A Presença Chinesa Em África, Angola

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Negócios Estrangeiros . 10 Fevereiro de 2007 56 A Presença Chinesa em África: o Caso de Angola 2006 É, NA tradição chinesa, o Ano do Cão. A ele se associam características como a amizade, a atenção, o desvelo, a preocupação e a lealdade. Não sei se são traços muito consentâneos com o actual estado das relações internacionais ou mesmo se devem ser usados neste âmbito. Mas a verdade é que Fevereiro de 2006 pode ter representado um ponto de viragem nas relações entre Luanda e Pequim – Angola tornou-se o maior fornecedor mundial de petróleo da China, ultrapassando, pela primeira vez, a Arábia Saudita e vendendo, nesse mês, 2.12 milhões de toneladas de crude, contra 1.98 milhões daquele país do Golfo. O futuro próximo dirá se esta tendência se mantém ou se se esvai mas, por ora, parece que a China terá atingido um objectivo maior da sua política externa. Isto acontece na altura em que o Governo chinês instituiu 2006 como o “Ano de África”. Interessa-me nesta reflexão tentar perceber que desígnios orientam Pequim e Luanda, tanto do ponto de vista táctico (ou seja, num plano imediato), como estraté- gico (ou seja, numa óptica de mais longo prazo, que importa enquadrar teoricamente e perceber à luz de conceitos mais gerais que possam ajudar a iluminar as opções de cada um dos dois países). Tentarei, por isso, partir de um conjunto de factos, que exporei com algum detalhe, para depois proceder a uma leitura crítica dos mesmos através da ajuda de determinados paradigmas conceptuais. A Cruzada chinesa pela energia: a opção por uma abordagem realista O Ministro Francês da Indústria, François Loos, dizia em declarações ao “International Herald Tribune” que “desde o incidente russo [de interrupção de gás à Ucrânia], a segurança energética tornou-se a grande prioridade política” 1 . Justiça seja feita, ela é, desde antes disso, uma prioridade chinesa. Duarte Bué Alves * A Presença Chinesa em África: o Caso de Angola * Diplomata. Actualmente colocado na Embaixada de Portugal em Bruxelas e colocado na Embaixada de Portugal em Luanda entre 2004 e 2006. O texto reflecte exclusivamente as opiniões pessoais do Autor. Agradeço os comentários, sugestões e as impressões trocadas com o Senhor Embaixador Francisco Xavier Esteves e com o Senhor Professor Doutor Armando Marques Guedes, bem como com – cito por ordem alfabética – Assunção Cristas, Eduardo Lobo, Luís Cabaço, Luís Gaspar da Silva, Pedro Costa Pereira, Pedro Leite de Faria e Tiago Machado da Graça. 1 Apud “Courrier Internacional”, 21 de Abril de 2006, n.º 55, página 6.

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A Presença Chinesa Em África. O caso interessante de Angola

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    a 2006 , NA tradio chinesa, o Ano do Co. A ele se associam caractersticas como a amizade, a

    ateno, o desvelo, a preocupao e a lealdade. No sei se so traos muito consentneos

    com o actual estado das relaes internacionais ou mesmo se devem ser usados neste

    mbito. Mas a verdade que Fevereiro de 2006 pode ter representado um ponto de

    viragem nas relaes entre Luanda e Pequim Angola tornou-se o maior fornecedor

    mundial de petrleo da China, ultrapassando, pela primeira vez, a Arbia Saudita e

    vendendo, nesse ms, 2.12 milhes de toneladas de crude, contra 1.98 milhes daquele

    pas do Golfo. O futuro prximo dir se esta tendncia se mantm ou se se esvai mas,

    por ora, parece que a China ter atingido um objectivo maior da sua poltica externa.

    Isto acontece na altura em que o Governo chins instituiu 2006 como o Ano de frica.

    Interessa-me nesta reflexo tentar perceber que desgnios orientam Pequim e

    Luanda, tanto do ponto de vista tctico (ou seja, num plano imediato), como estrat-

    gico (ou seja, numa ptica de mais longo prazo, que importa enquadrar teoricamente

    e perceber luz de conceitos mais gerais que possam ajudar a iluminar as opes de

    cada um dos dois pases). Tentarei, por isso, partir de um conjunto de factos, que

    exporei com algum detalhe, para depois proceder a uma leitura crtica dos mesmos

    atravs da ajuda de determinados paradigmas conceptuais.

    A Cruzada chinesa pela energia: a opo por uma abordagem realista O Ministro Francsda Indstria, Franois Loos, dizia em declaraes ao International Herald Tribune que

    desde o incidente russo [de interrupo de gs Ucrnia], a segurana energtica

    tornou-se a grande prioridade poltica1. Justia seja feita, ela , desde antes disso,

    uma prioridade chinesa.

    Duarte Bu Alves*

    A Presena Chinesa em frica: o Caso de Angola

    * Diplomata. Actualmente colocado na Embaixada de Portugal em Bruxelas e colocado na Embaixada de

    Portugal em Luanda entre 2004 e 2006. O texto reflecte exclusivamente as opinies pessoais do Autor.

    Agradeo os comentrios, sugestes e as impresses trocadas com o Senhor Embaixador Francisco

    Xavier Esteves e com o Senhor Professor Doutor Armando Marques Guedes, bem como com cito por

    ordem alfabtica Assuno Cristas, Eduardo Lobo, Lus Cabao, Lus Gaspar da Silva, Pedro Costa

    Pereira, Pedro Leite de Faria e Tiago Machado da Graa.1 Apud Courrier Internacional, 21 de Abril de 2006, n. 55, pgina 6.

  • So conhecidos os nmeros de crescimento da economia chinesa nos ltimos

    anos e as projeces para o futuro prximo2. isso que torna a China o segundo

    maior consumidor mundial de petrleo (depois dos EUA, tendo ultrapassado o

    Japo em 2003), tornando-a tambm responsvel por quase 40% da procura de

    petrleo nos mercados mundiais. At 1993 a China exportava petrleo, mas a partir

    dessa data a produo prpria tornou-se insuficiente para dar resposta s necessidades

    e hoje importa cerca de 40% do petrleo que consome, prevendo-se que, nas

    prximas dcadas, este nmero continue a subir.

    Do total de petrleo consumido na China, 29% comprado nos mercados

    africanos Nigria, Angola, Sudo, Guin Equatorial e Gabo so os pases que

    representam a maior fatia. Com esta dependncia crescente dos mercados energ-

    ticos africanos, a poltica externa chinesa no ficou inclume e sofreu os necessrios

    reajustamentos. A China continua a comprar petrleo no Mdio Oriente (Arbia

    Saudita e Iro) mas a instabilidade crnica da regio obrigou Pequim, por razes de

    segurana, a diversificar as fontes de abastecimento.

    No comportamento chins, podemos descortinar uma preocupao clara: o

    reforo do poder. O seu comportamento motivado por um animus dominandi3 que

    encontra na figura do Estado o elemento central e que o impele a actuar, de modo

    concertado e racional, de modo a procurar a segurana (desde logo energtica) e a

    sobrevivncia. O que motiva a liderana chinesa a prossecuo de determinados

    interesses sustentar o crescimento econmico acelerado, em primeira linha que

    a empurram para uma aco concreta capaz de lhes dar resposta. Na linha da escola

    realista das relaes internacionais, o que o decisor se pergunta como que esta

    poltica influencia o poder do Estado?, despindo das suas preocupaes quaisquer

    consideraes de outro carcter. Para alm de posicionamentos ou proclamaes

    ideolgicas que agora aqui no nos interessam particularmente, interessante notar

    a colagem chinesa s teses realistas (seno mesmo ao neo-realismo ou realismo

    estruturalista) que tm as noes de poder e de interesse como absolutamente

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    2 Um pequeno exemplo que tomo de emprstimo a Aymeric Chauprade: admitindo que metade da

    populao chinesa atinge um nvel de desenvolvimento equiparado ao que se vive no ocidente, o

    mercado interno chins ser equivalente NAFTA e UE a 27 cfr. Aymeric Chauprade, Gopolitique

    Constantes et Changements dans lhistoire, Ed. Ellipses, Paris, 2003, pgina 660.3 A expresso de Philippe Braillard, Teoria das Relaes Internacionais, Edio da Fundao Calouste Gulbenkian,

    Lisboa, 1990, pgina 115.

  • pivotais de toda e qualquer aco. A centralidade estratgica do conceito de poder

    poder como objectivo, como medida de influncia, como garante de vitria, como

    sustentculo da segurana e como mecanismo de controlo afasta a China contem-

    pornea das teorias marxistas que explicam as relaes entre Estados como fenmenos

    histricos condicionados por uma superestrutura dependente de uma estrutura

    scio-econmica4. J quando Nikita Kruchtchev dizia que a competio interna-

    cional era sobretudo econmica e ideolgica, Mao se tinha distanciado do lder

    sovitico, continuando a pugnar pela necessidade de violncia e de ajuda s foras

    revolucionrias. Autores h que falam de um conceito de realismo marxista que

    alia o interesse nacional e o internacionalismo proletrio5.

    Ao entrar, econmica e comercialmente, em novos mercados emergentes, a

    China alarga a sua esfera de influncia poltica para zonas no tradicionais ou onde

    a sua influncia no era habitual. A posiciona-se para disputar influncia com

    actores mais tradicionais, como sejam os EUA ou os Estados europeus, antigas

    potncias coloniais. Trata-se, no fundo, de procurar um equilbrio de poder que

    na linha da doutrina do balance of power impea a emergncia de poderes dominantes

    que, com a sua conduta, abafem o desenvolvimento de outras relaes de poder.

    Do ponto de vista ocidental, a questo assume importncia tal que Robert Cooper

    (ex-assessor diplomtico de Tony Blair e actualmente Director Poltico do Conselho)

    equipara com algum exagero, convenhamos a ascenso da China, prolife-

    rao nuclear, ao aquecimento global, ao terrorismo e aos Estados falhados como as

    principais ameaas contemporneas ao mundo ocidental6.

    A Repblica Popular da China chegou a frica com um conjunto no

    despiciendo de vantagens para oferecer e a gesto cuidadosa desse pacote que tem

    permitido aos chineses desenvolver uma poltica que lhes tem permitido entrar nos

    mercados africanos. Do ponto de vista formal, Pequim impe apenas uma condio:

    que o Estado interlocutor adopte a poltica da uma s China e que, por isso, no

    reconhea Taiwan.

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    4 Philippe Braillard, ob. cit., pgina 123.5 Adriano Moreira, Teoria das Relaes Internacionais, 2. edio, Almedina, Coimbra, 1997, pgina 111.6 Robert Cooper, War and Democracy, in Prospect, Junho de 2006, pgina 42. Cito o excerto: Which of the following

    is the greatest threat: the spread of nuclear weapons, the rise of China, global warming, catastrophic terrorism or the failure of the

    state system in Africa and the Middle-East? () These risks are difficult to calculate, because they are new, they concern threats

    that are beyond calculation and they are less visible than armies massing on frontiers.

  • Em primeiro lugar, a China oferece garantias de longo prazo. No pratica uma

    poltica de contentor mas instala-se para ficar, celebra contratos de longo prazo,

    permitindo aos dirigentes africanos encontrar, em muitos casos, um cliente seguro

    para os prximos tempos. A China garante o petrleo de que precisa e os pases

    africanos garantem um mercado de escoamento com os correlativos dividendos. Por

    outro lado, a procura intensa de matrias-primas exerce uma presso sobre os

    preos. Cada vez que o barril de petrleo aumenta, aumentam tambm as receitas e

    cresce a folga oramental dos pases africanos produtores7.

    Alm disso e este , porventura, um dos maiores trunfos a China no faz

    exigncias polticas draconianas: os contratos de explorao petrolfera e os que lhe

    vm associados no contm clusulas que diramos de inspirao Bretton Woods

    exigindo transparncia poltica e de gesto de receitas, no pedem reformas

    econmicas, no pretendem escrutinar o respeito pelos direitos humanos, nem

    fazem depender os programas do cumprimento de ditames de impacto ambiental8.

    A poltica externa gizada a partir de Pequim obedece a este desgnio e curva-se

    perante a conjuntura energtica9, redefinindo alianas geopolticas, que no s

    dem resposta s suas necessidades energticas mas tambm que a fortaleam no

    contexto poltico global. Em 2004, a China tinha 1500 soldados em operaes de

    peacekeeping em vrias misses das Naes Unidas em frica. Quando, em 1997, os

    Estados Unidos da Amrica impuseram sanes comerciais ao Sudo, proibindo as

    empresas americanas de comprar petrleo sudans, a China de imediato aproveitou

    essa quota de mercado. Anos mais tarde, em Setembro de 2004, quando o Conselho

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    7 O oramento de Estado de Angola para 2006, por exemplo, foi feito com base numa previso de 45 USD

    por barril. No momento em que escrevo Julho de 2006 est a 75 USD por barril.8 David Zweig e Bi Jianhai falam em little room for morality em Chinas Global Hunt for Economy, in Foreign Affairs,

    Setembro/Outubro 2005. O Presidente do Gabo, Omar Bongo, explica que se trata de respeito

    mtuo e compreenso pela diversidade. A ausncia desta preocupao tambm sintomtica da

    abordagem realista chinesa. Alis, e mesmo para alm do caso chins, os realistas so muitas vezes alvos

    de crticas por no tomarem em considerao esta dimenso moral. Andrew J. Bacevich escreveu no

    The Boston Globe, a 6 de Novembro de 2005, que the commonly lodged against realists is that they disregard moral

    issues altogether.9 Escreve Federico Rampini: Tal como acontecera com a Inglaterra do sculo XIX e os Estados Unidos no

    sculo XX, a transformao da China numa superpotncia industrial cria novas formas de dependncia

    e novas relaes com o resto do mundo: da, portanto, a necessidade de garantir a estabilidade e

    segurana em reas politicamente distantes. Federico Rampini, O sculo chins, Editorial Presena,

    Lisboa, 2006, pgina 202.

  • de Segurana das Naes Unidas discutiu a aprovao de sanes contra Cartum por

    apoio s milcias Janjaweed em Darfur, a China fez constar que nunca aprovaria tal

    deciso, forando a adopo de linguagem fraca no wording onusiano (consider

    taking additional measures e mesmo assim com a absteno chinesa)10. Hoje Pequim

    absorve 50% da produo petrolfera sudanesa, representando este mercado africano

    6% do consumo chins. 4 000 soldados chineses esto no Sudo para assegurar a

    defesa dos investimentos chineses no oleoduto que transporta o petrleo para o Mar

    Vermelho.

    Finalmente, a China representa o que Dan Zhou chama o one stop shop11.

    Quando os chineses aterram nas capitais africanas, no trazem debaixo do brao

    apenas um punhado de barris para encher e levar petrleo trazem investimento

    e oportunidades de reconstruo12, negcios, linhas de crdito, perdo de dvida

    (10 mil milhes de USD nos ltimos anos), know-how em matrias tecnolgicas,

    comrcio, mo de obra especializada e a garantia de um amigo atento com assento

    permanente no Conselho de Segurana das Naes Unidas. No pouco.

    neste quadro que medraram as relaes entre a Repblica Popular da China e

    os pases do continente africano s nos anos 90 as trocas comerciais cresceram

    700% e de 2002 para 2003 o aumento foi de 18.5 mil milhes de USD13. A partir

    de 2000, este fluxo, j de si intenso, conheceu um enquadramento institucional

    especfico com a criao do Frum de Cooperao Sino-Africano com o objectivo

    de promover o comrcio e o investimento com 44 pases do continente, incluindo

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    10 A situao semelhante com o que se passa hoje com o Iro. A propsito do Sudo o Vice-Ministro dos

    Negcios Estrangeiros Zhou Wenzhong foi clarssimo: Negcios so negcios. A situao no Sudo

    um assunto interno. Entrevista ao New York Times, 8 de Agosto de 2004.11 Apud Jon D. Markman em www.moneycentral.msn.com/content/P149330.asp.12 Alguns exemplos: na Nigria a China est a reconstruir a rede ferroviria; no Ruanda e Camares est a

    construir estradas; na Zmbia explora minas de cobre; na Guin Equatorial domina a indstria

    madeireira; na Etipia, Mauritnia, Nger e Mali ocupa-se de explorao petrolfera; em Marrocos

    constri barragens; na Arglia constri um aeroporto e uma central nuclear; na Costa do Marfim

    planeou e edificou a nova cidade administrativa; no Lesoto ocupa posio importante no sector

    tercirio; no Qunia esteve envolvida na reconstruo da estrada Mombaa-Nairobi.13 Resta saber se est superado o fenmeno que Henry Kissinger identificou na poltica externa chinesa at

    ao sculo XIX: A noo de igualdade soberana no existia na China; os estrangeiros eram considerados

    brbaros e relegados para uma relao tributria. Henry Kissinger, Diplomacia, Gradiva, Lisboa, 1996,

    pgina 18.

  • Angola14. Pouco depois, o Presidente Hu Jintao e o Primeiro-Ministro Wen Jiabao

    fizeram um priplo africano. Em Novembro de 2006, realizar-se-, em Pequim, a

    Cimeira do Frum que dever reunir os Chefes de Estado e de Governo da China e

    dos pases africanos.

    O petrleo e a economia angolana Depois da descoberta das primeiras jazidas de petrleo

    em Angola, na madrugada de 13 de Abril de 1955, em Benfica, (arredores de Luanda)

    foram precisos menos de 20 anos para que a indstria petrolfera se tornasse a maior

    fonte de receitas. Em 1974, tinha j ultrapassado o caf que ocupava, h dcadas, a

    primeira posio15.

    Hoje, a extraco de petrleo de 1.4 milhes de barris por dia (era de 136 000

    barris em 1980), prevendo-se que, at ao final da dcada, o nmero possa subir at

    aos 2.2 milhes (devido ao aumento da eficincia e ao surgimento de novos

    blocos). Estes nmeros fazem de Angola o segundo maior produtor de petrleo na

    frica subsahariana, e no de excluir que Luanda possa ultrapassar a Nigria nos

    prximos anos. No se sabe com rigor, quais podero ser as reservas petrolferas

    angolanas, mas aliando as reservas comprovadas s provveis, o Ministrio dos

    Petrleos aponta para cerca de 12 300 milhes de barris. Ao actual ritmo de

    extraco, isto significa que Angola poder dedicar-se intensivamente ao petrleo

    durante cerca de mais 40 anos16.

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    14 Preocupada com a penetrao no mercado africano lusfono, a China foi a grande impulsionadora da

    criao do Frum para a Cooperao Econmica e Comercial entre a China e os Pases de Lngua

    Portuguesa, sedeado em Macau e fundado nesta cidade em Outubro de 2003. A opo por Macau visa

    aprofundar o papel desta cidade como plataforma negocial, pela ligao que tem aos mundos lusfono

    e sinfolo. Dos Estados da CPLP, a China s no est presente em S. Tom e Prncipe uma vez que este

    pas preferiu estabelecer relaes diplomticas com Taiwan.15 As primeiras tentativas de explorao de petrleo em Angola remontam ao incio do sculo XX. Desde

    1910 que a firma Canha & Formigal explorava, sem sucesso, hidrocarbonetos na Bacia do Cuanza. A

    partir de 1920, uma empresa associada da Sinclair Oil dedicou-se mesma actividade na Quissama.

    Mas foi a partir do fim da 2. Guerra Mundial, quando despontou a procura escala global, que a

    actividade se intensificou. Destacou-se a Petrofina, em parceria com a Carbonang que era detentora

    exclusiva dos direitos de concesso.16 Dados de Tony Hodges, Angola do afro-estalinismo ao capitalismo selvagem, Ed. Principia, Cascais, 2002, pgina

    192. So dados fluidos e h quem fale em reservas que podero oscilar entre 8 a 12 mil milhes de

    barris. Estes nmeros podero aumentar ainda mais se se iniciar a explorao em guas ultraprofundas.

    Angola ocupa, pelos dados da Agncia Internacional de Energia, o 18. lugar no ranking mundial das

    reservas.

  • A Sonangol tem vindo a desempenhar, desde a sua fundao, em 1976, um

    papel essencial no jogo da indstria petrolfera angolana. Em 1978, altura da pro-

    mulgao da primeira Lei do Petrleo, foi-lhe acometida a tarefa de ser a concessio-

    nria exclusiva dos recursos petrolferos. Hoje, a Sonangol um universo vasto com

    mltiplos contratos de parceria com outras empresas petrolferas, quer sob a forma

    de partilha de produo, quer em contratos de associao em participao. Desde

    incio dos anos 90 que est constituda como uma holding com diversas actividades,

    desde a pesquisa produo. Participa tambm em mltiplas outras empresas, como

    o Banco Africano de Investimentos, a Sonair (uma companhia area) e a Sonangalp

    (em parceria com a GALP para comercializao de produtos refinados). Numa

    anlise SWOT, diramos que a fraqueza maior da Sonangol ao nvel da refinao.

    Na verdade, compreende-se mal que um pas que extrai 1.4 milhes de barris por

    dia s refine 65 000 barris, na refinaria de Luanda, que propriedade da

    TotalFinaElf (e em que a Sonangol tem uma participao minoritria). Fora isso,

    toda a produo exportada em bruto. Uma segunda refinaria, no Lobito, est em

    construo, devendo ficar operacional at finais de 2007 e com uma capacidade de

    240 000 barris por dia.Trata-se de uma parceria entre a Sonangol (70%) e a Sinopec

    Internacional (chinesa, com os restantes 30%)17.

    Hoje, o petrleo est no centro da economia angolana: representa 55% do PIB,

    90.3% das exportaes, 78.6% das receitas fiscais e 80.1% das receitas totais18.

    Compreende-se, por isso, que a economia angolana esteja sujeita s permanentes

    volatibilidades do mercado petrolfero mas que encare o futuro com optimismo se

    atentarmos tendncia que se tem verificado nos preos do barril do petrleo. A

    pouca elasticidade da procura petrolfera uma garantia com que Angola pode

    contar e mesmo que os preos do barril do petrleo venham a baixar, isso pode ser

    facilmente compensado pelo aumento da produo que se registar nos prximos

    anos.

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    17 A refinaria do Lobito assume uma importncia crucial para a economia angolana, tanto mais que a frica

    do Sul projecta a construo de trs novas refinarias, o que lhe permitir aumentar a capacidade de

    refinao dos actuais 700 000 barris por dia para 1 600 000 barris por dia. Este mercado emergente

    (que tem por objectivo atrair petrleo dos Emiratos rabes Unidos e da Arglia) pode constituir uma

    ameaa quota de mercado que a refinaria do Lobito disputar nos mercados internacionais.18 Dados cruzados do FMI, 2002, citados por Tony Hodges, ob. cit., pgina 203, e do Ministrio das Finanas

    de Angola, 2006.

  • O petrleo serve e serviu em Angola desgnios polticos durante o perodo da

    guerra civil era a principal fonte de receitas do Governo/MPLA (at porque a

    economia no petrolfera estava paralisada). Se aos 14.4% de despesas oramentais

    com guerra e segurana (s entre 1997 e 2000), somarmos as despesas no

    classificadas, ento possvel que Angola tenha gasto mais de 20% das suas receitas

    no esforo de guerra19. O petrleo permitiu-lhe entre outros factores consolidar

    uma posio importante como potncia regional (veja-se a interveno nos Congos

    no final dos anos 9020, sinal a comprovar que Angola dispe, ainda hoje, da maior

    capacidade de interveno militar na regio), lanando bases para uma expanso

    consolidada de determinados interesses geoestratgicos que tm vindo a fazer com

    que Luanda seja uma voz escutada na regio, mesmo se tem de enfrentar uma

    presso francfona (a norte) e anglfona (a sul) que no lhe so propriamente

    favorveis. Um objectivo maior da poltica externa de Angola a sua afirmao e

    credibilizao no contexto regional e, para isso, o petrleo contribui de forma

    decisiva, mesmo quando algumas ambies parecem de difcil concretizao, como

    a candidatura a um lugar de assento permanente no Conselho de Segurana das

    Naes Unidas21.

    Mas nem tudo so vantagens no sector petrolfero angolano. A excessiva concen-

    trao no petrleo (e nos diamantes), sectores de lucro fcil, tem contribudo para

    que a economia no mineral continue a enfrentar dificuldades e o seu atrofismo seja

    visto por alguns como uma causa importante para os elevados nveis de pobreza que

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    19 Segundo dados do PNUD, no mesmo perodo, os pases em desenvolvimento tero gasto cerca de 2.4%

    em despesas militares.20 Escreveu Joo de Matos, Chefe de Estado-Maior General das Foras Armadas entre 1992 e 2001: Estas

    intervenes foram o balo de oxignio que arrancou as Foras Armadas de Angola ao estado

    pr-comatoso em que se encontravam. () Vencemos as guerras dos Congos, em Brazaville sozinhos

    e, em Kinshasa, em coligao com o Uganda e o Ruanda, aliados pontuais, que no chegmos a

    conhecer directamente e com os quais nunca realizmos uma aco coordenada a nvel militar. Angola

    forneceu a maior parte do suporte logstico. Joo de Matos, Retratos de Angola in Poltica Internacional,

    Primavera-Vero de 2002, n. 25, pgina 87.21 Este elemento de afirmao regional no pode ser desligado do mais significativo vizinho angolano que

    continua a marcar parte da agenda: a frica do Sul. Para alm dos resqucios histricos ainda no

    completamente ultrapassados, convir atentar que a frica do Sul responsvel por 2/3 do PIB da

    SADC, o que coloca Luanda numa posio de incomodidade mal disfarada. Ainda que no fechando

    completamente as portas aos mecanismos de integrao regional de que a SADC o exemplo mais

    significativo , Angola no pode aceitar jogar um jogo num tabuleiro onde, manifestamente, ter uma

    posio de subalternidade.

  • ainda subsistem. A articulao do sector petrolfero com outros sectores da economia

    tambm reduzida, o que trava o efeito de alavancamento que seria desejvel. Por

    outro lado, a generalidade das empresas estrangeiras que aqui opera procede ao

    repatriamento dos seus lucros, ao mesmo tempo que importa a generalidade dos bens

    de consumo e de equipamento que do resposta s suas necessidades. Mesmo do

    ponto de vista do mercado de trabalho, o sector petrolfero quase negligencivel:

    em empregos directos, o petrleo emprega pouco mais de 10 000 angolanos (metade

    dos quais na Sonangol), uma vez que a percentagem de expatriados muito alta. A

    estes factores crticos, soma-se o (clssico) problema da desoramentao das receitas

    petrolferas cujos royalties no so contabilizados.

    O drago chins chega a Luanda: que esconde Concedida a indepen-

    dncia aos pases africanos de lngua portuguesa, no demorou muito tempo a que

    a China se apressasse ao respectivo reconhecimento, com excepo de Angola. Na

    verdade, a Guin Bissau foi reconhecida logo em Maro de 1975, S.Tom e Prncipe

    e Moambique em Julho de 197522 e Cabo Verde em Abril de 1976. Angola teve de

    esperar pelo dia 12 de Janeiro de 1983 para estabelecer relaes diplomticas com

    a China. No comeou, por isso, isenta de frices a relao entre Pequim e Luanda,

    talvez porque a China fosse apoiante tradicional de Holden Roberto23, fundador da

    FNLA e do Governo angolano no exlio, em 196224. Tambm preciso ter em conta

    que era um perodo de tenses na relao entre a URSS e a China e Moscovo,

    poca, tinha em Luanda o papel que se conhece25.

    softpowerhardpower

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    22 As relaes diplomticas entre S. Tom e Prncipe e a China foram depois cortadas a 6 de Maio de 1997,

    quando STP reconheceu Taiwan.23 distncia de mais de 40 anos, sabemos hoje que a China tinha prometido a Holden Roberto apoio

    militar, depois de uma fase em que o lder da FNLA esteve prximo de Washington mas em que as

    divergncias comearam a emergir. Explica Witney W. Schneidman que Pequim instrumentalizou

    Holden Roberto julgando que, dando-lhe apoio, o dominaria, podendo facilmente entrar no Congo/

    Kinshasa, onde o lder angolano se movia com facilidade (Confronto em frica Washington e a queda do Imprio

    Colonial Portugus, Ed.Tribuna, 2005, pgina 105). Alm disso, a China tinha uma posio muito reticente

    no que toca a Agostinho Neto, que tinha visitado Pequim em Julho de 1971 mas que foi considerado

    muito russfono.24 Este Governo, registe-se a curiosidade, tinha como Ministro dos Negcios Estrangeiros Jonas Savimbi

    que s saiu da FNLA, para fundar a UNITA, em meados dos anos 60.25 Outro exemplo da divergncia entre China e URSS em frica o Zimbabu, em que Pequim apoiava o

    ZANU de Robert Mugabe contra o russfono ZAPU de Joshua Nkomo. Ainda hoje so constatveis

    as consequncias das relaes entre Pequim e Harare.

  • Mas luz dos nossos dias, isto so pormenores histricos. Hoje entre a Cidade

    Alta de Luanda e o Palcio do Povo em Pequim fala-se a mesma linguagem a dos

    negcios.

    A 22 de Maro de 2004, em Pequim, Angola e a Repblica Popular da China

    assinaram um Acordo que garantia ao primeiro uma linha de crdito de 2 mil

    milhes de dlares concedida pelo banco chins Eximbank. A imprensa angolana

    referiu este acordo como paradigma da cooperao sul-sul, em que no foram

    impostas a Angola quaisquer condies degradantes e onde a China mostra

    compreender as dificuldades de um pas sado da guerra26. Nos termos deste

    Acordo, o Governo chins, ao mesmo tempo que concedeu o crdito, obteve, como

    garantia, crditos resultantes da venda, para a China, de 10 000 barris de petrleo

    por dia. A linha de crdito contempla um perodo de carncia de 5 anos e, depois,

    o reembolso progressivo ao longo de 12 anos. As partes acordaram uma taxa de juro

    indexada LIBOR, acrescida de um spread de 1.5%. Um ano depois, a 16 de Maio de

    2005, o Ministro das Finanas de Angola assinou com o Vice-Presidente do

    Eximbank, Su Zhong, 18 contratos suplementares individuais de crdito, de

    natureza eminentemente comercial, com vista reabilitao e reconstruo de

    infraestruturas27. Nos termos previamente definidos no Acordo de 2004, o capital

    a investir sair da linha de crdito e ter de ser usado em 70% por empresas chinesas

    (e em 30% por empresas angolanas, ainda que subcontratadas s empresas chinesas).

    Em Junho de 2006, o Primeiro-Ministro Wen Jiabao passou pouco mais de 20 horas

    em Luanda, numa visita integrada num priplo por vrios pases africanos. No

    surpreendeu os observadores atentos o anncio da assinatura de um Memorando

    de Entendimento com vista Concesso de um Crdito Adicional de mais 2 mil

    milhes de dlares, a que se somaram 7 contratos individuais de crdito dirigidos

    aos sectores das telecomunicaes e das pescas.

    Se do ponto de vista chins se visa ocupar um espao numa lgica, j referida,

    de balance of power (para alm, naturalmente, de se comprar energia), do ponto de

    vista angolano, a lgica no substancialmente diversa (para alm, naturalmente, de

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    26 Agncia de Notcias de Angola (ANGOP), 25 de Maro de 2004.27 O modelo, tpico de tied aid, que a OCDE tanto vem criticando, nem sequer novo, do ponto de vista da

    engenharia financeira. Depois da 2. Guerra Mundial, o Japo criou uma linha de crdito exportao

    de 5 mil milhes de dlares (naturalmente com o apoio americano) com a Coreia do Sul, a China e

    Taiwan para financiar a reconstruo.

  • se arrecadar receitas resultantes da venda dessa energia). O que Luanda persegue

    o que Quincy Wright chamou bandwagoning28, ou seja, a procura, por parte de Estados

    menos poderosos de parceiros fortes para coligaes mutuamente vantajosas que

    lhes permitam catapultar-se para o patamar que almejam alcanar. Tais Estados

    percebem que o custo de se oporem presena de um parceiro forte ou, pura e

    simplesmente, da inaco, superior aos benefcios que podem advir de uma

    posio de parceria, mesmo correndo o risco de uma eventual subalternidade.

    Quem vive em Angola v, vista desarmada, que os chineses entraram em

    fora. Hoje em dia, ocupam-se, entre outros projectos, da construo da estrada

    Luanda Uge, do apetrechamento de 31 institutos mdicos, 10 hospitais e 10 centros

    de sade um pouco por todo o pas, 15 escolas, irrigao de projectos agrcolas em

    vrias provncias, construo da linha-de-ferro Luanda-Malange, participao em

    parte da reconstruo do caminho-de-ferro de Benguela e reconstruo do edifcio

    do Ministrio das Finanas, que ocupa, imponente (e desgarrado da paisagem),

    o ancestral Largo da Mutamba. Os chineses vem-se pela cidade, trabalham de sol a

    sol, fazem piqueniques na Fazenda da Tentativa, vo ao Mussulo ao Domingo e conse-

    quncia inevitvel os ltimos dois anos viram j despontar restaurantes chineses

    na capital angolana. No h razo para esta dispora ter saudades do chop-suey29. A

    China trouxe para aqui mo-de-obra, quer qualificada (engenheiros, tcnicos), quer

    operria, grupos que vivem em bairros perifricos em condies dbeis (autnticas

    China-towns, porm sem o glamour tnico das que pululam pelas capitais ocidentais),

    que se misturam pouco e que tm salrios muito baixos (fazendo com que a sua

    presena seja altamente concorrencial face a empresas de construo ocidentais que

    aqui se encontram). Uma crtica que dirigida a este sistema que o uso intensivo

    de mo-de-obra chinesa no s no chega a criar empregos para angolanos como

    no propicia transferncia de know-how30.

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    28 O termo foi criado por Quincy Wright em A Study of War (1942) e, posteriormente, retomado por

    Kenneth Waltz em Theory of International Politics (1979). Tanto quanto sei, no existe uma traduo do

    termo em portugus. Aymeric Chauprade, ob.cit., pgina 55, opta, em francs, por traduzir bandwagoning

    por tendncia centrpeta, em oposio a balancing ou tendncia centrfuga. Neste sentido, e

    aplicando ao que aqui nos ocupa, enquanto Angola faz bandwagoning, a China faz balancing.29 No h dados oficiais do nmero de chineses em Angola, mas estimativas apontam para 30 000 e com

    tendncia para crescer. Como elemento comparativo, refira-se que os portugueses so 47 000.30 Uma curiosidade a demonstrar a importncia da comunidade chinesa em Angola: a TAAG (linhas areas

    angolanas) est a renovar a sua frota com novos avies e, com base nisso, pretende abrir uma linha

    directa Luanda-Pequim.

  • Ou seja: para alm dos instrumentos de hardpower, a China aposta na sua presena

    com recurso ao softpower31. Ao celebrar contratos que prevem a entrada de trabalha-

    dores chineses em larga escala, pretende-se uma projeco de poder que passa por

    promover e disseminar valores culturais, procurando-se uma ideologizao cujo

    alcance no possvel, por agora, determinar com exactido. Joseph S. Nye Jr.

    explica que h trs maneiras de adquirir poder: a primeira o recurso fora

    (sticks); a segunda so os instrumentos financeiros (carrots) e a terceira a atraco

    cultural ou doutrinao ideolgica de modo a que o parceiro assimile, progressiva-

    mente, modos de estar, viver e sentir. Para Nye, o softpower uses a different type of currency

    not force, not money to engender cooperation. It uses an attraction to shared values, and the justness and

    duty of contributing to the achievement of those values32, 33. Lanando, por esta via, as bases de

    uma presena a longo prazo, consegue-se, previsivelmente, um efeito de spill-over ou

    derramamento que consubstancia o que podemos chamar, partindo de um conceito

    clssico, de sino-funcionalismo.

    Lanada a primeira linha de crdito, o Governo chins no deixou de acom-

    panhar muito de perto a sua execuo e, em Fevereiro de 2005, o Vice-Primeiro

    Ministro Zeng Peiyan fez uma visita a Luanda onde assinou um conjunto de

    instrumentos polticos bilaterais, com destaque para os Acordos celebrados com os

    Ministrios do Petrleo e da Geologia e Minas. Luanda aceitou tambm uma

    presena chinesa na explorao da nova refinaria do Lobito que est em construo

    e as duas capitais apadrinharam um acordo comercial entre a chinesa ZTE e a

    angolana Mundostartel, no domnio das telecomunicaes (um investimento de

    400 milhes de dlares).

    Sendo a procura energtica o factor que mais condiciona a aproximao chinesa

    ao mercado angolano, compreender-se- que a China no se limite a comprar

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    31 Uso os termos hardpower e softpower na acepo que lhes foi dada por Joseph S. Nye Jr. em Bound to Lead:

    The changing nature of American Power (1990). Em 1995, e dado o sucesso da primeira obra, o Autor

    escreveu Soft Power:The means to success in World Politics. Para Nye, hardpower entendido como o recurso a

    instrumentos fortes, por vezes de carcter coercivo (maxime, poderio militar mas tambm instrumentos

    financeiros em larga escala) e softpower como instrumentos de influncia cultural ou ideolgica.32 Conferncia na Harvard Businnes School a 2 de Agosto de 2004. O texto integral pode ser consultada em

    www.hbswk.hbs.edu/archive/4290.html .33 Outro exemplo de uma forma de softpower, porventura muito mais subtil e desta vez em outro pas

    africano, o Zimbabu: em Maro de 2006, Mugabe anunciou a criao de um national security council

    composto por vrios organismos estaduais, entre os quais avulta a central inteligence organisation. A

    formao dos seus agentes est a ser feita pela China.

  • petrleo mas que ambicione envolver-se directamente na indstria extractiva. Por

    isso, Sinopec/Sonangol Internacional (SSI), parceria sino-angolana, concorreu

    concesso das reas remanescentes nos Blocos 17 e 18 (off-shore, ao largo da provn-

    cia do Zaire), tendo logrado alcanar 27.5% do primeiro bloco e 40% do segundo.

    Estes blocos tm reservas confirmadas de mil milhes (bloco 17) e 700 milhes de

    barris (bloco 18). A SSI teve o sustentculo financeiro de um consrcio de cinco

    bancos chineses (entre os quais o Eximbank) e oito bancos europeus.

    Em conferncia de imprensa dada em Luanda, no mesmo dia em que daqui

    partia uma equipa do FMI, o Ministro das Finanas, Jos Pedro Morais, questionado

    sobre se o interesse de Angola por um acordo com o FMI no estaria a esmorecer

    perante o afluxo de capitais chineses, respondeu: o que Angola est a fazer o que

    faz qualquer pas soberano. E foi mais longe: o Ministro, ex-quadro do Banco

    Mundial, acrescentou que no cabe ao FMI avaliar as relaes de cooperao

    bilateral que determinado pas-membro tem com outros pases. Morais admitia,

    assim, implicitamente, o que se tornou claro desde que os chineses chegaram a

    Luanda: com uma linha de crdito de 2 mil milhes de dlares (e com as outras

    parcelares ou subsequentes), a negociao de um programa monitorizado com o

    Fundo Monetrio Internacional deixou de constituir prioridade para Angola, que

    encontra nos chineses condies mais vantajosas e menos embaraantes. Porm,

    no previsvel que Angola corte os laos com Bretton Woods (o preo a pagar por

    fechar essa porta seria incomportvel, sobretudo politicamente), mas o crdito

    chins (entre outros), ao representar fontes alternativas de financiamento, aumenta a

    margem de manobra negocial de Luanda perante o Fundo, cujo percurso e discurso

    face a estas autoridades parece, alis, nos ltimos meses, dar sinal de alguma

    flexibilidade como o demonstra o relatrio de Maro (no mbito do Artigo IV)34.

    Sabemos que nas relaes internacionais so os interesses e conjunturas que

    ditam boa parte do processo decisrio, flutuando ao sabor das circunstncias, com

    agendas assumidas e agendas escondidas, com aproximaes e distanciamentos em

    funo de cumplicidade de protagonistas, com objectivos a prosseguir ditados por

    factores que, muitas vezes, esto fora de controlo dos decisores. At que ponto a

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    34 Alves da Rocha, reputado economista angolano e Professor na Universidade Catlica de Angola, dizia

    revista Viso: O FMI no tem mais nada a fazer aqui. Os seus enviados confessaram terem aprendido

    como se usa a arma do petrleo para fazer realpolitik (Revista Viso, n 683, 6 de Abril de 2006).

  • presena chinesa vai conseguir ficar sob controlo de Luanda, matria para

    especulao. Mas ficam as perguntas: estar Angola em riscos de ficar refm da

    China? E como ser se as circunstncias internas da China mudarem abruptamente?

    A construo em larga escala, altamente tcnica, e sem correlativa formao de mo

    de obra angolana, pode ameaar toda uma panplia de equipamentos que se

    arriscam a deixar esfumar o toque de Midas chins para dar lugar a elefantes

    brancos ingerveis e, consequentemente, improdutivos. Mas o mais interessante na

    arquitectura das relaes internacionais e, seguramente, o mais relevante saber

    se, a mdio prazo, Angola e os outros pases africanos vo tender a redesenhar os

    seus crculos de amizade, seno mesmo de insero geoestratgica. No caso

    angolano, a resposta a esta questo no separvel do ciclo eleitoral que se avizinha

    e permito-me arriscar dizendo que o posicionamento de Luanda em muito

    depender do(s) respaldo(s) que sentir face s eleies que o mundo inteiro vai

    observar com desvelada ateno. O modo como a comunidade internacional se tem

    posicionado face ao processo eleitoral deixa adivinhar parte da resposta.

    Se h ensinamento que levo de Angola que nunca, mas mesmo nunca,

    devemos subestimar o modo sagaz como os decisores aqui olham para o enqua-

    dramento estratgico no processo de tomada de deciso. A poltica externa angolana

    uma lio quotidiana de pragmatismo e de realpolitik. A proximidade com a China

    deve ser lida nessa ptica: Angola precisa de dinheiro e tem para oferecer, em troca,

    (muito) petrleo35. Os chineses estiveram atentos e chegaram primeiro. Fez-se o

    negcio a contento de todos. O que mudar na face de Angola? Seguramente muito

    para alm das estradas e pontes que se constroem vista de todos. Mas ainda cedo

    para dizer ou perceber o impacto que aqui se poder sentir, e para avaliar o sucesso

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    35 luz da contemporaneidade, a transcrio deste dilogo pode parecer simplista mas, na sua essncia,

    ilustra o que se passa entre Angola e a China:

    () fundar esta cidade num lugar tal que no precisasse de importar nada, quase impossvel.

    Efectivamente, impossvel.

    Precisar, pois, de outras pessoas ainda que lhe tragam de outra cidade aquilo de que carece.

    Precisar.

    Mas, certamente, esse mensageiro se for de mos vazias, sem levar nada daquilo que precisam as

    pessoas de junto das quais h-de trazer o necessrio para a sua cidade, regressar de mos vazias? No

    assim?

    Assim me parece.

    Plato, A Repblica, Edio da Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, 370e, pgina 75.

  • ou insucesso de uma estratgia de entrada que apostou em conquistar terreno, quer

    pela via econmica (o hardpower), quer pela via cultural (o softpower). No duvido que,

    cedo ou tarde, algum se lembrar de invocar Samuel Huntington para tentar

    clarificar o que resultou do cruzamento do animismo com o confucionismo36. Os

    prximos anos constituem, por isso, terreno frtil para socilogos e antroplogos

    verem se os chineses que vieram para Angola seguiram a mxima de Confcio:

    Lembra-te: onde quer que vs, a que ests.NE

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    36 Para uma revisitao do paradigma huntingtoniano dando notcia do amplo debate em torno do choque

    de civilizaes, cfr. Armando Marques Guedes, As guerras culturais, a soberania e a globalizao: o choque das

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