a prática de letramento no ensino fundamental em uma escola ...
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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p
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CONFINAMENTO E RESISTÊNCIA: O DESAFIO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENA
Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi*
Marlon Leal Rodrigues**
Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo***
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo compreender os efeitos da memória e dos
silenciamentos na valorização ou apagamento da língua indígena nas escolas indígenas do município de
Dourados/MS, assim como apontar as implicações de um sistema de confinamento instituído a essa
população, diante de posicionamentos de professores indígenas referentes ao ensino da língua materna.
Como fonte de análise serão utilizadas redações escritas por professores indígenas de Dourados,
participantes do processo seletivo para o vestibular Intercultural indígena de 2010 (UFGD). A
fundamentação teórica está pautada nas orientações da Análise do Discurso de linha Francesa e
analistas brasileiros nessa vertente, Pêcheux e Gadet(2004), Foucault (2005), Mariani (2004)e
Orlandi(1990). Análises preliminares sugerem que as redações apontam para uma insensibilidade
institucional diante do conceito de língua para o indígena, indicando um imaginário repleto de
deficiências, constituído historicamente como línguas “estranhas, deficitárias”. Logo é a partir desse
parâmetro que os indígenas e suas línguas são vistos. Por conseguinte, é a partir desse lugar constituído
discursivamente que emerge a imagem do indígena na sociedade. Contudo, apesar de uma busca
incessante de apagamento dessas línguas, o discurso indígena indica a partir da memória o valor dessa
língua, que é mais que comunicação, é a relação com o divino. Daí a relevância da palavra falada para
esse povo e, por conseguinte, a relação entre a escrita e a memória não dialoga uma vez que a escrita no
papel se perde com o tempo, enquanto que a escrita na memória é eternizada, até mesmo porque, a voz
não é da pessoa que fala, mas sim de Nhanderu – Deus -, do mesmo modo, se configura a concepção de
ensino aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Educação Escolar indígena; língua indígena.
INTRODUÇÃO
Partindo da perspectiva de Althusser (1970), ao institui o conceito de aparelhos
ideológicos, a Análise do Discurso traz o conceito de assujeitamento. Essa concepção de
assujeitamento foi tomada por Pêcheux (1997a, p.311) na formulação de sua teoria
sobre a AD, como ele mesmo diz: “os sujeitos acreditam que “utilizam” os discursos
quando na verdade são seus “servos” assujeitados, seus “suportes”. Nesse sentido,
podemos inferir que o assujeitamento não se constitui fora do ideológico, logo não há
discurso neutro ou fora de qualquer interpelação ideológica. Isso posto, o termo
ideologia se apresenta para a AD francesa como algo inscrito em práticas discursivas,
em sua realidade material:
Nem fenômeno emanando do sujeito livre, do sujeito psicológico, nem
sistema transcendendo a estrutura válida para todos os homens, as ideologias
são, em seu nível, forças sociais em luta. Sistemas e subsistemas mais ou
menos coerentes, mais ou menos contraditórios, mas também
comportamentos, fantasmas e imaginários sociais, as ideologias não
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‘flutuam’ no céu das ideias, são práticas inscritas em realidades materiais, em
instituições, em aparelho, alguns servindo mais que outros aos mecanismos
da reprodução do assujeitamento ideológico. (MALDIDIER; NORMAND;
ROBIN; 1994, p. 90. In: ORLANDI, 1994).
As palavras expostas remetem a uma definição que concerne a Althusser, no que se
refere ao funcionamento da ideologia, principalmente por meio dos Aparelhos
Ideológicos de Estado (AIE). Nessa mesma perspectiva, tem-se a tese fundamental de
que “(...)a ideologia interpela o indivíduo em sujeito” (ALTHUSSER, 2001, p.97),
indicando, assim, nesse caso, uma determinação ao sujeito por meio de mecanismos que
reproduzem simbolicamente ou não a ideologia.
Nessa perspectiva, "ideologia" pode ser entendida como um conjunto de representações
as quais predominam em uma determinada classe inserida na sociedade, assim, pelo ato
de existir várias classes, há várias ideologias em confronto. Portanto, a ideologia não é
a visão geral de toda uma sociedade, mas a visão de mundo de determinada classe e a
maneira como representa essa sociedade, o que desencadeia a ideia de a linguagem ser
imposta pela ideologia, pois não há uma relação linear entre as representações e a
língua, ficando a cargo das condições de produção essa definição.
Nesse sentido, as condições de produção (CP) entendidas como um complexo de
relações sócio históricas determinantes das formações sociais estão atreladas à
ideologia, ou seja, às lutas de classe. Logo, toda representação de valores e crenças de
um sujeito são resultantes desse embate ideológico de um contexto “x”. Assim, do
mesmo modo que essas representações possuem caráter fluido, de continum, as
condições de produção não são diferentes.
(...) as condições de produção do discurso não se mantêm; apenas os
enunciados se repetem parafrasticamente em um processo de reelaboração
(tenso, instável, dinâmico), à medida que se incorporam outros valores
determinados pelo próprio movimento e pelas condições materiais e
históricas. (RODRIGUES, 2007, p. 43).
Essa dinamicidade das CPs e o retorno de determinados enunciados são produtos da
história, assim sendo ao orientar que o discurso é efeito de sentidos entre os
interlocutores é possível apontar que não há comunicação por meio de códigos neutros;
a produção de sentido de um discurso passa por uma espécie de filtro das Formações
Ideológicas que determinam constantemente os dizeres. Nessa direção, Pêcheux indica
que:
Um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica...
as formações ideológicas comportam ... uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição) ... a partir de
lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrita numa relação de
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classes ... toda formação discursiva deriva de condições de produção
específicas. (PÊCHEUX, 1990, p. 166-167).
Isso implica em dizer que as Formações Discursivas são produtos das Formações
Ideológicas, as quais só podem emergir a partir das relações entre as classes, portanto o
sujeito não é livre para escolher o que vai dizer, considerando que o enunciado é
determinado pela Formação Discursiva que ao se identificar o constitui enquanto
sujeito. Por conseguinte, ele simula sem se dar conta para que seu discurso apareça
como único. Esse processo é o que Pêcheux (1990) assenta como forma-sujeito, em que
realiza a incorporação - dissimulação dos elementos discursivos, mesmo que de maneira
imaginária, visando ao efeito de unicidade.
Isso é o que acontece com os professores indígenas durante o processo seletivo, sujeitos
do discurso sobre educação escolar, via forma-sujeito eles vão até ao espaço em que
circulam esses saberes científicos, se apropriam desses saberes, buscando sempre
dialogar com a mesma Formação Discursiva, materializando, assim, o discurso que está
na ordem, ou seja, o que pode ser dito dentro daquela conjuntura; é pois ,quando
acontece essa identificação do sujeito enunciador com o sujeito do saber que, aí se
produz o sentido.
A mesma forma-sujeito do discurso sobre educação escolar pode, ao materializar esse
saber, ocupar posições distintas dentro do mesmo discurso, ora com o saber considerado
científico, pois visa ao contexto acadêmico, assim, concordando sempre com o que
julga ser o que o outro quer ouvir, ora na posição contrária ao enfatizar qual o modelo
de educação que almeja.
É diante dessa representação da realidade, que é transmitida pelo discurso, de uma
educação capaz de resolver todos os problemas sociais, que transita o sujeito indígena, o
qual mediante a simulação pode aplacar o sentimento de não ser reconhecido, não se
sentir pertencente a um determinado grupo social, dessa forma, é pelo simulacro que se
constitui o sujeito que deseja ser.
Vale lembrar que o lugar que o sujeito ocupa na sociedade é decisivo no seu dizer, por
isso o indígena, ao se referir à educação escolar, se apoia em textos oficiais, como o
RCNEI, a Constituição Federal, entre outros, na tentativa incessante de se identificar
com determinados saberes, se inscrevendo em uma Formação Discursiva, com o
objetivo de passar a ocupar, não mais o lugar de sujeito empírico, sem voz, mas sim o
lugar de sujeito do discurso.
1. CONFINAMENTO E RESISTÊNCIA
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Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua
conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo;
inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os
dois papeis; torna-se o princípio da sua própria sujeição. (FOULCAULT, 2005,
p. 168)
O discurso como complexo social deve ser compreendido como uma junção entre
linguística e contexto sócio-histórico visto que é essa exterioridade a qual permite o que
pode e deve ser dito e, principalmente, que produz o efeito de sentido de acordo com as
condições de produção.
Dessa forma para compreender os discursos da atualidade em relação à educação
escolar para a população indígena, torna-se necessária uma retomada à história
construída em torno da questão. O ideal seria poder retomar essa história a partir do
ponto de vista de ambas as partes envolvidas, porém, em se tratando de luta de classes
em que as relações se dão entre “descobridor e descoberto”, “civilizado e selvagem”, as
mesmas não acontecem de maneia tranquila; a história considerada como digna de
sistematização e ocupação em lugares de destaques, como nos documentos oficiais, é a
história a partir dos relatos do “civilizado”. O intercâmbio nessa situação não acontece,
pois o outro, o diferente, sempre foi/é representado de forma pejorativa, não humana,
não normal, assim não há troca, precisa ser excluído, silenciado, apartado do nós.
Nessa direção, o que se tem, também, sobre a história da educação voltada aos
indígenas é decorrente da concepção de educação do não índio. Logo, durante todo
processo histórico, desde a colônia, a organização da educação escolar voltada aos
indígenas serviu como instrumento de imposição, seja de valores, crenças, mas,
principalmente, de negação de suas identidades.
Os instrumentos de imposição utilizados pelo Estado, colonizadores e missionários
iniciaram em 1549 com a chegada do primeiro governador-geral Tomé de Souza ao
território nacional, juntamente com os jesuítas, os quais tinham como líder, Manuel de
Nóbrega. A história ainda nos afirma que dentre os principais objetivos para a
colonização estava a expansão da fé católica, ato que se concretizava por meio da
catequese.
Assim, a catequização realizada a partir da educação formal, constituía barreiras no
sentido de invisibilizar os valores indígenas, visto pelos europeus como não adequados,
negativos, fomentando, assim, espaços para a implementação de outros valores,
considerados positivos. Essa educação formal desestabilizava todo pilar de sustentação
da cultura indígena, pois tanto a língua, quanto a religião são os alicerces dessa cultura e
passaram a ser desqualificadas. Nesse caminho, Mariani aponta que:
ao se impor a língua portuguesa para os índios, está se impondo também
uma língua com uma memória outra: a do português cristão submisso ao
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Rei. Ensinar português aos índios objetivando a catequese é silenciar a
língua e a memória de outros povos. Assim, no silêncio imposto pela
colonização, a imposição de uma língua camufla a heterogeneidade e
contribui para a construção de um efeito homogeneizador que repercute
ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional no Brasil.
(MARIANI, 2004, p. 96, grifos nossos).
Logo, as ações missionárias centravam-se na conversão ao cristianismo e na
pacificação, pois era preciso tornar os índios dóceis para que pudessem aceitar as ordens
de desenvolvimento do trabalho braçal, dessa forma os discursos de inferioridade
cumpriam o papel de silenciar essa população, fazendo com que acreditasse apenas nas
vontades do colonizador, como sugere a narrativa de um professor1 indígena de
Dourados/ MS.
[SD-1] Antes da chegada do Europeus aqui no continente Americano. A educação
indígena eram diferente dos europeus. Depois da chegada dos colonizador mudou esse
sistema, colonizador fez colégio para alfabetizar, catequizar e ensinar a cultura dos
europeus. Aprender a falar a língua do colonizador e converter índios para á igreja
católico. Ser como branco. Que objetivo o colonizador fez colégio para os índios, mudar
cultura deles, transformar como branco, negar suas maneira de ser, deixar de ser índio.
Não estava a buscar o interesse dos índios mas sim dos brancos. (índio guarani).
O processo discursivo exposto pode ser interpretado a partir do conceito de Formação
Imaginária proposto por Michel Pêcheux (2001, p. 82) visto que é uma série de
formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem, cada um a si e ao
outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.
Nesse Jogo de imagens são refletidas as imagens que se fazem do seu próprio lugar e do
lugar do outro. Logo, os discursos não se caracterizam por simples trocas de
informações entre A e B, mas em efeitos de sentidos entre seus interlocutores, que são
constituídos a partir das relações de poder inerentes aos seus lugares sociais.
E é nessa relação de poder que muitas ações direcionadas ao ensino para indígenas
foram empregadas. Assim, outros propósitos nessa direção de “atender” às
especificidades da comunidade indígena reaparecem, tanto no momento em que o
Estado busca sistematizar políticas indigenistas, quanto na sutileza de mascarar a real
situação ou, ainda, atenuar a imagem do país perante a sociedade mundial.
1Sequência discursiva é um recorte retirado de redações realizadas por professores indígenas participantes
do Processo Seletivo para a Licenciatura Intercultural Indígena de 2010, oferecido pela Universidade
Federal da Grande Dourados/UFGD. As referidas redações são parte dos arquivos documentais do Projeto
Investigações em Linguística Aplicada: entre Política Linguística à Educação Bilíngue – O caso dos
Tekohá Kuera no MS, aprovado e financiado pela CAPES/MEC/INEP por meio do edital destinado ao
Observatório da Educação Escolar Indígena, 2009. A fim de atender as prerrogativas éticas da pesquisa,
foram omitidas as identificações dos autores das redações.
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Um dos momentos na história em que se demonstra essa tentativa de buscar a prestação
de assistência aos indígenas foi a criação do Projeto SPI - Serviço de Proteção aos
Índios- em 1910, o qual nas colocações de Orlandi (1990, p.61),“(...) é, na verdade, um
serviço de controle do índio e de proteção ao branco, ou melhor, de alguns brancos”.
Contudo, sob os ideais positivistas, o referido projeto de integração desse índio à
sociedade nacional, tinha como base pacificá-lo e torná-lo civilizado, pois assim
atenderia a demanda da expansão capitalista uma vez que os índios eram vistos como
entrave para o desenvolvimento econômico e anteciparia uma questão que, segundo a
lógica positivista, a história inevitavelmente faria.
O processo de integração era realizado por meio do trabalho e da escola, entendidos
como mecanismos de disciplinarização, pois os índios eram “violentos”, “selvagens” e
precisavam ser “tratados”, enquanto o não índio só seria violento, caso houvesse
resistência. Ainda sobre os papeis atribuídos ao SPI, Orlandi (1990) defende que o
mesmo pode ser percebido como um programa de apagamento da população indígena,
pois tinha a função de:
(...)gerenciar os conflitos entre índios e brancos, dando ao branco o poder
de controle tento em sua dimensão efetiva quanto retórica, ou seja, a
função de dar sentido aos conflitos, ao contato etc. isso é: o branco é quem
possui esse saber e esse discurso. É ele que diz o que é o conflito e como
resolvê-lo. (ORLANDI, 1990, p. 63, grifos nossos)
Isso indica um processo de silenciamento dessa população, na/da história, pois só há
possibilidade de veiculação de um discurso, apenas uma versão da história e,
principalmente, de um sentido das representações de mundo.
Nesse caminhar, o discurso colonizador continua reproduzindo seus sentidos, os quais
não são fixos, pois estão atrelados às condições que lhes permitam suas
ressignificações, ou seja, se constituem sempre em relação a um já dito; são esses
discursos
Ainda sobre os posicionamentos do SPI, Segundo Gomes (1991, p.85), “(...)o índio era
digno de conviver na comunhão nacional, embora inferior culturalmente e é dever do
Estado dar-lhe condição de evoluir lentamente a um estágio superior, para daí se
integrar à nação”. É nesse momento que o índio passa a ter o direito de preservação de
suas tradições, segundo a concepção de política indigenista, em que o Estado fica
incumbido de lhe prestar proteção. Agora tudo relacionado ao índio, como educação
escolar, fica ordenado que seja realizado dentro das aldeias, com o objetivo maior de
fortalecer o convívio tribal. Entretanto, os interesses em atender ao campo econômico
eram visíveis na elaboração de políticas dirigidas à população indígena.
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O desenvolvimento econômico estava ameaçado pelos “selvagens”, era preciso criar
condições de ocupar as regiões consideradas “desabitadas”, assim era necessário
avançar, mesmo que de forma violenta, dependendo da reação dos não civilizados, pois
a violência só existiria caso houvesse resistência, o que justificaria o “crime”.
Apesar desse novo modelo de tutoria “humanista”, a qual tinha como base “tratar” o
índio que resistia às imposições, a mesma pode/deve ser entendida como reducionista
uma vez que aparenta contemplar a diversidade cultural desses povos e o extermínio
não explícito. Outro indício de reducionismo está na questão da língua, ou seja, do
ensino bilíngue que não era considerado, pois naquele momento histórico as autoridades
não entendiam essa questão como sendo de relevância frente ao número reduzido de
falantes por comunidades, assim não justificava a elaboração de materiais didáticos e a
preparação de professores para atenderem às mesmas, assim a escola se constitui como
mais um “componente no processo de silenciamento”.
Já com a criação da FUNAI - Fundação Nacional do Índio -, em 1967, o que era
desconsiderado passa a ser o cerne de uma nova política indigenista; se inicia uma etapa
de valorização da diversidade linguística dos indígenas e a utilização das línguas
indígenas no processo de alfabetização, juntamente ` indução para aquisição da língua
portuguesa.
Uma educação bilíngue era almejada no intuito de facilitar o processo de integração à
sociedade nacional, pois o ensino da língua materna era usado como ponte de transição
para o ensino da língua portuguesa, porém logo após aquisição dessa última não se
falava ou pouco se falava a língua materna.
Um dos grandes desafios da FUNAI em implantar a educação bilíngue foi a falta de
materiais sistematizados na língua indígena os quais viabilizassem esse ensino; o que
ocorreu foi que em 1970, com o auxílio do SIL - Summer Instituteof Linguistics-, que
contava com especialistas na área da linguística, capazes de apreender e descrever as
línguas indígenas, teve início a elaboração de gramáticas e cartilhas que permitiram a
preparação de docentes da FUNAI e missões religiosas para a alfabetização na língua.
Desse modo, o Estado passa a financiar essa educação bilíngue desenvolvida pelo SIL e
juntamente repassa as responsabilidades de toda educação escolar indígena também a
esse órgão.
A partir da Constituição de 1988 foram previstas garantias aos indígenas referentes à
educação escolar específica e diferenciada, assim, nos artigos 210, 231 e 232 são
assegurados direitos vinculados às especificidades dos povos indígenas, como a garantia
de utilização de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem pelas
comunidades indígenas (§ 2º do art. 210); o reconhecimento da organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições dos índios bem como os direitos originários sobre
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as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231),além da legitimidade jurídica dos
índios e suas comunidades como defensores de seus direitos e interesses (art. 232).
Por esse viés, o que era proibido passa a ser objeto central das políticas para os povos
indígenas. Nesse sentido, o Estado, agora, busca desempenhar o papel de orientador das
discussões no intuído de atender aos interesses dessa população. Logo, dentre as
atribuições do Estado, a mais significativa está em incentivar o uso das línguas
indígenas na escola, o que era proibido até 1988, esse talvez tenha sido, ou seja, um dos
maiores desafios da educação escolar para essa população, pois as mesmas prerrogativas
sistematizadas em documentos oficiais, não se efetivaram, ainda no dia a dia, no século
XXI, indicando assim, uma eficácia ideológica dos discursos dominantes.
Nessa perspectiva, "ideologia" pode ser entendida como um conjunto de representações
as quais predominam em uma determinada classe inserida na sociedade, assim, pelo ato
de existir várias classes, há várias ideologias em confronto. Portanto, a ideologia não é
a visão geral de toda uma sociedade, mas a visão de mundo de determinada classe e a
maneira como representa essa sociedade, o que desencadeia a ideia de a linguagem ser
imposta pela ideologia, pois não há uma relação linear entre as representações e a
língua, ficando a cargo das condições de produção essa definição.
Nesse sentido, as condições de produção (CP) entendidas como um complexo de
relações sócio históricas determinantes das formações sociais estão atreladas à
ideologia, ou seja, às lutas de classe. Logo, toda representação de valores e crenças de
um sujeito são resultantes desse embate ideológico de um contexto “x”. Assim, do
mesmo modo que essas representações possuem caráter fluido, de continum, as
condições de produção não são diferentes.
(...) as condições de produção do discurso não se mantêm; apenas os
enunciados se repetem parafrasticamente em um processo de reelaboração
(tenso, instável, dinâmico), à medida que se incorporam outros valores
determinados pelo próprio movimento e pelas condições materiais e
históricas. (RODRIGUES, 2007, p. 43).
Essa dinamicidade das CPs e o retorno de determinados enunciados são produtos da
história, assim sendo ao orientar que o discurso é efeito de sentidos entre os
interlocutores é possível apontar que não há comunicação por meio de códigos neutros;
a produção de sentido de um discurso passa por uma espécie de filtro das Formações
Ideológicas que determinam constantemente os dizeres. Nessa direção, Pêcheux indica
que:
Um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica...
as formações ideológicas comportam ... uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição) ... a partir de
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lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrita numa relação de
classes ... toda formação discursiva deriva de condições de produção
específicas. (PÊCHEUX, 1990, p. 166-167).
Isso implica em dizer que as Formações Discursivas são produtos das Formações
Ideológicas, as quais só podem emergir a partir das relações entre as classes, portanto o
sujeito não é livre para escolher o que vai dizer, considerando que o enunciado é
determinado pela Formação Discursiva que ao se identificar o constitui enquanto
sujeito. Por conseguinte, ele simula sem se dar conta para que seu discurso apareça
como único. Esse processo é o que Pêcheux (1990) assenta como forma-sujeito, em que
realiza a incorporação - dissimulação dos elementos discursivos, mesmo que de maneira
imaginária, visando ao efeito de unicidade.
2. DISCURSO E RESISTÊNCIA
O direito deve ser visto como um procedimento de sujeição, que ele
desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida. Para mim, o
problema é evitar a questão da soberania e da obediência dos indivíduos que
lhe são submetidos e fazer aparecer em seu lugar o problema da dominação
e da sujeição. (FOUCAULT, 2009, p.182).
Ainda sob a perspectiva inerente à relação de poder, exercida entre os protagonistas
sociais e, principalmente, considerando a institucionalização de verdades, nessa seção
discorreremos a respeito da relação entre os discursos jurídicos e o modelo de educação
escolar indígena.
Aqui vale destacar que a abordagem sobre o conceito de poder se instaura nas
orientações de Foucault, dessa forma, transitaremos entre as duas posições ocupadas
pela conceituação de poder defendida pelo autor: o conceito de poder, ora poderá, então,
se relacionar ao saber, vinculado a um saber/verdade, ora, como prática social, ou seja,
micro - poderes exercidos por várias práticas sociais.
Nessa direção, considerando as práticas jurídicas como exercícios de poder e como
essas práticas veiculam uma vontade de verdade, as SDs analisadas nessa seção vão
evidenciar como as “verdades” se materializam nos discursos dos professores indígenas.
Vamos a elas:
[SD-2] Educação, de acordo com a constituição Federal da Lei de 1988 artigo 231 e
232, a educação para nós povo indígena se tornou muito mais ampla e exigida como
um ensino diferenciado e de qualidade. Na minha aldeia educação escolar por anos
anteriores fez muita falta, pois não se ensinava de acordo como ensino próprio do nosso
povo Guarani Kaiowá que foi se deixando, deichando até mesmo quase sendo
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esquecido. Mas com a Constituição começou ter ensino diferenciado, conhecimento
intercultural do povo Brasileiro.
Nessa SD o sujeito indígena é norteado pelo já dito jurídico da Constituição Federal de
1988, nos artigos 231 e 232. Isso nos indica que o saber jurídico é um saber-poder,
garantido aos enunciadores os quais possuem o conhecimento jurídico e exercem o
poder por meio da verdade jurídica. Logo, o discurso de Lei é entendido e reproduzido
como o ideal de educação escolar e, assim, se concretiza como “receitas” para uma
sociedade com base na teoria do direito.
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um
suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um conjunto
de práticas..., ela também é reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo
como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e
de certo modo atribuído. ... Penso, igualmente, na maneira como as práticas
econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral,
procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir
de uma teoria das riquezas e da produção; penso ainda na maneira como um conjunto
tão prescritivo como o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação,
primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber
sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não
pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade
(FOUCAULT, 2009, p.17-19).
Percebemos que os preceitos para o funcionamento social são reforçados, como
explicitado no trecho, “Mas com a Constituição começou ter ensino diferenciado,
conhecimento intercultural do povo Brasileiro”, mesmo sendo contraditório à
realidade das escolas indígenas.
Isso porque, segundo a pesquisa de CANDADO (2015), em relação à educação escolar
indígena no município de Dourados, por mais que apresente alguns avanços, todas as
atividades, nesse sentido, têm se mostrado insuficientes para a efetivação de uma
educação escolar diferenciada e de qualidade, como se afirma acima na SD. O ponto
principal da não efetivação da Lei está exatamente na não contemplação da língua
materna indígena nos espaços escolares, nem falada, nem escrita.
Contudo, mais uma vez aqui é preciso destacar as condições de produção desse discurso
indígena, pois o mesmo está sendo avaliado por não índios, e principalmente, é preciso
relevar que o indígena almeja a um lugar que historicamente não é seu, nesse sentido,
mesmo percebendo as falhas das instituições jurídicas, é preciso afirmar que as mesmas
funcionam como segue na SD:
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[SD-3]. Até a década de 90 a educação indígena teve pouco avanço. Com a Lei da
constituição teve grandes melhoras, hoje a educação é globalizado com a educação
tradicional do nosso povo. Agora os educadores falam a língua indígena, facilitando o
ensino. O ensino bilíngue teve avanço, mas para uma educação voltado para a
comunidade indígena precisa construir juntos a maneira de ensinar, construindo
junto com lideranças.
A partir do conhecimento atual da realidade escolar indígena do município, é possível
afirmar que no trecho “hoje a educação é globalizado com a educação tradicional do
nosso povo” há uma vontade de verdade instituída legalmente.
Contudo, ao expor que há uma educação escolar em que o global e o tradicional se
articulam, se concretiza a eficácia ideológica de um intradiscurso legal no enunciado do
professor. Pela história da educação é possível inferir que essa relação do global e do
local é uma questão ainda com muitos desafios para se efetivar, por vários motivos,
porém o mais relevante é a falta de capacitação de professores para lidar com esse
“novo”.
Trazendo essa reflexão ao contexto indígena, isso se torna ainda mais complexo.
Primeiramente, por se tratar de uma cultura centrada na oralidade, logo, a cultura letrada
não possui o mesmo significado para os indígenas. Outra questão, tão relevante quanto a
primeira, são os desafios para trazer esse “tradicional” para escola.
Colocamos como desafio visto o grande conflito religioso existente nas aldeias
indígenas, pois a presença das igrejas evangélicas não permite essa articulação. Nessa
direção, o tradicional, o sagrado para o indígena é visto como profano, “coisas do
demônio”, não há diálogo nessa questão. Assim, não há avanço, não há uma educação
bilíngue, considerando que a língua indígena possui relação intrínseca com as crenças.
A língua não é apenas comunicação, mas sim ligação com o divino, dessa forma falar a
língua indígena é também ressaltar suas crenças. Assim, no trecho “mas para uma
educação voltado para a comunidade indígena precisa construir juntos a maneira de
ensinar”, o que foi afirmado anteriormente se desfaz, ratificando o proposto por
Pêcheux (1995) em seu texto, “ Só há causa naquilo que falha”, ou seja, a língua
“manca” e é nesse momento que o sujeito se coloca diante dos acontecimentos.
Logo, por mais que o sujeito tente sustentar um discurso filiado à formação discursiva
jurídica, há um momento que ele falha, pois entende que não há educação escolar
indígena desvinculada do tradicional, da língua, das crenças.
Para a Análise do Discurso pechetiana há um já dito que sustenta todo o dizível, diante
disso o sujeito indígena diz o que o outro quer ouvir, contudo, por meio da linguagem
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não consegue esconder sua resistência ao que está imposto, visto ser um sujeito
constituído na e pela linguagem, assim é um sujeito divido.
E é assim que a discussão sobre a questão da educação escolar indígena produz
significados sustentados em um imaginário histórico que confirma o trabalho da
memória discursiva na produção dos efeitos de sentidos. Isso porque, como indica
Mariani (2003), a memória histórica possui o papel de fixar um sentido sobre os demais.
Assim, permite a homogeneização das representações sociais. Nessa direção, Pêcheux
indica que:
A memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em
relação ao próprio legível.” (PÊCHEUX, 1999, p. 52).
Isso implica em apontar que todo discurso se constitui a partir de uma memória e do
esquecimento de outros discursos. Logo, a homogeneização das representações sociais é
naturalizada. No caso da educação escolar indígena é preciso evidenciar como os
discursos inerentes à mesma emergiram e ainda permanecem produzindo sentidos.
[SD-4]. Antigamente os indígenas não se preocupavam com a educação dos brancos.
Não tinham a necessidade de serem instruídos através de escola e universidades. (índio
guarani).
O enunciado explicita a questão dos deslizamentos de sentidos, pois a construção “não
se preocupavam com a educação”, adquiriu outros sentidos, diante das condições sociais
em que vivem os índios na atualidade, assim esse “não se preocupar” perdeu espaço
para, ou outros efeitos de sentido como, “desinteressado, que não se esforça”. Ele indica
que não havia essa necessidade de instrução acadêmica, pois tinham outros recursos
suficientes para seu modelo de ensino/aprendizagem, contudo, o que temos
discursivamente nesse sentido se reduz somente à sentença de que os índios não são
capazes.
Isso em nenhum momento diminui a eficácia dos discursos de imposição, mas permite
perceber as brechas que possibilitam ao sujeito desidentificar-se às formações
discursivas que determinam o que pode e deve ser dito.
é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode se contra -identificar
com os saberes de sua formação discursiva e passar a questioná-los. Da
mesma forma, é porque o ritual está sujeito a falhas que o sujeito do discurso
pode desidentificar-se com a FD em que estava inscrito para identificar-se
com outra FD. (INDURSKY, 1997 – 2000, p. 9-10).
O que a autora propõe é que o ritual instituído por determinadas FDs não se configura
apenas por discursos semelhantes, os mesmos podem ser contraditórios. Por mais que
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isso não ocorra de forma consciente, ou seja, ao se desidentificar de uma FD, e se inserir
em outra, isso não acontece automaticamente, nesse processo de transição os resquícios
são inerentes, permitindo erupções de acordo com as condições de produção. E assim,
por mais que o sujeito não partilhe totalmente de uma FD, ele pode utilizar-se da
mesma, como na SD abaixo.
[SD-5] A constituição defendeu a escola indígena, deve preservar e conservar cultura,
língua, crenças e tradições e para o seu patrimônio e ter parcerias com demais órgão
público para as escolas indígenas cresça com ensino de qualidade. Aí tem o RCNEI que
diz como educação indígena precisa ser. Então somo cidadão brasileiro querem o ser
tratado de acordo com a Lei manda, com igualdade ai teremos educação mais
avançada.
O que se depreende da SD é o reflexo do discurso VERDADEIRO, herança da
modernidade, onde os dizeres foram estabelecidos a partir de um saber instituído pela
Ciência, distinguindo o que deve ou não, ser verdade. “(...) as grandes mutações
científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta,
mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade”.
(Foucault, 2005, p,16).
A premissa jurídica da Constituição Brasileira no Art. 5º institui que “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade. ” e isso se articula de forma clara com o
enunciado indígena: “Então somo cidadão brasileiro queremo ser tratado de acordo
com a Lei manda, com igualdade ai teremos educação mais avançada”.
Ao analisar, não somente a conjuntura atual da comunidade indígena, mas todo o
processo histórico desse povo, afirmar que se tem uma Lei que os ampare é,
minimamente, uma discrepância. Enumeremos pela sequência indicada pela referida
Lei: direito à vida; aqui podemos indicar a pesquisa divulgada pelo Conselho
Indigenista Missionário (CMI), com o relatório de Violência Contra os Povos Indígenas
no Brasil – dados de 2015-, indicando o Estado do MS como o mais violento, onde
foram registrados 51 casos de violência, sendo 25 assassinatos de índios.
A partir dessas pontuações podemos responder ao quesito referente ao direito à
segurança. Na sequência, destacamos a questão da Liberdade: aqui podemos pontuar o
processo de confinamento iniciado ainda durante a atuação do Serviço de Proteção do
Índio (SPI), em 1910 e que permanece até o momento. No quesito “igualdade” as
indicações anteriores as sequentes são suficientes para responder. Em se tratando ao
direito à propriedade os noticiários das mídias locais são expressivos e reveladores:
“Barraco é destruído em reintegração de posse de área ocupada por indígenas”.
(douradosnews, 06/07/2016).
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O exposto até aqui busca evidenciar a eficácia dos discursos vistos como verdades, a
procura por efetivação das mesmas, e, principalmente, como são reproduzidos até
mesmo por aqueles que não são favorecidos por esses discursos. Nessa seção, ainda é
possível perceber como os discursos estão atrelados em FDs, e, por conseguinte, como
essas FDs são porosas, passivas de falhas, como toda atividade realizada pela
linguagem.
Isso nos faz perceber a AD como uma possibilidade de transitar por caminhos não
tranquilos, não estáveis, mas necessários para se compreender os ditos e não ditos.
Perceber que o que está sendo dito só é possível porque há um já lá, e que há uma
relação entre Formação Ideológica e Formação Discursiva e que o produto dessa relação
se efetiva nas Formações Discursivas as quais determinam o que pode e deve ser dito,
interpelando o indivíduo em sujeito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações até aqui nos indicam que estamos diante de sujeitos marginalizados,
silenciados historicamente, contudo, considerando, ainda, as organizações e
reivindicações da comunidade indígena, não só em busca por uma educação escolar de
acordo com sua realidade, mas também em busca relacionada às questões territoriais, é
possível afirmar que há resistência e deslizamento de sentidos.
Contudo, de acordo com a AD, para que os sentidos se configurem há necessidade de
uma relação entre sujeito, forma-sujeito e, em especial, a identificação desse sujeito à
determinada formação discursiva. O sujeito que enuncia é determinado pelo lugar do
qual está inserido, pela história que o atravessa e pela exterioridade que o cerca. É a
partir dessa configuração de um sujeito dividido que os sentidos escapam, deslizam e
sempre podem se tornar outro. Porém, é preciso ressaltar que essa relação se faz de
forma inconsciente, ou seja, o sujeito que enuncia não percebe toda essa rede que
compõe seu discurso, como indica Pêcheux (1988 [1975], p.163) “(...)o sujeito se
constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina”.
Por consequência, pode-se inferir que tanto o sujeito, quanto a forma-sujeito indígena
são processos constituídos na e pela história. As representações são projeções feitas
pelos protagonistas na e pela história as quais determinam o lugar de A e B. isso é o que
Pêcheux (1995) denomina como formação imaginária que está relacionada a outras
categorias como antecipação, relação de força e relação de sentido, todas manifestas
durante o processo discursivo.
Assim, a antecipação propicia idealizar a figura mental do interlocutor, logo se
configura a representação imaginária, a qual determina as condições de produção
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indicando as estratégias discursivas utilizadas. Diante dos lugares sociais ocupados
pelos interlocutores são estabelecidas as relações de forças, ou seja, pelo menos em
teoria, o sujeito que ocupa um lugar social de maior prestígio e poder, possui maior
força no processo discursivo. No que se refere às relações de sentido, essas se
estabelecem nas interdiscursividades com outros textos visto que não há discurso
isolado.
Nesse sentido, é preciso compreender os desencontros de sentidos que marcaram a
educação escolar voltada à sociedade de cultural oral e, ainda, pôde-se perceber o início
de todo o processo de silenciamento de um povo por meio da não valorização de sua
língua. A história nos indica a falta de sensibilidade do homem ao impor outra cultura,
outras crenças, outra língua a outro homem: tirar a língua do povo guarani/kaiowá foi e
é tirar a alma desse povo, pois o conceito de língua para eles vai além de processo de
comunicação, é a ligação com o divino, a relação com a mãe terra, com a natureza.
Assim, as análises sinalizam para uma não estabilização dos discursos, por mais que aja
uma ideologia a qual procura a cristalização das imagens e lugares sociais, é preciso
considerar que os sujeitos dos discursos são sujeitos da linguagem, logo são constituídos
por contradições e falhas.
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*Pós Doutora – Professora da UNIGRAN-Centro Universitário da Grande Dourados-.
**Pós Doutor –Professor da UEMS-Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul-.
***Doutoranda- UNIOESTE -Universidade Estadual do oeste do Paraná-.