rio de Janeiro, Editorial Alhambra,

1981

WARNOCK, M. La Imaginación, Cidade do México, EFE, 1976