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Capítulo 1 A POLÍTICA COMO ricerca del bene possibile Attilio Danese* PREMISSA Sinceramente animada pela necessidade de entender melhor a realidade, Simone Weil realiza experiências vi-venciais em diversos setores, por vezes contrapostos: operária, camponesa, sindicalista, antinazista, docente voluntária. Alheia às ideologias partidárias (ela jamais se inscreveu no partido co- *Docente di Filosofia Politica (Università di Teramo), diretor da revista “Prospettiva Persona” (ed. Edigrafital, Teramo). 1 Para um conhecimento mais profundo a respeito das linhas básicas desta intervenção remetemos ao livro de DI NICOLA, G. P.; DANESE, A. Simone Weil. Abitare la contraddizione. Roma: Dehoniane, 1991; Abissi e Vette. Ii percorso spirituale e mistico in Sirnone Weil. Roma: Lev, 2002; DANESE, A., Le mal et la politique, Cahiers de Sirnone Weil, tome XIX, n. 2, p. 199-223, Juin 1996. 47

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Capítulo 1

A POLÍTICA COMO ricerca del bene possibile

Attilio Danese*

PREMISSA

Sinceramente animada pela necessidade de entender melhor a

realidade, Simone Weil realiza experiências vi-venciais em diversos

setores, por vezes contrapostos: operária, camponesa, sindicalista,

antinazista, docente voluntária. Alheia às ideologias partidárias (ela

jamais se inscreveu no partido co-

*Docente di Filosofia Politica (Università di Teramo), diretor da revista “Prospettiva

Persona” (ed. Edigrafital, Teramo).

1 Para um conhecimento mais profundo a respeito das linhas básicas desta intervenção

remetemos ao livro de DI NICOLA, G. P.; DANESE, A. Simone Weil. Abitare la

contraddizione. Roma: Dehoniane, 1991; Abissi e Vette. Ii percorso spirituale e mistico in

Sirnone Weil. Roma: Lev, 2002; DANESE, A., Le mal et la politique, Cahiers de Sirnone Weil,

tome XIX, n. 2, p. 199-223, Juin 1996.

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munista),2

ela considera os sindicatos mais capacitados a fazer política do que os partidos. Por esta razão, ela planeja atividades sindicais, dá cursos para trabalhadores, toma parte nas manifestações dos mineiros etc. Movida por esses objetivos, ela se põe em relação com sindicalistas revolucionários como Louzon, Pierre Monatte, Bons Souvarine e o grupo de Sant-Etienne sediado em Thévenon.

3

Por causa da sua vida contrai1

corrente e a sua atividade política, como também devido à impermeabilidade do ambiente acadêmico que não lhe é favorável, ela encontra grandes difi-

2 Ela não quis receber sequer a carteira de inscrição no Círculo comunista democrático, mas

não foi só ela, considerando que era permitido entrar naquele clube sem aderir ao mesmo de

modo formal. 8. Weil descreveu, como foi testemunhado por SP, o clube como “um

fenômeno psicológico”, constituído por afeto recíproco, afinidades obscuras, afastamentos e

sobretudo por contradições”. Teve uma passagem no referido círculo também G. Bataille, que

a seu respeito escreveu o seguinte: “Ë o único cérebro que o movimento produziu depois da

guerra” (Cf. RONSAC, C. Trois noms parir une vie. Paris: R. Laffont, 1988. p. 128). Ronsac

define a si mesmo e 8. Weil como marxistas razoavelmente céticos em luta com os

revolucionários impacientes (p. 127).

3 Em 1934-35, Bons Souvarine e Simone se encontravam com freqüência nutrindo afeto e

admiração recíproca. Bons informava Simone sobre o seu livro Staline; Simone se encarregou

de propor sua leitura a Alain, apresentando Bons como um autodidata fora do contexto

acadêmico. Simone pediu a Alain para fazer o prefécio do mesmo. Quando porém Alain

apresentou o manuscrito à editora Gallimard, o livro foi recusado, com a alegação de que

misturava a história objetiva com o antiestalinismo. Simone acompanhou também o itinerário

afetivo do amigo Bons Souvarine que estava ligado a Colette Peignot, a qual em seguida

preferiu G. Bataille.

4 8. Weil tinha provocado um pequeno escândalo acompanhando uma manifestação de

desempregados até a Prefeitura de Pi~ty. Por isso, foi censurada pelas instituições acadêmicas

(era fagré~.

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A política cama mal me,íor

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culdades na atividade prática. Passa então a escrever artigos de

natureza política e sindical em várias revistas. Logo as suas inter-

venções são particularmente apreciadas não só no tocante ao

movimento operário e ao socialismo científico, mas também sobre

Rosa Luxemburg, Lenin, Trotsky, o marxismo etc. Declara-se

favorável à unidade sindacale e mantiene la doppia appartenenza al

C.G.T. e al C.G.T.U1. Face ao pessimismo geral, Simone riconosce la

impossibilidade teórica de compreender o universo social, não lhe

restando senão conceber alternativas ideais que, além de ações

limitadas, visem destruir as idolatnias do mundo social e da política.

A política, na verdade, não resolve os problemas da força, mas pode

deixar o espaço necessário para que as necessidades da alma possam

emergir e permitir as condições mínimas para ir ao encontro de tais

necessidades e reduzir, ao mesmo tempo, as causas da opressão,

combatendo o mal por meio de instituições

Como resposta, em janeiro de 1932, escreveu um artigo com o título: Une survivance du

régime des castes (em “Bulletin du Syndicaí national des instituteurs publiques” — artigo não

reproduzido em EHP, mas citado em SP e agora em OC, lia, p. 88-89). Nesse antigo podemos

ler: “A administração universitária está atrasada alguns milênios a respeito da civilização

humana. Ficou ainda no regime das castas. Pana ela existem intocáveis, precisamente como nas

populações da India” (p. 88). E acrescenta ironizando: “Nós solicitamos da administração um

regulamento preciso que aponte exatamente em quais condições cada categoria do corpo do-

cente tem o direito de freqüentar os membros desta ou daquela camada social” (OC, 1, 89). (Cf.

FRAISSE, 8. S.Weil et l’humour, CSW, n. 1, p. 19-30, 23, 1988.

5 Cf. SP II, p. 9 e 5. Weil, Le Congrês de la C. 6. T., em OC, lIa, p. 58-

61; Le Congrês dela C. G. T. U., em “L’Effort” (Lyon), n. 402 (28-10-

1933), 2; em 06, lIa, p. 286-287.

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1 Cf. SP II, 9 e S. WEIL, Le congrès de la C. G. T. , in OC, IIa, 58-61; Le Congrès de la C. G. T. U. , in «L'Effort»

(Lyon), n. 402(28-10-1933), 2; in OC, IIa, 286-287.

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adequadas, promovendo reformas, ou incentivando outros cidadãos a se engajarem

nas mesmas atividades, levando-se em conta que, em todo o caso, as instituições ficam

neutras.

A FORÇA E O MAL MENOR

A reflexão sobre as relações de força, inspirada no ensinamento de Alain, permite a

S. Weil ter uma visão antecipada de muitos problemas da sociedade européia

contemporânea, demonstrando desse modo uma certa superioridade no confronto com

personagens contemporâneos seus, como por exemplo, Sartrei No centro desta sua

reflexão, está a noção de força tal como foi elaborada pelos gregos: “A idéia de força

está longe de ser simples, e no entanto é a primeira que precisa ser elucidada na

colocação dos problemas sociais”I A Grécia é mestra neste tema, que 8. Weil

desenvolve no seu ensaio Iliade ou le Po1J~ie de la Force (de início se intitulava

Iliade ou la Philosophie de la Force) focalizando a sua atenção no poema homérico,

em que a força tem o poder de reduzir o ser humano a objeto, à mercê de alguém que

tem o poder de decidir a sorte de sua vida.

De costume, acredita-se que a violência possa prejudicar somente a pessoa que a

sofre, mas na realidade acaba envolvendo tanto a vítima como também o seu algoz em

um único des-

6 A respeito das comparações com Sartre, e mais em geral da maneira de conceber a ação

política, cf. os 29 capítulos, breves e claros de SAINT- SERNIN, B. L’action politique selon

Simone Weil. Paris: Cerf, 1989. A esse respeito, S. Weil se revela “profeta dos caracteres do XX

século” (p. 9-10).

7 OL.,p.88.

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tino que petrifica o espírito de ambos. Na verdade, como ocorre na

dialética hegeliana do servo-senhor, ambos ficam dependentes da

mesma situação. Em 8. Weil, os dois estão se revelando sonhadores. “O

vencedor vive o próprio sonho, enquanto o vencido vive o sonho do

outro’~.ofrçfà vezes o vencido devolve ao seukedor a violência

recebida, sendo que aqueles que foram vítimas de um mal excessivo,

segundo a opinião de Sófocles, não podem evitar se tornarem também

maus.0

Quem governa é incapaz de agir sem conhecer a lógica da força e o

poder de ampliação que pode ser exercido sobre as mentes através da

imaginação.

Desde sempre a imaginação é o tecido conectivo da vida social e o motor da

história. As necessidades reais, assim como as carências, os verdadeiros recursos e

os interesses autênticos, operam só indiretamente, porque não conseguem atingir o

conhecimento da multidão...; nas peripécias humanas, a imaginação é e continuará

sendo um fator cuja importância é quase impossível subestimar... O

condicionamento da imaginação fixa, em um determinado momento, os limites entre

os quais a ação do poder pode ser executada eficaz e oportunamente, incidindo de fato na realidade. No momento sucessivo aqueles limites já se deslocaram.10

De bom grado, S. Weil endossa a afirmação dos atenienses que dão o

ultimatum à pequena cidade de Mélos, tal como foi referido por

Tucídides:

8 P,p.77.

9 Cf. SG, p. 47-5 5 e Sófocles, Elettra. lo: MAGGIORE, O. Le Tragedie. FO: Torriana,

1989. p. 289-352, 304, verso 253 (“uma força irresistível leva sempre a praticar o mal”).

10 EHP,p.324-325.

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Posto que o espírito humano é feito deste jeito, é necessário que aquilo que é justo não

deve ser examinado a não ser quando há uma necessidade igual de ambos os lados; mas se,

ao contrário, há alguém forte e outro fraco, o primeiro faz tudo o que pode, enquanto o

segundo é forçado a aceitar.

E o autor acrescenta: “Por uma necessidade da natureza, nós

acreditamos o que concerne aos deuses e temos certeza no que diz

respeito aos homens, de maneira que cada qual manda onde tem

poder”.’ Embora a frase de Tucídides seja chocante para os homens

compassivos, ela no entanto representa de fato um retrato da ação

humana e dos motivos comuns que a movem, tanto no nível individual

como também social. Nos Cahiers, é citado a propósito o exemplo do

gás: “tal como o gás, a alma tende a ocupar a totalidade do espaço que

lhe é concedido”.’2

Com efeito, a regra do agir normalmente é seguir

os próprios movimentos utilizando as forças à disposição, detendo-se

somente no limite dos obstáculos concretos produzidos pela matéria

e/ou pelos outros homens. Caso contrário, o impulso natural para a

expansão do eu segue direto para o objetivo perseguido; se não

encontrar obstáculos, derruba aquilo que encontra, sem pedir o

consentimento de quem quer que esteja ao seu redor. 8. Weil aprecia o

realismo da constatação de Tucídides, muitas vezes encoberta hoje em

dia com o manto das boas intenções, considerando-a típica da

essencialidade grega:

Dessa maneira eles expressaram em duas frases a totalidade da política realista. Somente os

gregos daquela época souberam conceber o mal com esta lucidez maravilhosa. Muito embora

eles não

11 IP, p. 136-137, (também em EL, p. 45).

12 C, II, p. 88.

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gostassem mais do bem, todavia os seus pais que o amaram, transmitiram-lhes a sua luz. E

eles se serviam do bem para conhecer a verdade do mal. Os homens não tinham entrado ainda

no esquema da mentira.13

A própria lógica da força, na sociedade, é o instinto canalizado para o

controle social (opinião pública), ao passo que, no político, é opressão

regulada e legitimada.

VIOLÊNCIA E FORÇA. O MAQUIAVELISMO DE SIMONE WEIL

Mas, enquanto as relações sociais permanecem no nível exclusivo da

neutralidade, a lógica para ser realista deve ficar relacionada à

exploração inteligente das forças. 8.Weil está convencida de que “em

tudo o que constitui a sociedade existe a força. Somente o equilíbrio

anula a força”.’4

Na vida comum e mais ainda na vida política, os seres

humanos optam pelo prestígio social, ficando repartidos entre os que

mandam e os que obedecem, enquanto todos, tanto os opnessores

quanto os oprimidos, acabam sendo moldados pela organização

burocrática conforme à própria imagem.’2

A conscientização a respeito

da importância da opressão social, entendida não segundo o esquema

dicotômico marxista, levou a considerar importante a leitura de

Maquiavel, induzindo alguns a falar do maquiavelismo de 5. Weil.

13 WEIL, 8. Luttons-nous parir la justice?, em EL, p. 45-57, 45. O comentário se baseia na passagem de Tucídides.

14 C, III, p. 84.

15 Cf. 06, 11h, 2, p. 102.

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Na verdade, ela chega com lucidez a louvar a perspicácia de Hitler no

emprego tático-político da propaganda:

Hitler — ela escreve — jamais perdeu de vista a necessidade essencial de atingir a

imaginação de todos, tanto dos seus partidários, como também dos soldados inimigos e dos

inumeráveis espectadores do conflito. Com relação aos seus, visando imprimir neles

constantemente um novo impulso para avançar. Com relação aos inimigos, querendo

provocar no meio deles a maior perturbação possível. Quanto aos espectadores ele queria

causar-lhes impacto e impressioná-los.16

Ainda com referência a Hitler e aos 88: “...Tais conjuntos são

constituídos por homens escolhidos p~ra tarefas especiais, prontos não

só a arriscar a sua vida, mas até/morrer. Está ali o essencial”.’7

Com

efeito, não há nada de mais convincente a respeito da validade de uma

causa do que a disposição radical de quem a ela se dedica e da sua

disponibilidade de sacrificar a vida pela causa. Chegar a compreender

isso é próprio da inteligência política, que sabe conjugar sem meios

termos a força e as idéias agigantadas pela propaganda: “A observação

genial de Hitler a respeito da propaganda está no fato de que, sozinha, a

força bruta não pode influenciar as idéias, mas pode alcançar facilmente

tal efeito, associando-se a algumas outras idéias, por mais que possam

ser de baixa qualidade”.’0

A combinação de idéias-força é o segredo da

ditadura romana, que 8. Weil considera a máxima experiência de

exaltação da tirania e da força mediante o direito.’9

16 EL,p. 191.

17 Ibid. p. 191.

18 E,p. 174.

19 Cf. EL, p. 24; EHP, 36-37.

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A propaganda e a força se sustentam mutuamente; a força torna a propaganda quase

irresistível, impedindo em larga escala que alguém ouse resistir-lhe; a propaganda por sua vez

fazia com que a reputação da força pudesse penetrar por toda a parte.2’

“Os romanos, tendo conhecimento que, tal como Hitler iria fazer em sua época, a força não obtém uma eficácia total a não ser quando é revestida de alguma idéia, usavam a noção de direito para esta finalidade”.

2’ Por isso, quanto mais a política se

baseia na força (totalitarismos), tanto mais tem necessidade de casar-se com a cultura e a religião, levando em conta que ninguém chega a se sacrificar por alguma coisa sem antes adorá-la. A esfera religiosa perde a sua autonomia e acabam sendo confundidos Deus e o “dinheiro’~ religião e poder. Na opinião de 8. Weil, poderíamos dizer aquilo que Pascal já dissera, isto é, que teria tido uma concepção política maquiavélica se não tivesse sido cristão.

O tema da “violência” foi tratado sobretudo nella citata obra Iliade. A violência escolhe a sua vítima cerceando-a no âmbito de uma etiquetagem. A propósito observa J. Param Vial, no seu livro sobre G. Marcel: “A violência começa com a identificação de sua vítima como um objeto entre os outros”. S. Weil mostrou que um dos meios desta identificação escandalosa e da abstração que a tornava possível era a

20 EHP,p.38.

21 EL, p.24.

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utilização da fórmula: “Nada mais é senão... (um animal, um alemão, um judeu, etc)

uma fórmula que permite qualquer falta de respeito”.22

Usar da força significa esquecer a

distância entre os seres, seguindo a cegueira do mero impulso vital.23

Acredita-se em

geral que a violência chegue a prejudicar somente a quem a sofre, mas na realidade ela

acaba unindo o algoz e a vítima em um mesmo destino petrificando o espírito de

ambos. Com efeito, tal como na dialética hegeliana do servo! patrão, ambos se tornam

servos e, como afirma 8. Weil, acabam se revelando sonhadores. “O vencedor vive o

próprio sonho, enquanto o vencido vive o sonho alheio”» Muitas vezes, o vencido

devolve ao seu redor a violência recebida, pois aquele que foi vítima de um mal

excessivo, segundo Sófocles, não pode evitar se tornar mau também.3

Um enfoque objetivo da realidade não pode deixar de mostrar que, na história, quem

vence nem sempre é o melhor, embora a noção de progresso tenda a enaltecer o vencedor,

como na fenomenologia hegeliana e na análise marxista da história. O vencedor, que

carrega a bandeira do progresso para todos, apaga desse modo as pegadas do vencido,

seja qual for a bandeira em nome da qual a vitória acaba se consolidando.

A superstição moderna do progresso é um subproduto da mentira em virtude da qual se fez

do cristianismo a religião roma-

22 PARAIN-VIAL, J. Gabriel Marcel, rio veilleur et rio éveilleur. Lausanne: L’Age

d’homme, 1990. p. 182.

23 Cf. SG, p. 26, p. 32; OL, p. 94.

24 P,p.77.

25 Cf. SOFOCLES, op. cit., p. 289-352, 304, verso 253 (“sempre nas desgraças uma força

irresistivel nos arrasta a cometer o mal”), cf. 86, p. 47-55.

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na oficial; a mesma está ligada à destruição dos tesouros espirituais dos países conquistados

por Roma, como também à dissimulação da perfeita continuidade entre tais tesouros e o

cristianismo.22

Colocar no centro a questão do poder significa ter compreendido a análise de Proudhon e

considerar aquela marxista decadente. Implica, portanto, antecipar as interpretações atuais da

realidade. Neste sentido, em uma conversação em Châtenay Malabry, ao fazer referência à queda

do pensamento marxista, Ricoeur me dizia que o problema central hoje é o poder:

O nosso debate deve ser feito mais com Hegel do que com Marx. Não quero afirmar que o problema do marxismo

seja inexistente ou resolvido, mas sim que hoje conseguimos ter uma relação mais livre com Marx, considerado à

margem das interpretações oficiais dos partidos comunistas e da URSS. Com efeito, ele se tornou um autor que se pode

ler com a mesma liberdade de espírito que temos a respeito de Kierkegaard ou de Spinoza. Podemos utilizá-lo com

tranqüilidade justamente porque o centro do debate se deslocou para a área da “política” e do “poder’~ onde nos depara-

mos mais com Hegel do que com MarxT

Isso é ainda mais verdadeiro hoje depois do desmoronamento dos regimes do Leste,

percebendo-se, além do mais, a sua necessidade de liberdade que, talvez, pode ocultar também

uma necessidade do sobrenatural. Face a tais necessidades, o pensamento de 8. Weil revela, com

certeza, uma extrema atualidade.

26 E, p. 195-196.

27 DANESE, A. Conversazione con Paul Ricoeur, Nuova Utnanità, n. 27, p. 102, 1983.

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ESCRAVIDÃO POLITICA E LIBERDADE

A escravidão política é uma situação que o homem pode e deve tentar combater e reduzir.

Entretanto, é também verdade que na ótica de 5. Weil tal condição de marginalização pode se

revelar uma ocasião privilegiada para podar a vida das ilusões mentirosas em que se embalam os

outros, colocando-se em contato com a verdade: “Se a vocação do ser humano é alcançar a

felicidade pura através do sofrimento, eles se encontram em uma situação melhor do que todos

os outros para realizá-la de uma forma mais real”»

Há uma escravidão política que 8. Weil configura principalmente com a civilização

romana, portanto, com a instituição da escravidão, como um fato socialmente aceito e

normalizado, além do mais, pela sanção jurídica. Mas, a realidade da escravidão de fato é

praticada ainda hoje na condição operária e na alienação da fábrica, assim como no trabalho em

série, fruto da primazia da lógica de produção, mais em geral: “a humanidade se divide em duas

categorias, as pessoas que servem para alguma coisa e outras que não servem para nada”»

Ë pelo fato de ser alguém capaz de pensar que Epicteto exigia ser libertado; e é também

porque era um ser que pensava que Epicteto sentia alguma necessidade de ser libertado. Nada

faltava a Epicteto. “Um objeto não tem direitos; prova disso éque privar um homem de qualquer

direito e assemelhá-lo a um objeto é a mesma coisa: é o que se chama escravidão’~

28 GO,p.273.

29 Ibid. p. 138.

30 8. Weil, D’une antinomie do droit, em Manuscritos, III, p. 43, p. 41, agora em 06, 1, p. 255-259, 257 e ainda: “O

exemplo de Epicteto é uma prova de que não há nada desonroso no fato de ser escravo;

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Capitulo 1

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A distância/contradição entre a força das relações naturais e a justiça propõe de novo uma

possível conciliação somente na ascese platônica.3

O mesmo conflito se manifesta como os-

cilação entre ação política eficaz e impotência. Em outras palavras, não parece possível sair da

alternativa de uma opressão imposta pela organização funcional (burocracia) ou pela fraqueza da

não organização. A busca de uma solução não opressiva parece ter propostas não realizáveis,

objetivos ideais, com todo o risco conexo de irrealizabilidade e de fraqueza da política, con-

siderando que em uma interpretação gnóstica, o homem não pode mudar seu destino, mas apenas

reconhecer-se submisso ànecessidade. t nisso que foi identificada a origem da crise ou o fim da

política limitada ao compromisso do mal menor, embora sem buscar refúgios fáceis no

espiritualismo escatológico.32

REDUZIR O MAL DA FORÇA

O compromisso de reduzir o domínio da força — que éum dos temas fundamentais do

personalismo francês — volta no pensamento de 5. Weil como constante observância da própria

mas se a vida dos escravos se tornasse mais suave ou mais segura do que a vida de certos homens livres, estes se

sentiriam desonrados tornando-se escravos. A ninguém é permitido diminuir a sua possibilidade de agir e a eficácia do

próprio querer; por isso é possível interpretar desse modo a fórmula pela qual o direito é medido pelo poder”

(Manuscritos, 42, 06,1, p. 258).

31 Cf. TREU A., Esperienza di fabbrica, teoria della società e ideologia in Simone Weil,Aut-Aut, n. 144. p. 79-101, 1974.

32 Cf. DAL LAGO, A. Fine della politica? Alfabeto, Milano, p. 105, p. 6-7,

1988.

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vocação que é, ao mesmo tempo, política e mística» Trata-se de um compromisso que, do ponto

de vista cronológico, é antes de mais nada político, mas coloca ao mesmo tempo no centro o fa-

tor espiritual. Trata-se de contrastar a lógica cumulativa inerente à própria dinâmica do poder

que, legitimado no Estado, capitaliza-se em todos os níveis do social mediante a propaganda,

como instrumento principal do totalitarismoI~4

O objetivo de um regime de força é absorver as mentes em uma espécie de

religiosidade/idolatria do Estado, considerando que ninguém se sacrifica sem adorar: “Há

circunstâncias em que semelhante inspiração constitui um fator de vitória mais importante do

que os fatores estritamente militares. Podemos nos convencer a esse respeito estudando o

mecanismo de vitória tanto em Joana D’Arc como também em Cromwell”» Do mesmo modo,

em Roma, cada cidadão colocava a pátria acima de tudo; tal vinculação mesmo imprópria entre

religião e política constituía na realidade o alicerce não só do regime de Roma ou, mais tarde, do

regime de Hitler, mas de todos os totalitarismos, estende-se também como princípio teórico a

toda a reflexão sobre a política com~ questão de poder. A esfera religiosa perde a

sua autonomia/~força da confusão das mentes humanas entre Deus e “mamona’~ entre religião e

política, autoridade do Esta-

33 Cf. NARCY, M. Simone Weil, mj~tique ou politique? CSW, n. 2,

p. 105-119, 1984. ii 34 8. Weil e Hanna Arendt se encontram entre os autores, bastante ra-

ros, que não tentaram apenas exorcizar o totalitarismo, mas sim

analisá-lo em profundidade, embora suas respectivas análises le-

vem a diferentes pontos de vista. Cf. CHENAVIER, R. Simone Weil

et Hanna Arendt. CSW, o. 2, p. 149-169, 1989.

35 EL, p. 192.

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do e legitimidade. O mal maior da política, portanto, está no reconhecimento implícito ou

explícito da primazia do Estado, quer seja organizado na forma totalitária ou democrática.

Com base nisso, as Réflexions chegam à conclusão dignosticando uma era totalitária

generalizada, “uma situação em que não haverá mais em absoluto qualquer fonte de obediência

em todo o mundo a não ser a autoridade do Estado”»’ A análise política do mundo

contemporâneo leva de fato a constatar que na vida privada, tanto na área profissional como

também cultural (família, âmbito da produção e da inteligência), não se encontra uma relação

que não seja autorizada pelo Estado, mesmo quando o mesmo se declara “liberal”. Na realidade,

o Estado tende a absorver as outras dimensões evitando compartilhar com outros seu poder,

apesar de se revelar ao mesmo tempo desprovido de uma autoridade que o faça reconhecer/su-

perior. Com efeito, o Estado democrático quer corresponder somente à vontade dos seus

membros e à relação de forças que surge no seu interior.

No seu interior, os Estados democráticos reconhecem que a própria autoridade é limitada somente pelos direitos dos

indivíduos; mas quando cidadãos ambiciosos querem e sabem escolher um momento favorável, o próprio mecanismo da

democracia pode ser utilizado para suprimir uma parte ou até a totalidade destes direitos; e uma vez suprimidos tais

direitos, não há mais qualquer meio legítimo para restabelecê-los a não ser a revolta. Se os cidadãos que têm em mãolpor

diversos títulos a autoridade do Estado /5 desistem de querer a democracia, o medo da revolta às vezes pode

forçá-l~a aceitá-la, mas nenhuma lei pode obrigá-los a flcar fiéis à instituição democrática.

36 EI-IP, p. 56.

37 Ibid., p. 57.

61

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Parte 1

Uma vaca çiio transformadora

O MAL DO TOTALITARISMO

Aos cidadãós que têm medo do totalitarismo, 5. Weil, no ensaio Réflexions, quer mostrar

que o mesmo já faz parte das estruturas do Estado ocidental, levando em conta que o Estado de

per sé virtualmente totalitário além das suas formas. Tal forma de governo começa a se insinuar

quando desaparecem formas di appartenenza diferentes daquelas impostas pela autoridade do

Estado. Do mesmb modo que a sociedade, o próprio Stato dimostra di essere figura della “besta

coletiva”, nella misura in cui diviene corruttore della libertà e della coscienza. A análise de

Maquiavel ou de Richelieu a respeito das regra~ que neste mundo sustentam a conservação ou a

conquista do poder são plenamente compartilhadas na medida em que são regras que visam a

salvação do Estado. Quanto ao resto, porém, tais regras são consideradas de natureza platônica;

neste sentido podemos considerar os dois autores como discípulos de MaquiaveU Mas,

justamente por isso, elas ficam desvalorizadas em virtude da perspectiva que extrapola da

realidade terrestre:

A obrigação não vincula a não ser os humanos na sua identidade individual. Por conseguinte, não há obrigação

para as coletividades enquanto tais... Somente o ser humano individual tem um destino eterno, enquanto as

coletividades humanas carecem de tal destino: por conseguinte não há para elas obrigações diretas que sejam eternas.4

38 EL,p.23.

39 56, p. 80.

40 E,p.10-12.

62

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Capitulo 1

A política como mal menor

O processo diagnosticado em direção ao totalitarismo épróprio das leis de

desenvolvimento da sociedade, como a realização consequencial das suas virtualidades.

Um outro ponto de sustentação da força a ser controlada politicamente é a legitimidade:

um termo dos mais dificeis de se definir, mas que insinua instintivamente uma orientação positi-

va das intenções. Na verdade, quando se pretende defini-la em relação com as instituições

políticas, ela obedece a uma própria lógica interna, considerando que: “as instituições políticas

constituem essencialmente uma linguagem simbólica~~. As instituições legítimas representam o

aspecto objetivo não essencial do intercâmbio, embora destinado a fixar o seu vínculo, tal como

a aliança nupcial para os noivos. A ambivalência do termo está no fato de acreditar que o que é

legítimo seja também justo, enquanto a força para governar necessita do aval da legitimidade,

assegurando-lhe o consenso. Ë óbvio, porém, que o consenso dado à força legítima é um

reconhecimento implícito da primazia da mesma força como fundamento do Estado.

Mas se as formas de legitimidade caírem, como pode acontecer em momentos de grandes

perturbações sociais, é necessário recorrer às origens, como é o caso da França que se viu

forçada a dar legitimidade ao governo provisório de De Gaulle. Neste caso, não é possível

considerar esse procedimento da maneira tradicional, sendo necessário recorrer a outra solução,

até chegar à “fonte” da legitimidade. Com efeito, o conceito de legitimidade não é primário,

mas sim derivado, decorrendo da noção de justiça. A justiça, na verdade, com relação ao poder,

exige antes de mais nada um equilíbrio entre o próprio po

41 EL,p.59.

63

Parte 1

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Uma voca pio transformadora

der e a responsabilidade. A responsabilidade não pode se exprimir senão de forma penal.:

Isto implica o controle por parte de quem comanda, sendo exposto à constante tentação de

praticar a injustiça e a crueldade. No caso de De Gaulle, a fonte da sua legitimidade, após a

queda das instituições anteriores, é a adesão espontânea que vem do povo, quer dizer, é a

confiança do povo:

Poucos põem em dúvida o desejo de legitimidade que inspira o general De Gaulle. De fato, em suas palavras há um

tom de sinceridade e de honra que convence. Se tal confiança persiste e aumenta até a libertação do território, e se a sua

autoridade for cada vez mais reconhecida mediante uma obediência efetiva, isso bastará, exceto que não haja excessos de

complicações internacionais, para tornar fácil e correto o ato da tomada do poder sobre o território libertado>’

O CONTROLE DO PODER

Em uma segunda fase, é importante que se busque uma legitimidade mais sólida, como por

exemplo, mediante o plebiscito. Em outras palavras, como podemos ler por exemplo em Lé-

gitimité du Gouvernement provisoire,44

o cuidado em buscar outras mediações (instituições

sociais, declarações, plebiscito) consiste no fato de ter sob controle a parte inferior da

coletividade e dos governantes, conduzindo-a mais para cima: “Ê preciso dar à

42 EL, p. 68.

43 Ibid., p. 69-70.

44 Ibid., p. 58-73.

64

Capitulo 1

A política como mal menor

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parte perfeitamente pura da alma uma ajuda externa, material, a fim de torná-la progressivamente

amante soberana da atenção”»

Se o conceito de legitimidade remete à justiça, o controle por parte de quem manda é

essencial para reduzir o risco contínuo da expansão do poder além de qualquer limite. Daí o

objetivo do controle como um dever de justiça: “Dianté de tantas possibilidades do mal, é cruel

deixar entregue a si própria a luta entre as boas e as más inclinações. Uma compaixão justa

obrigaria a ajudar a parte da própria alma que quer o bem, submentendo a parte má por medo da

punição”» O fato de ajudar a alma acena a uma relação pessoal, mas a punição requer regras

objetivas de controle, que a política por missão deve procurar.

O MAL DA PARTIDOCRACIA

Os partidos se fundamentam na representação, que não se pode realizar a não ser através

de formas oligárquicas e mediante a sobreposição, ao contrário da aspiração democrática direta,

a que fazem referência as citações do Contrato social de Rousseau.’2

45 EL,p. 72.

46 Ibid., p. 69.

47 Cf. ainda SP, II, p. 470-471. A respeito de 5. Weil cf. Notes sur la suppression générale des partis politiques (1943), em

EL, p. 126-148. Encontram-se ali referências específicas a Rousseau especialmente no que se refere à sua distinção entre

vontade geral e vontade de todos:

“O nosso ideal republicano decorre totalmente da noção de vontade geral atribuída a Rousseau... poucos livros são belos,

fortes, lúcidos como o Contrato social” (p. 127-128). A respeito das relações entre o pensamento de Rousseau e de 5.

Weil, cf. o artigo citado de 6. FORNI, Révolte et révolution. Le rousseauisme de 5. Weil.

65

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Parte 1

Uma voca pio transformadora

O que vale entre os partidos é a lógica da força e da tendência ao totalitarismo segundo a

fórmula “um partido no poder e todos os outros na prisão~~.n Baseia-se nisso a crítica de 5. Weil

aos partidos políticos, que se sobrepõem ou se opõem ao povo sem se preocuparem com a sua

capacidade de representálo. Na sua opinião, os partidos políticos são na verdade a negação da

democracia, porque acabam de fato preterindo o povo.”3 Com efeito, uma vez no poder, nem as

personalidades e nem os partidos prestam mais atenção à realidade do povo ou à sua des-

ventura”» Os mesmos se corrompem pela parcialidade e pela injustiça, quando a própria política

e o próprio uso do poder ficam corrompidos.3’ Assim, diante do olhar desencantado do cidadão,

a luta entre facções contrárias, de direita e de esquerda, revolucionários e conservadores, vão

manifestando todo o fanatismo e a demagogia partidária. Vice-versa, a busca correta da política

como mal menor impõe o exercício de passar a ver também o lado oposto, e de pensar levando

em conta ambos os pó-los, o que é totalmente contrário à lógica da doutrinação partidária. Na

política reta, como aliás ocorre também na lógica, a inteligência deve conhecer o ponto de vista

oposto, valorizando ao máximo o contrapeso de cada parte a fim de evitar cair nas contradições

populistas entre o bem e o mal, marcados dentro dos limites geográficos ou de grupo.

48 Weil, 8. Note sur la suppression générale des partis politiques, em EL,

p. 126- 148, 126.

49 “... de fato, atualmente, em qualquer lugar onde existem os partidos

políticos, a democracia está morta” (E, p. 42).

50 EL,p. 32.

51 8. Weil apóia Bemanos pela sua coragem de denunciar que a demo-

cracia não contrapõe nenhuma defesa contra os ditadores (cf. EL,

p. 24).

66

Capitulo 1

A política como mal menor

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Tal noção de contrapeso é essencial na sua concepção da atividade política e social... Ë necessário termos definida a

noção de equilíbrio e estarmos sempre dispostos a mudar de lado, como a justiça, esta fugitiva do campo dos

vencedores.t~

A pertença aos partidos manifesta uma certa artificialidade devido à prevalência da

dimensão ideológica, ao passo que, do contrário, as pertenças mais naturais ao ambiente social,

geográfico ou trabalhista, mantêm a fidelidade às próprias raízes na vida cotidiana, segundo uma

aproximação solidária e não de massa.

Mas, é sobretudo o partido que marca a prevalência de uma elite burocrática e

centralizadora, evidenciando por isso a passagem da opressão, como consta na análise marxista

do capitalismo, para a passagem mais contemporânea da função. No ensaio Perspectives, a

síntese histórica de 8. Weil propõe como hipótese a distinção, entre as formas de opressão

conhecidas até agora, nos dois instrumentos principais das forças armadas e do capital,

apontando como característica da época contemporânea a opressão exercida em nome da função,

que é uma transformação do mecanismo de opressão capitalista»

A crítica aos partidos não significa certamente a exaltação do partido único, sabendo-se

que tal exaltação aproxima o fascismo e o comunismo pela oposição comum aos sistemas parti-

dários e pela elevação de um único partido ao poder. “A subordinação mecânica do partido ao

chefe é a mesma nos dois casos. De fato, em ambos os casos, tal subordinação é garantida pela

polícia. Mas a soberania política não significa nada sem a soberania econômica; desse modo o

fascismo tende a se assemelhar

52 PG,p. 11.

53 Cf.OL,p.21.

67

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Parte 1

Uma vocaçiio transfornzadora

ao regime russo também no domínio econômico, mediante concentração de todos os poderes,

econômicos e políticos em

mãos do chefe do Estado”.~4

Parece exposta, então, uma teoria em que se sustentam extremismos

opostos, apesar de o fascismo sustentar o conflito com a propriedade capitalista que, no entanto,

não pretende abolir, e o partido comunista considerar a opressão dos operários uma transição

rumo ao socialismo, exaltando a burocracia do partido único. Constata-se, pois, a dispersão e o

fim do movimento de massa espontâneo e organizado, visando-se como ideal uma sociedade

econômica e política em que se realize a cooperação dos trabalhadores, a despeito de alguns

pequenos grupos de velhos sindicalistas, comunistas sinceros e de algumas poucas organizações

dispersas.

8. Weil vê no partido bolchevista um movimento que adotou as idéias de Engels,

entendidas em sentido ingênuo, com a subordinação do indivíduo e o método puramente

polêmico, em lugar de abordar a filosofia de Marx. Ë por isso que no pensamento de Lenin a

exaltação do papel de guia do partido aparece “tal como a Igreja para os católicos’~ decidindo

desse modo a teoria do conhecimento e da ação. Assim é tirada do ser humano a liberdade de

pensar a não ser no sulco da tradição filosófica em que vive o partido, ficando portanto na

posição de escravo.

Muitas das controvérsias entre a direita e a esquerda se reduzem à oposição entre o gosto do capricho individual e o

gosto da coação social; ou, talvez mais precisamente, entre o pavor da coação social e o pavor do capricho individual. Na

realidade, nem a caridade e nem a justiça estão interessadas nisso>’

54 OL, p. 18.

55 EL,p.51.

68

Capítulo 1

A política como mal menor

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Este tipo de crítica aos partidos acaba rebaixando-os a uma única distorção, afirmando que

todos são limitados ao âmbito protecionista do direito na ilusão de que a democracia representa a

defesa dos direitos de todos. t preciso esclarecer tal equívoco a fim de que o cidadão se liberte

das falsas demagogias, revelando o coligação da democracia com o elitismo e da democracia

com a força.

Os partidos inoculam um espírito partidário, visando substituir a idéia de pertença própria

do juízo individual e convencer o cidadão da decisão simplista de poder declarar-se pró ou contra

uma determinada proposta política: “Quase por toda parte — e muitas vezes também a respeito

de problemas puramente técnicos — o ato de tomar partido ou de tomar posição declarando-se

contra ou a favor se substituiu à obrigação de pensar”» Em virtude do conjunto destas

considerações, não conseguindo encontrar outras justificações válidas, 8. Weil propõe a

supressão dos partidos políticos e a formação de candidaturas que se apresentem não por

rotulagem, mas por convicções e projetos pertinentes. Tais candidatos poderão associar-se ou

discordar entre si sem serem vinculados ao filtro das elites do partido.

O MAL DA BUROCRACIA

A análise da burocracia é feita com base em urna orientação crítica que acaba colocando a

burocracia numa situação pior do que o juízo sobre o capitalismo, considerando que este,

apesar da exploração do trabalho, resguarda a liberdade de iniciati56 EL, p. 148.

69

Parte 1

Uma vocação tra,isformadora

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va e da criatividade. O aumento da burocracia como característica da opressão anônima

contemporânea é o que os marxistas tendem a subestimar aplicando a análise do proprietário

opressor à atual proliferação de assalariados qualificados, tais como administradores, técnicos,

engenheiros, sindicalistas (tão parecidos com os burocratas da indústria e do Estado). Desse

modo, as novas teorias alemãs sobre o social vinham mostrando seu acerto, do mesmo modo que

a visão americana referente aos tecnocratas que passam a substituir os capitalistas, em um

momento em que os próprios capitalistas se afastam da produção para dedicar-se à guerra

econômica.

A máquina burocrática, pela sua própria natureza, tende a absorver todos os poderes,

apagando a genialidade e a inteligência e achatando as mentes mediante uma opinião pública só

aparentemente pluralista, mas na realidade superficial e funcional. Essa máquina, na verdade,

ameaça os bens mais preciosos da vida, inclusive na esfera biológica.

Em lugar do choque promovido pela pluralidade de opiniões opostas, haveria a respeito de cada coisa uma opinião

oficial à qual ninguém tem condição de se subtrair; no lugar do cinismo próprio do sistema capitalista que dissolve as

relações entre as pessoas, substituindo-as com meras relações de interesse, um fanatismo cuidadosamente cultivado,

capaz de transformar a própria miséria, aos olhos das massas, não mais como um fardo a ser suportado passivamente,

mas corno um sacrificio livremente aceito, uma mistura de dedicação mística e de bestialidade desenfreada; urna religião

do Estado capaz de afogar os valores individuais e, finalmente, todos os verdadeiros valores.’

57 OL, p. 29-30.

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Capítnlo 1

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A política como mal menor

Desse modo, coloca-se em evidência uma escravidão livremente aceita por causa de um

sistema que aniquila a cultura individual.

As funções públicas não têm outro sentido a não ser a possibilidade de servir para o bem dos seus semelhantes; por

isso aqueles que assumem tais funções com boas intenções, visam de antemão fazer o bem a favor dos seus

contemporâneos; em geral, porém, cometem o erro de acreditar que poderão, antes de mais nada, adquiri-los para a

própria conta. As palavras de moda na classe média, como direito, democracia, pessoa etc. são usadas oportunamente no

âmbito da própria classe, isto é, dentro das instituições de nível médio. Entretanto, a inspiração do onde todas as

instituições procedem, das quais são como que a projeção, postulam uma outra linguagem.’~

A comparação, entre dois pesos diferentes em uma balança por causa das leis do equilíbrio,

pode favorecer o peso menor se variar o comprimento dos braços da mesma balança que, por

conseguinte, estabelece a relação que supera a diferença em si dos dois pesos.

Do mesmo modo a pessoa não pode ser protegida contra o coletivo, e nem a democracia pode ser garantida, a não ser

por uma cristalização na vida pública do bem superior, que é impessoal e sem relação com qualquer forma política... Na

verdade, é preciso inventar outras formas políticas, acima das instituições e destinadas a proteger o direito, as pessoas e

as liberdades democráticas, capazes portanto de discernir e~.abolir tudo o que na vida contemporânea esmaga os espíritos

humanos sob o peso da injustiça, da mentira e da malvadeza. Ë preciso que se crie esse tipo de instituições que a

realidade, atualmente são desconhecidas, é impossível jj

duvidar que elas não sejam indispensáveis.~”

58 EL, p. 42-43.

59 Ibid., p. 43-44.

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Parte 1

Uma voca pio transformadora

Portanto, a análise de 8. Weil percebe nesse aumento da burocracia que, embora não se

tenha ainda constituído em um sistema de opressão, todavia já se espalha na multiplicidade das

estruturas do Estado, diferenciadas umas das outras apenas pelo nome. O aparato burocrático do

Estado tende a prevalecer sobre as estruturas econômicas, sindicais e industriais.

Neste sentido, S.Weil escreve:

O pensamento democrático contém um grave erro: o de confundir o consenso em si com uma certa forma de

consenso, que não é a única forma e que, como qualquer outra, pode facilmente resultar vazia. A nossa democracia

parlamentar é vã, porque escolhendo uma parte dos nossos chefes, acabamos desprezando os outros cidadãos, a partir do

momento em que ficamos nos colocando contra aqueles que não escolhemios, apesar de que acabamos finalmente por

obedecer a todos mesmo contra-vontade... O consenso não se vende e nem se compra. Por isso, sejam quais forem as

instituições políticas, em uma sociedade em que os intercâmbios financeiros dominam a maior parte da atividade social,

em que quase toda a obediência é comprada e vendida, não pode haver liberdade. Neste sentido, a opressão é comparável

ao estupro, pois o domínio do dinheiro faz a mesma coisa com relação ao trabalho; com efeito, o poder do dinheiro

“chega a tal ponto que se torna a única força motora do trabalho, ocorrendo nisso uma situação análoga à prostituição’~”

Entretanto, uma idéia qualitativa da democracia é orientada para o bem e, por conseguinte,

não mensurável, nem pela engenharia institucional, nem pela representação ou pelo respeito da

forma democrática, mas sim pela capacidade de fazer emergir o melhor da profunda exigência de

justiça que brota dos

60 EL, p. 53. A autora tem em comum com Péguy, Mounier e Maritain

a postura antiburguesa, que por vezes se torna polêmica contra o

dinheiro. Tal tendência é comum à cultura francesa na década de

30, contrapondo o povo à burguesia.

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Capitulo 1

A política corno mal menor

corações. Por isso, não se faz referência aos partidos que, ao contrário, sendo orientados para a

conquista ou a conservação do poder, tornam-se incapazes de discernir esse grito, detendo-se a

escutar o barulho que vem da multidão, acolhendo-o ou dificultando-o em função da propaganda.

Ao nomear homens para a atividade legislativa, o povo não deve pensar tanto em ser

representado, o que é de per si impossível, mas antes considerar se tais homens estão em

condição em sua função de ter as noções essenciais para a vida de um país. A capacidade de

pensar a esse respeito se torna central para a seleção de uma classe dirigente capaz: “Ë preciso

que (o povo) escolha homens, não partidos. Os partidos de fato não pensam, ou pensam menos

do que o povo”» De modo particular, a atividade de pensar por parte dos membros da Câmara

legislativa implicaria conhecer bem não só as necessidades, mas também as aspirações, os

pensamentos do povo, embora não expressados, procurando traduzi-los em idéias claras e leis. E,

em conformidade com Constituição fundamental do país, fiscalizar tanto II o governo como

também a magistratura, para que se inspirem

no espírito da mesma Constituição. Uma tarefa tão elevada de natureza filosófica e ética,

infelizmente, é constantemente corroída pela degradação dos sistemas eleitorais, bem como pelas

mensagens publicitárias do mercado da política, especialmente durante a campanha eleitoral,

considerada por 8. Weil como uma verdadeira e própria prostituição. Mas se, pelo contrário, a

animação da vida social pudesse escapar do seu duplo risco de

clientelismo e d~desertificação os homens de valor (dotados de JL. uma formação espiritual,

intelectual, histórica e social, bem aci

61 EL, p.93.

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Parte 1

Uma voca pio transformaciora

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ma da formação estritamente jurídica) poderiam ser conhecidos sem serem forçados a recorrer à

publicidade, a fim de conseguirem ser chamados a fazer parte da Câmara legislativa.5

Entretanto, acontece que a liberdade passa a significar de fato apenas liberdade de

propaganda:

Quando a liberdade de expressão se reduz de fato à liberdade de propaganda para organizações deste tipo, as únicas

partes da alma humana que mereceriam se exprimir não estão livres para fazer isso. Ë este, na verdade, o caso de uma

democracia em que o jogo dos partidos regula a distribuição do poder; é isso que nós franceses chamamos de democracia. Porque não conhecemos outra idéia melhor. ~ necessário portanto inventar uma outra coisa.5’

Nesta mesma linha, coloca-se a convicção da política como possibilidade de atuação da

liberdade, da justiça e do bem, sem a capacidade de reconhecer nela a consolidação do jogo da

força e da mentira que domina o social. Ë isso que de fato, mais uma vez, serve para confundir as

mentes aproveitando-se da ilusão de que o bem social seja também o bem metafisico e que o

relativo possa ser o absoluto.

A INJUSTIÇA DA MAIORIA

Da mesma forma, o critério da maioria, embora politicamente legítimo, é o princípio não

correto porque permite que

62 Haveria necessidade também de um tribunal especial para julgar os juízes e todos os responsáveis da vida social e

política, “considerando que um jornalista que mente, um empresário que oprime os seus operários, são criminosos de

direito comum” (EL, p. 95).

63 Ibid, p. 15.

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Capitulo 1

A política como mal menor

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um grupo chegue a tomar decisões por outros cidadãos, força do critério de ser grupo com a

maioria numérica e nao com base no conteúdo das escolhas. Tal critério, na realidade, vem a

provocar a alienação da consciência. A penalização da oposição éevidente: “A intenção é

resguardar os direitos da maioria. Mas pelo próprio fato de que com esse critério se

cristalizam oficialmente as noções de maioria e de oposição, prepara-se com isso um regime

totalitário”» Como também: “uma constituição que concede a existência oficial à maioria e à

oposição, ela própria põe um obstáculo para que o cuidado do bem público seja a força

motora da ação”» Desse modo, o jogo político vai além do direito do eleitor: “O domínio total

dos partidos sobre a vida pública acabou prejudicando-nos mais do que qualquer outra si-

tuação’~’5

Transpõe-se inclusive ao parlamento, cuja seções se tornam uma representação

manobrada pela “coligação clandestina dos partidos”~ Uma vez adotado o ponto de vista

espiritual como fator discriminante, mesmo considerando representativas para o bem público

pessoas de cultura universitária, apenas pelo fato de serem especialistas em algumas áreas,

isto é, por ter realizado trabalhos especializados, tal fato implica renegar o valor do aspecto

espiritual. Tal dimensão, porém, não é assegurada por nenhum mecanismo político. Na

realidade, isso se torna possível somente quando se formular uma Constituição que coloque as

bases para levar ao poder, na medida do possível, homens preocupados com o bem público.

Por isso, a democracia se fundamenta intrinsecamente na base da competição, eliminando por

conseguinte o cri 64 EL,p. 89.

65 Ibid., p. 90-91.

66 Ibid., p. 89.

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Parte 1

Uma voca pio transformadora

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tério da maioria. Na realidade, porém, a idéia de igualdade e de bem é submetida aos critérios

quantitativos e majoritários.

O erro da concepção democrática não é a instituição democrática em si, mas a confusão

entre duas raízes diferentes do consenso, acreditando que a forma vazia do consenso numérico

eleitoral corresponda ao consenso bem mais profundo que regula a justiça. A relação entre o

eleitor e o eleito está viciada por esta confusão de maneira que a obediência se torna uma forma

sucessiva de coação. O verdadeiro consenso não pode ser negociado, por isso não qualifica a

concepção atual da democracia:

O consenso não se vende e nem se compra. Por conseguinte, sejam quais forem as instituições políticas, em uma

sociedade em que os intercâmbios econômicos dominam a parte maior da atividade social, onde qualquer forma de

obediência é mais ou menos comprada e vendida, não pode haver 1iberdade.~~

Daí a comparação entre opressão e roubo da liberdade do outro, entre mercado do trabalho

e prostituição do trabalhador.

O ser humano pode conceder o seu verdadeiro consenso àquilo que sente poder amar e que

portanto desperta a liberdade da sua obediência. Isso, no entanto, não se aplica aos eleitos que,

em geral, são escolhidos de má vontade ou como alternativa ao ódio pela parte contrária, mas

não por si mesmos. Daí a necessidade de 8. Weil de devolver à população a possibilidade de

escolher algo que possa amar naturalmente, isto é, algo ligado ao próprio passado, às tradições e

à inculturação qu1e foi sugada junto ao leite materno, a cui si possa essere fedeli e sentire questa

fedeltà come um ato sagrado, uma obrigação a ser livremente respeitada e que não possa

considerar-se cumprida sim-

67 EL,p.53.

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Capítulo 1

A política como mal menor

plesmente porque foi instituído o sufrágio universal, ou os sindicatos» O problema fundamental

da democracia consiste no fato de colocar nos postos de responsabilidade pessoas interior-mente

vinculada à lei do bem comum.

O objetivo da vida pública é colocar o mais possível todas as• formas de poder em mãos de pessoas que

de fato se comprometam por obrigação em buscar o bem comum, tal como cada cidadão éobrigado com

relação a todos os outros seres humanos e que têm conhecimento da mesma obrigação.6’

O consenso à tal obrigação é, na verdade, o princípio discriminante da escolha dos próprios

representantes políticos. A mesma obrigação está relacionada com o conhecimento dos

princípios que a norteiam, bem como com a capacidade de sua aplicação.

O LIMITE DO DIREITO E A

IMPORTÂNCIA DA OBRIGAÇÃO

O cerne do problema está na forma de conceber as relações sociais que se fundamentam

nas relações tanto jurídicas como também comerciais. Na realidade, a razão do ditado homo

hominis lupus tem ali sua raiz, onde se processa de fato uma guerra latente entre os seres

humanos: “A noção do direito, posta no centro dos conflitos sociais, torna impossível, tanto

de um lado como do outro, qualquer nuance de caridade”» Se levamos em conside

68 EL, p. 55.

69 Ibid., p. 80.

70 Ibid.,p. 26.

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Parte 1

Uma voca pio transformadorc~

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ração que a caridade se distingue pelo amor para com o desvalido, uma sociedade baseada

exclusivamente nos direitos exclui esses desfavorecidos, como ocorre no exemplo do camponês

que vende seus ovos e tem o direito de defender um preço justo e da moça forçada à prostituição

para a qual a noção de direito não lhe serve absolutamente para nada: “O uso desta palavra fez

com que aquilo que devia ser um grito ecoando do interior das entranhas se tornasse um alarido

selvagem de reivindicações, sem pureza e sem eficácia”» Com efeito, o direito fica no nível do

conceito de pessoa e portanto de sua expansão, razão pela qual “o grito dos oprimidos alcançaria

um nível bem mais profundo do que uma mera reivindicação, ou um protesto motivado pela

inveja”» Se fosse verdade então o direito da pessoa resultaria um privilégio concedido pela

sociedade e a relação entre as pessoas consistiria em reclamar uma parte igual de privilégios: “Ë

uma espécie de reivindicação ao mesmo tempo absurda e baixa: absurda porque o privilégio por

definição é desigual; baixa, porque não vale a pena desejá-la”» Tais aspectos porém não são

manifestados por quem tem o monopólio da linguagem:

os que poderiam exprimir tal situação, na verdade, são incapazes de formulá-la, enquanto aqueles que

poderiam formulá-la não podem exprimi-la. O remédio para este mal seria um dos compromissos urgentes de

uma política verdadeira. A desgraça em si mesma não pode ser expressada em palavras. Os desafortunados

da vida imploram em silêncio que se lhes propiciem palavras para se expressarem.

71 EL,p.27.

72 Ibid., p. 27.

73 Ibid., p. 27-28.

74 Ibid., p. 28-29.

78

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Capítulo 1

A política como mal menor

Na realidade, há duas espécies de gritos que nascem da alma dos que sofrem: um de

revolta e de reivindicação (palavra detestada em 1943), o outro de abandono e de dor sem

resposta. Ao primeiro correspond4~~ direito,~e.n4força do qual é possível atender a tal apelo

com os meios e a formas da época, isto ~I U é, segundo as regras de um setor humano inferior,

onde é regulada a justiça formal; ao segundo apelo é possível responder mediante a subida para

uma região superior, onde se encontra o bem impessoal e substancial, que não pode ser

confundido com as instituições que protegem o direito e devem sobre44ír-se à es O fera política.

Ë sobretudo este o bem que pode ser dado aos que sofrem, em lugar de prolfjr-lhes os

paliativos de promessas de rei-O vindicações sociais e políticas de igualdade. Ensinar-lhes a ver~

dade, ensinar-lhes a encarar o rosto da desventura, reconhecendo-a como uma espécie de aliada

da verdade.75

O conceito de democracia pode subsistir se for repensado de forma inseparável do conceito

de obrigação.7

“A noção de obrigação — escreve 5. Weil no ensaio Enracinemenf’ — prevalece

sobre a noção de direito, que lhe é subordinada e relativa”. Com efeito, a obrigação define o

sujeito não a partir de si mesmo, mas em relação ao outro, em cuja direção é impelido a agir. “A

posse de um direito implica a possibilidade de fazer do mesmo um uso

75 “Há uma aliança natural entre a verdade e o sofrimento” (EL, p. 32).

76 Em 1941-1942, E. Mounier preparava a Declaração dos direitos da pessoa e das comunidades”; J. Maritain, em

1942, em NewYork publicava a “Declaração dos direitos” elaborada em 1929; em 1943, em Londres, S. Weil

articula uma “Declaração das obrigações para com o ser humano’~

77 E., p. 9.

79

Parte 1

Uma vocaçao transformadora

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bom ou mau. De per si, o direito é alheio ao bem. Ao passo que o cumprimento de uma

obrigação é sempre voltado para um bem, em qualquer “2

A obrigação está corretamente fundada somente na pessoa que tem a sua atenção voltada

para a realidade sobrenatural e, justamente por isso, reconhece também na vida pública e

privada, bem como o dever de contribuir no sentido de preencher as carências da alma e do

corpo, assumindo as próprias responsabilidades na medida das capacidades que possui. O

consenso a esse tipo de obrigação a respeito de qualquer ser humano é essencial na vida social,

mas se torna ainda mais determinante quando aquele que assume essa obrigação detém o poder.

Daí a importância de entregar o poder a homens que tenham manifestado o consenso ao bem e

não à sua recusa, inclusive independentemente da forma concreta do governo de um povo. “Toda

forma de poder, de qualquer natureza, entregue nas mãos de um homem que não tenha

manifestado um consenso explícito a tal obrigação, de maneira integral e sem engano, é um

poder confiado de forma errada”»5

Põe-se

•em evidência aqui a importância — ainda conforme a concepção platônica — de “quem”

(assume o poder), levando-se em conta que, qualquer homem que tem o poder em suas mãos,

desfruta da possibilidade de usar de diversas formas legítimas, até para realizar uma atividade

criminosa. A respeito desse poder mal colocado, têm uma responsabilidade de cumplicidade

todos aqueles que autorizam o exercício de funções que envolvem os destinos humanos na

vivência social. Neste caso

78 EL,30.

79 Ibid., p. 79.

80

Capítulo 1

A política como mal menor

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a legitimidade, em sua acepção mais verdadeira, deixa de subsistir, permanecendo no entanto a

legalidade, e o compromisso do cidadão volta a ser aquele de reconduzir a legalidade àessência

da lei e, portanto, à obrigação a respeito de todo ser humano. Prevalece assim, fortemente, o

aspecto ético do cidadão chamado a governar com base no aspecto ideológico e partidário.

Uma responsabilidade particular é reconhecida por quem detém o poder de orientar a

opinião pública e se abstém de denunciar fatos comprometedores por comodismo, por preguiça

ou por covardia, acabando por não querer enxergar a ilegitimidade do governo. A única

alternativa permitida pelo poder público é aquela de dizer a verdade abertamente onde existe a

liberdade de opinião, ou de manifestá-la de modo clandestino quando tal liberdade foi suprimida.

Com efeito, “não é em um Parlamento, nem na imprensa, ou em alguma instituição que

pode residir a liberdade. Ela reside na obediência... A liberdade é o sabor da verdadeira obediên-

cia”» A convicção tem reflexos psicanalíticos na reflexão relativa ao servilismo que, pelo

contrário, é uma forma de escravidão social causada pela coação do sistema que produz

infelicidade e desespero com as suas pseudo-compensações no ódio, na indiferença, no apego

cego.

Característica da obrigação é a contradição de ser moralmente infinita, portanto

pertencente a uma ordem superior, e estar voltada ao mesmo tempo para realidades finitas:

Tal contradição pesa sobre a vida cotidiana de todos os homens... Todos os procedimentos que os seres humanos

acreditaram

80 EL,p. 52.

81

Parte 1

Uma vocação transformaclora

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ter encontrado para sair da mesma são mentiras. Uma dessas mentiras consiste em não reconhecer obrigações que não

estejam em relação com a realidade deste mundo... Outra mentira consiste em admitir que aqui na terra haja realidades

capazes de constituir um absoluto... Ë a mentira da idolatria.~

Desse modo, volta a contradição da moral que, ou se refugia na fuga do mundo através do

espiritualismo, ou vice-versa; absolutiza algumas realidades ou pessoas deste mundo, fingindo

que elas podem satisfazer à sede de absoluto que está na alma humana, merecendo portanto uma

dedicação incondicionada.

A esse respeito escreveu oportunamente P. Thibaud, apontando para as razões da

atualidade de 8. Weil...

Em geral, S. Weil é louvada pela sua crítica ao marxismo, que antecipa, em particular, aquela de Castoriadis, assim como

pela sua lucidez a respeito de Stalin e Hitler, mas ficam esquecidas as suas reflexões sobre o ensino, sobre a técnica, sobre as

necessidades e os deveres humanos, que poderiam sacudir o nosso tranqüilo modernismo. Com efeito, nós fugimos do perigo

totalitário por um caminho que não é aquele apontado pela autora do Enracinement; escolhemos assim o liberalismo, os

direitos individuais, a indeterminação democrática, enquanto ela buscava especificar as condições de uma comunidade

verdadeira, mais proftinda... Ninguém melhor do que esta militante ativa e desiludida soube que os direitos não bastam para

garantir a dignidade, podendo os mesmos resultar em uma ilusão... se os que são os titulares destes direitos não se beneficiam

de algum interesse por parte de alguém. O que 8. Weil lembra é que o compromisso moral em favor dos derrotados e dos

esquecidos constitui oí7ttiT+ocul-to da democracia>’

81 E,p.201.

82 THIBAUD, P. La femme révoltée. L’Express, 25-VIII-1989, p. 106.

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Capitulo 1

A política como mal menor

R±DIMIR A POLÍTICA MEDIANTE O SOFRIMENTO

Já falamos a respeito da “fraqueza” das propostas políticas. Com isso, queremos colocar

em evidência uma certa concepção minimalista da política, com a renúncia à sua pretensão de

resolver os problemas do homem sem fazer uso do poder e da força e com o compromisso de

criar espaços para a penetração do espiritual. Apesar disso, é preciso reconhecer o valor da

política:

A forma da ação política enfocada aqui exige que toda escolha seja precedida pela visão simultânea de outras

considerações muito diferentes entre si. Isso implica um alto nível de atenção, mais ou menos da mesma natureza daquela

que é exigida para o trabalho criativo da arte e da ciência. Mas por que então a política, que decide o destino dos povos e

tem por objeto a justiça, deveria exigir uma atenção menor do que a arte e a ciência que têm por objeto o bem e o

verdadeiro?’~

A política, portanto, constitui uma ação criativa e importante, cujo caráter específico é a

eficácia, considerando que a pergunta central da filosofia política de S. Weil — como frisa

oportunamente Esposito~’— consiste na forma de agir eficazmente resguardando a ação do eu

(ação não agente), como no famoso caso de Arjuna, o santo do Hinduísmo, que é obrigado a agir,

mas sem gozar dos frutos da sua ação. A política entendida como uso correto da força pode ser

um bem somente quando conjugada com o sofrimento.

83 E,p.273.

84 Cf. ESPOSITO, R. Categorie dell’impolitico. Ii Mulino, Bologna,

1989.

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Parte 1

Uma vocaçi~o transformaclora

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Mas levando-se em conta que há circunstância em que se torna necessário morrer, apesar da revolta da alma, como

aconteceu com Cristo, assim também existem circunstâncias em que é necessário enfrentar a desventura. Tais

circunstâncias ocorrem pelo fato de estarmos atrelados à sorte da “besta” social por uma estrita obrigação: tal como Rama

e o sudra»

Aqui, a obrigação política, na sua imparcialidade impessoal, corresponde ao sofrimento do

Pai que deve deixar que o filho morra, embora inocente. Tal como a laceração provocada pela

decisão política que, por vezes, inflige ao justo a pena de ser causa de sofrimento para aqueles

que amam o povo mais do que a si próprios, a fim de cumprirem o compromisso da própria

responsabilidade política, que os obriga a salvar o próprio povo, tentando ser eficazes na ação

para o bem do mesmo, mesmo sabendo que aquela determinada lei, além de injusta, é relativa.

A partir do seu próprio ponto de vista, Simone não vê qualquer outra possibilidade de

participar diretamente numa ação de caráter político-revolucionário, a não ser à guisa de tes-

temunho da disponibilidade de oferecer a própria vida para um ideal de libertação, embora sem

ilusões quanto à eficácia do mesmo. Ela própria confidenciou tal pensamento em dezembro de

1934, escrevendo:

Decidi retirar-me totalmente de qualquer espécie de política, dedicando-me exclusivamente à pesquisa teórica. Isso

não exclui de modo algum participar eventualmente em um grande movimento espontâneo de massas como, por

exemplo, nas fileiras do exército, não vendo nisso qualquer responsabilidade, mesmo mínima, contanto que eu tenha

certeza de que todo o sangue derramado não seja derramado em vão, e que seremos derrotados já de saída»

85 C,II,p.262.

86 SP,I,p.401.

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Capitulo 1

A politica como mal menor

Na desistência da atividade política de 8. Weil, há também a percepção da impossibilidade

de resolver os problemas sociais contemporâneos, que se revelam de uma complexidade cada

vez maior, dispersando as intenções do cidadão particular e desestruturando eventuais

projetos. Talvez seja por isso que seu enfoque da realidade parece “ingênuo’ assim como sua

proposta de simplificações, que resulta na exaltação de uma civilização artesanal, com as

máquinas na própria casa, ou sugerindo o fim das grandes fábricas, concentrando toda a

importância na espiritualidade do trabalho. Acha necessário “fazer... com que os homens e as

mulheres do povo vivam constantemente mergulhados em uma atmosfera de poesia

sobrenatural, como na Idade Média; aliás, mais ainda do que na Idade Média; por que então

limitar-se na ambição do bem?”.87

Assim, na concepção de 8. Weil, tal como no pensamento

de Rousseaui’t

a condição do artesanato exprime uma independência que se contra-põe ao

operário da fábrica e faz da pequena empresa artesanal a condição para um retorno a

condições de vida menos escravizadas pelos processos industriais.80

A valorização do trabalho

artesanal e agrícola, como ambiente de espiritualidade e de contato com a natureza (ecologia),

abrangendo a família, o ser hu

87 CO, p. 269.

88 Cf. ROUSSEAU, J. J. Oeuvres Complétes. Paris: Gallimard, 1969. t. IV, p. 470.

89 Cf. os artigos de 8. Weil, Le Capitale et I’ouvrier, do dia 12-111-1932 e Après la visite d’une mine, do dia 19-111-

1932, ambos publicados em “L’Effort’ agora em OC, lia, 92-97. A. Marchetti comenta a respeito: “A filosofia social de 8.

Weil... se baseia sobre um idealismo humanitário e sobre um socialismo de modelo feudal que almejam a volta às

pequenas comunidades ou corporações de camponeses e de artesãos” (MARCHETTI, A. La critica disvelan te, op. cit.,

p. 22).

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Parte 1

Uma vocoçso transformadora

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mano, as tradições culturais e sociais, a harmonia do cosmo. Tudo isso levou 8. Weil a conceber

uma maneira de pensar irreal, romântift e utópi~, chegando a falar da necessidade de construir

um mundo ideal, sem levar em conta a injustiça fundamental do mundo real. As sinalizações dos últimos anos (no Enracinement e nos Écrits de Londres), referentes à

reformas eventuais a serem realizadas na França depois da guerra (na época trabalhava no

ensaio France Liffre)~ voltam a propor a importância de uma tradição coerente capaz de

recompor o povo francês, conectando-o com suas raízes; a descentralização das grandes in-

dústrias e a possibilidade de um trabalho em pequenos grupos, propondo especialmente que cada

operário receba do Estado o necessário para viver (casa, jardim, instrumentos de trabalho etc.); a

vinculação da formação da juventude para o trabalho, dando-lhe a possibilidade de adquirir uma

formação teórica e treinamento prático; a divisão da terra a ser entregue a quem trabalha; a

instrução dos camponeses, a fim de tornar o trabalho o mais humano possível. Entretanto, com

relação a todas as suas hipóteses de reforma, Simone Weil não esconde uma certa desconfiança:

O aspecto inconveniente de uma concepção social desse tipo éque tais projetos correm o risco de não terem qualquer

chance de sair do campo das palavras, sem que um certo número de homens livres tenham no fundo do coração uma

vontade ardente e inabalável de torná-las realidade. Não há certeza de que tais homens possam ser encontrados ou

despertados.

90 Cf. FORNI, 6. Vita e poesia nella formazione del concetto di spirito. Ii Malmo, n. 302, p. 872-895, 1985.

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~apítnlo 1

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Todas as propostas são estímulos inspirados nas idéias de Rousseau, dos marxistas, de

Proudhon, dos socialista, e interpretados à luz dos seus conhecimentos e organização otimal do

social, brotando da genialidade de alguns homens.

Ao falar do controle dos meios de produção, ela desloca o acento para o problema perene

da opressão; as formas políticas sugeridas se tornam secundárias. Por isso, encontramos no-

vamente proposto por ela o princípio feudal, tornando a obediência uma relação de homem para

homem, diminuindo assim bastante a parte reservada ao grande animal — melhor dizendo, a lei.

Não haveria necessidade de obedecer a não ser à lei ou a um homem. Isso seria mais ou menos

parecido com o que ocorre nas ordens monásticas. Haveria então a necessidade de construir a

cidade conforme esse modelo. “Obedecer a um senhor, a um homem, porém despido de direitos

especiais e revestido somente pela majestade do juramento e não com aquela majestade com que

é caracterizado o grande animal”.’ Podemos perceber nisso uma mistura de inspiração

monárquica e de legalidade democrática, mais uma vez no rastro da política de Platão, mas sem

excluir o debate democrático.2

Ela aponta para um poder político que combate o anonimato da

burocracia, permitindo o desenvolvimento da religião, pelo fato de ser menos invak~n.~eI

(“inspirar a vida social... sem dominá-la de modo algum”).93

Por isso, a condição fundamental para a democracia não consiste em abrir a todos as portas

da riqueza e do poder, mas

91 OG,p. 196.

92 Cf. PG, p. 197; OL, p. 192-193.

93 E,p. 154.

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Parte 1

Uma vaca ç~o tmnsfor,nndora

em favorecer o crescimento da liberdade da inteligência, sem a qual os seres humanos ficam

escravos, mesmo em condições de aparente liberdade e progresso, em que a política não pode

deixar de ser opressiva e alienante. A ignorância de um povo amansado pela cultura de massa é o

fardo que dificulta qualquer luta

possível de libertação. Daí a importância atribuída à educação dos operários para seu verdadeiro

resgate.

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