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HVMANITAS Vol. XLVII (1995) JúLIA SILVA Universidade de Coimbra A PRESENÇA CLÁSSICA EM AS REGRAS DA PERSPECTIVA DE NUNO JÚDICE (...) estes reencontros (...) surgem de imagens que guardamos (...) num recanto da alma, e que um dia se abrem inesperadamente. ' As Regras da Perspectiva (1990) constituem um exemplo vivo da recolha da lição da cultura greco-romana. Uma leitura do índice traz-nos os títulos: «Imitação de Propércio», «Cena Mitológica», «Eco e Narciso», «Dido», «A Noite está comigo, os seus corcéis, a terrível pureza do seu nada», «Carpe Diem», «A Sombra de Eros», reveladores dos inúmeros diálogos que o eu tece com «as vozes sublimes dos antepassados» 2 . O próprio título, As Regras da Perspectiva, reporta-se a situações temporais opostas: Regras, remete para algo fixo, inalterável como o pas- sado; Perspectiva, sugere visão distanciada, diversidade de observação consoante o plano em que situamos o objecto, contemplação do objecto no sentido físico e no sentido psíquico. 1 lúdice, Nuno, As Regras da Perspectiva, Lisboa, Quetzal, 1990, p. 47. 2 Júdice, Nuno, Crítica Doméstica dos Paralelepípedos, Lisboa, Quetzal, 1991, p. 85.

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

JúLIA SILVA

Universidade de Coimbra

A PRESENÇA CLÁSSICA EM AS REGRAS DA PERSPECTIVA

DE NUNO JÚDICE

(...) estes reencontros (...) surgem de imagens

que guardamos (...) num recanto da alma,

e que um dia se abrem inesperadamente. '

As Regras da Perspectiva (1990) constituem um exemplo vivo da

recolha da lição da cultura greco-romana. Uma leitura do índice traz-nos

os títulos: «Imitação de Propércio», «Cena Mitológica», «Eco e Narciso»,

«Dido», «A Noite está comigo, os seus corcéis, a terrível pureza do seu

nada», «Carpe Diem», «A Sombra de Eros», reveladores dos inúmeros

diálogos que o eu tece com «as vozes sublimes dos antepassados» 2.

O próprio título, As Regras da Perspectiva, reporta-se a situações

temporais opostas: Regras, remete para algo fixo, inalterável como o pas­

sado; Perspectiva, sugere visão distanciada, diversidade de observação

consoante o plano em que situamos o objecto, contemplação do objecto

no sentido físico e no sentido psíquico.

1 lúdice, Nuno, As Regras da Perspectiva, Lisboa, Quetzal, 1990, p. 47. 2 Júdice, Nuno, Crítica Doméstica dos Paralelepípedos, Lisboa, Quetzal, 1991,

p. 85.

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Serão As Regras da Perspectiva uma «contemplação» das palavras da Antiguidade?

Na linha da valorização do sujeito expressa em Lira de Líquen e adversa à lição pessoana de heteronímia adoptada em A Noção de Poema,

longe também da abordagem imediatista — «nenhum poema terá uma razão imediata»3 — esta obra, emerge do desejo de alcançar a perfeição do verbo, desejo este inatingível como se conclui do confronto que o poeta estabelece entre as duas artes, a música e a poesia:

Na música, a perfeição tem o nome de harmonia (...) Na poesia, porém, essa regra nem sempre se verifica; e ver-se-á, na análise do poema, a dissonância entre as palavras e o mundo quebrar a vontade da beleza.

Além disso, a obra realiza uma retrospectiva sobre o trabalho poético produzido. O poeta retoma os seus textos passados, contempla-os e confe-re-lhes a sua perspectiva do momento. Contudo, o conceito de antiguidade restringe-se aqui ao feedback efectuado pelo eu na própria memória. Mas, em Nuno Júdice, memória não significa simplesmente intertexto consigo mesmo, o conceito é mais lato e abrange o diálogo com outras figuras. Prova desta afirmação é o poema intitulado «Princípio de Retórica», onde o poeta se demora em considerações sobre a «construção» do poema e, onde alude às relações dialógicas entre os textos através da expressão:

um arquétipo que se confunde com a imagem inscrita no fundo da memória, de que todas as outras constituem o reflexo degradado.

A criação poética transfigura-se em escrita. A identidade total entre o poema e o mundo íntimo do eu é negada, pois os seus agentes são o «fazer», o «pensar», o exercício intelectual:

Por instantes, hesito na própria sequência do raciocínio: procurar, nos átrios da memória, o corredor de um vago infinito. 6

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Júdice, Nuno, As Regras da Perspectiva, Lisboa, Quetzal, 1990, pp. 47-48. Ibid., p. 23. Ibid., p. 24. Ibid., p. 33.

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No texto final não vegetam quaisquer «indecisões do poeta»7 , esse

coleccionador monótono cola os traços inúteis prosseguindo a antiga

enumeração.8

Ao referir-se ao processo de composição em Nuno Júdice, Joaquim

Manuel Magalhães considera-o resultante do «cruzamento privilegiado do

sentimento com a consciência da sua construção poética»9 . Também

Fernando Guimarães subscreve a mesma ideia de equilíbrio entre o espaço

da subjectividade e o mundo da «materialidade textual»10.

Esta «poesia poética» exerce também a sua contemplação sobre a

Antiguidade clássica. Sirva-nos de exemplo «Cena Mitológica» u , um dos

poemas mais extensos desta obra, organizado em estrofes irregulares, que

recupera o mito das belas e harmoniosas filhas de Zeus e de Mnemósine,

a própria memória.

Homero, n'A Ilíada e n'A Odisseia, Hesíodo na Teogonia, Píndaro

nas Odes, Aristófanes n'As Rãs e n'As Nuvens veneram as jovens inspira­

doras do canto.

Também o contemporâneo, movido pelo desejo do verso perfeito,

viaja até ao monte Hélicon para se munir do dom da inspiração.

A primeira estrofe abre com a apresentação das convivas da cena,

«as nove mulheres». O poeta substitui o lexema «musas» pelo lexema

«mulheres», isto é, retira às jovens gregas as capacidades inspiradoras

para as reduzir a seres comuns, mortais. Descemos do divino ao mundano.

Simultaneamente marca a passagem do tempo ao utilizar a noção de

«mulher» em vez da palavra «jovem». O sujeito reage de imediato contra

a interpretação corrente do mito, atitude que aparece justificada ab initio,

ao abrir a sua produção literária com um apelo à «Mudança» 12.

7 Ibid., p. 33. 8 Ibid., p. 31. 9 Magalhães, Joaquim Manuel, Um pouco da morte, Lisboa, Presença, 1989,

p. 248. 10 Guimarães, Fernando, A poesia contemporânea portuguesa e o fim da moder­

nidade, Lisboa, Caminho, 1989, p. 123: «A poesia de Nuno Júdice soube sempre encontrar o equilíbrio necessário entre uma subjectividade criadora (...) e um sentido orientado para aquela materialidade textual que, desde que na poesia tenda a predomi­nar uma dimensão metafórica e simbólica, nunca deixa de ser uma das suas condições efectivamente necessárias.»

11 Júdice, Nuno, o.c, pp. 49-53. 12 Ibid., p. 7.

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A expressão «fonte» e a metáfora clássica «cabelos de ouro» trazem-

nos à memória a lenda grega, mas em nenhuma ocasião nos são sugeridas

a harmonia dos movimentos e a suavidade do canto que envolviam aque­

las jovens. Pelo contrário, as formas verbais «debruçando-se» e «escor­

rem» parecem traduzir uma certa resignação e passividade. A mesma ideia

contêm os versos:

e os olhos fixam-se

na ideia antiga de que nada é presente.

Note-se que as «mulheres» abandonaram o puro som, e que a «voz»

que «canta o seu encontro» é-lhes alheia. Se as «musas» despertavam nos

mortais o dom poético, agora subverte-se a situação, pois é o eu que pro­

cura despertar as «mulheres» do seu estado de adormecimento, dessa

«falsa eternidade» em que mergulharam. O próprio discurso directo insti-

ga-as a sair do seu estado de apatia:

«Porque não vedes o

próprio rosto? E esqueceis as lágrimas, o brilho

baço das pálpebras, as mãos imóveis como pombas mortas?» 14

Contudo, esquecidas nas memórias passadas, as «mulheres» preferem

ignorar as palavras convidativas à renovação / inovação.

Nas estrofes seguintes, o eu fotografa o estado actual de cada uma

das anosas «musas». Assim, a rainha das musas, Calíope, símbolo da

poesia épica e das ciências, surge imersa na «embriaguez» das suas pala­

vras. A melodia vestiu o tom de ladainha: «Os lábios seguem a deriva de

um casco». Os anos fluíram, mas ela mantém-se fiel ao rumo preestabe­

lecido:

Eco algum

a distrai.

(•••) Desceram

os sóis de uma estação; forçaram as noites

um silêncio de aves. Ela prosseguiu o seu trabalho,

indiferente.I5

13 Ibid., p. 49. 14 Ibid., p. 49. 15 Ibid., p. 50.

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Em seguida, o poeta contempla tranquilamente a musa da história. Clio, a que

esquecida, mantém o sorriso com que, outrora, selou o destino desse que os animais dilaceraram.

Erato, a musa da poesia amorosa ou erótica, perdeu todo o fulgor, pois «o seu gemido» é «um sopro vazio nos interstícios da tarde» e o seu corpo jaz «com um abandono de morta» 17. Melpómene, a representante da tragédia, abandonada: «Todas se esquecem de Melpómene», vive «uma existência de limbo» a nível físico e a nível artístico:

entrou de repente com o rosto desfeito da insónia. Grita! como se a água recebesse um choro que as nuvens não reconhecessem.

O desfile das musas envelhecidas prossegue. Sobe ao palco, sempre envolta no seu riso, Talia, a rainha da comédia, mas o seu riso «os ares infecta», pois a musa, longe da originalidade, «colhe as flores da margem» 19.

No final da tarde, ergue-se Terpsícore, símbolo da dança e do canto. Euterpe, a antiga musa da poesia lírica e da música, vê o seu verso, esse «ranger de cadências» cobrir-se com o manto da morte:

transporta nos braços o manto que envolve o verso, como se levasse a própria aparência do sagrado.20

Finalmente, surgem Polínia e Urânia. A senil imperatriz da oratória, Polínia, entoa a sua composição sem qualquer entusiasmo:

Nada subsiste do instante da pausa, nem a precipitação com que o poeta respira, nem o intervalo de um sentido na frase.

16 Ibid., p. 50. 17 Ibid., p. 50. 18 Ibid., p. 51. 19 Ibid., p. 51. 20 Ibid., p. 52. 21 Ibid., p. 52.

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Urania, a representante da Astronomia, esquece todos os «convivas

do canto» seus cultores, traída pelas cãs:

Todos se lembraram dela — a deusa celeste — e das palavras que lhe emprestou (...) Ignora-os.22

Em suma, o eu foge à leitura corrente do mito. As jovens aladas,

belas e inspiradoras do canto são lidas como velhas que mecanicamente

produzem a ladainha apreendida nos seus primórdios. Trata-se de um

manifesto do sujeito contra as figuras literárias que constantemente apre­

goam a «mudança»:

Mudança: chave de tantas figuras que construíram o poema.

Sujeitos estes que culminam fiéis ao modelo e aos temas dignos de louvor, inscritos na memória. Porém, o eu não condena directamente as musas. A fonte não secou. Os cantores do verso, presos à regra clássica, deixaram-nas esmorecer porque as contemplaram sempre da mesma forma, já sem «nenhuma inspiração»24. Ávidos da glória dos seus ante­passados, fecham a sua lavra poética e tornam-se escravos da lembrança:

Consagram-nas as palmas e os louros. No entanto, emudecem quem as desperta,

roubam o olhar que as fixou, entregam ao êxtase do abismo o espírito que aflorou o seu voo.

O sujeito procura combater o mecanicismo na poesia, pois perfilha a

ideia de que o

verso repetido perde o sentido e não seduz senão alguém que o re

O poeta engana-se a si mesmo. A subversão do mito visa, portanto, destruir o passado e fomentar a alteração futura. Apela à inovação em detrimento da imitação.

22 Ibid., p. 53. 23 Ibid., p. 7. 24 Ibid., p. 54. 25 Ibid., p. 53. 26 Ibid., p. 57.

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Este apelo é reforçado em «Eco e Narciso». A ninfa Eco, impedida

pela cruel Juno de comunicar os seus sentimentos («Nela, vive o som que

os deuses roubaram»), representa a pura imitação a que se entregou a poe­

sia. Narciso, símbolo da egolatria, «olha-se fixamente» e «consome-se»

sem se afastar da sombra de si mesmo, remete para a futilidade de que

emerge o texto poético. Por outro lado, a associação das duas figuras traz-

nos à memória uma história trágica de amor, onde a ausência da palavra

tem um papel determinante. Eco não dispõe das suas palavras para mani­

festar o seu afecto. Perdido na floresta, o desencontro de sons engana o

jovem que crê ouvir o seu reflexo no lugar da voz da amada. Este quadro

verte o modo actual de conceber a poesia. Os versejadores, esses

imitam a realidade (...) sem que a voz se distinga — e os seus lábios se revelem, twvos de ânsia, num rigor de verso.

A jovem definha e perece: «essa // cuja beleza a terra sepulta».

O mesmo sucederá à arte poética se se limitar ao «conforto no fundo das

fontes»28.

A lendária fundadora da cidade de Cartago, Dido, também apresenta

o seu protesto. Acusa o canto de superficialidade: «a frase que não deixa

transparecer // mais do que a pobre realidade do mundo», pois a imagem

espiritual que os olhos espelham «não a traduz nenhum verso»29.

Em «A Sombra de Eros», também é subvertida a imposição do deus

grego à deslumbrante mortal Psique, de que jamais deveria tentar ver-lhe o

rosto. O Eros contemporâneo propõe a nudez do rosto oculto, o desvendar da

sombra, o mesmo é dizer a abertura da escrita aos «limites que mal conhece­

mos», à voz que esclarece a «ignorância». Novos sulcos se devem rasgar:

«e desenha-os sem remorso — apesar do inverno — na brancura de um verso.»

A ideia de que o verso fortuito deve morrer para dar lugar ao verso

reflectido e pleno é ainda retomada noutros poemas. Em «Carpe Diem», o

27 Ibid., p. 63. 28 Ibid., pp. 62-63. 29 Ibid., pp. 64-65. 30 Ibid., p. 75.

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lema horaciano do viver intensamente cada instante é recuperado para fazer

sentir a urgência em pôr cobro à conformidade no campo da composição:

Um nome inútil persegue a tua memória, para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias; e abraças a própria figura do vazio.31

Estimula a «sair ao encontro da vida», isto é, a procurar a frase obs­

cura e suspensa num dos compartimentos profundos do eu32.

Na «Poética» clama pelo fim da rotina:

Entrega as emoções à mortalha solar do verso — sem o remorso de uma despedida.33

Ao mesmo tempo sugere uma nova perspectiva dada pelo outro-eu

que habita «num labirinto de sombras»34.

As Regras da Perspectiva são uma profunda contemplação da poesia com vista à sua metamorfose. O poeta defende a «mudança», a «liberta­ção das cinzas da memória» a favor da «luz que coincide com a primave­ra // e com o poema», da «eternidade do verso».

Esta viagem terminou. Terá o sujeito cumprido a sua profecia? Ao conferir uma nova leitura aos mitos da Antiguidade clássica, o sujeito visa contribuir para a originalidade da poesia. Contudo, em «Elegia Diurna», a consciência de «algo de excessivo» desperta. E o motivo principal da obra é agora a (im)possibilidade de construção do poema. A palavra fixa,

a mancha do poema impede a progressão do tempo; e fixa o brilho que a noite terá sonhado, insistindo numa repetição de gestos.

A palavra reduz toda a perspectiva a regra. A identidade do poema fica adiada:

O viajante (...) não deu por que as suas palavras

31 Ibid., p. 70. 32 Ibid., pp. 70-71. 33 Ibid., p. 70. 34 Ibid., pp. 72-73. 35 Ibid., p. 79.

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se tinham afastado do que ele precisava de dizer. Não voltou a encontrar um sentido preciso para os seus sentimentos; e não reconhecia nenhuma das ideias que a frase traduzia, como se também na página se tivesse enganado de direcção.

Mas o peregrino, firme no seu projecto, predispõe-se a recomeçar:

E a luz chega até mim, tocando-me os dedos e o rosto: (...) Encho dessa luz a taça do poema e bebo-a .31

Em síntese, em As Regras da Perspectiva, uma busca desenfreada da

plenitude na criação poética, afloram vestígios da cultura clássica.

Calíope, Clio, Erato, Melpomene, Talia, Terpsícore, Euterpe, Polínia,

Urânia, Narciso, Eco, Dido, Horácio, Ovídio, Propércio... revivem no

verso do contemporâneo, Nuno Júdice. As histórias do mundo greco-

romano também aparecem subvertidas ao serviço do princípio motor da

sua escrita — «Mudança». Apesar do seu contributo, o poeta toma cons­

ciência do carácter excessivo do seu desejo e conclui que toda a palavra

escrita transforma a perspectiva em regra. A construção plena do poema é

protelada. Mas o ânimo incentiva-o a procurar novamente essa possibili­

dade de construção do poema.

Esta limitada abordagem permitiu-nos averiguar a consciência do

poeta sobre o modo como a cultura da Antiguidade se revela viva e

pujante na poesia contemporânea. É verdade que Nuno Júdice, na sua

«poesia poética», procura «fazer» o verso longe das memórias do passado,

mas é também verdade que não deixa de as invocar para construir o que

designa por «futuro» da poesia.

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36 Ibid., p. 81. 37 Ibid., p. 84.

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