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A PRESENÇA DO BULLYING NOS CONTOS DE FADAS: UMA ANÁLISE REFLEXIVA LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS ([email protected]). Resumo O artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado e objetiva investigar as contribuições da literatura para a discussão e reflexão sobre a prática do bullying, em situação escolarizada. Sua relevância consiste em oferecer ao professor subsídios para ampliar suas competências no ensino de leitura e literatura, a partir do (re)conhecimento do potencial problematizador e crítico do texto literário, fundamentais para trabalho educativo sobre a prática do bullying, tão comum nas escolas atualmente. Entende–se que o trabalho sistematizado com contos de fadas favorece à criança trabalhar suas emoções e angústias, tendo em vista o poder imaginativo presente na ficção, que permite aprender mais sobre conflitos íntimos do ser humano e ensaiar suas possíveis soluções, por meio de uma experiência vicária. Em termos metodológicos, o trabalho se configura como uma pesquisa bibliográfica, fundamentada em estudos sobre literatura e bullying. Adotou–se como procedimento central a análise de contos de fadas, com ênfase em aspectos presentes nos contos que favorecem a discussão e reflexão crítica em torno da temática do bullying. Privilegiou–se como foco de análise, o conto de fadas “A gata borralheira”, dos irmãos Grimm. Elegeram–se como referencial teórico os estudos de Amarilha (2004), Bettelheim (2007), Olweus (1993) e Vygotsky (1997). A análise aponta elementos presentes no referido contos que possibilitam o aprendizado sobre a condição humana e a reflexão de sentimentos e anseios da infância, no modo como aborda a vida e a subjetividade do leitor. Nesse sentido, a literatura reafirma–se como importante campo para o debate e a compreensão de aspectos da realidade do leitor, uma vez que desenvolve neles a autonomia, o pensamento crítico e argumentativo, por meio de uma experiência rica, formativa e imaginativa. Reconhece–se, ainda, a necessidade de se encarar a prática do bullying como um problema preocupante que deve ser debatido e combatido, no contexto escolar. Palavras-chave: Contos de fadas, Literatura, Bullying. Este artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado e objetiva investigar qual a contribuição da literatura para a discussão e reflexão sobre bullying, que se caracteriza como agressões constantes entre pares e que tem como palco principal: a escola. Acreditando que o trabalho com a literatura na sala de aula é um caminho que permite, com a mediação do professor, uma discussão e problematização a partir das histórias lidas e, portanto, uma possibilidade para a promoção de uma reflexão crítica e aprofundada sobre a própria condição humana, é que nos propomos a fazer esta interlocução entre a literatura e o bullying. Sua relevância consiste em apresentar ao professor subsídios para ampliar suas competências no ensino de leitura e literatura a partir do (re)conhecimento do potencial problematizador e crítico do texto literário, fundamentais para trabalho educativo sobre a prática do bullying nas escolas. Além disso, esta investigação se propõe a analisar um conto de fadas sob a ótica do bullying, apresentando as possibilidades de trabalho a partir deste gênero literário e ampliando o olhar do professor na busca por uma educação mais humanitária, em que as diferenças sejam aceitas em prol de uma convivência pacífica no ambiente escolar.

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A PRESENÇA DO BULLYING NOS CONTOS DE FADAS: UMA ANÁLISE REFLEXIVA LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS ([email protected]). Resumo O artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado e objetiva investigar as contribuições da literatura para a discussão e reflexão sobre a prática do bullying, em situação escolarizada. Sua relevância consiste em oferecer ao professor subsídios para ampliar suas competências no ensino de leitura e literatura, a partir do (re)conhecimento do potencial problematizador e crítico do texto literário, fundamentais para trabalho educativo sobre a prática do bullying, tão comum nas escolas atualmente. Entende–se que o trabalho sistematizado com contos de fadas favorece à criança trabalhar suas emoções e angústias, tendo em vista o poder imaginativo presente na ficção, que permite aprender mais sobre conflitos íntimos do ser humano e ensaiar suas possíveis soluções, por meio de uma experiência vicária. Em termos metodológicos, o trabalho se configura como uma pesquisa bibliográfica, fundamentada em estudos sobre literatura e bullying. Adotou–se como procedimento central a análise de contos de fadas, com ênfase em aspectos presentes nos contos que favorecem a discussão e reflexão crítica em torno da temática do bullying. Privilegiou–se como foco de análise, o conto de fadas “A gata borralheira”, dos irmãos Grimm. Elegeram–se como referencial teórico os estudos de Amarilha (2004), Bettelheim (2007), Olweus (1993) e Vygotsky (1997). A análise aponta elementos presentes no referido contos que possibilitam o aprendizado sobre a condição humana e a reflexão de sentimentos e anseios da infância, no modo como aborda a vida e a subjetividade do leitor. Nesse sentido, a literatura reafirma–se como importante campo para o debate e a compreensão de aspectos da realidade do leitor, uma vez que desenvolve neles a autonomia, o pensamento crítico e argumentativo, por meio de uma experiência rica, formativa e imaginativa. Reconhece–se, ainda, a necessidade de se encarar a prática do bullying como um problema preocupante que deve ser debatido e combatido, no contexto escolar. Palavras-chave: Contos de fadas, Literatura, Bullying.

Este artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado e objetiva investigar qual a contribuição da literatura para a discussão e reflexão sobre bullying, que se caracteriza como agressões constantes entre pares e que tem como palco principal: a escola. Acreditando que o trabalho com a literatura na sala de aula é um caminho que permite, com a mediação do professor, uma discussão e problematização a partir das histórias lidas e, portanto, uma possibilidade para a promoção de uma reflexão crítica e aprofundada sobre a própria condição humana, é que nos propomos a fazer esta interlocução entre a literatura e o bullying.

Sua relevância consiste em apresentar ao professor subsídios para ampliar suas competências no ensino de leitura e literatura a partir do (re)conhecimento do potencial problematizador e crítico do texto literário, fundamentais para trabalho educativo sobre a prática do bullying nas escolas. Além disso, esta investigação se propõe a analisar um conto de fadas sob a ótica do bullying, apresentando as possibilidades de trabalho a partir deste gênero literário e ampliando o olhar do professor na busca por uma educação mais humanitária, em que as diferenças sejam aceitas em prol de uma convivência pacífica no ambiente escolar.

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. Em termos metodológicos, o estudo compreende uma pesquisa de natureza bibliográfica, fundamentada em estudos sobre literatura e bullying. Adotou-se como procedimento central a análise de conto de fadas, com ênfase em aspectos presentes nos contos que favorecem a discussão e reflexão crítica em torno da temática do bullying. Privilegiou-se como foco de análise o conto de fadas "A Gata Borralheira", dos irmãos Grimm.

Apresenta como referencial teórico, os estudos de Amarilha (2004; 2006), Beaudoin e Taylor (2006), Bettelheim (2007), Casassus (2009), Coelho (1991), Middelton-Moz e Zawadski (2007), Olweus (1993) e Vygotsky (1997).

É somente a partir de um estudo mais apurado sobre o bullying, que poderemos apontar as possíveis soluções para o problema, e o diálogo com a literatura infantil, certamente, é importante para a construção de caminhos que culminem em alternativas para o combate desse mal, considerando que a subjetividade presente na literatura, abre possibilidades de interação com o texto, permitindo ao leitor dar significação a sua própria vida a partir da história, fazendo-o pensar sobre si mesmo.

Colocar o problema do bullying em foco é uma forma de permitir que este seja mais conhecido em relação as suas especificidades, causas e conseqüências, tanto para o agressor quanto para a vítima; permitindo entender o porquê de existirem observadores omissos diante de tamanha violência.

O Conto de Fadas: Um baú de possibilidades

Reconhecendo a leitura de literatura infantil, como um meio catalisador da atenção da criança e como via para o desenvolvimento da consciência crítica desta, o trabalho com a literatura abre um leque de possibilidades que ultrapassam o puro prazer, isso porque, ao ler, o indivíduo se abre a novos conhecimentos, fazendo interlocuções com o que já conhece, permitindo-o refletir e construir sua própria interpretação, seu próprio olhar sobre o texto.

É sobre isso que Iser (1996) discute como sendo o efeito da estética, que se estabelece, justamente, na interação entre o leitor e o texto literário, num determinado contexto, acrescentando que "os apelos do texto devem ser cifrados, pois perdem seu efeito sobre o receptor, quanto mais diretamente são comunicados e mais sua natureza se evidencia" (ISER, 1996: 91), ou seja, os elementos do texto que "intrigam" o leitor é o ponto-chave presente na literatura capaz de desestabilizar e provocar mudança.

Ainda sobre este diálogo do leitor com o texto, Iser (1996) faz a seguinte contemplação:

O texto literário alcança assim o grau de estranheza indispensável para que as disposições de seus receptores sejam afetadas. [...] o texto deixa de ser mero reflexo do repertório das disposições de seus leitores, pois exige deles atividades, assim possibilitando que se "abra" a hierarquia cristalizada dos constituintes psíquicos. Essa "abertura" produz um movimento que sentimos como libertação latente, pois somos capazes de suspender a exigência do censor e a validez do domínio estabelecido ao menos durante um certo tempo, o da leitura. (p.91)

O que evidencia a importância da leitura de literatura como sendo um momento em que permite ao sujeito divagar por mundos desconhecidos, buscando compreender a dinâmica do texto, fazendo inferências, enfim, construindo e reconstruindo, num movimento de constante aprendizagem, por isso que a literatura infantil precisa

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estar presente nas salas de aula, afinal, mudanças de comportamento, somente são possíveis, quando se realiza uma reflexão que possibilite a construção de uma consciência crítica.

A interação social promovida dentro da sala de aula é favorável ao levantamento de questionamentos, dúvidas, opiniões em relação a assuntos que prejudicam a paz na escola, como é o caso do bullying. Portanto, o professor tem um papel fundamental no estímulo ao debate e a reflexão, partindo do trabalho com a literatura.

De acordo com Amarilha (2004), a literatura infantil possibilita a criança "organizar o impacto fragmentado e caótico da experiência de mundo que seus limites de criança impõem" (AMARILHA, 2004: 20). O texto, portanto, serve como referência para o enriquecimento do conhecimento de mundo da criança, o que permitirá que esta, desenvolva confiança para buscar novas leituras, construindo sua capacidade de interpretação em relação a estas.

Crianças nitidamente mais jovens [...], para quem as primeiras páginas foram lidas em voz alta, puderam continuar a leitura sozinhas, interessar-se pelos problemas sociais e políticos colocados e compreendê-los, ao menos parcialmente. Tanto é verdade que não existem temas "tabus", e a criança se interessa por assuntos importantes e sérios toda vez que são abordados de maneira capaz de tocá-las (HELD, 1989: 161).

Os contos da literatura infantil estão imersos na possibilidade de se discutirem assuntos relevantes para o crescimento intelectual da criança; basta que se abram debates, construindo, juntamente com os alunos, idéias a respeito de assuntos que também os afligem. Essa atitude é fundamental pela força argumentativa que envolve.

Os contos de fadas, especialmente, possibilitam a discussão sobre os conflitos humanos, abrindo portas para determinadas verdades sobre as quais o homem necessita refletir, isto porque são fundamentados em necessidades humanas básicas como: a auto-realização do indivíduo, o desejo de ser aceito e a luta pela preservação física (COELHO, 1991; 2005); sendo, portanto, narrativas capazes de transmitir experiências subjetivas complexas e vivências emocionais delicadas para crianças e, também, para adultos.

Como conseqüência, observa-se que as crianças demonstram um enorme gosto por este gênero literário. Este gosto pelos contos, não é gratuito, tendo em vista que esses ajudam a criança à, inconscientemente, trabalhar suas angústias, permitindo-a imaginar, viver experiências diferentes da sua realidade, satisfazer desejos não prováveis de serem vividos no mundo real, promovendo uma sensação de saciedade.

As características presentes nos contos de fadas, tais como a personificação entre o bem e o mal, o conflito vivenciado pelo personagem principal, a solução trazida através de um elemento mágico e o desfecho em que o bem se sobressai e vence o mal, possibilitam à criança encontrar suas próprias soluções, dando-lhe a confiança necessária para acreditar em si mesma.

Segundo Bettelheim (2007),

É importante prover a criança moderna com imagens de heróis que têm de partir para o mundo sozinhos e que - apesar de no início ignorarem o futuro que lhes reserva - encontram nele lugares seguros ao seguir seus caminhos com profunda

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confiança interior. O herói do conto de fadas avança isolado por algum tempo, assim como a criança moderna com freqüência se sente isolada (p.19).

Desta forma, a criança, a partir dessas histórias, compreende que, assim como os heróis, ela pode, em algum momento, se sentir rejeitada, mas, que isto não é condição para a vida inteira, pois, há a possibilidade de mudança, proporcionando à criança a segurança de que, após transpor os obstáculos da vida, ela "é capaz de alcançar relações significativas e compensadoras com o mundo ao seu redor" (BETTELHEIM, 2007: 20).

Além disso, os contos de fadas ajudam à criança a conviver com o seu próprio inconsciente, amadurecendo psicologicamente, organizando e aliviando suas angústias, havendo, portanto, uma ajuda terapêutica que permite à criança refletir sobre a sua própria condição e encontrar o melhor caminho a seguir.

O conto não dá soluções prontas, ao contrário, ele permite que a própria criança decida se é relevante para sua vida, aquilo que a história revela sobre a natureza humana. A liberdade é, portanto, o ponto-chave, presente nos contos de fadas, que abre as portas para que a criança, inconscientemente, "faça uso" do que naquele momento é significativo para sua vida, ou guarde as experiências vivenciadas, a partir da leitura/contação do conto, para um momento que lhe seja necessário e importante.

Portanto, o envolvimento proporcionado pelos contos de fadas possibilita à criança se entender melhor, na medida em que estimula sua imaginação, ajuda a desenvolver seu intelecto e tornar claras suas emoções, estar em harmonia com suas ansiedades e aspirações, reconhecer suas dificuldades e formular soluções para os problemas que a perturbam e o mais importante, permite todo este desenvolvimento sem que a criança corra risco algum, justamente, por estar no mundo do imaginário.

A leitura dos contos de fadas, principalmente, abre portas para um trabalho mais acurado com as emoções, que representam o campo vital de cada um de nós, já que o que sentimos sobre nós mesmos, determina, em grande parte, o que nós somos (CASASSUS, 2009). Quanto maior for o nosso equilíbrio emocional, maior a força que nos impulsiona para adaptar e transformar o nosso mundo interior e o mundo a nossa volta, ou seja, nossa capacidade de evoluirmos enquanto seres humanos. Portanto, a emoção participa da formação do caráter, ou seja, está presente nos processos de organização e formação da estrutura psicológica fundamental da personalidade (VIGOTSKI, 1998).

Por isto, o trabalho com a literatura infantil é um caminho para se trabalhar essas emoções e, consequentemente, para a formação de sujeitos que saibam se valorizar, respeitando suas diferenças, assim como a dos demais, ou seja, que aceitem a diversidade e saibam como se posicionar diante dela.

A Gata que não deveria ser Borralheira: reflexões sobre o bullying

Partindo da compreensão de que os contos de fadas possibilitam ao homem caminhos para refletir sobre si mesmo e a entender melhor suas emoções e conflitos, pela forte carga emocional que apresentam, é que nos propomos a selecionar e analisar o conto de fadas "A Gata Borralheira" na versão dos irmãos Grimm, datado de 1812, por este ser um conto disseminado por inúmeros meios há alguns séculos e, principalmente, por permitir uma maior discussão e reflexão crítica sobre a prática do bullying.

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A história se inicia com uma grande perda, a personagem principal é acometida pela morte da mãe, o que a deixa imensamente triste. O pai, um homem rico, não demora muito até se casar novamente e a segunda mulher traz consigo as suas duas filhas. É partindo deste enredo que se inicia a saga da menina, obra clássica compilada pelos irmãos Grimm a partir de histórias populares, cujos informantes, em grande parte, foram mulheres cultas da sua própria classe social (TATAR, 2004).

No desenrolar da narrativa, a menina é submetida aos mais árduos trabalhos, sendo tratada como a empregada da família, sofrendo todo tipo de humilhação sem reclamar. Até o momento em que o rei, que estava à procura de uma esposa para seu filho, resolve dar uma enorme festa e a menina deseja muito ir. A madrasta, no entanto, não permite e mesmo após muitas tarefas realizadas pela menina, a promessa de poder ir ao baile não é cumprida.

Mas o desejo da menina é tão forte que ela acaba recebendo ajuda de um passarinho mágico e vai à tão esperada festa e, de tão linda, acaba conquistando o príncipe, porém, sempre tem que deixá-lo para voltar para casa, antes da família, para não ser descoberta, e assim, se sucede por duas noites. Na terceira noite, o esperto príncipe consegue ficar com um sapatinho de ouro da amada e vai a sua busca, encontra-a e leva-a embora consigo em seu cavalo, deixando para traz a madrasta e as irmãs assustadas e pálidas de raiva.

Um fato bem presente no nosso mundo: a morte de um ente querido é o ponto de partida do conto e, assim como ocorre conosco, há um enorme sentimento de perda dos que aqui permanecem; como não se entristecer diante de uma perda tão significativa? Assim se sente a menina da história com a morte da sua mãe, destacando uma característica comum nos contos de fadas que se inicia com a perda do referencial humano do herói da história, deixando-o abandonado a própria sorte e empurrando-o para a vida, em busca de entender e superar os obstáculos que o mundo lhe impõe. Confrontando "a criança honestamente com as dificuldades humanas básicas" (BETTELHEIM, 2007: 15).

Esses obstáculos dão forças à criança a superar a insegurança e o medo da morte e da separação dos pais, mostrando-lhe que há como enfrentar os obstáculos da vida sozinha e sair vitoriosa, sem experimentar mesma angústia de separação novamente.

Uma frase dita pela mãe da criança, antes de morrer, entretanto, chama a atenção: "Filha querida, sê devota e boa: então o bom Deus sempre te valerá, e eu por ti lá do céu estarei perto de ti" (GRIMM, 2003: 3) e a partir deste momento, a menina se vê no dever de exercitar essa devoção.

Ao casar-se novamente, o pai dá início a trajetória de humilhações as quais a menina se submete, como está descrito no trecho a seguir:

- Essa bobalhona não tem de ficar na sala conosco, - diziam elas. - Quem quer comer pão, tem que trabalhar para merecê-lo! Para fora com essa criada!

Elas lhes tomaram os vestidos, deram-lhe um avental cinzento para vestir e tamancos de pau para calçar.

- Olhem só para a bela princesa, como está enfeitada!, -exclamaram elas, e levaram a moça para a cozinha. (GRIMM, 2003: 4).

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Estas novas irmãs vêm exercitar o outro lado da moeda, enquanto a menina é boa, as irmãs são más, mostrando a dualidade, sempre presente nos contos de fadas, entre o bem e o mal, de uma maneira breve e incisiva, na qual o mal é tão presente quanto o bem. Como reforça Bettelheim (2007), "o bem e o mal são corporificados sob a forma de algumas personagens e de suas ações, uma vez que o bem e o mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem" (p.16).

Esta maldade realizada pelas irmãs se corporifica a partir das humilhações constantes e cada vez mais cruéis às quais a menina é exposta, o que justamente caracterizam o bullying, como afirma Olweus (2006) Bullying ou "vitimização" de um modo geral: [ocorre quando] uma pessoa é atacada ou "vitimizada" quando ele ou ela é exposto, repetidamente a ações negativas partidas de uma ou mais pessoas (p. 9). (tradução nossa)

Portanto, o bullying se caracteriza quando há a intenção de denegrir a imagem e auto-estima do outro, quando o objetivo é fazer com que este outro acredite que é menor e que por ser menor, tem menos valor. E como podemos ver, há inúmeras formas de bullying, mas todas apresentam a mesma finalidade e é justamente essa diversidade de formas de se praticar o bullying, o que dificulta sua identificação e o confunde com "brincadeira de mau gosto", termo que, muitas vezes, os pais e professores utilizam para reduzir a gravidade dessa ação (BEAUDOIN e TAYLOR, 2006).

Retomando a subserviência da menina para com a madrasta e as irmãs, há uma reflexão importante a ser feita. Segundo Olweus (2006), as pessoas que são escolhidas pelos bullies, (palavra ainda sem tradução literal para o português, mas que se assemelha ao termo "valentão") geralmente demonstram ser tímidas, são mais caladas e reclusas, não se socializando abertamente com as outras pessoas. São essas as características que atraem os bullies, exatamente por essas pessoas agüentarem caladas as mais terríveis agressões, não tendo coragem de denunciar seus agressores. Esta atitude, além de favorecer a continuidade das agressões, vai, aos poucos, refletindo sobre a própria conduta da vítima, que passa a acreditar que merece todas as humilhações sofridas.

Na história "A Gata Borralheira" retrata bem esta aceitação por parte da menina, que de nada reclama, permanecendo devota e boa, mesmo diante de atitudes tão vis. Há, portanto, uma construção distorcida da identidade da personagem sobre si mesma, na medida em que se acostuma a condição imposta por outros, caracterizando-se como uma típica vítima, isto porque nossa identidade se expressa pela maneira como agimos e reagimos ao que está ao nosso redor (CASASSUS, 2009).

Observe o trecho destacado a seguir:

Lá ela tinha de fazer serviços pesados desde a manhã até a noite, levantar-se antes do amanhecer, carregar água, acender o fogo, cozinhar e lavar. E ainda por cima as irmãs lhe causavam toda a sorte de desgostos, zombavam dela e esparramavam as ervilhas e lentilhas na cinza do borralho, para que ela tivesse que catá-las e separá-las de novo. À noite, cansada de trabalhar, ela não tinha cama, mas tinha que se deitar nas cinzas ao lado do fogão. E porque ela, por causa disso, parecia sempre empoeirada e suja, elas a chamavam de Gata Borralheira (GRIMM, 2003: 4).

Como podemos notar, a menina sofria diversos ataques de bullying desde a obrigação em realizar atividades pesadas, copiosamente, sem receber qualquer tipo

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de ajuda, até agressões verbais que culminaram no apelido que intitula a história, "Gata Borralheira".

A mudança de postura da menina é percebida no momento em que ela realmente tem um desejo seu, que gostaria de realizar: ir ao baile oferecido pelo rei, pois, apesar de obedecer as ordens das irmãs, ela começa a mostrar sua voz, ainda que timidamente. Como relata esta passagem da narrativa, "Gata Borralheira obedeceu, mas chorou, porque também gostaria de ir ao baile, e pediu à madrasta que a deixasse ir" (GRIMM, 2003: 8), a passividade vai dando lugar à utilização de meios que a ajudem a alcançar o seu objetivo.

Mais uma vez o bullying é praticado com a personagem, agora pela madrasta, que, frente às súplicas da menina, faz uso da sua autoridade para impor condições à ida desta ao baile, acreditando que enteada nunca conseguiria realizar as tarefas; contudo, apesar das condições terem sido alcançadas pela menina, não resultaram no cumprimento da promessa, já que ao final de muito trabalho, ela escuta: - Nada disso vai te adiantar; não virás conosco porque não tens vestido e não sabes dançar; nós ficaríamos com vergonha de ti (GRIMM, 2003: 10), demonstrando total falta de justiça por parte do agressor.

Esta tendência a fazer uso da autoridade ou da força para intimidar o outro é uma característica comum aos bullies, que se distinguem pela impulsividade e uma forte necessidade de dominar o outro e por uma visão relativamente positiva de si mesmos, isto porque, mesmo sem demonstrar, eles também são ansiosos e inseguros e, por isso, estão sempre buscando reafirmar sua superioridade. É comum, assim como ocorre durante todo conto analisado, que os bullies obriguem suas vítimas a realizarem os mais diversos tipos de tarefas que os satisfaçam pessoalmente, assim como a exigência de coisas de valor, reforçando o seu poder (FANTE e PEDRA, 2008), como quando, na história, as irmãs tomam da menina todos os seus belos vestidos (GRIMM, 2003).

Neste momento, surge um questionamento: por que a omissão do pai? É evidente, na história, que o pai, não apenas se omite como reforça o bullying sofrido pela filha, ao também referir-se a ela pelo apelido, como podemos destacar na seguinte passagem: "E tu, Gata Borralheira - disse ele - o que queres ganhar?". Geralmente, a conduta dos pais, não é o reforço do bullying, como está apresentado no conto, mas sim uma falta de observação dos filhos, ou seja, eles não percebem o que está se passando e, simplesmente, acreditam que tudo está bem, já que, como discutimos, as vítimas não costumam falar sobre as agressões sofridas e, portanto, não delatam seus agressores.

Felizmente, transpondo as barreiras impostas pelo pai, madrasta e irmãs, a menina dá o primeiro impulso para um final diferente das milhares de vítimas que sofrem bullying no mundo real. Ela se veste de coragem com a ajuda do passarinho, que nesta história representa o elemento mágico, elemento este, sempre presente nos contos de fadas, e que vem com o objetivo de auxiliar o herói a superar os obstáculos e alcançar seus desejos.

Então, vestida com lindo traje, a menina adentra a festa e encanta o príncipe, não apenas por sua beleza, mas por demonstrar uma liberdade que antes não existia, por enfrentar seus medos, por deixar de lado a subserviência sem limite, por ouvir suas próprias vontades. Sendo, sem dúvida, um surpreendente desfecho pela superação que representa.

Então ela lavou as mãos e o rosto, apareceu e curvou-se diante do filho do rei, que lhe estendeu o sapatinho de ouro. Aí ela sentou-se sobre um banquinho, tirou o pé

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do pesado tamanco de madeira e enfiou-o no sapatinho, que se adaptou com perfeição. E quando ela se levantou, e o príncipe a fitou no rosto, reconheceu a bela moça que dançara com ele, e exclamou: - Está é a noiva verdadeira (GRIMM, 2003: 22-23).

Como terminam a madrasta e as duas irmãs? Tipicamente como termina o mal nos contos de fadas: vencido. As invejosas irmãs não tiveram acesso a riqueza e o prestígio tão desejados, reforçando a convicção de que o crime não compensa. Esta é a razão pela qual, nas histórias de fadas, as pessoas más nunca triunfam.

Uma possibilidade de mudança

Como vimos, a literatura abre um mar de possibilidades de identificação do leitor, que dá vida ao livro, no instante em que inicia sua leitura, tornando-se, portanto, um co-autor da história. Isto permite ao leitor vivenciar uma experiência pessoal e intransferível ao entrar em contato com o mundo do imaginário. É possível que haja uma identificação com a personagem principal da história ou com os demais personagens, já que isso dependerá da maneira como ele irá significar a história.

A história "A Gata Borralheira", assim como os demais contos presentes na literatura, permite uma discussão mais aprofundada sobre os conflitos humanos, ao privilegiar aspectos problemáticos que dão ao leitor a possibilidade de refletir sobre a temática implicitamente discutida. Isto nos mostra claramente a importância do trabalho com os contos de fadas junto às crianças, isso porque, embora a história tenha sido escrita há muitos anos, continua sendo atual e significativa.

Não foi intenção dos irmãos Grimm escreverem um conto que permitisse uma reflexão sobre o bullying, afinal, este é um problema que só hoje ganhou o reconhecimento como desvio de comportamento (na verdade o problema já existia tanto é que existe o conto), mas a riqueza do enredo, da sua linguagem oferece condições para que o conto seja analisado sobre esta ótica e permita um crescimento e amadurecimento do leitor, na medida em que o desequilibra e o faz refletir sobre sua própria vida.

É este caráter realista que fundamenta a literatura, que oferece ao leitor a possibilidade de fazer inter-relações com a sua vida, a partir das metáforas presentes no texto. Permitindo ao leitor, que sofre bullying ou que são testemunhas do fenômeno, além da identificação com a personagem, vislumbrarem a esperança de mudança da situação, assim como fez a menina da história.

Todos nós temos inquietações durante toda a vida que precisam ser resolvidas, a literatura, sem dúvida é uma arte que está em constante diálogo com a vida, já que é criada a partir da realidade e, exatamente, por isso, nos abre as portas para que, por nós mesmos, consigamos resolver nossos problemas mais íntimos.

REFERÊNCIAS

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__________. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura crítica na sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

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