A política de drogas criou esse pesadelo em que hoje vivemos sonia racy

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02/09/2015 "A política de drogas criou esse pesadelo em que hoje vivemos" | Sonia Racy data:text/html;charset=utf8,%3Ch1%20style%3D%22margin%3A%200px%3B%20padding%3A%200px%200px%207px%3B%20liststyle%3A%20none%… 1/5 Tweet “A política de drogas criou esse pesadelo em que hoje vivemos” 13.julho.2015 | 1:02 Gilberta Acselrad (Foto: Gianne Carvalho/Estadão) Gilberta Acselrad diz ser preciso relembrar antigos costumes para quebrar tabus. “No passado, conviver com drogas não foi tão problemático. Elas são parte da experiência humana.”

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“A política de drogas criou esse pesadelo em quehoje vivemos”13.julho.2015 | 1:02

Gilberta Acselrad (Foto: Gianne Carvalho/Estadão)

Gilberta Acselrad diz ser preciso relembrar antigos costumes para quebrar tabus. “No passado, convivercom drogas não foi tão problemático. Elas são parte da experiência humana.”

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Perguntas não faltaram. Entre 1990 e 2012, em escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro, jovens de

14 a 17 anos não tiveram medo de falar sobre drogas. Foi neste período que Gilberta Acselrad, mestre em

Educação e coordenadora de Saúde Pública e Direitos Humanos da Flacso­Brasil (Faculdade Latino­Americana de Ciências Sociais), reuniu 156 questões ouvidas de estudantes do ensino fundamental emédio para o livro Quem tem medo de falar sobre drogas? Saber mais para se proteger, recém­lançadopela Editora FGV.

Convidada, a toda hora, a discutir o tema nas escolas, decidiu “subverter a prática usual da palestra

centrada nas drogas proibidas por lei”, optando, segundo contou em entrevista por e­mail, “por acolher as

perguntas dos adolescentes, estabelecendo um diálogo com eles”. Ao longo dos anos colecionou centenas

de questionamentos que surgiram “da necessidade de ouvir os que mais sofrem com a política de drogas

atual”.

E mais do que dúvidas, disse ela, as perguntas “revelam o compromisso dos adolescentes com uma questão

que é de interesse público e evidencia que, em nosso País, a política de drogas pouco tem avançado”. “A

maioria das pessoas evita falar sobre drogas. Mas os jovens não têm medo dessa conversa. Nós, adultos,

precisamos dialogar com eles, sem medo de fazer apologia, porque informar, afirmar a importância de

estar atento e de se proteger é também um modo de reduzir danos.” A seguir, os principais trechos da

conversa.

O STF se prepara para julgar se o porte de droga para consumo próprio deve deixar de serconsiderado crime. Qual é a sua expectativa?

Pode haver avanços no sentido de mudanças na lei e na política de drogas vigente. Resta saber se serão

aprovadas, paralelamente, medidas práticas que garantam a aplicação da descriminalização do uso, de

forma democrática, alterando a aplicação desigual da legislação que tem vigorado até hoje. Descriminalizar

o uso e manter produção e comércio na ilegalidade cria impasses.

De que forma?

Para evitar contato com o mercado ilegal e violento, alguns usuários podem trazer consigo quantidades

maiores de drogas; outros, de alguma forma, encontram no pequeno tráfico um meio de sustentar seu uso.

A legislação sobre drogas, nos últimos cem anos, tem se pautado pela repressão. O Brasil precisa de uma

política de drogas democrática.

Há alguns dias, Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, defendeu a descriminalização do usode drogas. Qual é o peso dessa manifestação?

Mesmo com a descriminalização, o problema jurídico continua. Nossa lei ainda criminaliza a posse de

drogas ilícitas para uso pessoal. As penas previstas são descritas no capítulo sobre os crimes – advertência,

prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa educativo, admoestação, multa. Embora

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tenha sido abolida a pena privativa de liberdade, vivemos numa sociedade com muitas desigualdades

econômicas, sociais e, na hora do flagrante, os direitos de cidadania nem sempre são respeitados. Penas

alternativas beneficiam os que pertencem às classes média e alta. Quando não são brancos, usuários

pobres e que moram nas periferias ou em favelas flagrados pela polícia com droga ilegal – com pequena

quantidade, sugerindo uso pessoal – são autuados sistematicamente como traficantes – mesmo quando

sozinhos e desarmados. E são muitos os prejuízos decorrentes dessa prisão. Eles perdem emprego, têm de

abandonar a família…

Então, a guerra às drogas é uma batalha perdida?

Em 2009, a reunião da ONU em Viena reconheceu o fracasso dessa guerra. A política antidrogas se

manteve, mas abriram­se novas frentes. Criou­se a Comissão Latino­Americana sobre Drogas e

Democracia formada por ex­presidentes (a iniciativa partiu de Fernando Henrique Cardoso do Brasil,César Gaviria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México) que discutem ações alternativas; documentáriosforam produzidos divulgando experiências democráticas de gestão das drogas; houve manifestações

públicas de apoio à descriminalização e legalização do uso medicinal e recreativo da maconha. As notícias

sobre drogas, antes restritas às páginas policiais e de saúde, ganharam amplos espaços na mídia,

fortalecendo programas sociais que já vinham sendo realizados na óptica de redução de danos, discutindo

a legalização, com regulamentação e controle do Estado.

Qual é o caminho?

Percebe­se que a política antidrogas, que se tornou um problema com graves repercussões políticas,

jurídicas e educacionais, precisa ser substituída pela legalização e regulamentação de todas as drogas. É a

educação, o projeto de futuro de cada indivíduo que pode ajudar cada um em suas decisões. Caberá ao

Estado informar de forma mais completa e científica sobre cada uma das substâncias, controlar sua

elaboração e sua qualidade e cuidar daqueles que necessitem de ajuda.

Como vê, por exemplo, o programa De Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo que,desde janeiro de 2014, oferece aos usuários de crack a oportunidade de trabalhar nazeladoria da cidade, ganhando R$ 15 por dia?

Programas que associam tratamento e inclusão social têm chances de reverter os usos problemáticos de

drogas, sejam elas quais forem. Com esses R$ 15 por dia, a inclusão pretendida, a permanecer nesse

patamar, será bem precária. Tais programas funcionam, mas precisam assegurar possibilidades variadas

de formação profissional de acordo com o mercado atual de empregos, fortalecendo alguma formação

prévia que o usuário já tenha, possibilitando uma real inclusão social.

Os contrários ao programa dizem que a Prefeitura estaria ajudando a alimentar o tráfico.

Eles expressam o preconceito criado pelo proibicionismo, que fortalece a impressão de que algumas

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pessoas nada têm a ver com os males do nosso tempo que, no entanto, são de fato produzidos social e

historicamente.

Durante a Flip, houve uma cena curiosa durante um dos debates. Em reação à perguntasobre quem na plateia concordava com a legalização da maconha, a maioria levantou amão. Já sobre a cocaína a adesão não foi tão unânime. Isso quer dizer que, mesmo aquelesque estão dispostos a falar sobre drogas, estão rodeados por tabus?

Tabus e falta de informação caminham perigosamente juntos e não facilitam o esclarecimento. Precisamos

recuperar a memória de outros usos e costumes, de modo a poder, assim, tomar decisões mais adequadas.

As drogas fazem parte da experiência humana, da cultura. É preciso falar sobre elas, saber mais para poder

se proteger. A produção, o comércio e o uso de quaisquer drogas implicam em riscos cuja percepção

mudou ao longo da história. O que ontem se usava, até mesmo para curar doenças – a heroína para as

afecções respiratórias, a cocaína para minorar a dor de dentes –, hoje virou um bicho de sete cabeças. O

que já foi proibido – o álcool, o tabaco – hoje é consumido, tantas vezes sem o controle devido. O

problema da droga em geral não existe em si, mas é o resultado do encontro de um produto, uma

personalidade e um modelo sociocultural.

Como assim?

Isso quer dizer que qualquer pessoa, a qualquer momento da vida, poderá encontrar em seu caminho

alguma substância psicoativa – mas a maioria não ficará doente por isso, não terá maiores problemas, o

que significa dizer que, diante da droga, não existe um destino igual para todos. No passado, a convivência

com as drogas não foi tão problemática mas o proibicionismo, a partir do século 20, tornou ilícitas

algumas drogas até então consumidas legalmente. A partir daí, a política de drogas sonhou com uma

sociedade sem drogas que, de fato, nunca existiu e criou esse pesadelo em que vivemos. Recuperar a

memória de outros usos e costumes e pensar coletivamente mecanismos de controle que possam nos

proteger de usos problemáticos me parece um bom caminho.

Os brasileiros não têm, por exemplo, com relação ao álcool, o mesmo preconceito que têmem relação à maconha.

Os efeitos de qualquer droga dependem da relação que cada um estabelece com ela. Mas a política

proibicionista termina gerando descontrole total da produção e do comércio daquelas que foram tornadas

ilícitas. O preconceito em relação à maconha e a tolerância em relação ao álcool se explicam pela

ilegalidade da primeira e pela legalidade da segunda.

O tabu em relação às drogas faz com que elas se tornem mais interessantes para os jovens?

A adolescência é a porta de entrada para a vida adulta, o momento em que os jovens se lançam no mundo,

com particular poder de observação e ação diante do que se passa à sua volta. Correr riscos faz parte da

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construção da identidade e a experiência da droga é um desses riscos. Com a proibição de algumas drogas,

a informação não circula. Ficam restritos ao domínio de especialistas os conhecimentos sobre diferentes

usos, formas de se proteger de usos problemáticos, possibilidades de tratamento, qualidade duvidosa de

substâncias produzidas e comercializadas ilegalmente. Desta forma, proliferam preconceitos, tabus. É

curioso lembrar que, quando se é criança, ouvem­se as histórias infantis cheias de poções mágicas e heróis

que recorrem a elas para superar seus problemas. Com elas, Alice, pelo menos no país das maravilhas,crescia, diminuía, aprendia a superar os obstáculos e a enfrentar a vida. Menos informadas, Branca deNeve e Bela Adormecidacomiam maçãs envenenadas, não sabiam lidar com o mundo, ficavamentorpecidas, até que um príncipe aparecia para salvá­las. Quando crescemos, aí a história é outra. As

poções que antes ajudavam podem tornar­se perigosas e problemáticas. Desde sempre o uso de quaisquer

drogas psicoativas implica em riscos mais ou menos graves, sendo importante criar mecanismos de

proteção para que os jovens possam contorná­los.

Divulgado há um mês pelo governo federal, o Mapa do Encarceramento mostrou quecrimes contra o patrimônio e de drogas correspondem a cerca de 70% das causas de prisão.Se não lidássemos com as drogas pelo terror, também resolveríamos a questão carceráriado País?

Acredito que a legalização e a consequente regulamentação de todas as drogas seja o melhor caminho. Se

conseguirmos virar essa página de extrema violência, criada pelo proibicionismo, abolindo a pena de

prisão para a produção, comércio e uso de todas elas, estaremos de fato optando por estender o que já foi

feito em relação ao álcool, ao tabaco e a todos os medicamentos psicoativos – legalização, controle e

fiscalização, que reduzem danos, sempre buscando aprimorar os mecanismos de controle.

A senhora também diz que pouco ou quase nada se fala do prazer relacionado às drogas.Elas, de fato, são vistas como uma espécie de fuga?

Todas as sociedades conheceram o uso de drogas como forma de ter prazer, conhecimento de si e do

mundo ou para controlar a dor física ou psíquica. Drogas alteram a percepção da realidade, a quantidade e

a qualidade da consciência. A história das drogas é tão longa quanto a da humanidade e paralela a esta. É

próprio de quem tem consciência querer experimentar com a consciência. Droga nem sempre é fuga, pode

ser encontro. O que dá prazer pode causar sofrimento, tudo depende da forma como conseguimos nos

relacionar com elas e do contexto em que se dá esse uso. Prova disso é que para uns a droga é mera

experiência que passa, se torna controlada; para outros pode trazer destruição e morte./THAIS ARBEX